Renato Kehl e a eugenia no Brasil: ciência, raça e nação no período entreguerras

O autor da obra é o historiador Vanderlei Sebastião de Souza, professor adjunto do Departamento de História da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), do Programa de Pós-Graduação em História pela mesma instituição e do Programa de Pós-Graduação em História Pública da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR). É graduado em História (2002), com mestrado (2006), e doutorado (2011) em História das Ciências pela Casa de Oswaldo Cruz – Fiocruz.

Assim, o livro denominado Renato Kehl e a eugenia no Brasil: ciência, raça e nação no período entreguerras (2019), é dividido em quatro capítulos, sendo o prefácio da obra assinado pelo sociólogo Robert Wegner, professor do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/FIOCRUZ). Fazendo uma análise do processo metodológico instrumentalizado pelo autor, Robert Wegner afirma que “além de ser um livro bem escrito e embora denso, de agradável leitura, atinge uma técnica exemplo na articulação entre o desenvolvimento do argumento e a utilização das fontes” (p. 24-25).

No primeiro capítulo intitulado A eugenia no Brasil e a questão social no início do século XX, Vanderlei de Souza começa trazendo em ótica a construção da ciência eugênica no estado brasileiro e sua aplicabilidade enquanto medida de restauração da ordem social-nacional. Assim, debruça-se acerca da discussão da implantação das ideias e práticas eugênicas no Brasil, compreendendo especificadamente o período entre guerras, ou seja, o período que abraça o espaço temporal entre duas Guerras Mundiais (1919-1939), momento chave para a expansão do pensamento eugênico, o qual recebera amplo apoio da intelectualidade e atenção dos órgãos de imprensa. O recorte temporal aqui é essencial ao estudo e análise das propostas de ideais eugênicos postos em prática no Brasil, bem como analisar também o esforço intelectual em incorporar pela cientificidade o “sentido nacional”.

Ao longo do capítulo, fica explícita a emergência de uma nova configuração de sociedade e forma de pensar que estava em voga, cabendo aos intelectuais a tarefa de colocar no papel as novas características da nação que seria projetada racionalmente, mediante legitimação biológica dos preceitos médicos e apreço às teorias da saúde pública. Percorrendo a conjuntura histórica existente no contexto brasileiro no que tange ao pensar o Brasil enquanto país, buscava-se construir sua identidade nacional lidando ainda com problemas históricos mal resolvidos, dentre os quais encontrava-se a mestiçagem, a péssima higiene dos brasileiros, déficit de habitação, o analfabetismo etc.

A propósito, Vanderlei de Souza enquadra a questão social como um dos principais traumas que suscitavam o debate por parte dos intelectuais e que incentivou grande número deles em adotar ideais eugênicos. Nesse momento do texto, as apuradas reflexões do autor são calcadas na discussão acerca do incômodo da intelectualidade com a indefinição do Brasil enquanto nação. Isso posto, sincronizado com o olhar do autor, está a condução do entendimento por Renato Kehl (1889- 1974) a respeito dos problemas sociais brasileiros, uma vez que o Brasil do início do século XX, estando habitado por uma população negra, miscigenada, indígena e sertaneja, era colocado em dúvida o sucesso dessa nação.

Nesse livro, encontram-se ancoradas questão pendentes ao pensar a eugenia no Brasil e no mundo, envolvendo intelectuais, médicos sanitaristas, jornalistas, políticos e profissionais liberais que depositavam no movimento eugênico a esperança de melhoria da raça brasileira. O Brasil era, assim, um país multirracial à espera de sua libertação, que viria pela melhora da raça e pela instauração de uma verdadeira identidade nacional. A questão central voltava-se pela raça e era pelo pensamento do problema racial que o país entraria nos trilhos da modernização e civilidade. Não obstante, consoante observado, era na raça, para ela e por ela, que se encontrava o caos, e concomitantemente, a salvação para a nação.

Não deixa de ser notável que o autor logrou êxito em contextualizar o momento histórico que seria influenciador da ótica analítica formada por Kehl, posto que a singularidade teórica desse médico-intelectual favorecera a aplicação de política eugênica nas instâncias de vida dos brasileiros. Evidencia-se que o panorama analisado se volta ao “poder” de influência da intelectualidade na construção da nação, de modo que não menos verossímil é que, em sintonia com esse quadro é que se dá o avanço das pesquisas epidêmicas, bacteriológicas e sanitaristas. “Se até então, a mestiçagem e o clima eram vistos como as principais causas da degeneração racial, a ciência demonstrava, agora, que o atraso do país estaria relacionado às doenças e à falta de saneamento” (p. 56-57).

O autor destaca e apresenta também que exemplo mais latente dessa nova percepção é o escritor Monteiro Lobato que sintetiza bem a questão do “Brasil doente” ao escrever o conto Urupês1, publicada originalmente em 1918, no qual expõe o sertanejo Jeca Tatu como um ser fraco, ignorante e impossível de evoluir. Contudo, como sugere Vanderlei de Souza, Lobato altera sua visão ao entender o Jeca como um ser inacabado, fruto do abandono, mas que, com cuidado, poderia evoluir se exposto a melhor higiene e boa educação. “A guinada teórica assumida por Monteiro Lobato transformou-se em símbolo de um amplo movimento nacionalista que ganhava força junto à elite intelectual e política brasileira” (p.58).

Assim, mantida essa perspectiva teórica, a eugenia de fato enquanto um projeto político chegara ao Brasil na década de 1910, sob projeção de Renato Kehl em realização de uma extensa campanha de divulgação, como bem destacado pelo autor da obra, em São Paulo no ano de 1917 o trabalho de Kehl rendeu uma ampla conferência, em que “[…] procurou destacar nesta conferência os principais fundamento da eugenia, principalmente o estudo da hereditariedade, a educação eugênica, a seleção conjugal, o direito relativo à eugenia, à higiene e ao saneamento” (p.64).

No capítulo seguinte, cujo título é Renato Kehl: um eugenista em formação, os artifícios narrativos operados pelo autor conduzem a argumentação a reconstruir a imagem de Kehl enquanto médico, pesquisador, propagandista da ciência eugênica e cidadão brasileiro. A rigor, com o desenvolvimento do texto, o autor compõe os traços da trajetória intelectual do médico voltando-se ao recorte temporal de 1917 a 1927, período em que Kehl inicia sua campanha de divulgação da eugenia e atua como médico higienista no Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP). Conforme reforça Vanderlei de Souza “nesse contexto, […] Renato Kehl acionou estratégias políticas e intelectuais com o objetivo de estabelecer uma estreita identidade entre o seu nome e as ideias e discussões relacionadas à eugenia” (p.116).

Com o objetivo de criar uma rede de expansão do pensamento eugênico, Renato Kehl toma a iniciativa de fundar a Sociedade Eugênica de São Paulo. Em sessão inaugural no Salão Nobre da Santa Casa de Misericórdia no dia 15 de janeiro de 1918, aberta por Kehl, nomeado Secretário geral da Sociedade, compareceram médicos, jornalistas, juristas e autoridades políticas. Contudo, Renato Kehl entedia que era necessário expandir o pensamento eugênico também no Rio de Janeiro, então Capital Federal e, para tanto, elege o também médico Belisário Penna (1868-1939) para liderar a Campanha na cidade carioca, numa ampla rede de médicos e intelectuais envoltos num projeto de pensar a raça, a higiene e o saneamento.

Por este viés, a conjuntura da narrativa proposta parte a mergulhar nos meandros das próprias intenções de Kehl em assumir a liderança do movimento eugênico e tomar para si a responsabilidade de coordenar a campanha ao lado dos demais intelectuais. O autor do livro buscando referendar o argumento referente ao olhar do intelectual acerca da eugenia, evoca que “Renato Kehl acreditava que, à medida que a eugenia fosse aceita por um número maior de intelectuais, tanto essa ciência quanto ele próprio poderiam ocupar legitimamente a posição dominante no pensamento do médico brasileiro” (p. 139- 140).

Trata-se, não por acaso, de um momento histórico-chave para compreensão do movimento eugênico no Brasil, especialmente décadas de 1910 e 1920. Por esse viés, a narrativa é direcionada a atingir o desenvolvimento do pensamento científico, bem como o olhar da intelectualidade acerca da eugenia. Observa-se que ao lado de Renato Kehl, estavam Oliveira Vianna e Azevedo Amaral, que juntos iriam se colocar a favor da aplicação do projeto eugênico, mantendo em ação a comunhão do discurso autoritário e racialista no pensamento social brasileiro.

É plausível de argumentação que, visando Renato Kehl e seu esforço na busca em construir sua rede de intelectuais no fortalecimento do projeto eugênico, o autor envolve a teoria do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002), no que se volta às práticas sociais empregadas por Kehl, sendo elas políticas e intelectuais, devendo ser compreendidas “[…] como práticas ou estratégias que constituem as relações de poder e de lutas concorrenciais num dado campo, pelas quais um cientista ou um intelectual, como um agente social, legitima suas concepções e seu espaço no interior do campo científico” (p.157). A sistematização teórica de Bourdieu assumida por Vanderlei de Souza é essencial ao percorrer da obra, mas em destaque, ela se apresenta incisivamente nos capítulos dois e três, com a articulação do campo científico e relações simbólicas que os agentes sociais estabelecem.

Por seu turno, no capítulo três, cujo título é A hora da virada: a “higiene racial” alemã e as lições de eugenia, a questão da higiene racial é melhor delimitada, posto que Renato Kehl ao realizar uma viagem para a Alemanha em 1928, retorna ao Brasil com novos entendimentos do pensamento eugênico. Nesse ponto é que o autor foca na obra Lições de Eugenia 2, publicada por Kehl em 1929, lançada dias antes da realização do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia. “Kehl acreditava que sua obra poderia ser o parâmetro científico que permearia as discussões do congresso, definindo com antecedência aquilo que considerava serem as questões centrais […]” (p. 217).

Constituindo-se um verdadeiro “manifesto”, trazia 12 lições amparadas nas reflexões dos principais eugenistas e movimento eugênicos, em especial o programa eugênico alemão. Portanto, pelo que indica os dizeres do autor, tem-se aí enquadrado que “[…] essas novas ideias assumidas por Renato Kehl consistiam na transposição do Brasil para um modelo de eugenia que se formava, principalmente, na Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos” (p. 228). Não obstante, é nesse fluxo que Vanderlei de Souza elenca e constrói a trama narrativa retomando a trajetória do pensamento racista-biológico na consolidação do movimento eugênico nos anos 1920, pensando suas influências externas, que muitas vezes mantinham e carregavam as concepções simbólicas de caráter racial e racista.

O último e quarto capítulo intitulado como “Quem é bom já nasce feito”: a eugenia “negativae o racismo científico em Renato Kehl, é reforçada a forma pela qual Kehl acaba assumindo o determinismo biológico enquanto caminho de teoria calcado nos preceitos da hereditariedade. Nesse contexto, para o “bem dos indivíduos”, eles deveriam se casar com alguém do mesmo tipo racial, uma das principais medidas eugênicas, visto que “segundo Renato Kehl, as leis mendelianas possibilitariam que os jovens casais pudessem ‘prever com certa precisão’ como seria a sua descendência, evitando o nascimento de ‘proles indesejáveis” (p. 281).

Ou, nesses termos, acabam sendo adotados por Renato Kehl argumentos a favor da forte contestação à mistura racial e, concomitantemente, acontece o incentivo à segregação de raça devido à proximidade com o racismo científico. Outrossim, não esquecendo das discussões travadas na conjuntura do início do século XX, o autor lembra das argumentações envolvendo a raça e a imigração que se findaram nas políticas de restrição. Mantendo-se esse panorama de raciocínio, já à caminho da conclusão da obra, torna-se perceptível que uma das questões latentes do pensamento de Renato Kehl é raciocinar a raça miscigenada brasileira e projetar a política de imigração como forma de branqueamento. Para ele “[…] o governo deveria, portanto, proibir que ‘elementos inassimiláveis’ tivessem entrada franca em solo brasileiro, principalmente os indivíduos negros e amarelos […]” (p.279).

É plausível expor o entendimento de que a leitura do livro em sua ampla abordagem contextual e teórica oferece ricas contribuições ao desbravar a vida e o pensamento de Kehl, refletindo a amplitude e a complexidade da discussão do estudo eugênico. Nesse ínterim, reforça-se que os estudos do autor abrem espaço para a ampliação e o aprofundamento de pesquisas similares no campo da história da ciência.

Em suma, a obra escrita em leitura fluída, prazerosa, é essencial no que tange ao estudo da história da ciência no Brasil, o historiador Vanderlei de Souza constrói uma conjuntura narrativa buscando abarcar o contexto histórico do início do século XX, refletindo a potencialidade intelectual do médico paulista Renato Kehl na construção de propostas para pensar o Brasil, que permitem refletir a eugenia que emerge enquanto elemento fundamental nesse processo de reconstrução brasileira. Por fim, a organização da obra e o bom amparo às fontes favorece uma leitura agradável e de fácil assimilação da discussão proposta.

Notas

1 LOBATO, Monteiro. Urupês. 9.ed. São Paulo: Brasiliense, 1957. Série Obras Completas de Monteiro Lobato.

2 KEHL, Renato. Lições de Eugenia. Rio de Janeiro. Editora Francisco Alves, 2º Edição, 1929


Resenhista

Fernando Tadeu Germinatti – Mestrando em História pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Renato Kehl e a eugenia no Brasil: ciência, raça e nação no período entreguerras. Paraná: Unicentro, 2019. Resenha de: GERMINATTI, Fernando Tadeu. Revista de História da UEG. Morrinhos, v.9, n.2, jul./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]

 

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