Revolucionário e gay: a vida extraordinária de Herbert Daniel – pioneiro na luta pela democracia/ diversidade e inclusão | James N. Green

James N. Green nasceu no ano de 1951 em Baltimore nos EUA e é atualmente professor de História Latino-Americana na Brown University, além de ativista de causas políticas e LGBTQ+. Green é diretor de um dos mais importantes centros de estudos sobre o Brasil no exterior, e está à frente do Projeto Opening Archives, programa que tem milhares de documentos sobre o período da ditadura militar brasileira. Green é homossexual e um dos maiores brasilianistas dos EUA, características que se refletem em suas obras.

O livro “Revolucionário e Gay: A vida extraordinária de Herbert Daniel – Pioneiro na luta pela democracia, diversidade e inclusão”, lançado no ano de 2018, é uma obra biográfica sobre Herbert Eustáquio de Carvalho, mais conhecido como Herbert Daniel (Daniel era um de seus codinomes) – um complexo personagem da esquerda revolucionária no contexto político da década de 1960, falecido em 1992. Intelectual e guerrilheiro, Daniel fez parte de diversos grupos políticos, como Colina, VAR-Palmares, e VPR.

A grande questão do livro é retratar um sujeito que, além de revolucionário, é também gay. Diante de uma esquerda homofóbica, Daniel teve que esconder sua sexualidade, vivendo um “exílio interno” – assim chamado, pois foi forçado a viver também um exílio territorial na Europa, período em que fortaleceu o seu corpo, seus ideais e seu psicológico. Quando retornou ao Brasil se engajou na política, tornando-se ativista em defesa do meio ambiente e da população negra, indígena e homossexual. No final de sua vida, a Aids o acometeu, mas isso o tornou ainda mais forte como militante, sendo até hoje uma grande referência em discussão da luta contra a AIDS.

Daniel era amigo pessoal de Dilma Rousseff, com quem militou por muito tempo no VAR-Palmares. Por tal motivo, Green, ao pesquisar sobre o tema, aproximou-se e entrevistou a ex-presidenta do Brasil. As falas de Dilma enriquecem a narrativa, uma outra visão, além da figura pública, é apresentada, vê-se Dilma Rousseff como amiga, imagem não construída pela mídia tradicional.

Dilma Rousseff, que conheceu Herbert em 1967, quando ambos eram membros da Polop, lembra-se de que ele lhe procurou no dia seguinte debulhando-se em lágrimas. Antes disso, Herbert lhe havia contado sobre sua homossexualidade e seu amor por um rapaz da organização (GREEN, 2018, p. 63).

A principal discussão presente no livro do brasilianista é a questão explícita no título em inglês “Exiles Within Exiles”, ou seja, “Exílios Dentro de Exílios” (tradução própria). A vida guerrilheira de Daniel é de tal modo interessante pois, além de ser um importante guerrilheiro na luta pela democracia, viveu uma luta interna em relação à sua sexualidade. Desde cedo procurou esconder que era homossexual, mesmo quando começou a se relacionar em segredo com homens fez o papel de “ativo”, considerando assim que não participava de relações homossexuais, mas sim com homossexuais. A sociedade de seu tempo era muito preconceituosa em vários aspectos e a temática gay não era debatida, pouco se sabia sobre e, nesse contexto, as esquerdas brasileiras não estiveram excluídas de reproduzirem tais pensamentos.

Segundo perspectivas tradicionais compartilhadas pelo movimento comunista internacional, a homossexualidade era um produto da decadência da burguesia. Diante disso, Daniel vê necessidade em esconder seus desejos sexuais. Green diz que a razão para isso é que Daniel realmente acreditava que a luta armada era a melhor forma de instaurar a democracia, por isso a necessidade de deixar sua sexualidade de lado e apoiar a guerrilha. Porém, com o passar do tempo, é possível perceber um novo Daniel, a partir da mudança de suas ideias em relação ao movimento gay, à discriminação sexual, novos olhares são direcionados à esquerda. Isso se deveu ao tempo de Daniel em exílio na Europa, quando entrou em contato com novos pensamentos em Portugal e em Paris, como por exemplo o pensamento feminista. Assim, surge um sujeito que é vital para conectar os pensamentos revolucionários com os movimentos sociais que emergem.

A trajetória de Daniel revela o poder das forças históricas que moldaram sua vida e a de tantos jovens que amadureceram sob o regime militar, buscaram diversas formas de desafiar a ditadura e, então, repensar radicalmente a política do poder, a sexualidade e o corpo no fim do século XX no Brasil (GREEN, 2018, p. 337).

A estrutura do livro é dividida em 17 capítulos apresentados de forma cronológica, com exceção do primeiro que narra o último ano da vida de Daniel. No começo do livro há um prefácio intitulado “O laço que nos une”, escrito por Jean Wyllys – considerado por Green o herdeiro político de Daniel – que traz uma reflexão necessária sobre a construção histórica. Sendo a história uma construção social, ela depende do que se escolhe querer lembrar, querer discutir. Daniel, mesmo sendo um grande protagonista do período da ditadura civil-militar, não faz parte do imaginário dessa época por conta da homofobia presente na sociedade. Green traz em sua introdução reflexão similar e mostra a importância de se falar de tais personagens, além de tratar da sua admiração pelo protagonista do livro.

O primeiro capítulo é “Ousar lutar, ousar vencer (1992)”. O autor trata da morte de Daniel, seu enterro, falando também de seu lema de vida. O capítulo “Ele adorava ler (1944- 1964)” apresenta a família de Daniel, seu nascimento, sua infância e suas características. “Faculdade de Medicina (1965-1967)”, o terceiro capítulo, aborda a entrada de Daniel na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) no curso de Medicina, e consequentemente o contato com a militância. O capítulo “‘O’. (1967-1968)” conta sobre as dores de uma paixão de Daniel e o grupo que participava na época, a “Organização”. O quinto capítulo, “Ângelo (1968)”, trata sobre um dos melhores amigos de Daniel que dá nome ao capítulo. “Clandestino (1969)” traz o início da época de clandestinidade de Daniel e “União e Separação (1969)” explica sobre a junção do grupo Colina, que Daniel fazia parte, à VPR, formando a VAR – Palmares.

O capítulo “Para o campo! (1970)” trata da época em que Daniel foi treinado por Carlos Lamarca no Vale da Ribeira. “40 + 70 = 110 (1970-1971)” mostra Daniel depois de fugir da Ribeira e a sua ação nos dois sequestros dos embaixadores alemão e suíço, pela troca de 40 e 70 presos políticos, respectivamente. “Caindo aos pedaços (1971)” mostra um período em que Daniel está bem abalado por diversas razões, a VPR acaba e Lamarca morre. O capítulo intitulado “Cláudio (1972-1974)” retrata a grande paixão do revolucionário, o designer Cláudio. O décimo segundo capítulo “Cravos Vermelhos (1974-1975)” narra o exílio do casal na Europa, primeiramente em Portugal. No capítulo “Marginália (1976-1979)” o autor retrata o período do exílio de Daniel na França. Green desenvolve um argumento muito interessante nesses dois capítulos que tratam da vida de Daniel na Europa: “Paradoxalmente, o armário simbólico que construiu para acobertar seus sentimentos eróticos e emocionais parecia servir-lhe bem na clandestinidade” (GREEN, 2018, p. 104), ou seja, o exílio externo de sete anos é vencido, pois Daniel viveu um exílio interno por mais de duas décadas.

“De volta ao Rio (1981-1982)” mostra a luta pela volta do exilado ao Brasil, e o alcance dessa conquista. O capítulo “Palavras, palavras, palavras (1983-1985)” retrata o período que Daniel mais escreveu livros, abordando diversas de suas publicações. “A política do prazer (1986-1988)” aborda o período em que Daniel entrou no campo da política, se candidatando a deputado estadual pelo Rio de Janeiro. O último capítulo “Quarenta segundos (1989-1992)” traz a descoberta da Aids por Daniel e sua luta tanto para sobreviver como para militar sobre a doença. Faz-se necessário dizer que Green consegue permanecer fiel ao seu protagonista e ao seu lema de vida, nesse capítulo em específico, o autor expõe o lema presente também no livro “Vida antes da morte”, publicado em 1989, “Quando adoeci, com uma infecção típica da Aids, percebi que a primeira pergunta a ser respondida é se há vida, e qual, antes da morte” (DANIEL, 1989, p. 5). O epílogo, intitulado “O que sobrou” conta que Claúdio, seu grande amor, acabou falecendo também acometido pela Aids, mas de propósito, devido a tristeza que sentia pelo destino de seu companheiro.

No final do capítulo “Cláudio (1972-1974)” são apresentadas 45 imagens, as únicas representações iconográficas encontradas no livro. Elas retratam toda a vida de Daniel cronologicamente e representam todas as fases que perpassam o livro, seus pais, sua infância, a graduação na UFMG, colegas de guerrilha, seu companheiro Cláudio, o exílio, o período eleitoral e o final de sua vida. É evidente que a incorporação das fotos à narrativa não é meramente ilustrativa, Green mostra a diversidade de fontes históricas disponíveis ao historiador. Para além das fotografias, são mostrados jornais, revistas, folhetos, anúncios, livros, desenhos, declarações, cartazes, material de campanha política, fichas de polícias, entre outros. Esses documentos vêm de diferentes acervos e são instrumentos que possibilitam por parte do leitor uma maior apreensão de quem foi e como foi a vida do sujeito Daniel.

É interessante também analisar o uso de trabalho oral na pesquisa do brasilianista. Green realiza ao todo 84 entrevistas e tais fontes históricas são fundamentais para a construção da narrativa. É possível que se compreenda a História como um conhecimento que se constitui não apenas com documento escritos, mas também com fontes orais, primordiais para a composição do livro. Green retrata em sua escrita a questão da dificuldade e o perigo de se trabalhar com fontes orais, alguns depoimentos colhidos não correspondem com o de outras pessoas, ou o tempo apagou muitas das lembranças da época. Comparando entrevistas orais o autor nota que o que algumas pessoas dizem, outras testemunhas não concordam ou divergem em detalhes, como a duração de um evento ou uma data específica.

Uma dificuldade relatada por Green com relação às suas fontes foi o falecimento de uma das poucas testemunhas da época antes da conclusão das pesquisas que deram origem ao livro. Outra dificuldade foi a utilização do livro “Meu corpo daria um romance”, de Herbert Daniel, que mistura biografia e ficção, tornando a tarefa de utilizar o livro como fonte histórica complexa. Porém, Green também relata momentos de felicidade no exercício de seu ofício, principalmente ao falar da mãe de Daniel, Dona Geny, “Sentado na modesta sala de estar de uma casa bem-arrumada, passamos horas e horas conversando, enquanto ela generosamente me oferecia café e bolos” (GREEN, 2018, p. 20). O brasilianista conta que quando se despediram viu a saudade profunda do filho nos olhos da mãe – além de presenciar momentos em que ela abre seu coração e mostra presentes de valor sentimental, como por exemplo um perfume Chanel que Daniel deu para ela.

O objetivo do livro “Revolucionário e gay” não é dar uma aula de história, porém Green consegue contextualizar de forma muito didática o período em que Daniel vive. Em todos os capítulos haviam recapitulações da época, passando pelo início da ditadura civilmilitar brasileira até o período de redemocratização, se detendo aos principais acontecimentos. Fala-se de Jango sendo deposto, da instituição dos Atos Institucionais, da criação dos novos partidos políticos, dos grupos guerrilheiros e revolucionários, da morte de Edson Luís, da passeata dos 100 mil, das greves de Osasco (SP) e Contagem (MG), do “milagre econômico”, da Copa do Mundo de 1970, da morte de Vladimir Herzog, da Lei da Anistia, do movimento das “Diretas Já”, de Tancredo Neves, do Governo José Sarney. O livro é por isso útil a quem se interessar pelo período da ditadura civil militar brasileira e pelas questões históricas que envolvem a esquerda brasileira nesse período.

Para aqueles que se interessam pela história LGBTQ+ (e mais especificamente o movimento gay) encontrará no texto de Green a fala de grupos principais, com a abordagem do “Lampião da Esquina” e a própria história do biografado, que é um sujeito homossexual. Daniel é um dos principais nomes na questão da Aids, seus escritos sobre o assunto são usados até hoje no mundo inteiro, afinal ele revolucionou a imagem da doença ao enxergá-la não pela morte, mas pela vida de quem é dela portador.

Daniel pode ser comparado a Harvey Milk, o primeiro gay assumido a alcançar um cargo público de importância nos Estados Unidos. Milk é retratado no filme “Milk – A voz da igualdade”, sendo possível perceber a construção de um sujeito que viveu uma intensa batalha política e também uma batalha consigo mesmo. Ele busca direitos iguais e oportunidades para todos, sem discriminação sexual. Daniel, apesar de ter se candidatado a Deputado Estadual do Rio de Janeiro e não ter vencido, teve suas ideias políticas inovadoras abraçadas por Liszt Vieira, com pautas sobre o meio ambiente e o respeito a toda forma de amor.

O fato de uma pessoa tão importante para a história do Brasil cair no esquecimento reflete vários aspectos da sociedade brasileira. Memória é uma construção social, e o fato de Daniel não ser conhecido entre as novas gerações demonstra quanto da homofobia existente influenciou no apagamento de sua permanência como personagem histórico relevante. Como disse Jean Wyllys, esse apagamento “expõe o quanto nossa sociedade é homofóbica e refratária à visibilidade de personalidades que dignifiquem a homossexualidade” (WYLLYS, 2018, apud GREEN, 2018, p. 14). Ainda assim, o livro “Revolucionário e gay” cumpre bem o papel de tratar dos não tratados. Em entrevista para o programa Roda Viva, James Green disse que “Esse livro é basicamente pra criar referências para pessoas LGBTs e seus aliados de pessoas que sabiam ou tentaram ligar as reivindicações das esquerdas no Brasil com as reivindicações LGBT e de outros movimento sociais” (GREEN, 2019, 14:20-14:34) – como Daniel fez. É um livro necessário que lembra a existência e a importância de Daniel como revolucionário, gay, ativista.

“A biografia de Daniel, defendo eu, não é apenas uma operação de resgate de uma figura um tanto singular da história do Brasil contemporâneo; é também um veículo para repensar toda a narrativa” (GREEN, 2018, p. 24). No final do livro Green traz a lembrança da ex-vereadora Marielle Franco, mulher, negra, mãe, da comunidade LGBTQ+, nascida na Favela da Maré, e ativista. É por pessoas como ela que o livro é necessário, para lembrar dos que muitos querem esquecer e que por tal motivo acabam não sendo representados. Green contribui para essa representatividade – uma rememoração das minorias que na verdade são maioria. No livro “AIDS A terceira epidemia: ensaios e tentativas”, de Herbert Daniel e Richard Parker, publicado em 1991, os autores dedicam seus escritos aos que são considerados a escória da sociedade, “Revolucionário e Gay” faz o mesmo.

a todas as personagens – homossexuais, bichas, viados, sapatões, sapatilhas, entendidos, gays, lésbicas, bofes, monas, gueis, mariconas, travestis, transformistas, perobos, transexuais, michês, prostitutos(as), garotos, giletes, bonecas – que constelando a noite das cidades fazem-nas mais belas e menos sórdidas. E, esperamos, um dia, mais solidárias (DANIEL e PARKER, 1991, p. 5).

Referências

BROWN UNIVERSITY. James N. Green. Disponível em: https://www.brown.edu/academics/history/people/james-n-green  Acessado em: 30/06/2019.

DANIEL, Herbert. Vida antes da morte – Life before death. Rio de Janeiro: Tipografia Jaboti, 1989.

DANIEL, Herbert; PARKER, Richard. AIDS A terceira epidemia: ensaios e tentativas. São Paulo: Iglu Editora, 1991.

GREEN, James N. Entrevista do historiador James Green: 07 jan. 2019. Entrevista concedida ao programa “Roda Viva”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=59UGjk60dfA.  Acessado em: 01/06/2019.

GREEN, James N. Revolucionário e gay: a vida extraordinária de Herbert Daniel – pioneiro na luta pela democracia, diversidade e inclusão. 1a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

MILK – A voz da igualdade. Direção de Gus Van Sant. São Francisco: Universal Pictures, 2009. DVD (128 min.).


Resenhista

Alysson Brenner Nogueira Pereira – Graduando em Licenciatura e Bacharelado em História pela Universidade Estadual de Campinas. Anteriormente concluiu o Técnico em Informática Integrado ao Ensino Médio no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais – Campus Muzambinho.


Referências desta Resenha

GREEN, James N. Revolucionário e gay: a vida extraordinária de Herbert Daniel – pioneiro na luta pela democracia, diversidade e inclusão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. Resenha de: PEREIRA, Alysson Brenner Nogueira. O exílio dentro do exílio de Herbert Daniel – um exemplo da homofobia presente na esquerda revolucionária brasileira. Ofícios de Clio. Pelotas, v. 5, n. 9, p. 487- 493, jul./dez. 202o. Acessar publicação original [DR]

 

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