Ritos da Oralidade: a tradição messiânica de protestantes no Regime Militar Brasileiro | Leandro A. Seawright

Desde 2016 os pesquisadores do protestantismo e dos protestantes no Brasil têm acesso à obra de Leandro Seawright, lançada poucos meses após a defesa de sua Tese no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo – USP. Ritos da Oralidade: a tradição messiânica de protestantes no Regime Militar Brasileiro, publicada pela Paco Editorial, é fruto de vasta pesquisa produzida por um estudioso profundamente envolvido com o campo da temática. Seawright é um historiador dedicado aos estudos sobre a História das Religiões, ao Brasil República e à Teoria da História, bem como é um oralista. Desde as suas graduações se dedicou, portanto, à história do protestantismo brasileiro.

Resultado de trabalho intenso (a tese original tem mais de 800 páginas!), a presente obra se constituiu como fonte de muito aprendizado, principalmente por suas extensas e cuidadosas reflexões metodológicas e teóricas – proporcionando muitas informações sobre as relações entre os setores do protestantismo brasileiro com o Regime Militar.

Partindo da memória de expressão oral e de uma nova historiografia, o autor desenvolveu a sua pesquisa visando uma revelação de parte do cenário político que permeava o protestantismo brasileiro nos chamados “anos de chumbo”. Nesse propósito, Seawright adotou a história oral como disciplina e não apenas como metodologia que estabelece, que ordena procedimentos de trabalho. Aderindo ao diálogo entre as ciências humanas, elaborando o que chama de “costura artesanal” em história oral, o autor partiu de entrevistas com colaboradores para poder construir o conhecimento apresentado.

Assim, pôde “coser” essa obra composta de cinco capítulos, iniciando com a história do projeto – característica dos trabalhos de história oral que manam do Núcleo de Estudos em História Oral da Universidade de São Paulo (NEHO-USP). Em seguida, apresenta uma definição de história oral que assume, esclarecendo o tema da pesquisa, o referencial de memória coletiva sustentada, entre outros, por Halbwachs, assim como a construção do corpus documental.

Os capítulos 3 e 4 são os mais densos. Em franca oposição, o “messianismo protestante de direita” e a militância de protestantes que resistiram ao Regime Militar, são abordados com vigor. O capítulo 3 começa com uma declaração daqueles que dizem que “salvaram o Brasil” do governo demoníaco do comunismo. Em um processo de eleição e comissionamento divinos, esses que “salvaram” o país expõem suas narrativas, as quais o pesquisador dá livre curso. Assim pôde ouvir não apenas ao pastor batista Enéas Tognini e a sua história de “salvação e exorcismo” do Brasil. Da mesma forma, ouviu a outros na mesma direção.

Todavia, em contrapartida, são apresentadas também as narrativas dos que resistiram ao Regime Militar. Tratam-se daqueles que questionaram o papel alienante das igrejas protestantes que davam prioridade ao proselitismo e ao anticatolicismo, em detrimento da busca da justiça e da proclamação estrita de valores espirituais, como é o caso de Anivaldo Pereira Padilha.

No penúltimo capítulo, Seawright trabalha com a memória religiosa pós Regime Militar daqueles que sofreram exílio, torturas, perdas, retornos e conversões. Trata-se de uma sequência de narrativas que, grosso modo, expõem as trajetórias desses colaboradores em um esforço de integração à vida social durante e após as experiências de ambos os lados da trincheira: militantes, perpetradores, exilados, guerrilheiros.

Finalmente, na condição de pesquisador da Comissão Nacional da Verdade, CNV, Seawright conclui a obra com uma exposição de aspectos da “Justiça de transição brasileira” (CNV) interligados à sua atuação no Grupo de Trabalho sobre o papel das igrejas durante o Regime Militar, tecendo um breve relatório dos trabalhos desse GT, além das considerações finais.

A história oral se apresenta nesse texto como uma possibilidade vasta no universo historiográfico, além de ser interessantíssima, rica e orgânica. Portanto, o resultado é um texto que esbanja vitalidade, no qual os colaboradores têm ânsia de falar. Enéas Tognini, por exemplo, fala “generosamente”, até porque afirma que a sua história é “tremenda”. Parece que todos, colaboradores e pesquisador, têm um desejo enorme de narrar. Quanto a Seawright, a intersubjetividade entre os entrevistados e o pesquisador se revelam nesse texto, o que impressiona os mais acostumados a uma escrita científica tradicional. Quando descreve a história do projeto, apresenta pequenas partes de sua trajetória, memórias, experiências múltiplas – o que é característica dos projetos encetados na área da história oral, sem se afastar de seu “objeto” de estudo, mostrando que sempre foi inclinado para o tema aludido.

A história do projeto é uma das marcas essenciais do NEHO, inspirado pelo Prof. José Carlos Sebe Bom Meihy. Na condição de oralista orientado pelo Prof. Sebe, Seawright não abre mão de apresentar as suas observações e as experiências subjetivas no processo de elaboração, análise e implementação do projeto.

O autor descreve como foi se envolvendo com as propostas teóricas da história oral, perpassando por recursos não muito comuns em molduras convencionais, como a proposta de transcriação inspirada por Haroldo de Campos e pelo NEHO. Gestualidades, pausas, interditos, choros, risos, são elementos que fazem parte da transcriação e estariam limitados em uma transcrição tradicional. Seawright não se preocupa – nesse sentido – com os “elementos verdadeiros”; antes, está atento ao sujeito que se transcria na própria narrativa. É por isso, por exemplo, que o autor não se atém às questões psicanalíticas, nem questiona a veracidade do relato de seus colaboradores quando narram visões, descrevem diálogos com a divindade, etc. Prefere respeitar a narrativa do colaborador como um intérprete consciente, não ingênuo, que se posiciona politicamente. Afinal, o que moveu o narrador como partícipe do processo histórico, foi sua visão, sua percepção, independente das “reais condições”. A preocupação com a transcriação decorre de solução para perda significativa de quando apenas se transcreve – o que, de fato, ocorre na passagem da oralidade para o escrito e compromete o sentido original. A rigor, essa deveria ser a maior inquietação de quem está envolvido na passagem da oralidade para a textualidade escrita.

Em seu trabalho de transcriação das entrevistas de seus colaboradores, o autor considera que a memória sofre a passagem dos anos e, ao tempo da narração, os referidos interlocutores fazem outras leituras e interpretações do passado. Essas novas interpretações sofrem perdas e ganhos no decorrer do tempo. Essas mesmas entrevistas poderiam ter outras narrativas no fim da década de 1960, no ápice do governo Médici, no fim da década de 1970. Mas, além disso, a memória individual está ligada e é influenciada pela memória coletiva que, com o passar do tempo e das experiências individuais e comunitárias, também sofre mudanças. Essa possibilidade de a memória ser influenciada pela subjetividade, de ser imprecisa ou de ser “mentirosa”, pode ser fator de rejeição em uma pesquisa tradicional; como oralista do NEHO, Seawright se interessa por esses elementos e os vê como dados exegéticos.

Considerando como exemplo as narrativas ricas de visões de mundo com determinações espirituais, nas quais há um embate entre as forças diabólicas e aqueles que lutam pela justiça que provém de Deus, entende-se que a leitura que remete ao Diabo envolvido com os subversivos esquerdistas se alinha com a demonização do comunismo tão presente nesse momento da história brasileira.

Portanto, as entrevistas demandaram sintonia fina entre colaborador e pesquisador, afinal, cabe ao entrevistador, nesse caso, a responsabilidade pela transcriação, realizada com participação de ambos.

Pode-se afirmar que o grande subsídio científico dessa obra é a apresentação das relações institucionais entre protestantismo e Ditadura Militar, revelador de um messianismo que arroga para si o reconhecimento do papel de libertador, de quem salvou o Brasil de se tornar refém do “Império da Iniquidade” representado pelo “comunismo” de João Goulart e de outros militantes de esquerda. Essa significativa contribuição de Leandro Seawright para as ciências humanas justifica seu doutorado.


Resenhista

Natanael Francisco de Souza – Doutorando em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades pelo DIVERSITAS/USP. Mestre em História Social pela FFLCH/USP. Pesquisador do Núcleo de Estudos em História Oral – NEHO/USP.


Referências desta Resenha

SEAWRIGHT, Leandro A. Ritos da Oralidade: a tradição messiânica de protestantes no Regime Militar Brasileiro. Jundiaí: Paco Editorial, 2016. Resenha de: SOUZA, Natanael Francisco de. Fronteira: Revista de História. Dourados, v.19, n.34, p.429-432, jul./dez. 2017. Acessar publicação original [DR]

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