Sandra Jatahy Pesavento: a historiadora e suas interlocuções | Fênix – Revista de História e Estudos Culturais | 2009

Sandra Jatahy Pesavento foi uma mulher de desafios e inovadora. Inovadora no que pensou, no que fez, no que trouxe para o mundo da História neste espaço acadêmico do sul do país. E suas idéias atravessaram as fronteiras gaúchas, inspirando e ganhando interlocutores em vários circuitos acadêmicos nacionais e internacionais.

Em palestra proferida no Museu Júlio de Castilhos, em Porto Alegre, em outubro de 1997 (quando ela mesma organizou a I Jornada de História Cultural, trazendo o historiador François Hartog, da École des Hautes Études em Sciences Sociales de Paris), a historiadora lançou a “pedra fundamental” do que seria o mote de sua vida profissional daí em diante: os pressupostos da História Cultural. Ela relacionou sete desafios e três impasses referentes a este novo campo historiográfico. Um destes desafios é a reafirmação da dúvida, enquanto princípio de todo o conhecimento, o que abre espaço para a incerteza, o desafio. É a História e suas várias interpretações; a possibilidade de contá-la sem antecipar a conclusão, a História como versão do que se passou, relativizando o contexto científico da mesma. Para Sandra Pesavento, a História Cultural veio firmar-se em uma nova postura epistemológica e em uma nova estratégia metodológica, apontando para um caminho de complexificação da História e refinamento da análise.

E foi também o desafio que moveu a vida desta mulher. Desafio por novas concepções de como contar a História que o mundo já pensava conhecer. Desafio de buscar novos parceiros intelectuais. Desafio de trazer para o mundo acadêmico a transdiscipinaridade, exemplificado no fato de aceitar alunos vindos de outras áreas do saber (medicina, arquitetura, comunicação) e orientar trabalhos de mestrado e doutorado a partir de fontes históricas inusitadas.

Assim como ela, a História Cultural veio ampliar o leque de possibilidades para o historiador: por um lado, as fontes diversificam-se, por outro, as “antigas fontes” foram percebidas a partir de novos olhares (jornais, fontes policiais, judiciárias/processos crime, prontuários médicos, imagens – vídeos e filmes, fotografias, esculturas, literatura, entre tantas outras). E a relação com outras disciplinas (Antropologia, Psicologia, Literatura e até Medicina) tornou-se mais intensa e efetiva.

Por exemplo, no artigo que escreveu no livro comemorativo dos 10 anos de GT de História Cultural no Rio Grande do Sul (Narrativas, imagens e práticas sociais, 2008, editora Asterisco), ela demonstra que o mundo da imagem é um território da História Cultural. Revela que

[…] elas são e têm sido sempre um tipo de linguagem, ou seja, são representações dotadas de um sentido, produzidas a partir de uma ação humana intencional. E, nesta medida, as imagens partilham com as outras formas de linguagem a condição de serem simbólicas, ou seja, são portadoras de significados para além do que é mostrado.4

Desta forma, os historiadores buscam nas imagens traços visíveis do passado.

O mundo do imaginário descortinou-se em seus trabalhos. Assim como em sua vida. Coerente ao seu modo de pensar, ao acordar de um coma, Sandra imediatamente lembrou-se de imagens de seu inconsciente e não custou muito a relacioná-las a projetos de vida e a projetos culturais. “Vamos fazer aqueles encontros sobre ‘análise de imagens’!”, disse ela ainda no hospital.

Em breve trecho de seu último livro, Os sete pecados da capital 5, Sandra supera-se em sua capacidade de gerar versões – sempre verossímeis ao fato real acontecido. Representações, imaginário, sensibilidades – motes da História Cultural – tornam-se explícitos na obra desta autora, como água escorrendo de uma fonte natural:

É certo que todas estas personagens femininas são unidas pelo fato de serem mulheres do povo e de estarem envolvidas em um crime, contravenção ou desafio da ordem, mas o que as torna interessantes para nosso estudo é que, apesar da diversidade de suas trajetórias e do pecado que as individualiza, há uma linha de constância na representação que as acompanha e repousa no seu poder de persuasão, ação e interferência no processo ou drama que se desenvolve. Elas, mesmo quando são vítimas, figuram como elementos centrais de uma trama.6

Autora de uma vasta obra historiográfica (em seu Curriculum publicado na Plataforma Lattes do CNPq no Brasil, constam 50 livros publicados, entre individuais e aqueles organizados por ela em parceria com colegas), a professora honrou o que postulou sobre a História Cultural. Desde a fundação do GT de História Cultural/RS em 1997 em Porto Alegre, passando pela organização do GT Nacional de História Cultural (junto com colegas historiadores de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro) em 2000 – grupo o qual coordenou até este ano – Sandra Pesavento organizou eventos de cunhos nacional e internacional, aceitando desafios, agregando pessoas, criando vínculos institucionais, publicando obras em parcerias. Historiadora à frente de seu mundo – mulher e historiadora que fez a diferença!

Fomos convidadas pelos editores da Fênix – Revista de História e Estudos Culturais a prestar uma homenagem a ela, evocando sua obra e sua interlocução conosco. Afinal, entre as muitas coisas que Sandra nos ensinou está este legado de organizar publicações e agregar pessoas.

Organizar este dossiê Sandra Jatahy Pesavento: a historiadora e suas interlocuções, que será publicado neste número (e nos próximos dois) da revista Fênix, dá-nos a ver que perdemos Sandra, mas não seu entusiasmo e prazer com o trabalho.

Entre os autores há os ex-orientandos de pós-graduação, colegas de GT de História Cultural do RS, colegas do GT Nacional de História Cultural e colegas/parceiros estrangeiros – todos que estabeleceram férteis contatos intelectuais, parcerias e, porque não dizer, laços de carinho e amizade com Sandra.

Assim, é com muita honra que apresentamos agora os primeiros textos deste conjunto. Esperamos que apreciem sua leitura.

Notas

4 ROSSINI, Miriam de Souza; WEBER, Nádia Maria; PESAVENTO, Sandra Jatahy. (Orgs.) Narrativas imagens e práticas sociais: percursos em História Cultural. Porto Algre: Asterisco, 2008, p. 99.

5 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Os sete pecados da capital. São Paulo: Hucitec, 2008.

6 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Os sete pecados da capital. São Paulo: Hucitec, 2008, p. 18.


Organizadores

Nádia Maria Weber Santos – Mestre e Doutora em História (UFGRS). É médica-psiquiatra e faz pesquisa na Escola Superior de Teologia/FAPERGS. Coordenadora do GT de História Cultural-ANPUHRS/gestão 2006-2008. E-mail: [email protected]

Maria Luiza Martini – Doutora em História pela UFRGS, professora do Departamento de História e PPG em História da UFRGS. E-mail: [email protected]

Miriam de Souza Rossini – Doutora em História pela UFRGS, professora da FABICO/UFRGS, coordenadora do GT de História Cultural-ANPUHRS/gestão 2008-2010. E-mail: [email protected]


Referências desta apresentação

SANTOS, Nádia Maria Weber; MARTINI Maria Luiza; ROSSINI, Miriam de Souza. Apresentação. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, v.6, n.2 abr./jun. 2009. Acessar publicação original [DR]

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