Saúde e democracia: a luta do Cebes | Sonia Fleury

Lançada há pouco mais de um ano, durante as comemorações dos 21 anos de fundação do Cebes, esta coletânea reúne um conjunto de artigos que nos permitem uma aproximação da gradativa especialização que vem se processando no campo da saúde pública nestes últimos anos. Enfoca diferentes aspectos relativos à reforma sanitária, ao processo de implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) e a temas como: gestão em saúde, determinantes epidemiológicos, recursos humanos, assistência hospitalar, saúde mental e produção farmacêutica e de imunobiológicos, entre outros.

Apesar da diversidade temática, a preocupação de articular as especificidades da saúde pública ao tema da democracia na sociedade brasileira se define como a questão central do livro, presente ao longo dos diferentes artigos. É evidente o claro objetivo de retomar o debate acerca do papel do Estado na esfera das políticas públicas de saúde, considerando as recentes transformações ocorridas neste campo, e este deve ser considerado o principal mérito da publicação, ou seja, sua intenção de articular os problemas recentes enfrentados pela saúde aos princípios que propiciaram movimentos transformadores nesta área.

O Cebes surgiu num contexto em que seu papel enquanto centro de estudos e reflexões acadêmicas se associava a um projeto político com forte conotação ideológica, que orientou sua atuação nos anos seguintes. Reafirmando os princípios de buscar conciliar “reflexão acadêmica e ação política”, buscou-se fortalecer os vínculos entre as ciências sociais e a saúde, analisando suas implicações nas diferentes esferas da saúde pública. A publicação aqui apresentada resgata exatamente esse papel e possibilita uma reflexão crítica sobre esta trajetória, destacando o papel fundamental que o Estado desempenha na resolução dos desafios que se apresentam para os dias de hoje.

Foi principalmente a partir da década de 1960 que as ciências sociais aplicadas à saúde foram introduzidas na América Latina, estimuladas pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). Mais precisamente em 1968, durante a implementação da reforma universitária, a medicina preventiva tornou-se obrigatória, tendo sido incluída no currículo mínimo dos cursos de medicina, o que favoreceu a expansão dos departamentos de medicina preventiva que, até então, só existiam nas faculdades Paulista e de Ribeirão Preto.

Foi neste novo campo da especialidade médica que começou a se organizar o movimento sanitário, na tentativa de conciliar produção do conhecimento e prática política, ampliando o âmbito específico de sua área de atuação, se envolvendo no fortalecimento das organizações da sociedade civil e nas demandas políticas pela democratização do país.

Tal orientação encontrou eco no Cebes, criado em 1976 durante reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) em Brasília, tendo como patrono Samuel Pessoa. O Cebes mantinha um forte vínculo com a Academia, principalmente através dos Departamentos de Medicina Preventiva. Estes departamentos estimulavam seus docentes a prestigiar os núcleos do Cebes existentes em várias regiões do país, preocupados em estabelecer canais mais efetivos entre a produção acadêmica e a sociedade civil.

Ao longo de seu primeiro ano de existência, o Cebes já contava com cerca de vinte núcleos espalhados por todo o Brasil e havia iniciado a publicação da revista Saúde em Debate, principal veículo de difusão das idéias do grupo. Paulatinamente, consolidou-se como um centro de estudos organizando eventos, debates e publicando livros, e acentuou sua participação política na luta pela democracia, tendo como eixo temático a questão da saúde. Marcava sua diferença em relação às outras entidades profissionais do setor de saúde, que se organizavam por categorias profissionais, e se definia como uma entidade organizativa que aglutinava o conjunto de profissionais de saúde.

Como aponta Sonia Fleury, ainda na introdução, o Cebes representou a institucionalização do movimento sanitário, sintetizando as três vertentes que caracterizaram a reforma sanitária: “a construção de um novo saber; a ampliação da consciência sanitária e a organização do movimento social”. E é com esta perspectiva que o livro foi concebido, “não como um livro de memórias, e nem sequer como uma análise da história oficial do Cebes”, mas fruto da necessidade de reafirmar as bandeiras que foram levantadas pela instituição e as conquistas alcançadas no âmbito da saúde.

A coletânea de 14 artigos foi organizada segundo quatro eixos temáticos: saúde como paradigma; condições de vida; reforma do Estado; e desafios. Constitui-se, apesar da não intenção explícita, em um importante ponto de reflexão sobre a história do Cebes e suas marcas constitutivas, presentes sem sombra de dúvida ao longo de toda a obra.

A importância atribuída ao tema da reforma sanitária fica evidente quando constatamos que metade dos artigos publicados se abriga sob o tema da reforma do Estado. E não poderia ser diferente. Primeiro porque a reforma sanitária concretiza os princípios ideológicos que acompanharam as discussões do Cebes, enfatizando o papel do Estado e da estrutura econômica como determinantes dos rumos da saúde no país, buscando a universalidade, a gratuidade, a descentralização e a participação do usuário.

Um bom exemplo do entrelaçamento de algumas destas concepções pode ser observado no artigo de Antônio Ivo de Carvalho. Apontando para a necessidade de se pensar os conselhos de saúde não estritamente vinculados ao âmbito da reforma sanitária, mas como expressão de um novo processo de reforma democrática do Estado, o autor articula sob uma nova ótica os temas da reforma do Estado, da participação de atores públicos e da política de saúde.

É interessante observar que, na área da saúde mental, as estratégias adotadas são outras, mas os princípios orientadores são os mesmos. O artigo de Paulo Amarante acompanha o desenvolvimento histórico do Movimento da Reforma Psiquiátrica e retoma conceitos-chave que fundamentaram a constituição do Cebes. A reforma sanitária neste campo específico da psiquiatria necessitava ser implementada através de um processo de desinstitucionalização e de desmonte das concepções sobre doença mental. Esta seria a estratégia, na busca de mais solidariedade, igualdade e cidadania.

Em segundo lugar, porque é no bojo das discussões sobre reforma do Estado que se expressa de forma clara a relação entre produção intelectual e reforma política. É em torno do SUS e seus desdobramentos mais recentes que o debate acerca da política de saúde pública tem se desenvolvido, destacando-se que nos dias de hoje não encontramos muito espaço, em particular na imprensa, para uma discussão mais aprofundada sobre o processo de implantação do SUS, seus dilemas e sucessos. A reforma sanitária faz parte da história profissional de muitos destes autores e é, sem dúvida, um dos temas recorrentes no debate atual sobre saúde pública no Brasil.

Sob outro aspecto, mas ainda relativo à reforma sanitária, o livro é corajoso ao buscar refletir sobre divergências internas, bem como sobre os problemas enfrentados no seu processo de implementação. Aponta para a necessidade de se repensar e reavaliar as estratégias adotadas e de se buscar alternativas que permitam uma política eficaz de defesa do SUS. É o que nos mostram, em particular, os artigos de Gastão W. de Sousa Campos e de Emerson Elias Merhy.

Já o texto de Eleutério Rodrigues Neto nos permite acompanhar um pouco da trajetória política da reforma sanitária, e o porquê da opção por este campo de atuação para uma discussão pública sobre condições de saúde mais democráticas.

A Constituição de 1988 foi consagrada como marco no processo de conquistas políticas para a saúde, e este fato se torna evidente quando desponta como tema comum aos textos apresentados. Vários artigos relembram e acentuam o texto constitucional como símbolo dessa vitória, que formalmente assegura que a saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado.

Neste sentido, o artigo de Lenir Santos realiza uma abordagem temática sobre alguns artigos da Constituição Federal referentes à saúde, e se, por um lado, possibilita um contato mais detalhado com o texto constitucional, por outro, acentua a necessidade de uma reflexão crítica sobre a relação entre teoria e prática, pois ainda hoje existe um grande descompasso entre as conquistas legislativas e seu cumprimento efetivo, que implicariam mudanças substanciais na realidade.

Como lembra o artigo de F. Roland Schramm, a Constituição de 1988 afirmava direitos quanto à saúde do indivíduo que durante muitos anos só tiveram reconhecimento formal e contaram com respaldo para seu não cumprimento, o que terminou por levar ao estabelecimento de direitos relativos. Por outro lado, o artigo de Sueli Gandolfi Dallari e Paulo Antonio de Carvalho Fortes ressalta o crescimento e a consolidação da noção de direito sanitário e trabalha com as relações existentes entre saúde pública, direitos humanos, direitos privados e coletivos e o papel do Estado neste novo contexto.

Estas questões estimulam a reflexão sobre novas estratégias que auxiliem a efetivar um direito reconhecido por lei e nos mostram que esta opção estratégica acabou nos conduzindo a novos desafios. Não é suficiente lutar e alcançar reconhecimento jurídico; é necessário encontrar formas capazes de assegurar sua efetiva implementação, num país onde convivemos freqüentemente com o não cumprimento da lei.

O compromisso de buscar vínculos entre o meio acadêmico e a sociedade civil, que como vimos marcou o momento de fundação do Cebes, se traduz claramente nos cinco artigos publicados sob a temática ‘Desafios’. Objeto de reflexões teóricas mais específicas, eles refletem as grandes mudanças que ocorreram ao longo destes vinte anos, apontando para as transformações tecnológicas e seu impacto nas diferentes áreas da saúde. Tais transformações implicaram mudanças que passam pela complexificação da área de recursos humanos, pelo setor de atendimento médico e pela indústria farmacêutica e de imunobiológicos, redimensionando o papel do Estado.

Como indicam Carlos Augusto Grabois Gadelha e José Gomes Temporão, a forte ênfase ideológica que acompanhou o movimento sanitário prejudicou a elaboração de propostas mais específicas e objetivas, que até então se concentravam no papel central do Estado. O desafio hoje é avaliar a complexa rede que se estrutura no campo da saúde, amparada no crescimento do setor privado e redefinir o papel do Estado como agente regulador e fiscalizador.

O país mudou ao longo desses vinte anos desde a fundação do Cebes, os atores do mundo da saúde pública também, e se, por um lado, existem novos desafios que acompanham as transformações que ocorreram ao longo deste período, podemos constatar também que antigas aspirações ainda permanecem inalcançáveis.

Hoje nos defrontamos com os desdobramentos que a implementação do SUS nos trouxe e a diversidade de respostas nas mais diferentes regiões brasileiras. Mas uma questão central permanece reafirmando a importância do Estado e da necessidade de se rediscutir o seu papel diante das novas características da saúde pública brasileira.

O resgate deste debate, reafirmo, é o principal mérito do trabalho. Ao atualizar a discussão no âmbito das relações entre democracia e saúde, paralelamente à reflexão crítica sobre a trajetória da saúde pública ao longo desses vinte anos, valorizam-se as conquistas que muitos não veêm e buscam-se, nos erros e problemas com que se tem defrontado, novos caminhos para enfrentar os desafios contemporâneos.

O cerne das idéias e propostas que nasceram com o Cebes e o movimento sanitário permanece o mesmo. Chegamos ao final do século XX lutando por uma sociedade mais democrática e por melhores condições de saúde para toda a população brasileira. Para isso é necessário que se recuperem, como afirma Gastão W. Campos, “os valores e ideais apoiados na solidariedade e na esperança de uma sociedade de paz e justiça”.


Resenhista

Cristina M. Oliveira Fonseca – Pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e doutoranda em ciência política (Iuperj).


Referências desta Resenha

FLEURY, Sonia (Org). Saúde e democracia: a luta do Cebes. São Paulo: Lemos Editorial, 1997. Resenha de: FONSECA, Cristina M. Oliveira. Repensando o papel do Estado diante da saúde pública contemporânea. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.6, n.3, nov. 1999/fev. 2000. Acessar publicação original [DR]1\

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