Sensibilidades e História do Tempo Presente | Tempo e Argumento | 2022

Desde as últimas décadas do século XX, mais especificamente a partir da queda do Muro de Berlim, do fim das ditaduras latino-americanas e do apartheid na África do Sul, podemos detectar a expansão de uma cultura e de uma política de memória em diversos países. A historiografia contemporânea tem destacado a explosão de narrativas memorialísticas, os discursos testemunhais e a chamada “febre patrimonial”, que estão articulados aos usos políticos do passado e aos embates do presente no campo político, ideológico e historiográfico. Nesse sentido, às historiadoras e aos historiadores tem sido lançado o desafio de compreender as leituras do passado que as memórias coletivas empreendem.

Essas narrativas e formas de rememoração do passado também têm trazido à tona um dos principais aspectos que caracterizariam a história do tempo presente – a noção de trauma coletivo, oriunda de experiências de violências políticas, étnico-raciais e de gênero, sobretudo nos regimes autoritários do final do século XX. Assim sendo, as problemáticas que envolvem as relações entre memória e esquecimento, as experiências traumáticas e o papel dos testemunhos na “era das catástrofes” estão amalgamadas ao ofício do historiador, em especial aos que se dedicam à história do tempo presente (FERREIRA, 2012). Este campo interdisciplinar de estudos e produção acadêmica entrecruza a História e a memória, colocando em destaque as novas sensibilidades da contemporaneidade, marcadas pelo trauma da violência política e pelas lutas por verdade, justiça e reparação.

De acordo com Sandra Pesavento, as sensibilidades são “uma forma do ser no mundo e de estar no mundo, indo da percepção individual à sensibilidade partilhada”, o que permite às historiadoras e aos historiadores lidar “com as sensações, com o emocional, com a subjetividade, com os valores e os sentimentos, que obedecem a outras lógicas e princípios que não os racionais” (PESAVENTO, 2017).

A perspectiva das sensibilidades trouxe para o campo historiográfico a preocupação com as subjetividades. Sentimentos e emoções passaram a ser objeto de estudo e análise histórica, ajudando a compreender a experiência humana. As pessoas experimentam, registram, compartilham e expressam suas emoções e sentimentos inseridas num determinado tempo histórico. Da mesma forma, o modo como decodificam, demonstram ou ocultam sentimentos e emoções como amor, raiva, desejo, medo, esperança são, em grande medida, modelados por um tempo histórico – e ajudam a tecer este mesmo tempo (ARAUJO, 2019).

Essas novas abordagens historiográficas, articuladas a um campo interdisciplinar, configuram o que Beatriz Sarlo classificou como uma guinada subjetiva, que resgatou a importância dos sujeitos históricos e das experiências individuais e reivindicou a dimensão subjetiva na história do tempo presente (SARLO, 2007, p. 18).

Além de novas abordagens, possibilitadas pela atenção conferida às sensibilidades e subjetividades, a historiografia contemporânea também foi marcada pela emergência de novas fontes, como cartas, diários, autobiografias, literatura de testemunho. Existem, além desses, os chamados “arquivos sensíveis”, que incluem os documentos produzidos ou capturados pelos órgãos de inteligência e repressão de regimes autoritários e também durante os conflitos políticos, étnico-raciais e de gênero nos contextos democráticos, bem como acervos constituídos a partir de investigações – impulsionadas por iniciativas do Estado – para promoção de reparações e/ou apurações das violações dos Direitos Humanos, como as realizadas pelas Comissões da Verdade (QUADRAT, 2012, p. 201-204). As diferentes Comissões da Verdade criadas nos séculos XX e XXI inseriram definitivamente, na historiografia contemporânea, o tema da reparação em sentido amplo, com destaque para a questão racial e para a violência contra os setores mais vulneráveis da sociedade, reforçando o papel da memória na construção e reconstrução democrática.

O presente dossiê partiu, portanto, da constatação de que os séculos XX e XXI produziram novas sensibilidades políticas a partir de eventos traumáticos, assim como também produziram um campo interdisciplinar de pesquisadores voltados para as múltiplas dimensões dessas novas sensibilidades. O dossiê reúne oito artigos escritos em português e espanhol por pesquisadoras e pesquisadores de diferentes gerações e distintos países. Utilizando fontes escritas e orais e contemplando os debates sobre Brasil, Chile, Espanha e Estados Unidos, os textos analisam, por variadas perspectivas, as relações entre história, memória, literatura e sensibilidades; as sensibilidades e subjetividades nos testemunhos de experiências traumáticas; as lutas políticas por reparação e justiça no contexto da chamada Justiça de Transição; as reflexões e discussões teóricas sobre o trauma coletivo, suas permanências no tempo presente e o ensino de temas sensíveis.

O dossiê se inicia com o artigo A Velha (da) História: infância e ditadura na Corda Bamba (Lygia Bojunga, 1979), escrito por Nelson Tomelin Junior, Maria do Rosário da Cunha Peixoto e Vanessa Miranda. A partir do texto, podemos refletir sobre a importância da literatura como fonte para a pesquisa histórica de temas sensíveis. Os autores analisam como o romance de Lygia Bojunga problematiza o contexto da ditadura civil-militar brasileira, ao mesmo tempo em que aborda as relações de dominação em uma sociedade marcada pela opressão também no campo dos sentimentos e das sensibilidades. Publicado em 1979, o romance apresenta referências às lutas políticas que marcaram aquele ano: a mobilização de diversos movimentos sociais levou às ruas de todo o país milhares de pessoas em defesa das liberdades democráticas e, em especial, em torno da bandeira da anistia ampla, geral e irrestrita.

O tema da anistia também é analisado em dois outros textos. O artigo A batalha da comunicação na campanha da anistia, escrito por Marcio Castilho, aborda as lutas políticas do Brasil, durante a ditadura militar, entre 1978 e 1980, período marcado pela rearticulação e atuação política de diferentes grupos de oposição. O autor analisa e destaca o papel do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA) nesse processo, através de suas publicações, cartazes, produção de dossiês e articulação tanto com a grande imprensa como também com a Imprensa Alternativa. O autor destaca o papel do CBA em divulgar as bandeiras da luta democrática, articulando estética, poesia e divulgando a luta pelos Direitos Humanos.

Já o artigo O significante racial: anistia, reparação e justiça, de Tereza Ventura, aborda a complexa relação entre a luta antirracista e os movimentos por memória, verdade e justiça no país e, mais especificamente, no Rio de Janeiro. A autora recupera a relação entre a questão racial e a luta pela democracia no Brasil dos anos 1980, com foco na atuação do Movimento Negro Unificado – suas lideranças, seus argumentos e a posição de seus intelectuais, como Lélia Gonzales, Hamilton Cardoso e Yedo Ferreira, que apontavam a luta antirracista como fundamental para a democratização e criticavam uma perspectiva de Direitos Humanos centrada numa universalidade europeia. O artigo defende que a luta por verdade, justiça e reparação está longe de contemplar a proteção dos Direitos Humanos aos afrodescendentes e traz para a sua análise os movimentos de familiares de vítimas de violência de Estado em contexto democrático, que enfrentam o Estado e muitas vezes a sociedade e que estampam os limites das medidas reparatórias que não são extensivas às populações afrodescendentes apesar da luta incessante das redes de mães e familiares.

Em relação aos debates acerca das lutas por memória, verdade e justiça, a Lei de Anistia, aprovada em 1979, se tornaria central no processo político brasileiro e nos mecanismos de Justiça de Transição adotados, bem como em seus limites e desdobramentos. Ao analisarmos esses mecanismos, destacamos que as Comissões da Verdade tem sido uma das principais medidas de Justiça de Transição instauradas em países que saíram de um regime autoritário. Nesse sentido, essas Comissões têm um importante papel político de instaurar na sociedade um debate sobre o passado autoritário e violento, ao mesmo tempo em que representam momentos privilegiados de disputas de memórias, embates de narrativas e discussões acerca dos usos políticos do passado.

O artigo A identidade “sitiada”: a Comissão Nacional da Verdade na Revista do Clube Militar, escrito por Sonale Diane Pastro de Oliveira, analisa a reação dos militares brasileiros à instalação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada por lei em 2011 e cujos trabalhos se estenderam entre 2012 e 2014. A partir dos textos publicados na Revista do Clube Militar, a autora investiga as memórias construídas pelos militares acerca do golpe civil-militar de 1964 e da ditadura que o seguiu, destacando a produção de representações que legitimam a conduta dos militares no passado e minimizam ou negam a repressão imposta pela ditadura aos seus opositores políticos. O artigo analisa ainda como a atuação da CNV foi apresentada de forma negativa, na ótica dos militares, e considerada uma ameaça à memória e à identidade coletiva castrense.

A intrínseca relação entre história, memória, política e acesso aos documentos perpassa a experiência do mundo Ibero Americano dos séculos XX e XXI. A memória foi um dos instrumentos essenciais para as lutas por democratização tanto na Espanha e Portugal, como na América Latina. Documentos de vários tipos foram e ainda são utilizados para denúncia do arbítrio, “para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”. Com essa insígnia lutou-se pela abertura dos acervos para que historiadores e a sociedade pudessem ter acesso às informações sobre os fatos ocorridos. Mas a história das ditaduras apresenta também acervos que devem ser acessados e pesquisados com cuidado.

Em seu artigo, Humiliatiomemoriae. Vidas y memorias humilladas en los archivos de la represión franquista, Alfonso Villalta apresenta um tipo específico de acervo. O autor analisa a documentação produzida na Espanha durante e após a guerra civil e chama a atenção para arquivos que reúnem documentação para criminalizar os opositores políticos do regime. Um tipo de arquivo característico de regimes autoritários e ditaduras. O autor se debruça sobre o Archivo General e Histórico de Defensa (AGHD), que guarda toda a documentação originada pelos Tribunais Militares franquistas, durante a guerra civil e ao longo da ditadura. A análise mais detalhada do artigo se concentra numa carta de amor escrita por uma jovem a seu marido que estava preso em outra cidade. A carta provocou a prisão de sua autora e um processo político contra ela. O autor analisa o episódio a partir de várias camadas de interpretação evidenciando a complexa relação entre história, memória e os traços do passado que chegam até nós.

Voltando-se para a História Recente, o artigo Narrar para testimoniar el presente: cartas de niños y niñas de Santiago de Chile durante El estallido social de octubre de 2019, escrito por Evelyn Palma Flores, Maria José Reyes Andreani e Natalia Albornoz Muñoz, apresenta uma análise sobre uma experiência original realizada em 2019 com crianças chilenas de 11 a 14 anos. Após as manifestações populares de outubro de 2019, que ficaram conhecidas como as “Jornadas de Protesto”, as crianças foram orientadas, nas escolas, a escreverem sobre o acontecido e produziram inúmeras cartas. São esses escritos que o artigo analisa. Para as autoras, essa experiência permite refletir sobre a memória da história recente e na forma peculiar, autônoma e pertinente que crianças e adolescentes interpretam os acontecimentos que vivem.

Além das discussões suscitadas nos artigos que contemplaram Brasil, Espanha e Chile, a história do tempo presente e suas sensibilidades também são abordadas nesse dossiê no cenário político contemporâneo dos Estados Unidos. No artigo Feridas abertas e processos inconclusos: o fantasma da Guerra Civil e os eventos de janeiro de 2021 nos Estados Unidos, de Luciano Daudt da Rocha e Ricardo Duwe, os autores analisam a invasão do Capitólio, em janeiro de 2021, por seguidores de Donald Trump, inconformados com sua derrota nas eleições presidenciais realizadas em 2020 e vencidas por Joseph Biden. O texto busca relacionar o recente episódio com as permanências dos traumas coletivos da Guerra de Secessão e da posterior Reconstrução. A partir da análise dos discursos inaugurais dos presidentes dos Estados Unidos, os autores destacam como a manutenção das desigualdades raciais e os entraves para a ampliação da cidadania para a população negra, ao longo da História dos Estados Unidos, têm contribuído significativamente para a permanência de ideias supremacistas e antidemocráticas na sociedade estadunidense.

Encerrando este dossiê, o artigo O ensino de história dos traumas sociais coletivos e dos temas socialmente vivos: trajetórias de um campo disciplinar, de Karl Schurster e Rafael Pinheiro de Araújo, analisa o debate sobre o ensino de História de traumas coletivos enquanto questões socialmente vivas. A partir de uma abordagem teórica e historiográfica, os autores abordam a construção do campo disciplinar do ensino de História dos temas sensíveis da segunda metade do século XX, como o Holocausto e as ditaduras latino-americanas, destacando, por um lado, os desafios metodológicos, éticos e emocionais que representam para historiadoras/historiadores e professoras/professores e, por outro, como os traumas coletivos podem converter-se em questões socialmente vivas no tempo presente.

Esperamos que este dossiê contribua para os debates acerca da história do tempo presente, das novas sensibilidades do mundo contemporâneo, das lutas por memória, verdade, justiça e reparação e do ensino de história dos temas sensíveis; que promova, principalmente junto às novas gerações, uma cultura democrática e de respeito aos Direitos Humanos.

Referências

ARAUJO, Maria Paula Nascimento. “Violência, trauma e testemunho: desafios para uma historiografia latino-americana”. In: ELIBIO, Antônio; PINHEIRO, Rafael; SCHURSTER, Karl (Orgs.) Tempo Presente: uma história em debate. Rio de Janeiro: Autografia; Recife: EDUPE, 2019.

FERREIRA, Marieta de Moraes. “Demandas sociais e história do tempo presente”. In: VARELLA, Flávia et al (orgs.). Tempo presente & usos do passado. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012.

PESAVENTO, Sandra. Sensibilidades no tempo, tempo das sensibilidades. Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En ligne], Colloques, mis en ligne le 04 février 2005. Disponível em: http://nuevomundo.revues.org/229. Acesso em: 30 de agosto de 2022.

QUADRAT, Samantha Viz. “Em busca dos arquivos das ditaduras do Cone Sul: desafios e perspectivas”. In: FICO, Carlos; ARAUJO, Maria Paula & GRIN, Monica (orgs). Violência na História: memória, trauma e reparação. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012.

SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.


Organizadores

Maria Paula Nascimento Araújo – Doutora em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. Professora Titular do Instituto de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Mestrado Profissional em Ensino de História.  lattes.cnpq.br/9105897577651714 E-mail: [email protected]  orcid.org/0000-0002-1367-2741

Izabel Pimentel da Silva – Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense. Pós-doutoranda (bolsista PNPD/CAPES) e professora do Departamento de Ciências Humanas e do Programa de Pós-Graduação em História Social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. lattes.cnpq.br/9124033193536454 E-mail: [email protected]  orcid.org/0000-0003-0991-5322


Referências desta apresentação

ARAÚJO, Maria Paula Nascimento; SILVA, Izabel Pimentel da. Apresentação. Tempo e Argumento. Florianópolis, v. 14, n. 36, e0100, set. 2022. Acessar publicação original [DR]

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