Sobre o autoritarismo brasileiro | Lilia Moritz Schwarcz

Nós, os brasileiros, somos como Robinsons: estamos sempre à espera do navio que nos venha buscar da ilha a que um naufrágio nos atirou (Lima Barreto, “Transatlantismo”, Careta).

Em tempos de retrocesso, em que a esperança parece ter fugido do coração dos homens, é preciso voltar ao passado. Em momentos históricos conflitantes, nos quais a histeria e intolerância tornam-se a tônica do cotidiano, é preciso entender onde erramos, reencontrarmo-nos com o mais profundo de nós. Em momentos de frivolidades, mesquinharias, total apatia ao saber e à cultura, é preciso um pouco mais de poesia, de literatura, arte, diálogo. Como diria o poeta: “Precisamos adorar o Brasil! Se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens, porque motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos” (ANDRADE, s.d., s.p).

É preciso tentar entender, em suma, os caminhos percorridos por nós, brasileiros, na construção deste país que ainda se faz muito desigual e injusto, é preciso que nós, historiadores, inventores do passado (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2007), na lida com o seu inventariado, coloquemos a nu o Brasil, naquilo que ainda o faz um país do atraso e autoritário. Penso eu que foi essa responsabilidade, diante do caos, que provocou na antropóloga e historiadora brasileira, Lilia Moritz Schwracz, a necessidade de escrever uma obra como a que foi recém-lançada pela Companhia das Letras em 2019, intitulada Sobre o autoritarismo brasileiro.

No atual momento da história brasileira, discutir temas como escravidão, racismo, mandonismo, corrupção, desigualdade social, violência, etc, constitui-se como uma tarefa fundamental, como que um lembrete aos incautos sobre os verdadeiros dilemas do país. Como diria o velho historiador: “o papel do historiador é lembrar aquilo que a sociedade insiste em esquecer”.

O livro é curto, cerca de 255 páginas que se entregam à uma viagem ao Brasil profundo, revelando aspectos não tão somente de seu passado, mas demonstrando claramente como este passado ainda ecoa no presente, produz mártires, heróis e muitos esquecimentos ao longo de sua história. É válido ressaltar que alguns temas que aparecem no livro já foram discutidos pela antropóloga em alguns de seus outros livros e artigos, como o capítulo Escravidão e Racismo, que aparece na coletânea História da Vida Privada no Brasil (volume 4, 1998), ou como também de seu outro recente livro, escrito em parceria com Heloísa Starling, intitulado Brasil uma biografia.

O livro é dividido em duas partes: uma primeira contém oito capítulos com os temas: Escravidão e racismo; Mandonismo; Patrimonialismo; Corrupção; Desigualdade social; Violência; Raça e Gênero e; Intolerância. Na segunda parte um breve panorama sobre o nosso presente, intitulado Quando o fim é também o começo: Nossos fantasmas do presente.

Em uma proposta honesta, já na introdução podemos sentir a que vêm as páginas seguintes. A autora se posiciona diante dos fatos, toma partido, sua obra não se torna panfletária deste ou daquele lado, num país divido, mas propõe-se a ser mais que uma obra enunciativa, ela denuncia os mandos e desmandos pelos quais passamos ao longo de nossa história. E por falar em História, um aviso aos leitores: “história não é bula de remédio”. Isso para falar das várias vertentes que explicaram e explicam ainda hoje o Brasil, seja em suas teses validáveis, ou naquelas ainda hoje criticadas pela Academia, mas que fazem parte do imaginário popular acerca do país, algumas delas como a de democracia racial, difundida por Gilberto Freyre.

Naturalizar a desigualdade, evadir-se do passado, é característico de governos autoritários que, não raro, lançam mão de narrativas edulcoradas como forma de promoção do Estado e de manutenção do poder. Mas é também fórmula aplicada, com relativo sucesso, entre nós, brasileiros. Além da metáfora falaciosa das três raças, estamos acostumados a desfazer da imensa desigualdade existente no país e a transformar, sem muita dificuldade, um cotidiano condicionado por grandes poderes centralizados nas figuras dos senhores de terra em provas derradeiras de um passado aristocrático (SCHWARCZ, 2019, p. 19).

É em torno do binômio passado/presente que toda a narrativa do livro se dá. Parte-se do presente, do nosso presente, marcado por discursos autoritários, para mostrar-nos que sempre fomos autoritários, que as desigualdades entre nós, de tão oficializadas pelo Estado, já foram por nós naturalizadas, não nos causando estranhamento e apatia, pelo contrário, é dessa naturalização de tais características nossas que novos sujeitos autoritários surgem e ganham total apoio do povo, culminando numa perpetuação de nossas desigualdades, só que agora mais cristalizada, edulcorada, aceitável e demandada.

A historiadora nos faz lembrar que, diante de toda a história brasileira o tema da escravidão se coloca como um problema ainda não superado pela sociedade. O racismo advindo dela, como a posse de uma pessoa por outra, só geraria um regime nefasto e sanguinolento. Por isso, no livro abundam dados de pessoas que sofreram na pele os desígnios da escravidão na época de sua vigência, como também daqueles que, pós abolição, encontraram-se sem qualquer tipo de assistência por parte do Estado, culminando nos atuais atrasos vivenciados por nós até hoje, como a constituição segregadora de nossas cidades, regiões específicas delas nas quais eclodem violências fruto da desigualdade.

Ao longo de sua análise é possível notar a perpetuação de antigos sujeitos no cerne do estabilishment brasileiro. Figuras frutos das antigas oligarquias do baronato brasileiro que, incrustando-se na vida política de determinadas regiões brasileiras, formam verdadeiros clãs no Estado. Como é o caso da família Sarney, dos Gomes e até mesmo, atualmente, da família Bolsonaro, na realidade carioca. Esse mandonismo brasileiro é um dos motivos de seu atraso, uma vez que esses clãs têm o Estado como um campo seu, particular, em atendimento aos seus interesses privados.

Surge daí a evidente noção de Patrimonialismo que desemboca em diversos tipos de corrupção na República. No livro, fica demonstrado que a corrupção é a palavra-chave de nosso dicionário político ao longo da história, desde a primeira carta de Pero Vaz de Caminha até os recentes escândalos de corrupção que malogram os dias brasileiros. Tais atos políticos, naturalizados pelos brasileiros de parte a parte, fazem do Brasil o que ele é hoje; um país democrático, é certo, mas que a qualquer tempestade vê a sua democracia se esvaindo e não sente no povo a sua inspiração de esperança e futuro melhor, pelo contrário, o povo, aqui, parece ter cumprido sempre o papel de apoiador alienado dos interesses das elites do momento.

Hoje, saltam aos nossos olhos milhares de homicídios pelas grandes cidades brasileiras. Suas vítimas? Na maioria das vezes jovens negros, habitantes das favelas. Onde erramos nós? O que fez com que estes homens brasileiros, tão guerreiros e trabalhadores, brutalizarem seus olhares para a vida e morte do próximo? Gays, lésbicas, trans e tantos outros morrem brutalmente, silenciosamente, todos os dias, a cada minuto no Brasil, simplesmente por pertencerem a este ou àquele grupo a que chamamos “minorias”. Por serem minorias o Estado não os tem assistido de seus direitos, demandas, sonhos.

Raça e Gênero, outro problema tão grave, tão brutal, que parece ter se extrapolado no dia a dia brasileiro. Homens que têm em mente que suas parceiras são sua posse as matam, as encarceram e as agridem, física e existencialmente. Tudo se perdeu, as colorações político-partidárias parecem estar estampadas na face de cada um, sem diálogo, sem conversa, esquerda ou direita. Precisamos de mais poesia, de mais humanidade, de democracia e de história. “Precisamos descobrir o Brasil, escondido atrás as florestas, com a água dos rios no meio, o Brasil está dormindo, coitado, Precisamos colonizar o Brasil”.

Às vezes, na descoberta deste Brasil nos defrontamos com tão tristes histórias, a sua história, que a lida parece ser impossível. E nós historiadores, que nos posicionamos diante do caos, inventando e inventariando esse cipoal de tragédias por pouco perdemos as esperanças, de tão atacados, difamados, violentados que somos. Seja em nossos escritos, em nossos posicionamentos, em nossos recortes e escolhas, desvendemos o Brasil, esse jovem país, acossado por tantas precariedades. Este é o nosso papel, “farejar a carne humana”, numa história cada vez mais humana e voltada para os homens, problematizemos o Brasil, mesmo que seja sem esperança, vai que por aí, por sorte ou compaixão ela renasça novamente no coração dos homens. Não sei, na democracia tem dessas coisas!

Referências

ALBUQUERQUE JUNIOR. Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história. Bauru, SP. Edusc, 2007.

ANDRADE, Carlos Drummond. Hino Nacional. Disponível em: https://www.escritas.org/pt/t/5668/hino-nacional. Acessado em: 30/08/2019.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.


Resenhista

Marco Túlio da Silva – Graduado em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Membro do Núcleo de Estudos Históricos da Arte e Cultura (NEHAC-UFU). Bolsista CNPQ. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2763247048100798 . E-mail para contato: [email protected]


Referências desta Resenha

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Resenha de: SILVA, Marco Túlio da. Autoritarismos e o Brasil: uma fissura no silêncio. Em Perspectiva. Fortaleza, v. 6, n. 1, p. 339-342, 2020. Acessar publicação original [DR]

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