Também os brancos sabem dançar: um romance musical | Kalaf Epalanga

Kalaf Epalanga Romance Musical
Kalaf Epalanga | Foto: J. Carlos/DW

O músico e escritor Kalaf Epalanga Alfredo Ângelo, recém-lançado no mundo da literatura, nasceu em 1987, na cidade de Benguela, em Angola. Ao fugir da Guerra Civil de seu país, mudou-se aos 17 anos para Lisboa, onde desde então vive em alternância com Berlim. Kalaf Epalanga é também autor da coletânea de crônicas (divididas em duas partes): Estórias de amor para meninos de cor (2011) e O angolano que comprou Lisboa (2014). Publica, em 2017, seu primeiro romance: Também os brancos sabem dançar: um romance musical.

Kalaf ganhou notoriedade no âmbito musical através do som frenético e envolvente produzido pelo grupo musical Buraka Som Sistema, do qual é membro. Em entrevista à revista Estante (2015), comenta que virar escritor não estava nos seus planos. Entretanto, o mundo das palavras sempre o seduziu e sua bibliografia, embora ainda pequena, possui enorme representatividade em função de suas obras dialogarem com temas relevantes que marcam a vida do autor, como identidade, migração e angolanidade.

O romance Também os brancos sabem dançar: um romance musical se inicia com a viagem do músico a Oslo para uma apresentação musical. No momento em que chega à divisa entre a Suécia e a Noruega, o jovem músico é surpreendido pelos policiais da fronteira. Após a verificação da ausência de documentação legal, os agentes nórdicos o encaminham ao posto policial. Durante sua estadia na esquadra, Kalaf sente uma atmosfera de recusa por parte dos fronteiriços – o mesmo sentimento já enfrentado outrora vindo de outros europeus –, aquele olhar intolerante que afeta os imigrantes, sobretudo, refugiados. Diante das circunstâncias, o autor retrocede no tempo e desembarca no período em que precisou sair de Angola e pôr os pés em Portugal. Durante essas viagens nas lembranças, a personagem se questiona qual o seu lugar no mundo: se na terra que o gerou – Angola – ou se na terra que o hospedou, Portugal. No final da narrativa, quando por fim é comprovada a identificação de Kalaf e ele consegue se apresentar no festival musical, fica evidente, ao soar do beat – toque musical –, que a música é o lugar onde a personagem se sente em casa, independente do espaço em que se encontra (ora de conforto, ora de exclusão).

Seu fruto mais fresco é um livro autoficcional em que concilia acontecimentos da vida pessoal à imaginação. A obra se configura em um tempo cronológico não linear, pois há uma quebra no presente quando o narrador-personagem constantemente mergulha no passado, através dos flashbacks. A narrativa se encerra com um fato ocorrido em um único dia, o aprisionamento de Kalaf que perdura das 7h25 às 19h26; isso fica evidente nas horas demarcadas pelo relógio nos subcapítulos da primeira e da terceira partes do livro.

O romance está dividido, portanto, em três partes, cada qual representada por um narrador-personagem. O primeiro é o próprio Kalaf, o jovem músico que rememora o surgimento do Kuduro (ritmo musical surgido em Angola e de grande sucesso nas periferias de Lisboa), sua ida a Portugal e o encontro com o pai; além de destacar passagens de sua carreira profissional ao lado da Buraka Som Sistema. No primeiro momento, Kalaf Epalanga aparece como narrador-protagonista e, logo após, como personagem secundário e durante o seu caminhar da África à Europa, Kalaf deixa o colorido da música. Ele é a própria representação do Kuduro e a música é o seu lugar de abrigo no território europeu, por isso é também um elo condutor entre as demais personagens do livro.

Sofia, a segunda narradora-personagem, é uma figura inventiva que teria se casado com Kalaf para ajudá-lo a se naturalizar português. A lisboeta branca expressa um grande amor por Angola, fora enlaçada através dos passos de kizomba (estilo de dança angolana), da qual Sofia é professora. A bailarina abre as portas da sua casa para receber tanto angolano, quanto cabo-verdiano e brasileiro e tempera a conversa com o sabor também moçambicano nas rodas de discussões. Desse modo, sua casa proporciona o encontro de países de língua portuguesa demonstrando claramente a relação de Portugal com suas ex-colônias e o retorno de suas caravelas, trazendo um pouco de cada cultura e a transformando em uma sopa deliciosa com temperos distintos. Podemos encontrar nela a imagem de Portugal que abraça suas ex-colônias e que deixa ser envolvido pelo que vem de fora, o estrangeiro.

Mas engana-se quem pensa que Portugal, sobretudo a Europa, recebe de braços abertos todos os imigrantes, como fica claro na terceira parte do livro. Nesta última seção, a paisagem colorida passa para um ambiente denso e escuro. Podemos sentir o ambiente frio da Noruega por meio dos traumas vivenciados pelo policial norueguês. O final do romance, interpretado pelo fronteiriço – que apreendeu Kalaf –, mostra a outra face da imigração. O personagem central agora vivencia traumas que marcam sua carreira militar como oficial de fronteira, a exemplo do suicídio de uma adolescente eritreia, imigrante ilegal. Nas horas em que passara detida na cela, cantava uma penosa canção no seu idioma que, para o guarda, mais parecia uma oração. Neste momento, a música se revela mais uma vez como abrigo para aqueles que estão em condição de exiliência1, indivíduos impelidos de terem um lugar no mundo. Com a morte do avô, o protagonista viaja para a cidade onde viveu sua meninice e encontra Ava, uma imigrante libanesa e sua antiga paixão. Seu encontro com Ava revela um lado do avô que o jovem pouco conhecia, ou não conhecia. Somando o acontecimento da eritreia à figura da libanesa Ava, aflora uma sensibilidade no agente nórdico. A intolerância de imigrantes por parte da Europa, antes despercebida, passa a se intensificar quando ele se torna testemunha dos exilientes. Um conflito de identidade se deflagra após descobrir que a sua carreira profissional – agente da polícia – não era o que o seu avô almejava para o neto. O policial de fronteira que havia se desligado da música passou, com o aparecimento de Kalaf, a retornar ao seu lugar de conforto: ouvir suas canções de hip-hop.

Em suma, o romance musical coloca a música, mais especificamente o Kuduro, como uma arma em favor da representatividade. Como bem declara a personagem:

Descobri-me através da música, foi com ela que a cor da minha pele passou a ser um fator preponderante para a minha autoafirmação. Antes dessa consciencialização, o termo “música negra” não existia sequer no meu léxico. Foi preciso fixar-me em Lisboa para iniciar a viagem por aquilo que julgava saber sobre mim e por aquilo que o outro pensava saber sobre mim. Identidade passou a ser sinônimo de sobrevivência, e a kizomba e o kuduro a sua banda sonora secreta (EPALANGA, 2018, p. 36).

Kalaf, por onde transita com a sua música, manifesta sua expressão artística e transforma aquele espaço sem cor em lugar: pois Sofia encontra na música a sua identidade e na dança o seu lar. O policial norueguês, que dantes possuía os pensamentos turvos, pode, finalmente, encontrar-se na música. Assim, o lugar de Kalaf é a música, pois nela encontra conforto, é a única que o abraça e o acolhe, sobretudo quando vive a imigração. Por meio dela, conquista seu espaço na Europa ao atrair uma legião de seguidores do Kuduro e constrói uma ponte que liga as fronteiras, por meio da aceitação e respeito às diferenças.

O gênero rítmico que a personagem carrega consigo fala sobre sua ancestralidade, sua experiência vivida em Angola. Por intermédio do Kuduro, o músico leva seu país para ser reconhecido além dos limites geográficos. Afora o fato de revelar a trajetória de um símbolo cultural, a obra Também os brancos sabem dançar: um romance musical suscita a derrubada do muro da ignorância pelo advento da arte.

Nota

1 Alexis Nouss, em sua obra Pensar o exílio e a migração hoje (2013), defende que a condição exílica é uma experiência comum a todos os indivíduos em situação de deslocamento. Diferente da migração – fenômeno coletivo que não se aprofunda na subjetividade humana –, a condição de exiliência prima pela identidade, pela cultura e pela memória do migrante.

Referências

EPALANGA, Kalaf. Também os brancos sabem dançar: um romance musical. São Paulo: Todavia, 2018.

NOUSS, Alexis. Pensar o exílio e a migração hoje. Trad. e nota de abertura de Ana Paula Coutinho. Porto: Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa e Edições Afrontamento, 2013.


Resenhistas

Rayana Kelly Rodrigues de Oliveira – Graduanda em Letras/Espanhol (UFMA). Bolsista do CNPq. E-mail: [email protected]

Márcia Manir Miguel Feitosa – Professora Titular do Departamento de Letras da UFMA. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

EPALANGA, Kalaf. Também os brancos sabem dançar: um romance musical. São Paulo: Todavia, 2018. Resenha de: OLIVEIRA, Rayana Kelly Rodrigues de; FEITOSA, Márcia Manir Miguel. A música que acolhe: Uma experiência exílica em “Também os brancos sabem dançar”. Kwanissa – Revista de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros. São Luís, v. 04, n. 11, p. 462-466, 2021. Acessar publicação original [DR]

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