Tempo Presente e Fotografia / Tempo e Argumento / 2016

Tempo Presente – Fotografia / Tempo e Argumento / 2016

O historiador François Bédarida afirmou que a história do tempo presente (HTP) exige de seus colegas de ofício um cuidado redobrado para que não corra o risco de tudo julgar, visto que a narrativa produzida “se define tanto em relação a um futuro quanto em relação a um passado”.1 Ainda que toda narrativa histórica implique um posicionamento ético e político, ao analisar acontecimentos do presente, os riscos de interferir no seu curso acentuam‐se consideravelmente. O manejo de um instrumental destinado a selecionar, interpretar e construir narrativas sobre histórias abertas, ou ainda em desenvolvimento, torna a história do tempo presente singular. Especialmente ao deparar‐se com o questionamento à suposta imparcialidade no trabalho do historiador, alvo de frequentes controvérsias, inclusive entre os próprios representantes da área.

No momento em que esta edição de n. 17 (2016) vem a público, encontra acirrado debate, especialmente nas redes sociais, a exemplo do posicionamento assumido pela categoria de forma ampliada e identificada como “Historiadores pela Democracia”.2 Historiadores especializados nas mais diversas áreas buscaram interpretar o atual cenário político brasileiro, entre os quais Marcos Napolitano, Rodrigo Patto Sá Mota, Sidney Chalhoub e Hebe Mattos. Perry Anderson da University of California (UCLA) e James Green da Brown University, também acionaram os instrumentais da história para analisar a recente crise brasileira. Analisar e interpretar não significa reconstituir ou resgatar os fios dos acontecimentos em curso. Implica, antes de tudo, verificar estruturas de longa e de recente duração presentes na conjuntura atual. Não significa, tampouco, determinar o que realmente aconteceu, mas, conforme a bela expressão criada por Bédarida, erguer moradias provisórias. Historiadores do futuro poderão acioná‐las, reformulá‐las e até contestá‐las, mas não poderão afirmar que os historiadores se calaram ou foram coniventes com os crimes e injustiças cometidos no seu tempo

Como bem registrou Walter Benjamin acerca do avanço do fascismo europeu, o assombro diante dos acontecimentos recentes não é filosófico, visto que não surpreende quem acompanha e analisa o papel que as ideias conservadoras desempenharam, e desempenham, na manutenção do status quo de grupos que angariaram os maiores privilégios econômicos e políticos ao longo da história. A criminalização dos movimentos sociais, a corrupção na política, a violência policial, a homofobia, o feminicídio, o conluio das tradicionais classes conservadoras para barrar os avanços políticos e sociais conquistados remontam a outros tempos, persistem e se travestem de novidade. Nestas reflexões sobre o passado do país, o que antes soava como exceção há muito é regra.

Como saldo da relatada experiência dos historiadores, ao se arriscar a analisar o tempo presente, encontra‐se a contraposição à tentativa de homogeneização do discurso midiático, protagonizada por parte do jornalismo brasileiro, retirando sua primazia sobre a narrativa dos recentes fatos nacionais. Talvez por isso articulistas de jornais como o Estadão3 e a Folha de S.Paulo4 se tenham manifestado de forma tão contundente contra a chamada “rede” de historiadores, na tentativa de (des)qualificar tal forma de atuação, adjetivando‐a com termos como “formação de quadrilha”, “organização em bando”, ou ainda “alinhamento ideológico totalitário”. Se alguma lição fica aos profissionais da área quanto ao momento crítico em que estamos mergulhados, é que a história do tempo presente deixa de ser considerada apenas um alargamento do campo, e impõe‐se como dever. A Revista Tempo e Argumento junta‐se aos colegas na manifestação contra o atual golpe político no Brasil e soma‐se aos editoriais da Revista Brasileira de História5 e Revista História, Ciências, Saúde ‐ Manguinhos6 em favor da democracia no país.

O dossiê “Tempo presente e fotografia” integra nesta edição 10 artigos assim tematizados, seguidos de 3 textos de demanda contínua, 2 resenhas e 2 entrevistas. Destaca‐ se que a revista ampliou sua base de dados na indexação a Thomson Reuters, junto às demais já vinculadas. Apresenta como novidade também a inclusão da primeira entrevista em vídeo neste periódico.

João Cabral de Melo Neto aponta em versos a maneira como passamos a observar o mundo através das lentes, como traço de distinção em determinado momento, quando declara

Meus olhos têm telescópios

espiando a rua Espiando minha alma

longe de mim mil metros7

O ato fotográfico identifica sob diversos aspectos o tempo presente, definindo esta forma do olhar como experiência individual e coletiva, memória e significação histórica. A câmera como testemunho dos campos de concentração nazistas observados por George Rodger e Henri Cartier‐Bresson, na análise de Erika Zerwes, ou no requintado universo de percepção estendido aos aspectos sensoriais da pesquisa científica que tentou retratar o sonoro, conforme constatou Marcelo Téo, são expressões do tratamento mais conceitual sobre a fotografia apresentado neste dossiê. Seguido das reflexões de Charles Monteiro ao definir, como via de percurso, o fotojornalismo como linguagem e possibilidade de formação discursiva junto a outras imagens. Ainda na esfera deste campo de atuação, a contribuição de Ana Mauad no estudo de caso tematizado pelo “quebra‐quebra” do Centro do Rio de Janeiro em junho de 1987, na cobertura dos jornais e produção do fato histórico. O uso político das imagens fotográficas revela‐se no texto de Pedro Ernesto Fagundes, na análise dos acervos dos órgãos de repressão no Brasil, tematizado pela Campanha pela Anistia. A Revista O Cruzeiro Internacional, enquanto veículo também precursor na prática do fotojornalismo, é apresentada enquanto construção imaginária acerca do pan‐americanismo no artigo de Marlise Meyrer. Cenários, paisagens urbanas e monumentos integram outros 3 textos deste dossiê, a exemplo dos trabalhos de Franco Sánchez, Patrícia Silva e Priscila Grecco, ao observarem e analisarem distintas circunstâncias históricas documentadas pela fotografia na chamada “Nueva Argentina”, “Manaus Moderna” e na Cidade do México, respectivamente. O dossiê finaliza com o uso das fotografias da ditadura civil‐militar no Brasil presente nos livros didáticos, em circulação de 1990 a 2015, conforme texto de Carolina Etcheverry.

Na sequência, os artigos de Maria Claudia Badan Ribeiro e Thiago Nunes Soares dão destaque também ao posicionamento político como análise. As redes políticas de solidariedade na América Latina, conforme identificação do título, indicam a existência de contatos e relacionamentos estendidos como parte do movimento revolucionário brasileiro de repercussão no exterior, envolvendo o acolhimento ao exílio diante dos conflitos resultantes da luta armada, dando a perceber a confluência estendida à América Latina, África e Europa. A anistia no Brasil voltou a ser tematizada nesta edição, desta vez em Recife, através das inscrições nos muros e espaços públicos ampliados, identificadas como “escritas citadinas”, alvo da repressão policial por serem consideradas subversivas. O texto de Misael Corrêa atenta para a reflexão sobre as “brigas de galo”, enquanto estudo de caso de prática recorrente na cidade de Florianópolis / SC, ampliando a discussão sobre a história do esporte, das cidades e das sensibilidades.

Sob o título “Ditadura civil‐militar, cassações políticas e História em Chapecó”, Gustavo Silveira resenhou o livro de Claiton Marcio da Silva, voltado ao estudo das especificidades políticas do município catarinense. Paula Franco apresenta a resenha sobre a produção audiovisual “Orestes”, em suporte DVD, lançada em 2015, no diálogo com o clássico texto da tragédia adaptado.

Ao final desta edição, as entrevistas. Sob o título “Existe história oral em América Latina?”, resulta a transcrição da entrevista realizada com o Prof. Gerardo Necoechea (Instituto Nacional de Antropologia e História da Cidade do México), em resposta às questões apresentadas pelas doutorandas do PPGH / UDESC, Célia Silva, Yomara Fagionato e Lisandra Barbosa Pinheiro, registro que se deu na ocasião da participação do entrevistado no II Seminário Internacional História do Tempo Presente, em outubro de 2015. Em 13 de novembro de 2015, a Profa. Míriam Hermeto (PPGH / UFMG) foi entrevistada pela Profa. Márcia Ramos de Oliveira (PPGH / UDESC), atividade compartilhada com o Daniel Saraiva e Luciano Py de Oliveira (doutorandos também vinculados ao PPGH / UDESC), que deu continuidade ao Minicurso “A Canção Popular Brasileira: Documento para a Pesquisa e o Ensino da História” apresentado na FAED / UDESC.

Como no clique da fotografia, fica aqui um breve registro da divulgação científica na expectativa de que provoque outras reflexões. Desejamos a todos e a todas uma boa leitura!

Márcia Ramos de Oliveira

Rogério Rosa Rodrigues

Editores‐Chefes


OLIVEIRA, Márcia Ramos de; RODRIGUES, Rogério Rosa. Editorial. Tempo e Argumento, Florianópolis, v.8, n.17, 2016. Acessar publicação original [DR]

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