Tempos fraturados: cultura e sociedade no século XX | Eric Hobsbawm

Uma leva de acadêmicos brasileiros no século XX e interessados na produção inglesa sobre a História Social certamente se depararam com a comparação de que os integrantes da New Left e, em especial, Edward P. Thompson, estariam mais próximos da abordagem cultural do que Eric Hobsbawm que, graças a seu engajamento e continuidade no Partido Comunista pós-1956, priorizava uma vertente mais economicista e política em suas análises. As opções do mercado editorial brasileiro e as formas de difusão das obras no interior das instituições de ensino superior também contribuíram para essa visão. Acredito que a maioria de nossos pesquisadores pouco saiba dos escritos de Hobsbawm voltados à questão cultural, tendo o jazz como principal problemática de estudo. Talvez por isso, obras como Pessoas extraordinárias: resistência, rebelião e jazz e A história social do jazz não tiveram grande repercussão nos cursos e em trabalhos acadêmicos.

Hobsbawm, como historiador marxista no século XX, sofreu dificuldades com os ditames do stalinismo e com a perseguição política dentro do meio acadêmico britânico. Sua aproximação com a abordagem cultural, nos anos de 1950, não veio pela academia, mas pelo mundo do jornal, por meio da escrita de uma coluna cultural no jornal New Statesman que assinava com o pseudônimo Francis Newton (homenagem a um trompetista de jazz comunista). Nos seus últimos dias de vida, retomou as temáticas culturais ao concluir a organização de Tempos fraturados — uma novidade para parte de seus leitores e que não demorou a chegar ao Brasil, sendo a obra lançada pela Companhia das Letras em 2013.

Tempos fraturados está dividido em quatro partes, além de um texto introdutório intitulado “Manifestos”. O texto inicial e os artigos da primeira parte, intitulada “A difícil situação da „cultura erudita‟ hoje”, abordam um leque de temas culturais num comparativo entre as dinâmicas dos séculos XIX e XX frente às inovações anunciadas para o século XXI. Hobsbawm considera que a literatura e seu principal suporte que é o livro impresso vivem num crescimento contínuo de impressões e de leitores devido à queda do analfabetismo e ao aumento dos índices de escolaridade; o campo da arquitetura também mantém seu ritmo de crescimento, em que os hotéis internacionais, os novos shopping centers como templos do consumo e os grandes estádios para o esporte, shows e outros entretenimentos são as novas tendências desse ramo no século XXI.

Mergulhados em crises, graças às novas tecnologias, o autor aponta a imprensa escrita, os jornais, que nos séculos XIX e XX tiveram peso no campo político e cultural, e as artes visuais, que estão sendo substituídas pelos computadores, não recebendo assim os mesmos volumes de apoio financeiro de tempos anteriores, seja do setor público ou do privado. De forma paradoxal encontra-se a música: por um lado, na sociedade de consumo ela ganha novo fôlego e espaços de difusão, mas, por outro, as inovações tecnológicas reduzem o talento inventivo e a habilidade técnica do artista individual com seu instrumento convencional. Ainda no campo musical, Hobsbawm observa com certo lamento o declínio da música clássica e das óperas, que tiveram seu apogeu no século XIX. Na prática, Hobsbawm avalia que um dos elementos que transforma as artes em nosso século é seu grau de dependência da revolução tecnológica.

As novas dinâmicas da economia de mercado e a individualização são, para o autor, os outros elementos que impactam as artes e a cultura no século XXI. Com a globalização e os avanços tecnológicos dos meios de locomoção, percebe-se um período de grande mobilidade humana que, para Hobsbawm, gera transnacionalidades, isto é, pessoas que atravessam fronteiras nacionais e culturais sem dar muita importância ao fato, além de não se sentirem presas ou vinculadas a lugar algum. Não que isso destrua por completo as culturas regionais ou nacionais, mas impulsiona combinações, gerando “um mundo de sincretismos”, características que Hobsbawm observa na música, na literatura, na culinária e nos interesses por determinadas línguas faladas por milhões ou bilhões de habitantes em nosso planeta.

Apaixonado por festivais, Hobsbawm constata que eles se multiplicam “como coelhos”, o que vem gerando um forte turismo cultural, notadamente nas cidades que não são grandes metrópoles. Além disso, incitam novas formas de comunicação artística e experiências inovadoras no campo estético, o que aponta para o surgimento de novas tendências e grupos que se organizam por conta própria.

Saudosista das ações coletivas, o historiador relembra que os intelectuais, artistas e ativistas dos séculos XIX e XX buscavam, através de movimentos políticos e partidos, ganhar adeptos e interferir nos rumos do futuro por meio do lançamento de manifestos, diferentemente dos dias atuais, nos quais os manifestos praticamente saíram de cena, sendo que os poucos que aparecem são de cunho individualista e esvaziados de conteúdo político. Isso não indica o fim das relações políticas e culturais no novo século. Significa que o Estado e o mercado tomaram a dianteira na construção dessas relações.

O Estado se mostra mais preocupado com o desenvolvimento das ciências naturais e exatas voltado para a guerra e para seu fortalecimento industrial, enquanto as indústrias privadas visam novos produtos e maiores lucros. O desenvolvimento cultural de perfil humanístico pouco interessa ao Estado, desde que não constitua pauta de um debate pontual vinculado às questões de identidade nacional. Já a iniciativa privada vê a cultura como produto e, em específico, como serviços de entretenimento que geram alta margem de lucratividade. Hobsbawm defende a ação dos coletivos existentes na sociedade para que a cultura não fique refém dos interesses do mercado e dos governantes.

Na segunda parte de Tempos fraturados — “A cultura do mundo burguês” — são apresentados sete artigos que tratam da inserção judaica nas relações socioeconômicas, do peso das mulheres vinculadas às classes média e alta na cultura, das influências da art nouveau antes da Primeira Guerra e demais peculiaridades da cultura europeia. Sobre o impacto dos judeus na Europa, Hobsbawm acentua que eles viviam “segregados” de outros povos com os quais mantinham aproximação, sendo que a própria autoridade rabínica repelia a inserção da filosofia, das ciências e de outros ramos do conhecimento que não fossem de origem judaica. Até mesmo as línguas estrangeiras eram excluídas do processo educacional dos judeus. Com os impactos da Revolução Francesa e a difusão do pensamento Iluminista, aliados à constante concentração de judeus em grandes cidades europeias, houve uma inserção judaica na sociedade ocidental no transcorrer do século XIX, fato que impulsionou a emancipação dos talentos do povo judeu em várias áreas do conhecimento. Apesar de serem menos de 1% da população mundial, Hobsbawm aponta que os nomes judaicos passaram a ter uma representatividade desproporcional com forte atuação no campo político, sendo muitos defensores de transformações revolucionárias ou integrantes de cargos relevantes dentro das máquinas estatais. Além disso, nos campos artístico e literário, diversos nomes despontaram e, nas ciências naturais modernas, vários ganharam prêmios Nobel no período entre guerras.

Hobsbawm considera que, dentre as inserções da comunidade judaica na Europa, o caso alemão foi bastante expressivo, já que uma grande leva de judeus passou a integrar as classes médias e se sentia à vontade na Alemanha, sendo que muitos se colocavam como superiores aos judeus de outras partes do mundo. Essa característica contribuiu para a tragédia com a chegada de Hitler no poder, pois muitos não acreditavam na perseguição e na possibilidade dos extermínios em massa. No pós-guerra, a Alemanha sem os judeus já não era mais um dos expoentes da modernidade ocidental e muito menos o centro do desenvolvimento das ciências. Para ilustrar as perdas de intelectuais judeus de língua alemã por causa da guerra e da xenofobia, Hobsbawm dedica um artigo ao escritor austríaco Karl Kraus e ao seu livro Os últimos dias da humanidade — obra que revela as atrocidades da Primeira Guerra e a oposição de Kraus aos conflitos bélicos e é apontada pelo historiador como uma das principais obras-primas da literatura do século XX, tendo suas adaptações para o teatro e para edições impressas reduzidas no século XXI.

Ao abordar a “Europa Central” ou Mitteleuropa — territórios que estão entre a Rússia e a Alemanha —, Hobsbawm relembra que é uma região de grande diversidade cultural, com suas várias etnias, línguas e costumes, e que, antes da Segunda Guerra, vivia uma crescente influência da cultura e da língua alemãs graças à forte inserção judaica. Essa peculiaridade foi transformada em consequência dos constantes conflitos bélicos e diplomáticos na região durante o século XX, com suas constantes diásporas e/ou massacres étnicos. Além disso, a cultura de massa globalizada vem introduzindo o inglês como idioma predominante, reduzindo a influência linguística alemã. Por mais que as fronteiras dos Estados-nações da “Europa Central” tenham se redefinido nas últimas décadas, parece que o mundo ocidental visualiza a região como um espaço que separa as economias ricas da parte ocidental das regiões pobres e orientais do continente — uma fronteira tênue entre a “civilização democrata” cristã e a barbárie asiática.

No que se refere à cultura e ao gênero da sociedade burguesa europeia, Hobsbawm avalia que parte da população, ao final do século XIX, já visualizava as mulheres com potencial de ação análogo aos dos homens — perspectiva que se fortaleceu nas primeiras décadas do século XX com a individualização das mulheres das classes mais ricas, aliada às práticas de empreendedorismo que visavam delinear seus futuros. Porém, no campo formal e institucional, a tendência em reconhecer as mulheres como cidadãs só ocorreu após o findar da Primeira Guerra e com os impactos da Revolução Russa. O excedente de capital gerado por certas parcelas da burguesia foi outro elemento que possibilitou a formação de estratos sociais ociosos no interior da própria classe e, em especifico, entre as mulheres, que passaram a ter a possibilidade de instrução educacional e de acesso à “cultura erudita”. Entretanto, o autor argumenta que tais transformações do período não vieram exclusivamente pelas mãos das mulheres, mas também pelo apoio decisivo de homens liberais. No mesmo contexto, o desenvolvimento da sociedade de consumo detectou nas mulheres um potencial de exploração sistemática com a compra de bens e serviços, nascendo assim um perfil publicitário destinado especificamente às novas consumidoras.

Sobre as peculiaridades da cultura europeia é apresentado um texto acerca da art nouveau, vanguarda artística que emergiu com a vida moderna urbana e metropolitana no final do século XIX e se manteve até 1914, com expressiva inserção no meio britânico. A art nouveau se interligava com o planejamento das cidades, numa perspectiva do “novo urbanismo” que viesse a facilitar a mobilidade humana e a diluição da segregação residencial. Apesar de não existir um estilo único na art nouveau, muitos de seus artistas, arquitetos, desenhistas, planejadores de cidades, integrantes de museus e escolas de arte eram dotados de aguda consciência social, chegando a um idealismo que tinha afinidades com os novos movimentos trabalhistas. A art nouveau também atraiu setores da classe média que desejavam gastar com o seu bem-estar na construção de suas residências e no interior delas. Segundo Hobsbawm, o movimento durou até o eclodir da Primeira Guerra, sendo que sua variante, o estilo art déco, teve expressiva inserção no continente americano nos anos de 1920 e 1930.

Na terceira parte — “Incertezas, Ciência, Religião” —, sete textos abordam as posturas políticas dos intelectuais, a questão da religião na política e as relações das artes e suas vanguardas nas relações de poder. Hobsbawm afirma que nos dias atuais existe uma preocupação histórica acerca de como as pessoas se sentiram em determinados momentos emblemáticos da humanidade, como nos casos das grandes crises, diásporas e em instantes de guerra — questionamentos que estão a fortalecer historiografias que se sustentam apenas nas fontes orais e nas sensibilidades, elementos que para Hobsbawm são frágeis para a elaboração de uma história global quando estes são apresentados sozinhos. Utilizando-se do exemplo da propagação dos temores bélicos e sociais no entre guerras, o autor afirma que o prognóstico era difundido pelos intelectuais e reproduzido pelas classes médias sem provocar sentimentos apocalípticos na maioria das pessoas comuns.

A partir de exemplos de intelectuais que tentavam interferir no futuro, o autor apresenta os debates em torno dos “cientistas vermelhos” britânicos John Desmond Bernal e Joseph Needham, que colocaram seu prestígio em cheque no intuito de lutar pela paz mundial e em defesa do socialismo. O século XX foi caracterizado pelo engajamento político desses intelectuais que, em sua maioria, formavam linha de frente na problematização de temas relevantes para a humanidade, como a oposição às guerras e ao antifascismo, as lutas pela descolonização da África e da Ásia, a oposição ao stalinismo. De forma melancólica, o autor percebe que no século XXI os intelectuais têm abandonado a tarefa da razão e da mudança social e, além disso, os ativistas preferem aliar-se aos astros da música pop e do cinema para suas causas do que ter o apoio dos intelectuais. Diante desse diagnóstico negativo, Hobsbawm acredita ser necessária a formação de uma frente única entre pessoas comuns e intelectuais para transformar positivamente a sociedade.

No campo dos fracassos culturais do século XXI também se encontram as vanguardas artísticas que, no século anterior, relacionaram-se com projetos revolucionários ou foram obrigadas ou seduzidas a moldar, dirigir e controlar a cultura sob os interesses das elites dirigentes nos regimes autoritários. O declínio das vanguardas veio junto com os ceticismos perante a revolução socialista e com o findar dos Estados totalitários. Elas foram alijadas de seu status por causa das inovações do progresso tecnológico que vêm substituindo as habilidades individuais pela reprodução em massa. Para Hobsbawm, essa premissa de uma cultura de massa mercantilizada impulsiona de forma negativa uma fantasia generalizada que leva a sociedade para a negação das realidades, isto é, para uma vida artificializada.

Diferentemente das vanguardas e dos intelectuais, as religiões ainda mantêm forte poder político em determinadas nações, apesar do enfraquecimento da Igreja Católica e do crescimento do número de ateus declarados. As instabilidades políticas e econômicas no Oriente Médio levaram à derrubada de governos laicos, abrindo brechas para ascensão de grupos islâmicos conservadores, sendo que no Ocidente o “protestantismo carismático” vem ganhando adeptos com discursos conservadores na defesa da “moralidade” e do “empreendedorismo” religioso/econômico de perfil individualista.

Na quarta parte, intitulada “De Arte a Mito”, apenas dois artigos são apresentados. O primeiro reafirma o peso das novas tecnologias nas artes diluindo a força do talento individual, sendo que o artista se torna pop graças à propaganda especializada destinada aos jovens, num modelo cultural de massas que se esquiva do real. O segundo se ocupa da formação do mito dos caubóis estadunidenses, que, para Hobsbawm, não passa de uma tradição inventada, já que esses sujeitos não tiveram grande relevância política na história dos Estados Unidos. Para o autor, grupos sociais genéricos aos caubóis, isto é, de pastores e tocadores de gado, também tiveram suas existências em outras partes do mundo ocidental. Utilizando-se do exemplo dos gaúchos/vaqueiros do Cone Sul americano, nos casos uruguaio e argentino, eles teriam erguido e dirigido a formação de seus Estados nacionais, polarizando por décadas com seus citadinos pelo poder econômico e político. Sendo assim, a supervalorização da figura do caubói estadunidense não passa de um mito criado e difundido globalmente pela indústria cultural de massas.

Ao finalizar, vale relembrar que em 2002 Hobsbawm concedeu uma entrevista para o jornal Globo News, analisando a conjuntura mundial após um ano dos atentados de 11 de setembro. Em sua fala fica evidente seu ceticismo com o futuro, o temor da falta de controle da sociedade sobre o mercado e sua convicção de que o marxismo é uma teoria fundamental para diagnosticar. É esse mesmo Hobsbawm que visualizamos em Tempos fraturados, analisando sociedade e cultura na contemporaneidade e defendendo que o intelectual deve sempre atuar na transformação do presente, vislumbrando um amanhã mais justo.


Resenhista

Matheus Mesquita Pontes – Doutorando em História pela UFMT. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

HOBSBAWM, Eric. Tempos fraturados: cultura e sociedade no século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. Resenha de: PONTES, Matheus Mesquita. Outras Fronteiras. Cuiabá, v. 1, n. 2, p. 324- 331, jul./dez. 2014. Acessar publicação original [DR]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.