Teologia arminiana: mitos e realidades | R. E. Olson

INTRODUÇÃO

Quando Dort foi escolhida para sediar o Sínodo Nacional em 1618-1619, a liderança política e o povo já haviam se envolvido na disputa entre o grupo de seguidores de Jacob Armínio, falecido havia nove anos, e os seguidores de Franciscus Gomarus, ou Gomaro (OS CÂNONES DE DORT, s. d., p. 8-11). A influência da política em uma questão confessional invocou a liderança pública dos estados gerais, delegados da Igreja Reformada da Holanda e representantes de igrejas reformadas estrangeiras. Em dezembro de 1618, Episcopius, sucessor de Armínio, e mais 12 pastores apresentaram-se negando a competência do Sínodo como tribunal, pois a maioria contrária à condenação era inevitável. A discussão em torno d’A Remonstrância – cinco pontos doutrinais tomados de um manuscrito de Armínio – não avançou. Após debates infrutíferos, o presidente do Sínodo dispensou a participação do grupo de Episcopius e avançou na elaboração do que conhecemos por “Cânones de Dort”.

A partir da promulgação dos cânones, a doutrina arminiana passou a ser rejeitada pela ala reformada da Igreja. Arminianos nunca foram percebidos no cenário editorial ou acadêmico fazendo alguma defesa consistente dos seus pontos de fé e doutrina. Assim, o propósito da obra de Olson (2013, p. 13) é “explicar a teologia arminiana clássica como ela, de fato, é”. Ex-aluno de nomes como James Montgomery Boice, Olson (2013, p. 12) chama a atenção para os “mitos” criados por teólogos calvinistas sobre a teologia e a fé arminiana reformada, e já reclama no prefácio que “muito do que é dito acerca do arminianismo dentro dos círculos evangélicos, incluindo congregações locais com fortes vozes calvinistas, é simplesmente falso”.

A concentração desta resenha está na exposição das controvérsias, “os mitos”, ficando de lado as porções mais específicas em que é apresentado o desenvolvimento da teologia feito por cada um dos teólogos relevantes apontados dentro de cada período específico, como o século XVIII de John Wesley, o grande expoente dessa tradição, ou o XX de John Miley.

PANORAMA HISTÓRICO DA TEOLOGIA ARMINIANA

Na introdução da obra, Olson indica que arminianismo e calvinismo são formas de protestantismo que acreditam na salvação pela graça apenas por meio da fé, em oposição à salvação por meio da fé e das obras. Ambos os sistemas negam que a salvação possa ser embasada no mérito humano e afirmam a autoridade suprema da Escritura e o sacerdócio de todos os santos (OLSON, 2013, p. 20). Olson (2013, p. 22) usa a expressão “teologia reformada” para “designar algo mais amplo que o calvinismo”, entendendo que a teologia reformada envolve os pensadores da época e “inúmeros de seus contemporâneos, incluindo Zuínglio e Bucer”, não apenas Calvino.

Entretanto, utiliza “arminianismo” para a teologia protestante “que rejeita a eleição incondicional, expiação limitada e graça irresistível” (OLSON, 2013, p. 22). Para Armínio, o caráter de Deus é compassível e possui amor universal. Ele concede livre-arbítrio, mas este é restaurado pela graça, ação divina. A condução à salvação ou destruição eternas está em pauta dentro desse espectro. Em seguida, distingue “arminianismo de coração” e “arminianismo de cabeça”, este com ênfase no “livre-arbítrio alicerçado no Iluminismo, com característica antropológica otimista que nega a depravação total e absoluta necessidade da graça” (OLSON, 2013, p. 23). Essa é a raiz dos arminianos que seguiram o caminho da teologia liberal, o que não faz de todo o sistema responsável pelos desvios de seus seguidores, como não é possível atribuir ao calvinismo as variações na teologia de Schleiermacher.

Ainda na introdução, Olson (2013, p. 28-29) informa a base das obras de Armínio, nas quais apoiará suas principais argumentações, que são os três volumes contendo discursos eventuais, comentários e cartas, que não são exatamente uma teologia sistemática. Sobre as controvérsias, defende-se: “Armínio foi acusado de todos os tipos de heresia, mas as acusações de heresia nunca se sustentaram em nenhum inquérito oficial”. Os dez capítulos nos quais a obra de Olson tentará defender o arminianismo original, não o interpretado erroneamente por calvinistas posteriores que não entenderam corretamente os escritos do próprio Armínio, seguirão um padrão. Olson situa na época de Limborch e posteriormente os teólogos que mesclaram o arminianismo com a nova religião natural do Iluminismo. Apesar dessa tendência, há exemplos de arminianos que não seguiram o liberalismo e se opuseram a ele como parâmetro para interpretação aceitável, como John Wesley “que defendeu o sinergismo evangélico ao enfatizar que a graça preveniente de Deus é absolutamente necessária para a salvação […]” (OLSON, 2013, p. 30-31).

Tendo esse quadro em mente, vejamos os dez mitos apresentados pelo autor e o modo como defende a teologia arminiana como legitimamente reformada, afastando de sobre si as acusações feitas ao longo de quatro séculos de tradição calvinista.

OS DEZ MITOS CONTRA A TEOLOGIA ARMINIANA

MITO 1: A TEOLOGIA ARMINIANA É O OPOSTO DA TEOLOGIA CALVINISTA/REFORMADA

Armínio foi reformado? Muitos hoje em dia diriam não, mas isso é mais preconceito que constatação histórica. Reformado é todo grupo ou indivíduo que possui e que “pode demonstrar vínculo histórico com as alas suíça e francesa da Reforma Protestante” (OLSON, 2013, p. 57). Aplicando uma definição restrita do termo reformado somente aos grupos e movimentos fiéis aos três “símbolos de fé”, até mesmo alguns grupos calvinistas presbiterianos que se consideram reformados ficariam de fora. Assim, o autor separa “reformado” de “calvinista”, já que a Reforma foi um movimento maior que Calvino.

Por esse critério histórico, a herança arminiana é estabelecida dentro dos espaços reformados. E de fato seria estranho negar-lhe o crédito, uma vez que Armínio foi aluno de Beza, sucessor de Calvino, e que deu carta de recomendação a Armínio para a igreja de Amsterdã. “Parece extremamente improvável que o pastor-líder de Genebra e diretor de sua academia reformada desconhecesse as inclinações de seus alunos mais brilhantes” (OLSON, 2013, p. 61).

Olson esclarece a estranha “ausência” dos remonstrantes em Dort. O governo interferiu com rigor, apoiando os calvinistas rígidos. O príncipe Maurício destituiu os remonstrantes de seus cargos no governo, matou um, prendeu outros, e, quando o Sínodo se reuniu em 1619, os “remonstrantes foram excluídos de participar, com exceção dos réus; eles foram condenados como heréticos e expulsos de seus cargos” (OLSON, 2013, p. 62-63).

Com a morte do príncipe em 1925, os remonstrantes retornaram ao país e fundaram igrejas e um seminário, o que deixa transparecer o ambiente onde a diversidade convivia até certo modo pacificamente, congregando monergistas e sinergistas. A interferência política, que nem sempre arbitrou com justiça e clareza as questões doutrinárias, subjuga a verdade e distorce os fatos. Citando H. Orton Wiley: “em suas formas mais belas e puras, o arminianismo preserva a verdade encontrada nos ensinos reformados sem aceitar seus erros” (OLSON, 2013, p. 65).

MITO 2: UMA MESCLA DE CALVINISMO E ARMINIANISMO É POSSÍVEL

Imediatamente a impossibilidade é afirmada: “não há um meio termo estável entre eles nas questões determinantes para ambos” (OLSON, 2013, p. 79). Embora ambas as tradições concordem que a criatura caída esteja impossibilitada de “exercer qualquer boa vontade para com Deus à parte da iniciativa da graça” (OLSON, 2013, p. 79), quando apresentados corretamente, as diferenças são óbvias. A obra expiatória de Cristo é entendida como de âmbito universal sem ser universalista. Uma vez que Deus enviou Cristo ao mundo para morrer pelos pecados de todas as pessoas, a oferta é feita em caráter mais amplo que simplesmente uma morte expiatória exclusiva.

Na concepção arminiana, a eficácia da expiação é que será limitada na aceitação humana dessa obra que existe somente pela graça. As agências humana e divina cooperam, sem com isso fazer da participação do homem caído um agente eficaz. A participação humana, entendida corretamente, não é uma intervenção em sua própria condição caída, mas a aceitação da graça de Deus por meio da “não resistência”. O livre- -arbítrio é apresentado na teologia arminiana como tendo a função da não resistência, o que caracteriza o sinergismo evangélico, em oposição ao monergismo que decreta a eficácia exclusiva a um grupo seleto de eleitos preordenados, negando o amor de Deus à sua própria criatura.

Concordam arminianos e calvinistas que a expiação é tanto universal como limitada, mas em sentidos diferentes (OLSON, 2013, p. 83). Os arminianos notam que o escopo da expiação no calvinismo limita o amor de Deus e contradiz passagens como João (3:16). Se o medo calvinista é de cair no universalismo, o próprio decreto expresso em João (3:19) anuncia a solução sem incorrer no erro de limitar o amor de Deus a um grupo seleto. Apelar para a soberania de Deus nessa questão parece não ter convencido Armínio nem os arminianos, uma vez que a proposta remonstrante equaciona a questão sem transgredir princípios de interpretação. O tom do texto chega a tocar numa suposta acusação de falsa piedade e, citando teólogos calvinistas, chama a posição por eles defendida de “ilógica, ridícula, insensata e tola” (OLSON, 2013, p. 91).

Ao aprofundar essas questões, o capítulo demonstra a impossibilidade categórica de um “calminianismo” e avança no sentido de apontar o equívoco flagrante do calvinismo na crença na reprovação incondicional sem evidência bíblica, um texto único que aponte nessa direção, nada além da inferência doutrinária. Olson (2013, p. 94) cita John Wesley: “O que quer que a Escritura prove, ela jamais pode provar isso”.

Fechando o interessante capítulo, uma pergunta fica subentendida sobre se o próprio Calvino acreditava na expiação limitada: “Por que Deus iria querer que Cristo sofresse para expiar a culpa daqueles que Deus já havia determinado que não seriam salvos?” (OLSON, 2013, p. 99).

MITO 3: O ARMINIANISMO NÃO É UMA OPÇÃO EVANGÉLICA ORTODOXA

Olson (2013, p. 104) diz que, se for necessário restringir a ortodoxia simplesmente ao modelo monergista, então o arminianismo não é ortodoxo, o que é complexo, pois “tal defi nição tornaria todos os primeiros pais da igreja gregos, a maioria dos teólogos medievais, todos os anabatistas e muitos luteranos (incluindo Melanchton) heréticos! O arminianismo, então, estaria em excelente companhia”.

Por que tantos calvinistas insistem em identificar o arminianismo como pelagiano ou semipelagiano? Michael Horton aparece como um dos responsáveis em anos recentes por tal insistência, mas se trata de má compreensão do teólogo calvinista que atribui ao arminianismo a negação da salvação pela graça, colocando esta como resultado de uma fé como “obra que alcança retidão ante Deus” (OLSON, 2013, p. 105), erro comum atribuído à desinformação a respeito do que realmente foi ensinado por Armínio: “O arminianismo clássico inclui a crença na inspiração sobrenatural da Escritura e sua suprema autoridade para a fé e prática cristãs” (OLSON, 2013, p. 106).

Olson é criterioso ao detalhar as doutrinas fundamentais na teologia reformada de Armínio que amparam a sua obra como ortodoxa, reformada e alinhada a grandes nomes do cristianismo. Ele começa com o próprio Armínio por ver que as acusações a ele atribuídas não tiveram início na leitura atenta ao que escreveu o reformador: “Toda a nossa esperança para alcançar este conhecimento [teológico] está colocada na revelação divina” (OLSON, 2013, p. 107).

MITO 4: O CERNE DO ARMINIANISMO É A CRENÇA NO LIVRE-ARBÍTRIO

“O verdadeiro cerne da teologia arminiana é o caráter amoroso e justo de Deus; o princípio formal do arminianismo é a vontade universal de Deus para a salvação” (OLSON, 2013, p. 125). Essa é a primeira declaração que refuta um dos erros mais comuns na tradição calvinista. Monergistas têm atribuído à doutrina arminiana do livre-arbítrio uma função que nem os sinergistas fazem. Não atentam para a supervalorização da doutrina da predestinação, o que nem o próprio Calvino fez. Se o livre-arbítrio calvinista não age no recebimento da graça, como podem recebê-la assegurando-se eleitos? Se os mortos nada decidem, receio que o dom de Deus esteja até agora ao lado da sepultura monergista. A abordagem arminiana lida melhor com o tripé amor, justiça e a vontade expressa de Deus para a salvação de todos. “O arminianismo não se opõe à ideia de que Deus dirige as escolhas e ações humanas por intermédio do poder da persuasão” (OLSON, 2013, p. 127), visto na declaração paulina de que o amor de Cristo nos constrange (2Co 5:14).

Ao contrário da opinião corrente, que atribui ao arminianismo a pecha de ser humanista, Armínio lida com a eleição condicional ou da graça resistível começando com a bondade de Deus (OLSON, 2013, p. 132). “E a natureza boa e justa de Deus exige que ele deseje a salvação de todo ser humano. Tal visão é totalmente consistente com a Escritura (1Tm 2.4; 2Pe 3.9)” (OLSON, 2013, p. 133).

MITO 5: A TEOLOGIA ARMINIANA NEGA A SOBERANIA DE DEUS

Dos teólogos que fizeram tal afirmação, destaca-se Edwin Palmer: “O arminiano nega a soberania de Deus” (OLSON, 2013, p. 149). Que teria saído errado na teologia de Palmer? No mínimo ausência de compreensão do que Armínio e os arminianos ensinaram. “Eles leram Armínio sobre a providência de Deus?”, questiona Olson (2013, p. 149), e oferece razões pelas quais calvinistas, que nunca se debruçaram sobre a obra de Armínio ou um arminiano sério, repercutem ensino falso: “Se começarmos por definir soberania deterministicamente, a questão está resolvida; neste caso, arminianos não acreditam em soberania divina” (OLSON, 2013, p. 150). Olson (2013, p. 150) propõe uma reflexão necessária: “Todavia, quem foi que disse que soberania necessariamente inclui controle absoluto ou governo meticuloso em exclusão da contingência real e livre-arbítrio?”.

Arminianos creem que todas as coisas acontecem “específica e diretamente controladas e causadas por Deus” (OLSON, 2013, p. 151). Mas, diferentemente dos calvinistas, “Deus permite e os limita sem os desejar ou causá-los” (OLSON, 2013, p. 151). O arminianismo vai além da doutrina da providência geral incluindo a “afirmação do envolvimento direto de Deus em todo evento da natureza e história” (OLSON, 2013, p. 150). Olson inclui na discussão a distinção das três categorias da providência: preservação ou sustentação, concordância e governo. Nesta última reside maior atenção e controvérsia na doutrina da providência de Deus: “Como Deus governa o mundo?” (OLSON, 2013, p. 151). Ele responde distinguindo a crença calvinista do governo de facto e o modo como os arminianos entendem e ensinam a soberania de Deus no governo de todas as coisas: “O controle de Deus sobre a história humana já está sempre de jure – por direito e poder, se não já completamente exercido – mas no presente apenas parcialmente de facto” (OLSON, 2013, p. 152). E a questão não fica mal resolvida, pois que “Deus pode e, de fato, exerce controle, mas não à exclusão da liberdade humana e não de tal maneira a fazer dele o autor do pecado e do mal” (OLSON, 2013, p. 152).

É isto o que afirmam calvinistas como Palmer: “Todas as coisas, incluindo o pecado, são realizadas por Deus”, e “a Bíblia é clara: Deus ordena o pecado” (OLSON, 2013, p. 153). Mais à frente Olson dirá que tudo o que acontece, incluindo o pecado, a teologia reformada arminiana adverte como sendo por permissão de Deus, mas não existe no arminianismo a admissão de que o mal tem “autorização ou autoria em Deus”. Deus o permite, mas não efetivamente a ponto de tornar-se seu autor . Essa forma de compreender a questão atribui maior glória e poder a Deus que o calvinismo, pois, além de não fazer de Deus autor do mal e do pecado, admite-os sem esbarrar na sua soberania.

MITO 6: O ARMINIANISMO É UMA TEOLOGIA CENTRADA NO HOMEM

Esse mito pode ser expresso na falsa ideia de que, apesar de a Queda ter devastado o homem, o livre-arbítrio sobreviveu intacto. Novamente Palmer é apontado como o responsável pela propagação da falsa tese (OLSON, 2013, p. 177). Ele escreveu que arminianos “acreditam que, às vezes, o homem natural e não regenerado tem bondade o suficiente nele de maneira que, se o Espírito Santo ajudá-lo, ele irá querer escolher a Jesus. O homem escolhe Deus e então Deus escolhe o homem” (OLSON, 2013, p. 178). Outro nome relacionado ao mesmo engano é o já citado James Boice, um dos professores de Olson, que, numa aula que discutia “pessoas que não podem dar glória a Deus”, apontava primeiramente os descrentes e depois arminianos (OLSON, 2013, p. 178).

O deboche insultuoso de Boice é reduzido a nada no trabalho de Olson, do mesmo modo como os enganos de Horton e Godfrey, presidente do Westminster Theological Seminary, ambos nomes calvinistas entre os autores equivocados que escreveram falsidades. Olson cita diversos autores arminianos sérios que não foram levados em conta pela tradição calvinista e demonstra que os insultos dos críticos não passam de desinformação teológica.

Armínio não cria no homem como detentor de habilidades para reverter os efeitos da Queda. Acreditava, sim, na depravação total tanto ou mais que os calvinistas, pois incluía nesta a própria escravidão da vontade para o pecado (OLSON, 2013, p. 183). Citando Witt, relata que provavelmente os calvinistas jamais tenham tido o cuidado de perscrutar a cren ça de que a graça é que restaura o livre-arbítrio, tornando-o um livre-arbítrio libertado, e não que tenha permanecido intacto e capaz de realizar qualquer papel na soteriologia:

A graça liberta a vontade da escravidão ao pecado e ao mal, e lhe dá a habilidade de cooperar com a graça salvífica ao não resistir a ela. (Que não é a mesma coisa que contribuir com algo ao seu trabalho!) (OLSON, 2013, p. 183).

MITO 7: O ARMINIANISMO NÃO É UMA TEOLOGIA DA GRAÇA

Na teologia arminiana clássica, toda a salvação tem início com a ação de Deus que busca a relação com o pecador. Este somente responderá a uma ação que não tem início em si: estamos todos mortos em pecados e delitos. Essa graça preveniente, que calvinistas negam existir na teologia arminiana, é entendida como eficiente modo como Deus habilita o pecador a “responder livremente com arrependimento e fé” (OLSON, 2013, p. 207). A mesma graça inclui ao menos quatro mecanismos da parte de Deus, que são: chamada, convicção, iluminação e capacitação (OLSON, 2013, p. 207). Nada disso é possível sem o auxílio do Espírito Santo. Sem a intervenção divina seriam impossíveis arrependimento, fé e salvação, ou seja, todo o processo soteriológico arminiano é entendido e ensinado con forme a mais rigorosa tradição reformada como a história tem demonstrado até os nossos dias. Cai mais um mito, mas ainda restam três.

MITO 8: O ARMINIANISMO NÃO ACREDITA NA PREDESTINAÇÃO

O arminianismo interpreta [a predestinação] de maneira diferente dos calvinistas […] É o decreto soberano de Deus em eleger crentes em Jesus Cristo e inclui a presciência de Deus da fé destes crentes (OLSON, 2013, p. 233).

É assim que Olson responde e diz que qualquer calvinista sabe que arminianos não negam tal doutrina: interpretam-na à luz de Romanos (8:29) que relaciona a predestinação à presciência de Deus em relação aos que creem. O que os verdadeiros arminianos rejeitam é a preordenação rígida e arbitrária que o calvinismo faz da doutrina.

Armínio identificou a predestinação à luz de uma interpretação corporativa. Jesus morreu pelos pecados do povo da fé, a Igreja. O Novo Testamento nos chama sacerdócio real, povo adquirido, nação eleita: “Os arminianos querem deixar claro que as pessoas reprovam a si mesmas; Deus, de fato, não condena ninguém, principalmente incondicionalmente” (OLSON, 2013, p. 234).

Armínio é bastante claro a esse respeito. Ele, que nem mesmo inclui a questão do livre-arbítrio, usado por seus críticos, definiu predestinação como:

O decreto da boa vontade de Deus em Cristo, pelo qual ele resolveu dentro de si mesmo desde a eternidade justificar, adotar e dotar com vida eterna […] crentes sobre os quais ele havia decretado conceder fé (OLSON, 2013, p. 235).

E se opôs ao modo calvinista de apresentar a predestinação por ser claramente uma exclusão de pessoas que, de outro modo, poderiam ser salvas. Logicamente, a salvação é outorgada incondicionalmente a um grupo específico, o que faz

[…] de Deus um hipócrita, pois imputa hipocrisia a Deus, como se, em Sua exortação à fé voltada para tais, ele exige que estes creiam em Cristo, a quem entretanto, ele não propôs como Salvador deles (OLSON, 2013, p. 236).

A doutrina calvinista é considerada insuficientemente cristocêntrica para Armínio. Qualquer alegação de que Deus “decretou que o homem deveria cair” não pode ser provada a partir da Escritura e inevitavelmente torna Deus o autor do pecado (OLSON, 2013, p. 237).

MITO 9: A TEOLOGIA ARMINIANA NEGA A JUSTIFICAÇÃO PELA GRAÇA SOMENTE ATRAVÉS DA FÉ SOMENTE

Para Olson (2013, p. 261), essa é “uma das concepções errôneas mais prejudiciais acerca do arminianismo”, porque a aproxima da teologia católica. Pelo visto, a tendência natural do desenvolvimento da teologia arminiana é que a proposição calvinista está errada e Horton é apontado como um dos críticos modernos a errar o alvo ao fazerem tal acusação (OLSON, 2013, p. 261).

Olson (2013, p. 262) atribui isso à falta de exatidão dos arminianos ao não deixarem clara a compreensão sobre “natureza da justiça imputada (a primeira justiça de Lutero)”. “É a obediência ativa e passiva de Cristo que é imputada aos crentes em razão da fé, ou é a própria fé que é creditada aos crentes como justiça?”, pergunta Olson (2013, p. 262-263) a fim de provocar uma resposta com mais exatidão. Olson demonstra que a justificação é causada pela graça, por iniciativa de Deus, e a fé não pode ser causa eficaz nem meritória da justificação. “A fé é sempre a única causa instrumental de justificação” (OLSON, 2013, p. 263), como provavelmente todo reformado, incluindo os ar minianos, entendem. É pela fé que recebemos os dons de Deus, segundo Efésios 2, e a justificação é parte da dádiva gratuita e graciosa concedida aos que a recebem pela fé.

Para demonstrar sua exposição, Olson (2013, p. 264) recorre a Alan P. F. Shell, ex-secretário da Aliança Mundial de Igrejas Reformadas, que declarou: “Acerca da questão da justificação, Armínio se encontra de acordo com todas as igrejas reformadas e protestantes”.

Além da exposição de comentários de teólogos arminianos reconhecidos e influentes sobre a doutrina da justificação pela graça somente através da fé somente, Olson (2013, p. 265- 269) organizou quatro pontos sobre os quais a compreensão seminal de Armínio era radicalmente alinhada à compreensão reformada que se tornou clássica:

  1. Considera a fé que justifica um dom e não obra meritória que mereça a salvação;
  2. Acredita na doutrina forense da justificação. Armínio acreditava que a justiça é declarada e imputada, e não possuída pelo crente que é justificado;
  3. Afirmou clara e repetidamente que a fé é obra do Espírito Santo e não obra dos humanos autônomos […] e deste modo o Espírito Santo é a causa eficaz da justificação […] e que a Causa Meritória de justificação é Cristo por intermédio de sua obediência e retidão e
  4. Distinguiu entre a justificação e a santificação à moda protestante.

Conclui citando o próprio reformador holandês: “Que a fé e obras cooperam juntas na justificação, tal é impossível” (OLSON, 2013, p. 268).

MITO 10: TODOS OS ARMINIANOS ACREDITAM NA TEORIA GOVERNAMENTAL DA EXPIAÇÃO

A primeira parte do capítulo mostra um Olson (2013, p. 288) indignado com a má compreensão dos calvinistas quanto a este ponto na teologia arminiana: “O arminianismo diz que a salvação é única e exclusivamente pelo sangue de Jesus Cristo”. Os críticos têm negligenciado dois pontos na teologia arminiana. Primeiro, corrigindo a concepção calvinista da morte por um grupo seleto, a expiação tem aspecto universal (não eficaz para os que não a aceitam pela fé), em função do amor de Deus (Romanos 5). E Olson (2013, p. 289) acrescenta que é assim que as “crianças não são condenadas ainda que, à parte da morte de Cristo por elas, elas sejam crianças da ira. Alguns calvinistas concordam”. Em segundo lugar, o desdobramento óbvio do que tem sido exposto, a morte de Cristo concedeu possibilidade de salvação a todos, pois Deus não amou um grupo, mas o mundo, ainda que essa possibilidade não seja eficaz ou concretizada a não ser quando aceitam a dádiva com arrependimento e fé (OLSON, 2013, p. 289).

Edwin Palmer reaparece como um dos calvinistas equivocados quando diz que, para os calvinistas, “a expiação é como uma caixa de surpresas; há um pacote para todos, mas apenas alguns irão pegar o pacote […] Parte do sangue foi desperdiçada: foi derramado” (OLSON, 2013, p. 289). A afirmação de Palmer é no mínimo estranha, com lógica inconsistente. Uma vez que o sangue de Cristo foi disponibilizado, não há como “ter surpresas”. Na eleição incondicional sim, caso algum ouvinte de Palavra fosse alcançado por seu poder, ao abrir o pacote chamado “amor de Deus”, nada encontraria em seu nome. Deus não o ama, o que é uma afirmação horripilante.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho editorial de Teologia arminiana poderia ter sido mais bem realizado. Senti falta de um trabalho do editor na pesquisa das obras citadas em inglês; muitas delas já estão vertidas para o português. Isso facilitaria muito ao pesquisador e a alunos de teologia que quisessem conferir ou aprofundar seus estudos. O projeto gráfico também fica devendo um pouco. A diagramação não observou os limites marginais e é preciso forçar o livro para ler as palavras à medida que se aproximam do dorso. Com isso, antes de chegar à metade da obra, provavelmente o miolo descolará da capa, ao menos em parte. Nada disso, no entanto, denigre ou desmerece a contribuição que dá a nós, seus leitores brasileiros. A obra resgatou as bases da teologia reformada de Jacob Arminius que tem sido criticada por calvinistas. Tais críticas, segundo o autor, são infundadas, fruto do trabalho de repetição de críticas que elas mesmas nasceram de má compreensão, e não do exame sobre a obra do reformador holandês.

Referência

OS CÂNONES de Dort. São Paulo: Cultura Cristã, [s. d.].


Resenhista

Magno Paganelli de Souza – Mestrando em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). Bacharel em Teologia pela Faculdade Unida de Vitória, especialista em Novo Testamento pela Faculdade Latino Americana de Educação do Ceará (Flated), licenciado em Pedagogia e jornalista. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

OLSON, R. E. Teologia arminiana: mitos e realidades. São Paulo: Reflexão, 2013. Resenha de: SOUZA, Magno Paganelli de. Outra verdade inconveniente. Ciências da Religião – História e Sociedade. São Paulo, v.11, n.2, p. 214-228, 2013. Acessar publicação original [DR]

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