Teoria da história da historiografia / História da Historiografia / 2013

Dificilmente alguém questionaria que a história da historiografia é uma especialidade recente. Podemos dizer que o amadurecimento e a famosa “consolidação” institucional virão com o tempo.

Mas se a tal consolidação significar encastelamento, se se confundir com procedimentos viciados, leituras requentadas, diálogos entre poucos iniciados e tudo o mais que seja sinônimo de incapacidade de enxergar a historiografia de outra forma – bom, este futuro deverá ser evitado e será melhor manter-se cambaleando.

Ora, mas o que fez a história da historiografia ao longo do tempo senão traçar um caminho cheio de curvas e atalhos? Se lermos Ranke e Droysen, diríamos que a história dificilmente diria algo sobre si mesma sem antes se mirar no idealismo, se voltarmos às páginas de Buckle, veremos que namorou firme com o positivismo. No século XX, como acompanhar plenamente a trajetória da historiografia francesa reunida em torno da revista dos Annales se deixarmos de lado, em uma ponta, a sociologia de Durkheim, e, em outra, a etnologia de Lévi-Strauss? E como seguir decentemente o debate gerado por Hayden White, há precisos quarenta anos, se não nos familiarizarmos com teorias literárias? Citamos apenas alguns exemplos, para afirmar que, dentro das humanidades, se a história da historiografia tem uma teoria, ela é tecida com vários fios.

A proposta de um dossiê sobre teoria da historiografia, portanto, não pretendeu jamais estabelecer um consenso, mas apresentar perspectivas. Para lembrar o já citado Hayden White, poderíamos fazer da historiografia um canal para pensar a modernidade, na medida em que toda escrita da história comporta não somente uma dimensão metódica, mas também uma estética e outra ideológica: talvez não por mera coincidência, equivalente ao tripé da arquitetura kantiana. Ele trataria, portanto, de maneira articulada, de nossa capacidade de pensar, de sentir e de agir.

Uma questão importante, porém, estaria em fazer da história da historiografia mais do que um campo de testes. Não que isso seja um mal a ser evitado, mas são claros os limites das pesquisas que pretendem “ver como funcionou na história uma teoria desenvolvida em outro campo do conhecimento, da arte ou da prática”. Mais interessante é ver o que poderíamos dizer para outros pesquisadores, para escritores, para pessoas politicamente engajadas.

O que pode ser melhor pensado a partir da história da historiografia? Se conversarmos entre nós, entre quatro paredes, é uma atividade reflexiva indispensável, por outro lado, devemos vislumbrar uma maior capacidade de provocação. Sim, está aqui envolvida uma responsabilidade formativa, já presente necessariamente em sala de aula, quando se monta e ministra um curso de historiografia nas disciplinas de graduação – afinal, o aluno de história precisa conhecer e apropriar-se de sua tradição. Por outro lado, se o propósito formativo for mais ambicioso, não poderemos nos desviar do pensamento sobre o que há de universal em nossa particularidade, sobre o que é possível falar para os outros e sobre os outros, quando falamos a partir de nossa perspectiva.

Claro que o dossiê apresentado e organizado por nós não cumprirá plenamente esta tarefa, nem fornecerá respostas e, muito menos, programas e palavras de ordem. Contentamo-nos com a abertura de novas portas para conversar. E é exatamente com uma conversa que as discussões se iniciam: a entrevista realizada por Renata Maria Pistilli Eberhard com o historiador alemão Ulrich Muhlack, eminente estudioso da obra de Ranke, e autor de diversos estudos sobre o historicismo.

Na sequência, Valdei Lopes de Araujo discute as condições para que a história da historiografia possa reivindicar o estatuto de uma subdisciplina autônoma. Partindo da concepção heideggeriana de historicidade, o autor sugere atenção especial às modalidades de “transformação do tempo em tempo histórico”: mais que um mero “estar no tempo”, a abertura do “ser para o seu tempo” que a historiografia permite. Como atividade de fronteira, caberia à história da historiografia orientar-se para a compreensão do que Heidegger chamou de “historicidade própria” – a “possibilidade do homem reconhecer a natureza modalizante (enlaçamento de passado / futuro na abertura do agora) do seu acontecer”.

Por um viés distinto, a preocupação com a historicidade da historiografia se revela um dos eixos condutores do artigo de Eduardo Sinkevisque. Mas trata-se, aqui, da reflexão sobre a historicidade das práticas historiográficas seiscentistas, retoricamente regradas. Ao examinar os usos da ecfrase em anais, vidas e diários das guerras holandesas no Brasil, o autor questiona o “pressuposto mimético” que muitas vezes orienta a leitura de textos históricos anteriores à modernidade, enfatizando os “efeitos de verdade” e a busca da vivacidade narrativa que tais escritos visavam.

Também Juliana Bastos Marques percorre tradições historiográficas anteriores à modernidade. Mas se o artigo de Sinkevisque tem por objetivo a apresentação da alteridade das práticas letradas seiscentistas, o ensaio de Juliana Bastos Marques se vale de um tom altamente provocador para investigar os usos possíveis que podemos fazer da tradição historiográfica antiga. Para além da ideia demasiado esquemática da dissolução do topos da historia magistra vitae na modernidade, como seria possível restabelecer nexos de continuidade entre historiografia antiga e moderna? De que maneira critérios como utilidade e exemplaridade podem nos ajudar a compreender e mesmo ultrapassar as aporias da historiografia dita pós-moderna? E em que medida “o estouro dos estudos culturais pós-modernos e pós-coloniais” pode ser tomado como critério balizador para o alargamento da noção de exemplaridade histórica?

Por outro viés analítico, a discussão sobre a utilidade prática do conhecimento histórico é levantada por Aaron Grageda Bustamante. Revisitando o conceito de prudência – a partir da proximidade, no mundo antigo e nos séculos iniciais da época moderna, entre escrita da história e razão prática –, o autor discute como a história da historiografia é rica em chaves analíticas capazes de lançar novas luzes sobre o “dilema ético del solipsismo científico”. Para o autor, “la Historia articuló durante mucho tiempo los elementos básicos de un paradigma de conocimiento social, unificador y pragmático, materializado en el cultivo de la prudencia”.

Já o artigo de Israel Sanmartín trata das reflexões teóricas de Hegel e Marx acerca da noção de “fim da História”. Em uma análise minuciosa, o autor apresenta as diversas variações desta discussão que podem ser encontradas na obra dos dois filósofos alemães. Se Sanmartín revisita um dos debates mais significativos (e ricos em desdobramentos contemporáneos) do pensamento histórico ocidental, Rômulo da Silva Ehalt apresenta aos leitores brasileiros uma reflexão sobre um tema pouquíssimo estudado entre nós: a historiografia japonesa da Era Meij, e as particularidades da construção da modernidade historiográfica no Japão.

María Martini, por sua vez, se propõe a escrever uma “historia fragmentaria de la historiografía de la ciencia”, valendo-se do procedimento da interpretação figural, como pensado por Erich Auerbach e atualizado por Hayden White. Isto é realizado a partir de uma leitura da obra historiográfica de Steven Shapin, compreendida como “consumación de una serie de mediaciones figura- -cumplimiento que se conformaron en torno del origen de la ciencia moderna en la Inglaterra del siglo XVII”.

Como era de esperar, os artigos apontam caminhos diversos de reflexão teórica sobre a historiografia, e demonstram a consolidação do interesse pela história da historiografia no Brasil e na América Latina. Agora – como escreveu Auerbach certa vez – só nos resta esperar que eles encontrem seus leitores.

Pedro Spinola Pereira Caldas – Professor adjunto Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

Felipe Charbel – Professor adjunto Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]


CALDAS, Pedro Spinola Pereira; CHARBEL, Felipe. Apresentação. História da Historiografia, Ouro Preto, v.6, n.12, ago., 2013. Acessar publicação original [DR]

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