Terra: relações, conflitos e movimentos sociais / Tempos históricos / 2014

Os estudos relacionados à história rural no Brasil e na América Latina, na atualidade, revelam relações sociais conflitivas e diversificadas; modos de vida; memórias acerca de experiências de ocupação da terra e do trabalho rural; disputas judiciais pela posse da terra e disputas de trabalhadores rurais por direitos trabalhistas; formas individuais e coletivas de luta pela terra e contra a construção de usinas hidrelétricas, bem como modos diversos de conceber a posse, o uso e as relações com a terra e o meio ambiente.

Este universo rural plural, desigual e conflitivo visualiza-se nos problemas abordados em artigos, publicados em grande número no passado recente, o que demonstra a vitalidade da história rural, que para além de problematizar tradicionais temas, como o dos movimentos sociais, incorporou e abriu novas frentes de análise. Também possibilitou a voz e conferiu movimento às práticas dos sujeitos sociais a partir de um leque diversificado de fontes, entre as quais as narrativas orais.

A multiplicação de estudos sobre a vida rural vem propiciando a revisão das historiografias construídas tradicionalmente, elaboradas e problematizadas nos centros urbanos, ao destacar a homogeneização que elas supõem. A irrupção de análises com estas características nos permite resignificar concepções de mundo, pleitear a necessidade de um desenvolvimento que interpretamos como humano e social e não meramente econômico, bem como consolidar um olhar mais amplo para a relação entre sociedade e natureza, no âmbito do pensamento holístico.

Tal configuração se verificou também na organização do presente Dossiê “Terra: relações, conflitos e movimentos sociais”. Os organizadores receberam dezenas de artigos, versando sobre múltiplas temáticas, o que também se têm nos artigos que compõem o Dossiê. Eles retratam questões situadas em diferentes espaços e tempos históricos em diversos países da América Latina (Brasil, Argentina, México e Peru) e com perspectivas teóricas, abordagens e fontes diversas, entre as quais: matérias de jornal impresso, entrevistas orais, índices estatísticos, leis, entre outras.

A problematização das leis agrárias, do direito da / à terra e do direito do / ao trabalho, permeia os seis primeiros artigos do Dossiê. Neles emergem disputas entre diferentes sujeitos sociais – indígenas, pequenos agricultores e grandes proprietários rurais – pela posse da terra. Neste terreno movediço e conflituoso, no questionamento do Direito e, ou, na busca da justiça por meio dele, bem como na forma de movimentos sociais, evidencia-se a constituição de sujeitos como portadores de direitos; a recriação de representações sociais; políticas públicas, leis agrárias e confrontos em torno delas.

Tematizando a Lei Hipotecária de 1964, Pedro Parga Rodrigues questiona se esta lei originou a propriedade privada no Brasil, confrontando a interpretação da criação da propriedade privada no Brasil pelas normas jurídicas.

O paper de Vânia Maria Losada Moreira nos chama atenção para o Direito como uma das dimensões centrais na luta índios pela posse e uso de suas terras, “discutido a obliteração dos índios como sujeitos portadores de direitos na historiografia clássica sobre a formação territorial brasileira”, bem como, a partir de estudo de caso, como a recorrência ao Direito e “busca da Justiça foram os dois principais instrumentos mobilizados pelos índios para assegurar a posse e controle sobre suas terras”.

Fábio Baião, por sua vez, nos convida à reflexão sobre as estratégias de luta coletiva do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), movimento armado e constituído em sua maioria por indígenas do sul do México. O autor problematiza os usos de representações sociais pretéritas pelo EZLN, como ferramenta de combate e legitimação, numa conjuntura neoliberal, de ameaça da perda da terra e das tradições.

Os professores Henrique Kujawa e João Carlos Tedesco abordam os conflitos entre indígenas e pequenos agricultores, engendrados pelas políticas públicas relacionadas às demarcações de terras indígenas no Norte do Rio Grande do Sul e os conflitos territoriais na atualidade.

O artigo de Silvia Lázzaro analisa a política agrária peronista, na década de 1970, explicitando como a Lei Agrária foi inviabilizada pela confrontação tecida pelas corporações dos grandes proprietários, bem como de fissuras internas ao governo peronista.

Em “Sobre a lei do trabalho infantil no agro argentino”, Ignacio Rullansky aborda as “diretrizes gerais que servem de base para o aprofundamento da análise histórica do direito do trabalho na agricultura argentina e do trabalho infantil”.

Os artigos que se seguem abordam diferentes dimensões da questão agrária no Brasil e na Argentina. São temas: a apropriação privada da terra, os conflitos e a sujeição do trabalho e dos trabalhadores engendrados por este processo; o acesso a terra pelos trabalhadores rurais, a reforma agrária e as alterações da vida no campo contemporâneo.

A questão agrária, dimensionada pela apropriação privada da terra, pelos conflitos e territorialidades em áreas de colonização, é objeto de análise dos artigos de José Carlos Radin, em “Questão agrária na fronteira catarinense” e de Carlo Romani, César Martins de Souza, Francivaldo Alves Nunes, em “Conflitos, fronteiras e territorialidades em três diferentes projetos de colonização na Amazônia”.

Christine Rufino Dabat analisa a trajetória de acesso a terra dos trabalhadores rurais da zona canavieira de Pernambuco, entre 1960 e 1980, concluindo que a “brecha camponesa, sob a forma de sítio / roçado, permitiu, após a abolição, a manutenção da sujeição da força de trabalho rural”, na forma da relação de trabalho assalariada.

A “modernização agrícola”, como discurso político a partir de um estudo de caso em Minas Gerais, Brasil, é tema do artigo de Auricharme Cardoso de Moura. As alterações da vida no campo no Oeste do Paraná, na segunda metade do século XX, por sua vez, dimensionadas por meio da análise da desestruturação ambiental, ocasionada em grande medida pela utilização de agrotóxicos, são problematizadas por Carlos Meneses de Sousa Santos e Sheille Soares de Freitas.

Na sequência há cinco artigos que têm como objeto de análise as experiências e memórias da luta pela reforma agrária no Peru e no Brasil. Também são temas abordados: a trajetória social, as condições de vida e a resistência de assentados rurais na terra e na relação com o coletivo, proposto pelo MST como forma de organização na terra, na contraposição a “terra de trabalho”.

Vanderlei Vazelesk Ribeiro aborda o processo de reforma agrária no Peru, entre 1969 e 1993, desde as cooperativas sob intervenção militar à parcelação de terras de corte neoliberal, apontando as contradições desse processo.

O artigo de Leandra Domingues Silvério analisa condições de vida e de trabalho de assentados da reforma agrária na contemporaneidade a partir “de narrativas construídas por eles no ato de lembrar-se de suas histórias e de suas lutas, trazendo à tona a complexidade de se viver no campo”.

Fabiano dos Santos Rodrigues focaliza em seu texto a trajetória social e as formas de resistência de trabalhadores rurais do assentamento Califórnia em AçailândiaMA diante de um conflito ecológico, engendrado pelo avanço do cultivo de grandes áreas com plantações de eucalipto em áreas ao entorno do assentamento.

Em seu paper, Pere Petit, Airton Pereira, Fábio Pessôa abordam o confronte entre camponeses e fazendeiros pela posse da terra no Sul e no Sudeste do Estado do Pará, durante a segunda metade do século XX, na relação, em especial, com setores ligados à Teologia da Libertação.

As lutas camponesas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Pontal do Paranapanema, São Paulo, Brasil, é temática abordada por Maria Celma Borges. A autora problematiza as práticas camponesas, priorizando “trama vivida entre a Organização (dirigentes e militantes) e os demais personagens, com destaque para a necessidade de superação dos termos “massa” e “vanguarda” na compreensão das ações deste movimento social”.

No seu conjunto, os artigos do Dossiê explicitam temas e preocupações relevantes para o debate no âmbito da história rural, ao evidenciarem as disputas pela terra, os modos de viver nela e as memórias dos sujeitos sociais, não como meras manifestações ou decorrentes do econômico, mas permeadas e engendradas igualmente por diferentes dimensões do social, como a da cultura, da política e do jurídico.

A partir deste escopo, o Dossiê pretende contribuir com o debate no âmbito da história rural acerca das disputas de diferentes sujeitos pela terra, do trabalho, dos modos de viver e das memórias dos trabalhadores da terra, das relações, dos conflitos e dos movimentos sociais.

Davi Félix Schreiner – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professor Associado do Curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).

Mónica Gatica – Doutora em História pela Universidad Nacional de La Plata. Professora da Universidad Nacional de la Patagonia San Juan Bosco, Argentina, (UNPSJB).

Os organizadores.


SCHREINER, Davi Félix; GATICA, Mónica. Introdução. Tempos Históricos, Paraná, v.18, n.2, 2014. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

 

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.