Terra e território no Brasil e América Latina: Sujeitos sociais, memória histórica e políticas públicas no tempo presente / Tempo e Argumento / 2019

Nas últimas décadas os estudos relativos à temática da história rural no Brasil e na América Latina demonstram uma trama de relações diversificadas, complexas e conflitivas acerca das experiências de ocupação de terra; das disputas pelo acesso, uso e posse da terra; das práticas e direitos de propriedade; do conjunto de resistências individuais – cotidianas e silenciadas – e coletivas; das diferentes formas de se relacionar com a terra, o território e o meio ambiente e das distintas concepções de direito1 . Neste universo conflitivo, multifacetado e desigual, nosso objetivo era receber artigos para compor este dossiê com pesquisas que abordassem a vitalidade do mundo rural no tempo presente e suas raízes históricas.

Buscamos, originalmente, privilegiar as narrativas dos próprios sujeitos, problematizando suas práticas a partir de novas fontes e metodologias, sobretudo as entrevistas orais. Além de estudos que contemplassem revisões acerca de historiografias tradicionalmente construídas sobre os sujeitos do campo, na tentativa de romper com a suposta homogeneização do campo e suas relações com o âmbito urbano. Neste ínterim, diferentes sujeitos sociais, a saber: indígenas, quilombolas, sem-terra, extrativistas, pequenos agricultores e grandes proprietários rurais disputam pela posse da terra e, no caso dos primeiros, por um local de trabalho, vida e moradia. Assim, o questionamento ao Direito, e, ainda, a compreensão dele como um meio para se alcançar a justiça e o exercício da cidadania, aliado à organização em movimentos sociais, apontam a reconfiguração desses sujeitos. Sinaliza, igualmente, a busca de novas representações sociais, a elaboração de políticas públicas e de leis específicas e os rearranjos e conflitos em torno delas.

A partir deste escopo, este dossiê busca contribuir com o debate no âmbito da história rural, em diálogo com a Antropologia, Geografia, Sociologia e o Direito a partir de uma perspectiva histórica, acerca das disputas pelo uso e posse da terra, da manutenção dos modos de vida, dos processos de resistência e pelo direito à(s) memória(s) dos diferentes grupos sociais do Brasil e da América Latina. Nesse sentido, as contribuições que recebemos e selecionamos superaram as nossas expectativas originais, somando sete artigos de autores provenientes de instituições da Argentina, Brasil, Chile e Polônia. São abordadas temáticas heterogêneas, trazendo problemáticas e aspectos transversais, que contemplam a diversidade dos sujeitos do campo na contemporaneidade – como camponeses ou produtores rurais, indígenas, famílias e imigrantes –; a questão da terra e dos territórios materiais e imateriais; o papel de setores e de poderes intermediários; a importância da memória na construção da história ambiental regional, da educação, do direito e da cultura e, ainda, o papel do Estado na elaboração e / ou na ausência de políticas públicas.

Em Echar raíces en tierra fértil. Producciones, domesticidad y memorias de familias rurales en la colonización tardía argentina (medianos de siglo XX), de Celeste De Marco (CONICET, Argentina), aborda-se o tema da colonização rural durante o governo peronista na Argentina (1946-1955) a partir da análise de casos presentes na região metropolitana sul de Buenos Aires: colônia “17 de octubre / La Capilla”, no município de Florencio Varela e na colônia “Justo José de Urquiza”, no município de La Plata (esta, capital da província de Buenos Aires). O objetivo central da pesquisa é reconstruir o papel dos sujetos sociais durante o processo de colonização agrícola, das famílias colonas principalmente italianas e japonesas, por meio da discussão das práticas produtivas e da vida doméstica familiar, com a adoção de uma perspectiva analítica centrada nas experiências de gênero. Para isso, utilizam-se fontes oficiais, jornal e principalmente entrevistas semi-estruturadas que congregam informações sobre as memórias familiares que, nas palavras de De Marco, “contribuyen a rescatar la importancia socio-productiva de figuras soterradas en el orden de las representaciones”, durante os períodos de fundação e de consolidação das colônias periurbanas desde os princípios da década de 1980.

No artigo Doblemente desaparecidos: servicio militar, pobreza y represión en la frontera patagónica durante la última dictadura argentina, baseado na pesquisa doutoral de Ayelen Mereb (UBA, Argentina), se revisita o caso de Héctor Inalef, primogênito e suporte econômico de uma família mapuche dedicada às atividades rurais na comunidade de El Bolsón, localizada na Patagônia argentina, desde a sua prisão durante o governo ditatorial no ano de 1976, até sua “aparición con vida” na cidade de Viedma, capital de Río Negro, trinta e oito anos depois, em 2014. A partir de uma perspectiva centrada na micro-história e na historia oral, se utilizam documentos, entrevistas e testemunhos particulares e familiares enquadrados nos estudos de memórias sobre passados traumáticos na Argentina e América Latina, manifestados na violência estatal de natureza política e de classe em “clave local, rural y mapuche”, diante das reivindicações familiares, étnicas e das tentativas de reparação oficial até os dias atuais.

O artigo de Alcione Nawroski (Universidade de Varsóvia), A educação na sociedade rural e o curso agrícola para rapazes brasileiros na Polônia (1918-1938), aborda a experiência de intercâmbio de três jovens na Polônia, considerando o número expressivo de agricultores entre a população polonesa no Brasil no início do século XX. O pano de fundo dessa discussão é a existência de um relativo atraso no campo, estendendo-se para o campo educacional, o qual impedia que esse grupo social alcançasse novas e melhores condições de vida e trabalho em território brasileiro. A análise de Nawroski ocupa-se basicamente de jornais poloneses, destacando que o governo brasileiro não possuía o mesmo compromisso com a educação, se comparado ao polonês.

Atual, necessário e quase em tom de denúncia, o trabalho Trajetórias diásporicas indígenas no Tempo Presente: terras e territórios Atikum, Kamba e Kinikinau em Mato Grosso (do Sul), de Giovani José da Silva (Unifap), discute o processo de invisibilização das referidas etnias. Trabalho de natureza interdisciplinar, sobretudo pelas lentes da Antropologia e do Direito, articula as trajetórias diaspóricas e os processos de territorialização ocorridos na história dos Atikum, Kamba e Kinikinau que, em pleno século XXI, ainda lutam por uma visibilidade que garanta respeito aos direitos que lhes têm sido negados sistematicamente. O artigo destaca, ainda, as diferentes percepções e concepções acerca da terra e do território.

O artigo Gamonalismo y redes de poder local en el Nordeste Antioqueño (Colombia) 1930-1953, de Diana Henao Holguin (Universidad do Chile), por sua vez, apresenta parte da pesquisa doutoral da autora, centrada no processo de denúncia e apropriação de terras baldias e nos conflitos derivados dessas ações na região de Antioquía, Colômbia, durante o período de 1930-1953. O recorte temporal coincide com a modernização liberal do Estado, a qual culminou com a centralização e o fortalecimento do Estado colombiano. Neste marco, H. Holguin estuda o caciquismo antioquiano e suas particularidades nos distritos de Cisneros e Yolombó, contrastando-0s, assim, com outros no âmbito andino, como Equador e Peru, munida de diversos documentos de natureza local-regional. A hipótese da autora – em uma zona de fronteira como a que estuda, de colonização tardia, se comparada com as áreas centrais colombianas – é que o referido sistema político “va a encarnar distintas facetas”, incluindo tanto a coação e exploração camponesa, possibilitando o avanço dos proprietários, como estratégias de intermediação com autoridades e distintas esferas de poder territorial, uso de meios legais em seu próprio benefício, construindo, assim, redes pessoais e clientelistas para canalizar votos para os partidos tradicionais.

Já o trabalho de Temis Gomes Parente (UFT) e Cícero Pereira da Silva Júnior (UFPA), intitulado De estrada líquida à jazida energética: os sentidos do rio Tocantins na memória oral dos ribeirinhos, por meio da metodologia em História Oral, reflete sobre as relações estabelecidas e experienciadas entre os ribeirinhos e o rio Tocantins, nas duas dimensões, materiais e imateriais. O elemento inovador do artigo é o estreito diálogo com a Antropologia, apropriando-se da noção de dádiva de Marcel Mauss, com o intuito de ressignificar a(s) narrativa(s) dos ribeirinhos acerca do rio e do seu entorno.

No auge das experiências participativas sobre conflitos socioambientais nos últimos anos na América Latina, Consultas comunitarias en Argentina: respuestas participativas frente a mega-proyectos, de Lucrecia Soledad Wagner (Universidad Nacional de Cuyo, Argentina), estuda as consultas comunitárias sobre projetos de mineração a céu aberto nas comunidades de Esquel e Loncopué, nas províncias patagônicas argentinas de Chubut e Neuquén respectivamente, “considerando que el término comunidad resulta el más pertinente para definir los procesos sociales que se generaron en torno a la conflictividad ambiental, en especial en Argentina”, com reconhecida horizontalidade. Mediante a análise de documentos escritos, imagens e realização de trabalho de campo, a autora examina as motivações que impulsionaram o desenvolvimento dessas consultas, o seu impacto social e a criação de uma institucionalidade ambiental, sustentando, conforme suas palavras, que foram “las comunidades locales las que recurrieron a la normativa existente para respaldar su derecho a ser parte del proceso de toma de decisiones que afectarían su lugar de vida” em substituição ao cumprimento da legislação vigente sobre conflitos ambientais por parte das autoridades executivas e legislativas do Estado, oportunizando a gestão de um espaço de participação direta.

Para finalizar, gostaríamos de agradecer as / aos autoras / es – únicos e últimos responsáveis pelas opiniões, posicionamentos ideológicos e / ou conclusões de seus artigos – por suas valiosas contribuições para o dossiê e, ao comitê editorial da revista, por sua eficiência e acompanhamento durante todo o processo de construção. Desejamos que este dossiê possa contribuir para o aprofundamento dos temas e problemas aqui tratados, assim como para o avanço do trabalho conjunto e a aproximação entre as historiografias e as disciplinas humanas e sociais de nossos países.

Boa leitura!

Notas

1. Para América Latina e outras latitudes pode ser consultado, entre outros, Serrão, J. V., Direito, B., Rodrigues, E. & Münch Miranda, S. (eds) (2014) Property Rights, Land and Territory in the European Overseas Empires. Lisboa: CEHC-IUL. Congost, R., Gelman, J. & Santos, R. (eds.) (2017) Property Rights in Land. Issues in social, economic and global history. London & New York: Routledge. Motta, M. & Piccolo, M. (Org., 2017), O Domínio de outrem. Posse e propriedade na Era Moderna (Portugal e Brasil), Vol. 1, São Luís: EDUEMA, Guimarães: Nósporcatudobem. Motta, M. & Piccolo M. (Org., 2017), O Domínio de outrem. Propriedades e direitos no Brasil (Séculos XIX e XX), Vol. 2, São Luís: EDUEMA, Guimarães: Nósporcatudobem. Barcos, MF., Lanteri, S. & Marino, D. (2017) Tierra, agua y monte. Estudios sobre derechos de propiedad en América, Europa y África (siglos XIX y XX). Buenos Aires: Teseo

Rose Elke Debiasi – Universidade Federal de Sergipe (UFS). E-mail: [email protected]

Sol Lanteri – CONICET-UBA, Instituto Ravignani, Buenos Aires, Argentina. E-mail: [email protected]

DEBIASI, Rose Elke; LANTERI, Sol. Apresentação. Tempo e Argumento, Florianópolis, v.11, n.28, 2019. Acessar publicação original [DR]

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A Terra e os homens sob fogo / Varia História / 2017

Como revela o título deste dossiê, seu tema é o fogo, elemento constituinte do planeta Terra, recortando algumas de suas interações históricas com os homens. Os humanos constituem a única espécie animal que aprendeu a controlar o fogo. Em primeiro lugar, os homens o empregam de maneira produtiva: o usam para transformar plantas e animais em comida, minerais em moedas, artefatos ou joias, e ainda para os aquecerem no inverno. Mas esse controle não é absoluto, pois o fogo é um serviçal rebelde e, frequentemente, escapa do seu controle. De maneira destrutiva, chamas podem queimar uma casa, uma cidade, uma grande floresta, ou ainda uma imensa planície. Mas ao longo do tempo, em diversas situações históricas, o fogo é que exerceu seu controle sobre seus pretensos senhores, quando, por diversos motivos, homens lançaram outros homens às chamas, frequentemente utilizando para isso de crueldade e da tortura. Os exemplos são inúmeros: nos atos de canibalismo, nas penas impostas pela Inquisição, nas armas lançadas em várias guerras. Mas a experiência humana, para melhor ou para pior, tem sido moldada pelo fogo. Este é o tema desse dossiê.

Habitante da terra muito antes dos homens, o fogo é um dos elementos centrais que compõe a própria Terra e, ao longo da história diversas teorias tentaram compreender sua constituição e seu papel na origem do nosso planeta. Mas foi a partir do século XVIII, que os homens da ciência, afastando-se cada vez mais da explicação bíblica, sem no entanto abandoná-la completamente, buscaram cada vez mais as causas naturais por trás dos eventos geológicos observáveis. Nesse contexto, discutiram intensamente como se deu o processo de formação da própria Terra e, entre outros temas, debateram como o fogo atuou para moldar a paisagem desde a criação. Terremotos e erupções vulcânicas tornaram-se temas privilegiados nessas discussões, alguns deles, como que sacudiu Lima, em 1746, ou o famoso terremoto de Lisboa de 1755, puderam ser vivenciados por esses homens e tornaram-se temas recorrentes do debate erudito então travado.

De um lado, se posicionaram os Netunistas, para quem a terra esteve coberta, inicialmente, por um oceano primordial, onde muito lentamente depositaram-se os sedimentos que formaram os continentes (a vantagem era esta situação que correspondia ao cenário bíblico); a eles se contraporiam os Plutonistas, que, se não descartavam a existência de um oceano primitivo, não consideravam que todas as rochas se formaram a partir de sedimentos em suspensão nesse líquido inicial. Levando em consideração o fogo, consideravam a importância da ação do calor oriundo do centro da terra na formação das rochas terrestres, muitas delas originárias das atividades vulcânicas. Por fim, os Catastrofistas, chamaram a atenção para a atuação de eventos geológicos depois do surgimento da Terra, os quais seriam responsáveis por alterações na paisagem. Para eles, a história do planeta estava marcada por cataclismas, como fraturas, terremotos, vulcões, que revolucionavam o planeta de tempos em tempos.

No que diz respeito às causas naturais desses eventos – terremotos e vulcões – os homens de ciência também não eram unânimes. No século XVIII, se dividiam entre os majoritários que os atribuíam à existência de um fogo subterrâneo, que se espalhava sob a superfície da Terra por meio de cavernas, sendo que, para eles, terremotos e erupções vulcânicas seriam fenômenos associados entre si; e os que defendiam que era a água subterrânea o elemento primordial por trás desses fenômenos geológicos, exercendo, de tempos em tempos, intensa pressão sobre a crosta terrestre.

Em 1755, um enorme cataclismo abalou a Europa: o Terremoto de Lisboa, ao qual se sucedeu um tsunami e um grande incêndio que devastaram a outrora fulgurante cidade, capital europeia de um gigantesco império que se estendia às 4 partes do globo. Como destaca Stephen Pyne, em seu artigo “Sacudir e assar: um comentário sobre terremotos e incêndios”, o grande terremoto de Lisboa foi um dos eventos icônicos na história da humanidade em que houve a interação entre terremotos e incêndios. Como em Lisboa, essa conjugação expõe os limites humanos no controle dessa força da natureza. O autor acentua que, no século XX, os terremotos foram substituídos pela guerra como estopim das chamas capazes de destruir cidades inteiras. Por fim salienta que, por mais que o homem tenha domesticado o fogo, ele continua a ser uma ameaça incontrolável às grandes cidades que se espraiam espacialmente em subúrbios, cada vez mais adentrando o ambiente florestal, suscetível às chamas. Esse tem sido uma ameaça recorrente, mesmo em países desenvolvidos, como se viu no impressionante incêndio que alastrou-se no verão europeu de 2017, pela região de Trás os Montes, em Portugal.

Na segunda metade do século XVIII, como nenhum outro evento geológico, o terremoto de Lisboa de 1755 concentrou a atenção da comunidade savant europeia. Para além da literatura e da poesia, estudos sobre o evento surgiram da pena de importantes homens de ciência, como Voltaire, Leibniz, John Michell, entre tantos outros. Esses trabalhos foram fundamentais para o aprofundamento do processo já em curso, sob bases Iluministas, de entendimento da natureza em bases cada vez mais racionais, explicada a partir de causas naturais. Entre eles, destaca-se o português Joaquim José Moreira, observador direto do terremoto que, na sequência do mesmo, escreveu a História Universal dos Terremotos, livro que é analisado no artigo de Jorge Ferreira e Maria Margareth Lopes, intitulado “O fogo é o agente, que causa tantas maravilhas: a América e as explosões subterrâneas na História Universal dos Terremotos de 1758″. Ao analisar esse texto, os autores chamam a atenção para o fato de que Moreira adere à teoria das causas naturais por trás dos terremotos, ainda que não se prenda a discutir as de natureza religiosa. Como se tornará hegemônico à época, analisa a sua origem a partir do fogo subterrâneo submetido à enorme pressão sob a crosta terrestre. Para ele, “o fogo subterrâneo podia deflagrar acidentalmente por fermentação ou combustão espontânea e actuar sobre o ar e a água em cavernas subterrâneas, produzindo dessa forma a força explosiva que causava os terramotos”.

Ana Simões, Ana Paula Carneiro e Maria Paula Diogo, em “Ciências da Terra e História na obra de Correia da Serra (1751-1823)”, analisam a confluência das teorias de História e de Ciências Naturais no pensamento do famoso naturalista português, o abade Correa da Serra. Revelam, a partir da análise de seus textos sobre a geologia portuguesa, que, ainda que não tenha formulado de forma clara, era um adepto da teoria Catastrofista. São efetivamente esses estudos de geologia, que realiza por meio de várias viagens de campo e publica em diferentes textos, que o levam a estabelecer um entrelaçamento e um paralelo entre o homem e a natureza, o que se revela em seus trabalhos de História de Portugal. Segundo as três autoras, de maneira singular e criativa, seu pensamento promove “uma historicização da natureza e uma naturalização da História”, pois defende que ambas são, de tempos em tempos, abaladas por eventos únicos e de grande impacto, com grande capacidade de transformação tanto da paisagem, quanto da história da humanidade.

Júnia Ferreira Furtado – Pós-Graduação em História Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]


FURTADO, Júnia Ferreira. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.33, n.63, set. / dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Terra, Memória e Poder / Revista Trilhas da História / 2016

A Revista Trilhas da História chega ao seu sexto volume contribuindo com a socialização do conhecimento cientifico e como periódico democrático, capaz de proporcionar o diálogo da História com outras disciplinas humanas.

A organização do Dossiê Terra, Memória e Poder é fruto de trabalhos livres e confeccionados, também, para o IX Ciclo de Palestras “Terra, Memória e Poder”, realizado em 2016, no campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. O Ciclo de Palestras teve como intuito proporcionar trocas de saberes entre comunidade interna e externa à universidade, explicitando o diálogo no fazer de práticas de ensino, pesquisa e extensão que contribuam para a compreensão das Ciências Humanas como fruto da ação humana no tempo e instrumento de transformação do meio em que vivemos. O tema “Terra, Memória e Poder” aponta para aos desafios de uma discussão em que, na tessitura de outras histórias, seja possível contemplar reflexões que ultrapassem os muros da academia chegando ao chão da terra e às memórias como constructo da história, assim como às tramas do poder em suas várias facetas, apontando para outros caminhos.

Assim, Gilmar Arruda, conferencista de abertura do IX Ciclo de Palestras, em seu artigo “Memórias e paisagens soterradas na transformação da natureza em terra” retrata a transformação da natureza em terra, englobando a participação de sujeitos sociais neste processo em que denotam a formação de uma memória coletiva. O autor também aborda as paisagens e memórias presentes que necessitam do aval público para aparecerem.

Cássia Queiroz da Silva, também participante do IX Ciclo de Palestras, nos apresenta a resistência de mulheres e homens pobres e livres em Sant’Anna do Paranahyba no século XIX. As fontes utilizadas pela autora são narrativas literárias, correspondências oficiais, livros de Coletoria e inventários referentes ao sul da província de Mato Grosso, no século XIX.

“Os Processos Crimes Como Fonte Histórica: Possibilidades e Usos Na Construção da História do Sul da Província de Mato Grosso” é o artigo de Rejane Trindade Rodrigues, também palestrante no IX Ciclo de Palestras. A autora defende os processos crime como fonte histórica capaz de analisar o Sul de Mato Grosso oitocentista. Para tanto, ela discorre sobre um vasto campo historiográfico que lhe proporciona fundamentação para firmar suas perspectivas, sobretudo quando afirma que os processos crime são fundamentais para compreender o cotidiano e o poder que envolve escravizados, libertos e pobre livres em Sant’Anna do Paranahyba.

Em “Colonização pela ‘pata da vaca’: apontamentos sobre ocupação, migração e precarização da mão de obra rural na Zona da Mata Rondoniense”, Carlos Alexandre Barros Trubiliano e Kamonni de São Paulo examinam o processo de latifundiarização da terra e a precarização da mão de obra rural, sobretudo na Zona da Mata Rondoniense, no Estado de Rondônia. No texto, os autores analisam alguns programas do Estado, como a imigração estimulada por programas de assentamento; o Poloamazônia e o Plano de Desenvolvimento Nacional, que visavam o estimulo econômico para a diversificação da balança comercial regional.

Luiz Carlos Bento, palestrante do IX Ciclo de Palestras, em “História, memória e poder na história da historiografia brasileira” busca evidenciar como a questão nacional e os debates sobre a educação no país fundem-se no pensamento de Manoel Bomfim. O autor defende que os textos, substancialmente os ensaios históricos de Bomfim da década de 1920, dialogam criticamente com o projeto de escrita da história do Brasil produzido pelos institutos, colocando-se como uma antítese dessa cultura historiográfica.

Em “Energia elétrica, memória e poder: substratos para um debate necessário”, Andrey Minin Martin, palestrante no IX Ciclo, aborda o Complexo Hidroelétrico do Urubupungá e salienta que o setor hidroelétrico é rico em memórias, sobretudo quando se considerada o emaranhado de sujeitos, agentes e interventores, no público e privado, que formulam essas memórias, que também podem ser apropriadas e reelaboradas para a manutenção do poder.

Em “Perspectivas históricas: Adam Schaff e a pós-modernidade”, Luiz Cambraia Karat Gouvêa da Silva tem como intuito discutir dois conceitos basilares na construção do conhecimento histórico: verdade e subjetividade. Para tanto, o autor se utiliza das ideias defendidas por Adam Schaff para abarcar as discussões da cientificidade da história e o subjetivismo relativista dos presentistas, e o pósmodernismo como é compreendido por Perry Anderson.

A construção do Mal no medievo é abordada por Caio Alexandre Toledo de Faria na seção “ensaio de graduação”, no qual faz uma retomada das origens do Mal na Antiguidade Clássica e Oriental. Além disso, a forma como a Igreja impunha o medo para controlar as pessoas, sobretudo pelo imaginário coletivo, também é abordado no ensaio.

A resenha de Luan Gabriel Silveira Venturini convida o leitor a perceber a história de alguns movimentos de esquerda na luta armada contra a ditadura civil-militar brasileira. A entrevista com o historiador Paulo Roberto Cimó Queiroz, realizada pela equipe do PET-História, encerra este número.

Esperamos que este novo número da Revista agrade aos leitores e leitoras e que possam aproveitar os debates oferecidos pelos autores e autoras, evidenciando este periódico como espaço de discussões historiográficas.

Lembramos, por fim, que a revista está aberta ao recebimento de trabalhos em fluxo contínuo.

Boa leitura!

Eduardo Matheus de Souza Dianna

José Walter Cracco Junior

Vitor Wagner Neto de Oliveira

Três Lagoas-MS, outono de 2017


DIANNA, Eduardo Matheus de Souza; CRACCO JUNIOR, José Walter; OLIVEIRA, Vitor Wagner Neto de. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.6, n.11, jul. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Terra: relações, conflitos e movimentos sociais / Tempos históricos / 2014

Os estudos relacionados à história rural no Brasil e na América Latina, na atualidade, revelam relações sociais conflitivas e diversificadas; modos de vida; memórias acerca de experiências de ocupação da terra e do trabalho rural; disputas judiciais pela posse da terra e disputas de trabalhadores rurais por direitos trabalhistas; formas individuais e coletivas de luta pela terra e contra a construção de usinas hidrelétricas, bem como modos diversos de conceber a posse, o uso e as relações com a terra e o meio ambiente.

Este universo rural plural, desigual e conflitivo visualiza-se nos problemas abordados em artigos, publicados em grande número no passado recente, o que demonstra a vitalidade da história rural, que para além de problematizar tradicionais temas, como o dos movimentos sociais, incorporou e abriu novas frentes de análise. Também possibilitou a voz e conferiu movimento às práticas dos sujeitos sociais a partir de um leque diversificado de fontes, entre as quais as narrativas orais.

A multiplicação de estudos sobre a vida rural vem propiciando a revisão das historiografias construídas tradicionalmente, elaboradas e problematizadas nos centros urbanos, ao destacar a homogeneização que elas supõem. A irrupção de análises com estas características nos permite resignificar concepções de mundo, pleitear a necessidade de um desenvolvimento que interpretamos como humano e social e não meramente econômico, bem como consolidar um olhar mais amplo para a relação entre sociedade e natureza, no âmbito do pensamento holístico.

Tal configuração se verificou também na organização do presente Dossiê “Terra: relações, conflitos e movimentos sociais”. Os organizadores receberam dezenas de artigos, versando sobre múltiplas temáticas, o que também se têm nos artigos que compõem o Dossiê. Eles retratam questões situadas em diferentes espaços e tempos históricos em diversos países da América Latina (Brasil, Argentina, México e Peru) e com perspectivas teóricas, abordagens e fontes diversas, entre as quais: matérias de jornal impresso, entrevistas orais, índices estatísticos, leis, entre outras.

A problematização das leis agrárias, do direito da / à terra e do direito do / ao trabalho, permeia os seis primeiros artigos do Dossiê. Neles emergem disputas entre diferentes sujeitos sociais – indígenas, pequenos agricultores e grandes proprietários rurais – pela posse da terra. Neste terreno movediço e conflituoso, no questionamento do Direito e, ou, na busca da justiça por meio dele, bem como na forma de movimentos sociais, evidencia-se a constituição de sujeitos como portadores de direitos; a recriação de representações sociais; políticas públicas, leis agrárias e confrontos em torno delas.

Tematizando a Lei Hipotecária de 1964, Pedro Parga Rodrigues questiona se esta lei originou a propriedade privada no Brasil, confrontando a interpretação da criação da propriedade privada no Brasil pelas normas jurídicas.

O paper de Vânia Maria Losada Moreira nos chama atenção para o Direito como uma das dimensões centrais na luta índios pela posse e uso de suas terras, “discutido a obliteração dos índios como sujeitos portadores de direitos na historiografia clássica sobre a formação territorial brasileira”, bem como, a partir de estudo de caso, como a recorrência ao Direito e “busca da Justiça foram os dois principais instrumentos mobilizados pelos índios para assegurar a posse e controle sobre suas terras”.

Fábio Baião, por sua vez, nos convida à reflexão sobre as estratégias de luta coletiva do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), movimento armado e constituído em sua maioria por indígenas do sul do México. O autor problematiza os usos de representações sociais pretéritas pelo EZLN, como ferramenta de combate e legitimação, numa conjuntura neoliberal, de ameaça da perda da terra e das tradições.

Os professores Henrique Kujawa e João Carlos Tedesco abordam os conflitos entre indígenas e pequenos agricultores, engendrados pelas políticas públicas relacionadas às demarcações de terras indígenas no Norte do Rio Grande do Sul e os conflitos territoriais na atualidade.

O artigo de Silvia Lázzaro analisa a política agrária peronista, na década de 1970, explicitando como a Lei Agrária foi inviabilizada pela confrontação tecida pelas corporações dos grandes proprietários, bem como de fissuras internas ao governo peronista.

Em “Sobre a lei do trabalho infantil no agro argentino”, Ignacio Rullansky aborda as “diretrizes gerais que servem de base para o aprofundamento da análise histórica do direito do trabalho na agricultura argentina e do trabalho infantil”.

Os artigos que se seguem abordam diferentes dimensões da questão agrária no Brasil e na Argentina. São temas: a apropriação privada da terra, os conflitos e a sujeição do trabalho e dos trabalhadores engendrados por este processo; o acesso a terra pelos trabalhadores rurais, a reforma agrária e as alterações da vida no campo contemporâneo.

A questão agrária, dimensionada pela apropriação privada da terra, pelos conflitos e territorialidades em áreas de colonização, é objeto de análise dos artigos de José Carlos Radin, em “Questão agrária na fronteira catarinense” e de Carlo Romani, César Martins de Souza, Francivaldo Alves Nunes, em “Conflitos, fronteiras e territorialidades em três diferentes projetos de colonização na Amazônia”.

Christine Rufino Dabat analisa a trajetória de acesso a terra dos trabalhadores rurais da zona canavieira de Pernambuco, entre 1960 e 1980, concluindo que a “brecha camponesa, sob a forma de sítio / roçado, permitiu, após a abolição, a manutenção da sujeição da força de trabalho rural”, na forma da relação de trabalho assalariada.

A “modernização agrícola”, como discurso político a partir de um estudo de caso em Minas Gerais, Brasil, é tema do artigo de Auricharme Cardoso de Moura. As alterações da vida no campo no Oeste do Paraná, na segunda metade do século XX, por sua vez, dimensionadas por meio da análise da desestruturação ambiental, ocasionada em grande medida pela utilização de agrotóxicos, são problematizadas por Carlos Meneses de Sousa Santos e Sheille Soares de Freitas.

Na sequência há cinco artigos que têm como objeto de análise as experiências e memórias da luta pela reforma agrária no Peru e no Brasil. Também são temas abordados: a trajetória social, as condições de vida e a resistência de assentados rurais na terra e na relação com o coletivo, proposto pelo MST como forma de organização na terra, na contraposição a “terra de trabalho”.

Vanderlei Vazelesk Ribeiro aborda o processo de reforma agrária no Peru, entre 1969 e 1993, desde as cooperativas sob intervenção militar à parcelação de terras de corte neoliberal, apontando as contradições desse processo.

O artigo de Leandra Domingues Silvério analisa condições de vida e de trabalho de assentados da reforma agrária na contemporaneidade a partir “de narrativas construídas por eles no ato de lembrar-se de suas histórias e de suas lutas, trazendo à tona a complexidade de se viver no campo”.

Fabiano dos Santos Rodrigues focaliza em seu texto a trajetória social e as formas de resistência de trabalhadores rurais do assentamento Califórnia em AçailândiaMA diante de um conflito ecológico, engendrado pelo avanço do cultivo de grandes áreas com plantações de eucalipto em áreas ao entorno do assentamento.

Em seu paper, Pere Petit, Airton Pereira, Fábio Pessôa abordam o confronte entre camponeses e fazendeiros pela posse da terra no Sul e no Sudeste do Estado do Pará, durante a segunda metade do século XX, na relação, em especial, com setores ligados à Teologia da Libertação.

As lutas camponesas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Pontal do Paranapanema, São Paulo, Brasil, é temática abordada por Maria Celma Borges. A autora problematiza as práticas camponesas, priorizando “trama vivida entre a Organização (dirigentes e militantes) e os demais personagens, com destaque para a necessidade de superação dos termos “massa” e “vanguarda” na compreensão das ações deste movimento social”.

No seu conjunto, os artigos do Dossiê explicitam temas e preocupações relevantes para o debate no âmbito da história rural, ao evidenciarem as disputas pela terra, os modos de viver nela e as memórias dos sujeitos sociais, não como meras manifestações ou decorrentes do econômico, mas permeadas e engendradas igualmente por diferentes dimensões do social, como a da cultura, da política e do jurídico.

A partir deste escopo, o Dossiê pretende contribuir com o debate no âmbito da história rural acerca das disputas de diferentes sujeitos pela terra, do trabalho, dos modos de viver e das memórias dos trabalhadores da terra, das relações, dos conflitos e dos movimentos sociais.

Davi Félix Schreiner – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professor Associado do Curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).

Mónica Gatica – Doutora em História pela Universidad Nacional de La Plata. Professora da Universidad Nacional de la Patagonia San Juan Bosco, Argentina, (UNPSJB).

Os organizadores.


SCHREINER, Davi Félix; GATICA, Mónica. Introdução. Tempos Históricos, Paraná, v.18, n.2, 2014. Acessar publicação original [DR]

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Terra, trabalho e conflitos | Mundos do Trabalho | 2012

Em 1981, foi publicado o livro História da agricultura: combates e controvérsias, de autoria de Maria Yedda Leite Linhares e Francisco Carlos Teixeira da Silva, que se tornou um divisor de águas nos estudos sobre a história agrária no Brasil. A obra era o resultado de um projeto de pesquisa sobre a história da agricultura brasileira desenvolvido por Linhares, a partir de 1976, no curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento Agrícola da Fundação Getúlio Vargas. Na década do período mais difícil da Ditadura, Linhares havia instituído um programa de estudos acerca da realidade agrária do país. A publicação de História da agricultura, em 1981, coincidiria com o início do processo de abertura política, durante o governo do último presidente militar, João Figueiredo. O livro era, assim, o resultado de uma trajetória marcada pelo engajamento político e por um otimismo manifesto em relação às questões que envolviam o problema agrário do país. Linhares e da Silva buscavam mostrar as múltiplas possiblidades de investigar o campo brasileiro, ajudando o leitor com informações – hoje tão acessíveis – sobre as características e as possibilidades de pesquisa dos documentos diretamente relacionados à estrutura fundiária, e sobre as fontes para o estudo das estruturas sociais, as de natureza cartorial, as de natureza econômica e políticoinstitucional, e os documentos oficiais, como atas, correspondências e legislações. O livro era ,desse modo, uma janela que se abria para o universo rural, desconhecido da grande maioria dos jovens universitários que haviam sido criados na Ditadura. Inseridos num período historiográfico cuja marca era a utilização do método quantitativo, eles desejavam contribuir para a consolidação de metodologias e modelos capazes de estimular os estudos sobre o tema no Brasil. Passados muitos anos após a criação daquele campo científico, ainda estão presentes muitas das questões inauguradas pelos autores. Leia Mais

Terra, Território e Identidades | Fronteiras – Revista de História I 2009

Anunciado no número anterior de “Fronteiras: Revista de História” como Dossiê sobre História Indígena, apresentamos aqui o Dossiê “Terra, Território e Identidades”, fazendo com isso jus às contribuições recebidas de pesquisadores e pesquisadoras do âmbito da História e da Antropologia do Brasil e do exterior. Como organizadoras desta publicação, sentimo-nos honradas em poder publicar trabalhos de qualidade que concretizam a trajetória de profissionais nas áreas da História Indígena, Comunidades Quilombolas, Movimento Sociais e Campesinato.

Da excelente Dissertação de Mestrado do historiador e indigenista Ivori Garlet, falecido precocemente em fevereiro de 2004, recebemos através da antropóloga e historiadora Valéria S. de Assis, o artigo “Desterritorialização e reterritorialização: a compreensão do território e da mobilidade Mbyá-Guarani através das fontes históricas”. A mobilidade “guarani”, sem especificação étnica, já foi estudada e avaliada por outros autores, como Bartomeu Melià (1988) e, para etnias específicas, como a apapokuva, por Kurt Unkel Nimuandaju ([1914] 1987). Ivori e Valéria o fazem para a etnia mbyá, trabalhando a partir de fontes primárias para a história mbyá, sem, no entanto, desconsiderar a historiografia disponível para situações análogas vividas por outros grupos tupi e guarani, assim como da etnografia dos grupos mbyá na década de noventa. Suas seguras indicações à situação dessas comunidades o atestam. Leia Mais