Travestis: carne, tinta e papel – VERAS (AN)

VERAS, Elias Ferreira. Travestis: carne, tinta e papel. Curitiba: Editora Prismas, 2019. Resenha de: MACHADO, José Wellington de Oliveira. A emergência do sujeito travesti: marcas de um corpo em trânsito. A emergência do sujeito travesti: marcas de um corpo em trânsito. Anos 90, Porto Alegre, v. 26 – e2019504 – 2019.

Com a maquiagem de Thyago Nogueira e os adereços de Helena Vieira, juntamente com os brincos de Luma Andrade e os colares brilhantes de Durval1, a Travesti não binária, que transita entre a História, a Literatura, o Jornalismo, a Arte e a Filosofia, volta a se vestir de glamour. Os recortes mudaram de canto e de tamanho, o corpo desmontou-se e refez-se, a carne, a tinta e o papel entraram, mais uma vez, em trânsito. Depois de anos montando, desmontando e remontando o corpo, ela tinha a sensação de devir cumprido.

Não tem como separar esse corpo dos corpos dos arquivos e dos corpos das interlocutoras; dos corpos da UFSC e da Universidade de Barcelona; dos corpos da TV, das revistas e dos jornais; dos corpos de Michel Foucault, de Judith Butler, de Paul Preciado e, principalmente, de Joana Maria Pedro2. Ele é resultado de todos os lugares por onde Elias passou, das pessoas que conheceu, das histórias que viveu, das dores e das alegrias que experimentou, das músicas que ouviu, dos gostos, dos cheiros e das carícias que sentiu.

Ao olhar para esse corpo de letras e de imagens enxergamos três marcas, ou capítulos, que ajudam a entender como se construiu a imagem das travestis. A primeira3 é resultado do contato com Gilmar de Carvalho, que ajudou a preservar a literatura de Amorim/Samorim, tornando possível fazer uma conexão entre os/as protagonistas dos seus livros com as personagens das revis­tas, dos palcos e da TV.

O que essa cicatriz nos mostra é a emergência do sujeito travesti entre as décadas de 1970 e 1980. Mas, antes de falar sobre essa inflexão, que causou o surgimento de novas subjetividades, precisamos falar dos encontros antropofágicos de Elias Veras, é apenas a partir do momento que ele coloca Foucault e Preciado na sua mesa (ou na sua cama), como corpos a serem comidos, que essa ideia ganha corpo. Ela nasce através dos encontros e da antropofagia (ROLNIK, 1989).

Através das lentes foucaultianas, ou das lentes de Elias lendo Foucault, aprendemos a olhar para o sujeito travesti como resultado de uma rede de ações e de discursos, como algo que emerge através de uma trama. Ao cruzar Foucault, Preciado e (S)Amorim ele localiza a emergência desses sujeitos dentro da sociedade fármaco-pornográfica. O que existiria antes seria a arte de “fazer tra­vesti”, uma atividade passageira e circunstancial. É “A Passagem do Tempo das Perucas ao Tempo dos Hormônios”.

De um lado, as histórias das personagens de (S)Amorim e de Bianca, relatos de encontros de “bichas e bonecas” que performatizavam o feminino através das Misses e das atrizes do cinema americano. São memórias das festas do Edifício Jalcy, dos concursos de beleza ou de fantasia e dos bailes de carnaval, onde as feminilidades efêmeras podiam se transformar em heterotopias. Do outro lado, temos o tempo dos hormônios e do silicone, resultado de transformações que afetaram “a intimidade, o corpo, o gênero e a sexualidade”. Todas essas mudanças são analisadas através da Revista Manchete que acompanhava as atividades anuais do carnaval, publicando as fotorrepor­tagens do “baile dos enxutos” e, posteriormente, do “Gala Gay”, mostrando o contraste entre as antigas e as “novas tecnologias corporais”.

Esse novo sujeito é resultado do cruzamento da ciência com a mídia, das novas próteses estéticas, cirúrgicas e hormonais que transformaram os corpos, que a partir da década de 1980 aparecem siliconados nas revistas, na TV, nos teatros e nas boates. É o tempo de Rogéria e dos grandes espetáculos que percorriam o Brasil e o Mundo. Ela é filha da arte, da ciência e dos meios de comunicação. Mas, também é o tempo de Rogéria e de Thina, duas travestis de Fortaleza que se construíram através das revistas e das imagens dos carnavais do Rio de Janeiro, das representações de Rogéria e de outras travestis famosas, do imaginário em torno dos teatros e das boates brasileiras e do cinema e da música norte-americana.

A segunda marca4 nasce do encontro com Roberta Close, com todos os textos e imagens que transformam ela em outra personagem paradigmática. Assim como Rogéria, ela encarna a sociedade farmacopornográfica. Estamos diante de um novo paradigma que surge a partir do momento que ela se encontra com a Playboy. O corpo transgênero agora estava nu, ela exibia a sua feminilidade numa revista masculina de projeção nacional, sem figurinos, maquiagens ou adereços, o que as pessoas queriam ver era a produção do feminino na carne. O debate agora não gira apenas em torno da “travesti de verdade”, é sobre a “mulher de verdade”.

Enquanto ela tirava a roupa, o seu corpo era coberto de significados, não se tratava apenas de um corpo individual, ela encarnava o corpo de uma época. Os gays, as transformistas e as travestis estavam nos programas de humor, de auditório ou de entrevista, faziam parte das matérias de jornais e de revistas, alimentando esse imaginário de fascínio ou estigma que ajudou a construir a identidade das travestis. Mas, não representava apenas a existência de um novo modelo de subje­tividade, o que ela mostrava era a coexistência de vários paradigmas.  De um lado, temos Roberta Close “nas capas das revistas, nas telas das tevês”, “nos jornais”, nas mentes e nas bocas do povo”. Ela era uma brecha por onde as pessoas podiam ver (bem ou mal) as “sexualidades disparatadas”.

De outro lado, temos os conservadores, eles estavam nos jornais e nas revistas, usando a ascensão das indústrias “eletrônicas, de informática e de comunicação para criar um contra-discurso. Era uma reação diante da presença das travestis nas ruas de Fortaleza, das pesquisas sobre sexualidade, dos novos medicamentos, do aumento de saunas, boates e cinemas pornôs, do fenômeno do vídeo cassete, do surgimento dos novos movimentos sociais, da expansão das mídias e da indústria pornográfica.

A terceira marca5 nasceu através do encontro com os Jornais de Fortaleza, dos enquadramentos da polícia e dos meios de comunicação. A orgia, dessa vez, aconteceu com A Vida dos homens infa­mes e A História da Sexualidade, de onde surgiu o “Dispositivo do estigma”. O que vemos é uma rede, que liga vários elementos, produzindo uma imagem das travestis nos campos de prostituição e nas organizações criminosas. Os corpos de Rogéria, de Roberta Close, de Thina, de Erdmann, de Foucault, juntamente com os corpos d’O Povo e Diário do Nordeste, movimentam o ponto de encontro, alimentando essa zona de visibilidade e dizibilidade.

Elas são classificadas, através de um pré-julgamento, como causadoras da desordem, dos escândalos, da violência e dos assassinatos. As forças policiais e a imprensa legitimaram a regu­lação e o encarceramento, os discursos médicos e religiosos criaram a imagem da “peste gay” ou do “câncer gay”. Mas, essa não é uma história apenas de luto e de agouro. Os Estados Nacionais criaram Políticas Públicas de Assistência Social, de produção e distribuição de medicamentos, transformando as travestis em portadoras de direitos. Estamos diante de duas formas de visibilidade, a primeira foi construída através do estigma, é resultado do encontro dessas vidas infames com o poder. A segundo é uma visibilidade de resistência, construída através do Movimento Nacional e Internacional de Travestis.

Esse mesmo exercício, de perceber os contra-discursos, poderia ter sido feito também no primeiro capítulo, quando as “agulhas da beleza” ganharam um status de glamour. Diante da realidade social de carência e das imagens do que seria uma “travesti (ou uma transexual) de ver­dade”, os procedimentos ilegais aparecem como a única possibilidade de beleza. Não se trata apenas da emergência de um sujeito, é do apagamento de todas as travestilidades e transexualidades que não cabem nessas fôrmas. Essa é uma das dimensões que o autor pode analisar melhor em outra ocasião, o lado cruel desse processo de subjetivação. O perigo das travestis não estava apenas na polícia, nos jornais e no dispositivo do estigma, estava no próprio conceito de “travesti de verdade”, a estigmatização não é fruto apenas das páginas policiais, é resultado dessa hierarquia entre “tra­vestis de verdade” e travestis de mentira.

Se olharmos esse dispositivo como se fosse uma receita, uma gramática ou um mapa, podemos pensar as travestis como sujeitas da vida cotidiana, que burlam essas normas e constroem táticas de resistência, como fizeram com a polícia. O sujeito, nesse caso, não é apenas o sujeito coletivo das normas, é uma pessoa, ou um grupo, que burla os códigos (CERTEAU, 2008, p. 116). Se Foucault não se resume apenas às relações de poder ou aos dispositivos de poder, como podemos falar sobre a resistência das travestis diante da emergência desse lugar de sujeito? De que maneira essas práticas que existiam, com o nome de travestismo ou com outros nomes, podem ser estudadas?

Não se trata do mesmo tipo de sujeito, ou do mesmo conceito de sujeito, parte das pesquisas sobre travestis surgiram no momento da emergência do sujeito travesti da sociedade farmacopor­nográfica, generalizando o conceito de maneira anacrônica para o passado. Precisamos ir, através da História, além da antropologia e da sociologia, sem negar a importância dessas pesquisas. Há quem diga que esse livro impossibilita a construção de uma história das transições de gênero que aconteciam de maneira permanente e duradoura antes da década de 1970. Que existiram outras travestilidades que não cabem nos conceitos que foram apresentados. Mas, ao invés de pensar através 4 de 5  dessa dualidade, eu prefiro fazer o cruzamento, a pesquisa que foi apresentada é um convite para pensar as transições de gênero em outros períodos da história. O que foi feito através desse recorte e dessa trama serve como exemplo para pensar outros recortes e outras tramas.

Não podemos exigir que ele fizesse o que não se propôs a fazer, a sua pesquisa é sobre a emer­gência do sujeito travesti na sociedade farmacopornográfica, existe uma metodologia e um recorte de tempo e de espaço, ele estar falando da segunda metade do século XX através de Fortaleza, embora, em alguns momentos, possa ampliar para o Brasil. A pesquisa parte de uma problemática e de alguns objetivos, não podemos exigir que ele escrevesse, na época, uma história sincrônica e diacrônica do conceito de travesti, que fizesse uma cartografia de outras travestilidades ou que apresentasse todas as possibilidades interseccionais. Mas, poderia ter feito pelo menos um exercício nesse sentido.

Essa é uma visão de quem olha de fora, de quem imagina que esse corpo poderia ter sido construído de outra maneira. É preciso fazer, também, o exercício contrário, tentando perceber como esse corpo se construiu e qual a sua importância para os historiadores e as historiadoras que pesquisam sobre Travestis. Essa é uma das grandes contribuições de Elias, ele conseguiu fazer corpo com a tinta e o papel, as letras transformam-se em hormônio, em silicone, em vestimentas, em bolsas, em maquiagens, em manchas de batom e de sangue.

Ao olharmos para o Grupo de Estudo que ele coordena na UFAL, para as reportagens que escreveu no Jornal O Povo e para o Simpósio Temático Clio ‘Sai do armário’: Homossexualidades e escrita da História, percebemos a existência de debates sobre a interseccionalidade e o período da Ditadura. O corpo ganha novas cores, aparece com mais ou menos maquiagem, com novas próteses, dependendo do tipo de montagem. Não estou falando apenas das novas edições, o corpo do livro e de Elias podem devir outros corpos, parindo novas travestilidades.

Referências

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1: artes de fazer. 15. ed. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 2008.

FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In: FOUCAULT, Michel. Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 203-222. (Coleção Ditos e Escritos, IV.)

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edição Graal, 1988.  PELBART, Peter Pal. A vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.

PRECIADO, Paul Beatriz. Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: N-1, 2018.

ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental. Transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989.

Notas

1 Thyago Nogueira é o criador da capa; Helena Vieira é uma autora transfeminista que escreveu o prefácio da segunda edição; Luma Nogueira de Andrade é uma travesti professora da UNILAB que fez o texto da orelha do livro e Durval Muniz de Albuquerque Júnior é um historiador da UFPE que participou da banca de doutorado e escreveu o prefácio da primeira edição.

2 Orientadora de Elias Veras no Programa de Pós-Graduação em História da UFSC.

3 O Nome desse Capítulo é “Do Tempo das Perucas ao tempo dos hormônios” e está dividido em três tópicos: “Tempo das Perucas ou quando não existia o sujeito travesti”, “Entre Perucas e Hormônios, o carnaval como heterotopias de gênero” e “Tempo dos hormônios ou a invenção do sujeito travesti”.

4 O segundo capítulo foi intitulado de “O ‘Fenômeno Roberta Close’ como acontecimento farmacopornográfico” e está dividido em três tópicos: “Tempo fármaco-pornográfico: excitação e controle”, “La Close e a confusão de gênero”, “La Close e as ‘sexualidades periféricas’ no centro da cena público midiática”.

5 O terceiro capítulo foi intitulado “Dispositivo do estigma e os contra-discursos Travestis” e está dividido em três tópicos: “O dispositivo do estigma”, “O dispositivo da prostituição e da AIDS” e “contra-discursos travestis”.

José Wellington de Oliveira Machado Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: [email protected].

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.