Tendências Historiográficas na Revista Brasileira de História: 1981-2000 | Ricardo Marques de Mello

Os anos 1980 e 1990 são usualmente considerados momento de inflexão da historiografia em nosso país, com a falência das metanarrativas iluminista e marxista e das teses de longa duração. Ao promover diálogo interdisciplinar com a antropologia e a teoria literária, os historiadores brasileiros teriam propiciado a ascensão da micro história e da história cultural. Muitos se valeriam de novas fontes para meditar sobre representações, e privilegiariam recortes temporais recentes e recortes espaciais em território nacional, regionais ou locais. A mudança de bases teóricas, com inspiração na Nova História e em autores como Michel Foucault, Edward Thompson, Walter Benjamin e Clifford Geertz, alavancaria o enfoque de temas, objetos e sujeitos históricos até então apagados. Todavia, a apropriação superficial desses pensadores, somada à presença tímida, no Brasil, da produção e do conhecimento de obras de teoria, teria favorecido uma prática empirista da escrita da história.

À vista disso, seria possível determinar a validade destes pressupostos nas fontes da história da historiografia do período referido? Se sim, como? Se não, por quê? Poderiam os historiadores empregar estas formulações para definir tendências historiográficas estaticamente? Leia Mais

Tendências Historiográficas na Revista Brasileira de História: 1981-2000

MELLO R M Tendencias Historiograficas na RBH Tendências Historiográficas na Revista Brasileira de História
Ricardo Marques de Mello / Foto: Unespar-Campo Mourão /

Os anos 1980 e 1990 são usualmente considerados momento de inflexão da historiografia em nosso país, com a falência das metanarrativas iluminista e marxista e das teses de longa duração. Ao promover diálogo interdisciplinar com a antropologia e a teoria literária, os historiadores brasileiros teriam propiciado a ascensão da micro história e da história cultural. Muitos se valeriam de novas fontes para meditar sobre representações, e privilegiariam recortes temporais recentes e recortes espaciais em território nacional, regionais ou locais. A mudança de bases teóricas, com inspiração na Nova História e em autores como Michel Foucault, Edward Thompson, Walter Benjamin e Clifford Geertz, alavancaria o enfoque de temas, objetos e sujeitos históricos até então apagados. Todavia, a apropriação superficial desses pensadores, somada à presença tímida, no Brasil, da produção e do conhecimento de obras de teoria, teria favorecido uma prática empirista da escrita da história.

À vista disso, seria possível determinar a validade destes pressupostos nas fontes da história da historiografia do período referido? Se sim, como? Se não, por quê? Poderiam os historiadores empregar estas formulações para definir tendências historiográficas estaticamente?

É sobre aquele cenário e estas questões que Ricardo Marques de Mello se debruça no livro Tendências Historiográficas na Revista Brasileira de História: 1981-2000. Nas cento e oitenta e três páginas que o compõem, Mello almeja identificar tendências historiográficas existentes na historiografia brasileira das duas últimas décadas do século XX, por meio das publicações da Revista Brasileira de História (RBH). A obra é fruto de sua tese de doutorado (2012), que venceu, em 2014, o concurso de teses da Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia (SBTHH). O livro conta com prefácio de Carlos Fico, um dos primeiros historiadores brasileiros interessados na identificação de inflexões deste tipo para composição de balanços.

É pertinente registrar que a RBH é vinculada à Associação Nacional de História (ANPUH) e surgiu em 1981, como produto da reformulação da entidade num contexto de expansão acadêmica e “necessidade de ampliar a troca de experiências entre os praticantes do ofício” (MELLO, 2016, p. 47). Logo, o periódico materializou os interesses e as orientações dos historiadores publicados e dos grupos envolvidos direta e indiretamente na instituição, atuando na divulgação dos propósitos desta e na construção do cenário historiográfico da época.

A seguir, resenharei os procedimentos e as soluções encontradas por Mello, buscando expor as contribuições de sua obra para as discussões sobre as particularidades da historiografia brasileira do final do século passado. Destarte, entendo que é preciso definir o conceito expresso no título do livro, assim como o autor o faz em seu primeiro capítulo.

Segundo Mello, tendências historiográficas devem ser entendidas como conjuntos resultantes da propensão ao emprego gradual e frequente de certas opções historiográficas. Estas, por sua vez, estão pautadas em elementos comuns a todos os artigos, de forma a viabilizar a interpretação das fontes mesmo em sua heterogeneidade. São eles: “área historiográfica, recorte temporal, delimitação espacial, orientação teórica, perspectiva predominante na interpretação e tipos de fontes” (p. 48). Deste modo, Mello pratica um estudo interno da revista, valendo-se, como instrumento metodológico de identificação e investigação das opções historiográficas, de uma Ficha de Análise por ele mesmo elaborada a partir das características dos artigos. Nesta primeira etapa, o emprego da ficha é importante para garantir que sejam aplicados os mesmos critérios de exame para todos os textos. Ela tem como categorias: “RBH”, “Autor(a)”, “Âmbito de interesse”, “Orientações Teóricas”, “Perspectiva predominante na interpretação”, “Fontes” e “Observações”.

Sinteticamente, “RBH” se refere aos dados técnicos do artigo; “Autor(a)” a informações sobre quem escreveu o texto, obtidas, sobretudo, por meio da Plataforma Lattes; e “Âmbito de interesse” insere o artigo em determinada área historiográfica, recorte espacial e temporal. Aqui, é imprescindível uma pausa para alguns esclarecimentos.

As classificações de áreas historiográficas foram feitas com base na preponderância de certo âmbito, mensurável mediante critérios de definição presentes nas fontes mesmas, bem como nas acepções fabricadas pelos pensadores e/ou pela comunidade acadêmica no momento de escrita dos artigos. Mello identificou cinco grandes áreas: História Social, História Cultural, História Política, História Econômica e História das Ideias; e três “especialidades de cunho metateórico”: Historiografia, Teoria/Filosofia/Metodologia da História e Ensino de História (p. 67-68). Da mesma forma, recortes espaciais e temporais seguiram as determinações dos próprios textos. O autor explica: “Se o recorte dizia respeito aos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, preenchi o campo pertinente, precisamente, com os dados do artigo: São Paulo e Rio de Janeiro” (p. 78). Posteriormente, tais dados foram coligidos em divisões maiores, como regiões e continentes. Quanto ao recorte temporal, adotou-se a periodização em séculos: “se em um texto, por exemplo, o recorte cronológico abrangia as duas últimas décadas do século XIX e a primeira década do século XX, classifiquei-o como ‘século XIX e XX’” (p. 78).

Já em “Orientações Teóricas”, Mello não se ateve apenas a menções diretas para distinguir dispositivos analíticos, demonstrativos e explicativos que orientam de um modo especial a compreensão, construção, caracterização e explicação do objeto de análise da pesquisa. Elas podem ser de duas naturezas: abrangentes [generalizantes, como as filosofias da história] ou pontuais [pertencem a pesquisas específicas] (p. 78-79, grifos do autor).

“Perspectiva predominante na interpretação” divide-se entre perspectiva factual e representacional, e trata de concepções de compreensão e apropriação de objetos no que diz respeito aos modos de reconhecer a realidade e o trabalho do historiador. Em semelhança com o que ocorre com as áreas historiográficas, um artigo é rotulado como portador de uma ou outra perspectiva por critério de preeminência, já que o factual e o representacional estão vinculados e se mesclam nos textos. Neste tópico, as especialidades de cunho metateórico representam uma categoria a parte, denominada “discussão bibliográfica” (p. 87).

Por fim, “Fontes” permite a identificação do uso (ou desuso) de fontes oficiais nos estudos em questão, e “Observações” reúne aquilo que não se enquadra nos itens anteriores, como resumo do artigo, curiosidades e informações relevantes de caracteres diversos.

Apesar de encontrar dezenove tipos de textos na RBH e ler todo o conteúdo dos números elencados, Mello prefere usar exclusivamente os artigos, “tanto por questões quantitativas – maioria dos textos da RBH –, quanto qualitativas – uma vez que são espaços privilegiados nos quais é possível identificar mais facilmente as opções historiográficas adotadas por cada autor” (p. 57-58). Ao todo, eles perfazem o número de trezentos e quarenta e três.

Mello quantificou a presença e frequência das opções historiográficas tanto em perspectiva diacrônica quanto em números totais, calculando e comparando, ao fim, as porcentagens. Assim, obteve duas periodizações a partir dos próprios atributos da revista: a primeira se estende de 1981 a 1990, e a segunda, de 1991 a 2000. Isso porque a passagem entre as duas décadas é ponto de mudança de opções favoritas dos historiadores. Os resultados, reunidos e apresentados em tabelas no segundo capítulo, são surpreendentes; demonstram a preferência, na RBH dos anos 90, por recortes espaciais definidos como “Brasil” e pela ausência de orientação teórica. Assim,

[…] o artigo “típico” do primeiro período – 1981-1990 – seria, ao mesmo tempo, de história social, recortaria seu objeto cronologicamente entre o século dezenove e vinte, versaria sobre o Brasil ou especificamente sobre São Paulo, não teria orientação teórica, teria perspectiva predominante da interpretação factual e usaria algum tipo de documento oficial e bibliografia pertinente como fontes privilegiadas. Por seu turno, o artigo que melhor representaria o período seguinte – 1991-2000 – seria de história cultural, sem orientação teórica, sobre o século XX, o Brasil ou São Paulo, representacional e com bibliografia pertinente (p. 133).

Entretanto, Mello não considera possível, nem oportuno, construir um padrão hermético dos artigos veiculados pela RBH, porque a elaboração de um modelo omitiria a diversidade, as nuances e a riqueza das fontes. Isso quer dizer que estabelecer uma tendência historiográfica homogênea para cada um dos períodos trabalhados seria, na verdade, fabricar um retrato distorcido e despropositadamente dualista sobre a historiografia produzida a partir deste periódico. Aliás, as porcentagens dos artigos que corresponderiam perfeitamente aos arquétipos traçados são baixíssimas: pouco mais de 5% para o do primeiro período e 3,9% para o do segundo. O autor indica que seria viável apurar tendências apenas em sua singularidade, pois cada uma delas teria um tempo único de mudança e propagação, não ocorrendo, portanto, simultaneamente; e relata, inclusive, que existem diversos casos de “coexistência de opções em decadência com outras em ascensão em um mesmo artigo” (p. 134).

Por conseguinte, no terceiro capítulo, Mello interpreta as informações produzidas de forma a significar as transformações nas opções historiográficas individualmente. Abordaremos a seguir somente aquelas que diferiram do esperado.

O crescimento dos recortes espaciais definidos como “Brasil” (como um todo) e “Sem-identificação” foi tendência imprevista na RBH no segundo período pela ênfase que a história da historiografia brasileira dá ao predomínio dos recortes locais e regionais a partir dos anos 1980. Mello explica que fatores condicionantes deste quadro advêm do emprego de termos generalistas; do aumento de artigos de “Discussão Bibliográfica” (textos que, muitas vezes, dispensam delimitação espacial); de alusões imprecisas dos autores aos recortes balizados; e da multiplicação da perspectiva representacional. Este último elemento faz com que o espaço perca a importância atribuída a ele pela perspectiva factual, que dependia do físico como argumento de convencimento. Para o autor, a representação não necessariamente está fundamentada em um espaço concreto: o que tem maior relevância, nesses casos, é ela mesma e sua historicidade. Por isso, há margem para limites espaciais abstratos, ou mesmo ausentes, nas pesquisas publicadas no periódico entre 1991 e 2000.

Ainda falando de tendências inesperadas, temos que poucos artigos da RBH, de 1981 a 2000, apresentam orientação teórica. A apropriação de pensadores como Foucault, Benjamin, Thompson e Geertz foi baixíssima, perfazendo aporte de menos de 7% dos trezentos e quarenta e três artigos eleitos; especialmente na década de 1990, diminuíram sua participação na revista, representando apenas 2,6% das escolhas dos publicados. Também é significativo que

Entre aqueles artigos que utilizaram alguma orientação teórica, foi comum o uso de mais de um autor no mesmo trabalho, como combinações entre Marx/Foucault, Thompson/Ginzburg e Freud/Lacan/Arendt; e, dos últimos quatro números da RBH, apenas dois artigos, entre quarenta e dois, se valeram de orientação teórica (Bourdieu), sugerindo que o final do século XX se encerra com um sintomático desapego às teorias (p. 124-125, grifo do autor).

Sobre este assunto, o autor entende que tal decréscimo relaciona-se à descrença na similaridade como via de pesquisa dos fenômenos históricos. Encontrar correspondências entre presente e passado e fazer delas possibilidade de análise seria relativamente incompatível com o pensamento dos historiadores da RBH deste período; aplicar teorias surgidas em outros contextos e estudos aos seus próprios, menos ainda. Não obstante, Mello conclui que os autores dos textos em questão ponderam teoricamente sobre seus objetos, por meio de sua escrita e argumentação, bem como apoiando-se em uma “lógica interna” das fontes, por exemplo (p. 148). Com isso, compreendemos que a ausência de orientação teórica não se equivale a falta de reflexão teórica.

Ao final, Mello não nos dá uma imagem totalizante apaziguadora acerca da historiografia veiculada na RBH naquele momento. Outrossim, o autor não pôde mensurar a aplicabilidade das afirmações que iniciam esta resenha (acerca de um panorama historiográfico brasileiro das décadas de 1980 e 1990) em suas fontes. Sobretudo, porque o material empírico e as definições das opções historiográficas nas obras disponíveis para comparação eram “supostamente diferentes” das suas e também entre si (p. 166). Contudo, além das conclusões já apresentadas (algumas, podemos dizer, inusitadas), Tendências Historiográficas vem confirmar que, na década de 1990, houve uma “ênfase concedida às diferenças” (p. 157). Isso significa que, em comparação com o período anterior, os artigos publicados entre os anos de 1991 e 2000, em geral, contêm opções historiográficas que prezam pelo foco nas descontinuidades, trazendo à tona novos sujeitos históricos e negando hierarquias entre grupos, sociedades e culturas. Segundo Mello, este movimento sinaliza uma mudança nas formas de conceber a função do trabalho dos historiadores, e em como estes se veem; uma alteração nas maneiras que enxergam a história e captam a realidade, e nos modos como se relacionam com ambas, mudando sua escrita sobre elas. Em suas palavras, “parece-me que a ênfase nas diferenças é uma tendência do nosso tempo que se manifesta no nosso ofício[…]” (p. 159).

Ademais, os conceitos de opções e tendências historiográficas como colocados pelo autor, o esmiuçamento de seu percurso de investigação e o reconhecimento da inconstância das tendências vêm auxiliar os pesquisadores da história da historiografia. Este certamente é um estudo que pode servir de inspiração teórico-metodológica a muitos outros, desde que sejam levadas em conta, como o próprio Mello ressalta e sabiamente toma para si, as especificidades de cada fonte.

Carolina Maria Donegá Teodoro – Mestranda em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Franca – São Paulo – Brasil. E-mail: [email protected].


MELLO, Ricardo Marques de. Tendências Historiográficas na Revista Brasileira de História: 1981-2000. 1. ed. Curitiba: Prismas, 2016. 183p. Resenha de: TEORODO, Carolina Maria Donegá. Revista de História da UEG, v.10, n.1, p.1-6, 2021. Acessar publicação original [IF].

As Américas na primeira modernidade | Jorge Cañizares-Esguerra, Luiz Estevam de Oliveira Fernandes e Maria Cristina Bohn Martins

Uma das qualidades que se busca na produção acadêmica é a capacidade de cativar e prender a atenção de seu leitor. Ao longo de séculos, escritores e suas obras têm tido sucesso ou insucesso nesse sentido: conseguir produzir um texto que seja interessante, que produza reflexões no ledor e que estimule a busca por mais conhecimento, seja para seu interesse pessoal ou para sua área profissional, é prova inequívoca de que o trabalho atingiu seu objetivo.

Em um romance publicado pela Editora Record, intitulado A livraria mágica de Paris, de autoria da francesa Nina George, a autora, por meio de seu personagem Jean Perdu, define a função da livraria similar à de uma farmácia literária. Perdu nega-se a vender um livro quando percebe que não é aquele que a pessoa necessita. Por meio dos livros, o indivíduo, com seus problemas, dores, tristezas e incertezas, pode aí encontrar sua cura, ou, pelo menos, um paliativo (GEORGE, 2016). Leia Mais

Entre a religião e a política: Eurípedes e a Guerra do Peloponeso – MOERBECK (Topoi)

MOERBECK, Guilherme. Entre a religião e a política: Eurípedes e a Guerra do Peloponeso. Curitiba: Prismas, 2017. Resenha de: SILVA, Uiran Gebara. Conflito social, política e culto na Atenas de Eurípedes. Topoi v.20 n.41 Rio de Janeiro May/Aug. 2019.

O livro Entre a religião e a política: Eurípedes e a Guerra do Peloponeso é um importante trabalho sobre a relação da tragédia com a dimensão política e religiosa da sociedade ateniense do V a.C. Há no Brasil uma grande quantidade de estudos dedicados à poética da tragédia, mas poucos voltados para a investigação histórica por meio das tragédias, não sendo incomum que muitos dos estudantes só possam recorrer ao clássico conjunto de estudos sobre essa intersecção de Jean Pierre Venant e Pierre Vidal-Naquet.1 O autor do livro, Guilherme Moerbeck, já tem um conjunto respeitável de estudos que lida com a intersecção entre política e tragédia na Grécia Antiga. Esse conjunto de investigações se expressa em vários artigos e no livro Guerra, política e tragédia na Atenas Clássica.2 Enquanto no trabalho anterior o propósito foi perseguir a hipótese de que a relação entre política, guerra e a tragédia seria mais bem compreendida por meio da noção de “gerações”, nesta nova obra há um estudo mais interessado em Eurípedes, que põe no centro de suas preocupações a hipótese de que a dinâmica da participação política em Atenas no século V a.C. pode ser entendida como a configuração de um campo político, noção tomada de Pierre Bourdieu.

Para desenvolver essa ideia, na primeira parte do livro Moerbeck articula de maneira bastante competente uma série de questões teóricas. No primeiro capítulo, “Poder simbólico e habitus: aproximações teóricas para a análise das tragédias nas Grandes Dioni síacas”, o autor apresenta e delimita o emprego que faz da teoria dos campos (pensando a distribuição de bens simbólicos, distinções sociais e poder simbólico) e da noção de habitus (produção e reprodução e práticas no interior dos campos), ambas de Bourdieu. Seu ponto de partida é o teatro ateniense como uma prática engastada ou incrustada (seguindo a terminologia de Moses Finley), isto é, uma prática social integrada em outras práticas sociais. Como o teatro está incrustrado tanto na política quanto na religião, no segundo capítulo, “Espaço, ritual e performance na cidade das Grandes Dionisíacas”, o autor busca, por um lado, compreender a dimensão ritual do teatro em sua espacialidade na cidade de Atenas na sua relação com o festival das Grandes Dionisíacas, e, por outro, apreender as conexões com o desenvolvimento das práticas políticas atenienses entre a sua constituição democrática e sua vocação imperial. Isso resulta em intuições significativas no que diz respeito à hipótese da formação de um campo político (e talvez até mesmo de um campo artístico, associado) na Atenas do século V a.C. e ao papel do conflito social como elemento constitutivo da formação desse campo. A contraparte dessa perspectiva atenta à existência integrada das práticas sociais está nas dificuldades oferecidas pelas práticas religiosas na Antiguidade para com as interpretações modernas. O instrumental intelectual desencantado da modernidade3 tem muita dificuldade em compreender adequadamente o lugar do conflito dentro das práticas religiosas (em geral pensadas como homogeneizantes), em lidar com o grau de integração da religião com outras práticas sociais, e em pensar a força do religioso em relação ao político.

Na segunda parte do livro, Moerbeck analisa de modo sistemático duas tragédias de Eurípedes, As suplicantes e As fenícias. Aqui, ao se observar a relação do teatro ora com o campo político, ora com as práticas religiosas (um campo? O autor não o articula nesses termos), aquelas dificuldades se fazem presentes. No terceiro capítulo, “Política, posição social e guerra em As suplicantes de Eurípedes”, o autor demonstra como a recriação de Eurípedes do episódio mítico em que Teseu interfere no ciclo tebano se articula com temáticas políticas e religiosas prementes para a Atenas do V a.C. Do ponto de vista das relações da tragédia com a política, a interferência remete ao próprio debate ateniense sobre a guerra contra a Liga do Peloponeso, ainda em sua primeira fase. Aqui Moerbeck dá destaque aos significados da representação dramática do caráter democrático do governo de Teseu, com especial destaque para a configuração de um discurso de oposição à tirania e para a elaboração da voz do camponês como o representante do bom senso do conjunto dos cidadãos. Já ao observar a relação da tragédia com as práticas religiosas, a análise de Moerbeck adentra o território dos costumes enraizados em um passado distante, o pressuposto religioso por trás do tabu desrespeitado por Creonte ao não permitir o sepultamento devido dos invasores mortos no conflito entre Etéocles e Polinices. Há um conflito de contornos religiosos servindo de motivação para a ação de Atenas em Tebas, uma vez que o estatuto de Atenas e seu rei como responsáveis por zelar por esse costume na Ática é um dos elementos que entram no debate na assembleia presente na tragédia

Já no quarto capítulo, “Ambição, poder e política em As fenícias”, a tragédia que é analisada tem como conteúdo mítico episódios cronologicamente anteriores, mas foi composta posteriormente a As suplicantes. Aqui, Moerbeck reflete sobre como o conflito aristocrático entre Polinices e Etéocles, nela representado, também pode ser articulado com temáticas políticas e religiosas associadas a uma fase tardia da Guerra do Peloponeso. Por um lado, o das conexões com as temáticas políticas, o debate sobre a rotatividade de governantes e a invasão de Tebas por estrangeiros é remetido aos conflitos entre os legisladores e estrategos atenienses da última década do século V, com um papel de destaque para Alcebíades. Essa operação ilumina a dimensão sofística e demagógica dos discursos de Etéocles em favor da tirania na tragédia. Por outro, no que diz respeito às relações da tragédia com as práticas religiosas, o contexto de guerra e o imperialismo ateniense colocam em relevo os vários juramentos quebrados em As fenícias, que Moerbeck remete à problemática da recente destruição de Melos pelos atenienses e a justificativa do poder pelo poder.

Ao abordar nesses dois últimos capítulos a articulação entre esses três conjuntos de práticas sociais, Moerbeck se preocupa em não reduzir uma coisa à outra, buscando integrar da melhor maneira possível tanto as posições de Julian Gallego4 quanto as de Christiane Sorvinou-Inwood.5 O resultado da sua investigação não é transformar a tragédia em metáfora da política, nem reduzi-la a uma forma racionalizada de rituais dionisíacos, mas mostrar como essa tríplice articulação permite ver a formação do campo político em Atenas. E, por isso, o conflito social tem um papel muito importante na sua economia argumentativa. É, porém, exatamente essa centralidade do conflito social que nos reenvia às previamente mencionadas dificuldades da interpretação moderna no que tange às práticas religiosas.

Quando se trata de analisar o conflito social em termos políticos, as ciências humanas têm um instrumental teórico bastante apurado. A História, em particular, uma vez que a observação do conflito social sempre está associada às temáticas da permanência e da transformação de uma sociedade. Na investigação de Guilherme Moerbeck o conflito social com contornos políticos é, sem nenhuma surpresa, definido de várias maneiras em relação às cidades, à polis: há conflito dentro das cidades, fora das cidades, entre cidades. Nesse sentido, na análise de Moerbeck das relações entre o teatro e o campo político em formação, adentra-se numa esfera de observações que a hermenêutica moderna tende a ver como mais dinâmico no que diz respeito à observação dos conflitos sociais. Enquanto o autor busca resguardar a autonomia relativa da prática dramática, há também um esforço de interpretação da relação e do desvelamento das conexões com o conflito. Há uma dificuldade de fundo que se apresenta a interpretações desse tipo, que é o estatuto do mito recriado em cada tragédia específica, de modo que a investigação pode resultar em leituras redutoras que tratam o mito como metáfora ou alegoria do conflito social, da história. A solução de Moerbeck é pensar a própria historicidade da produção do mito (recusando tacitamente visões unitaristas do mito), preocupando-se em incluir na sua análise a diversidade de interpretações concorrentes e as reescritas do mito. Isto é feito por meio da análise tanto intra quanto extradiscursiva das duas tragédias de Eurípedes, principalmente no que diz respeito à observação dos contextos de encenação e as ambiguidades do conceito de performance (e suas implicações em termos de reprodução e criação do mito e das próprias tragédias). Assim, o conflito não é encontrado na metáfora, mas no contrapelo do texto.

A relação do teatro com as práticas religiosas cria dificuldades diferentes, pois, como já dissemos, aquela hermenêutica moderna configura o religioso como um campo mais estático: os ritos são primariamente pensados como tradição e permanência (uma derivação teórica persistente da atenção durkheimiana para com a coesão social). Aqui o risco é a redução do teatro à alegoria moral do costume tradicional, agora como rito que encena o costume. Nesse contexto interpretativo, a associação das tragédias de Eurípedes com uma moralidade pan-helênica pode levar a uma visão a-histórica dessa moralidade, ou tornar certas passagens incompreensíveis, como é o caso da nossa dificuldade em decifrar o sentido do ritual que leva ao sacrifício de Meneceu. A solução de Moerbeck é novamente pensar a produção histórica dos fenômenos, isto é, historicizar o rito.6 O tratamento dado pelo autor à dimensão espacial da produção e reprodução das relações sociais das Grandes Dionisíacas na Atenas do século V a.C. tem como resultado explicitar a interpenetração do político, do econômico e do religioso nos festivais. Outro importante resultado é que aquela moralidade pan-helênica com a qual as tragédias dialogam é vista como algo que é criado, transformado, que se consolida ou se enfraquece, isto é, em termos propriamente históricos. As tragédias de Eurípedes se revelam como um território de observação da contestação constante que se ofereceu a essa moralidade no contexto da Guerra do Peloponeso.

O lugar do religioso em meio às guerras contra os persas e à Guerra do Peloponeso remete necessariamente às regras de comportamento entre as cidades gregas nesse contexto belicoso. Do mesmo modo, a efetividade dessas regras conecta-se à efetividade da dimensão religiosa que lhes dá suporte. A análise de Moerbeck demonstra que tanto as tragédias de Eurípedes quanto a narrativa histórica tucidideana (como no caso de Mitilene e Melos) denunciam a falha sistemática em se cumprir tais regras. E, nesse sentido, uma das poucas lacunas que se pode apontar ao trabalho de Moerbeck é a de não ter explorado mais o quanto sua abordagem de historicizar essa moralidade permite colocar em questão a homogeneidade da identidade pan-helênica, uma homogeneidade que até pouco tempo era tida como consolidada nesse momento da história das cidades da Grécia. Ainda assim, seu estudo é um excelente ponto de partida para os futuros pesquisadores interessados em desenvolver essa linha de investigação.

1 VERNANT, Jean-Pierre, & VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Perspectiva, 2005.

2 MOERBECK, GuilhermeGuerra, política e tragédia na Atenas Clássica. Jundiaí: Paco Editorial, 2014.

3Cf. PIERUCCI, Antônio FlávioO desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber. São Paulo: Editora 34, 2013.

4 GALEGO, Julian. La democracia em tiempos de tragédia: asamblea ateniense y subjetividad política. Buenos Aires: Miño y Davila, 2005.

5 SOURVINOU-INWOOD. ChristianeTragedy and Athenian religion. Lanham, MD: Lexington Books, 2003.

6Para uma colocação precisa destes problemas, cf. VERSNELL, H. S.Inconsistencies in Greek and roman Religion 2. Transition and Reversal in Myth & Ritual. Leiden: Brill, 1994.

Referências

GALEGO, Julian. La democracia em tiempos de tragédia: asamblea ateniense y subjetividad política. Buenos Aires: Miño y Davila, 2005. [ Links ]

MOERBECK, Guilherme. Guerra, política e tragédia na Atenas Clássica. Jundiaí: Paco Editorial, 2014. [ Links ]

MOERBECK, Guilherme. Entre a religião e a política: Eurípedes e a Guerra do Peloponeso. Curitiba: Prismas, 2017. [ Links ]

PIERUCCI, Antônio Flávio. O desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber. São Paulo: Editora 34, 2013. [ Links ]

SOURVINOU-INWOOD. Christiane. Tragedy and Athenian religion. Lanham, MD: Lexington Books, 2003. [ Links ]

VERNANT, Jean-Pierre, & VIDALNAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Perspectiva, 2005. [ Links ]

VERSNELL, H. S. Inconsistencies in Greek and roman Religion 2. Transition and Reversal in Myth & Ritual. Leiden: Brill, 1994. [ Links ]

Uiran Gebara da Silva – Professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco/Instituto de História, Programa de Pós-Graduação em História, Recife/PE – Brasil. E-mail: [email protected].

Travestis: carne, tinta e papel – VERAS (AN)

VERAS, Elias Ferreira. Travestis: carne, tinta e papel. Curitiba: Editora Prismas, 2019. Resenha de: MACHADO, José Wellington de Oliveira. A emergência do sujeito travesti: marcas de um corpo em trânsito. A emergência do sujeito travesti: marcas de um corpo em trânsito. Anos 90, Porto Alegre, v. 26 – e2019504 – 2019.

Com a maquiagem de Thyago Nogueira e os adereços de Helena Vieira, juntamente com os brincos de Luma Andrade e os colares brilhantes de Durval1, a Travesti não binária, que transita entre a História, a Literatura, o Jornalismo, a Arte e a Filosofia, volta a se vestir de glamour. Os recortes mudaram de canto e de tamanho, o corpo desmontou-se e refez-se, a carne, a tinta e o papel entraram, mais uma vez, em trânsito. Depois de anos montando, desmontando e remontando o corpo, ela tinha a sensação de devir cumprido.

Não tem como separar esse corpo dos corpos dos arquivos e dos corpos das interlocutoras; dos corpos da UFSC e da Universidade de Barcelona; dos corpos da TV, das revistas e dos jornais; dos corpos de Michel Foucault, de Judith Butler, de Paul Preciado e, principalmente, de Joana Maria Pedro2. Ele é resultado de todos os lugares por onde Elias passou, das pessoas que conheceu, das histórias que viveu, das dores e das alegrias que experimentou, das músicas que ouviu, dos gostos, dos cheiros e das carícias que sentiu.

Ao olhar para esse corpo de letras e de imagens enxergamos três marcas, ou capítulos, que ajudam a entender como se construiu a imagem das travestis. A primeira3 é resultado do contato com Gilmar de Carvalho, que ajudou a preservar a literatura de Amorim/Samorim, tornando possível fazer uma conexão entre os/as protagonistas dos seus livros com as personagens das revis­tas, dos palcos e da TV.

O que essa cicatriz nos mostra é a emergência do sujeito travesti entre as décadas de 1970 e 1980. Mas, antes de falar sobre essa inflexão, que causou o surgimento de novas subjetividades, precisamos falar dos encontros antropofágicos de Elias Veras, é apenas a partir do momento que ele coloca Foucault e Preciado na sua mesa (ou na sua cama), como corpos a serem comidos, que essa ideia ganha corpo. Ela nasce através dos encontros e da antropofagia (ROLNIK, 1989).

Através das lentes foucaultianas, ou das lentes de Elias lendo Foucault, aprendemos a olhar para o sujeito travesti como resultado de uma rede de ações e de discursos, como algo que emerge através de uma trama. Ao cruzar Foucault, Preciado e (S)Amorim ele localiza a emergência desses sujeitos dentro da sociedade fármaco-pornográfica. O que existiria antes seria a arte de “fazer tra­vesti”, uma atividade passageira e circunstancial. É “A Passagem do Tempo das Perucas ao Tempo dos Hormônios”.

De um lado, as histórias das personagens de (S)Amorim e de Bianca, relatos de encontros de “bichas e bonecas” que performatizavam o feminino através das Misses e das atrizes do cinema americano. São memórias das festas do Edifício Jalcy, dos concursos de beleza ou de fantasia e dos bailes de carnaval, onde as feminilidades efêmeras podiam se transformar em heterotopias. Do outro lado, temos o tempo dos hormônios e do silicone, resultado de transformações que afetaram “a intimidade, o corpo, o gênero e a sexualidade”. Todas essas mudanças são analisadas através da Revista Manchete que acompanhava as atividades anuais do carnaval, publicando as fotorrepor­tagens do “baile dos enxutos” e, posteriormente, do “Gala Gay”, mostrando o contraste entre as antigas e as “novas tecnologias corporais”.

Esse novo sujeito é resultado do cruzamento da ciência com a mídia, das novas próteses estéticas, cirúrgicas e hormonais que transformaram os corpos, que a partir da década de 1980 aparecem siliconados nas revistas, na TV, nos teatros e nas boates. É o tempo de Rogéria e dos grandes espetáculos que percorriam o Brasil e o Mundo. Ela é filha da arte, da ciência e dos meios de comunicação. Mas, também é o tempo de Rogéria e de Thina, duas travestis de Fortaleza que se construíram através das revistas e das imagens dos carnavais do Rio de Janeiro, das representações de Rogéria e de outras travestis famosas, do imaginário em torno dos teatros e das boates brasileiras e do cinema e da música norte-americana.

A segunda marca4 nasce do encontro com Roberta Close, com todos os textos e imagens que transformam ela em outra personagem paradigmática. Assim como Rogéria, ela encarna a sociedade farmacopornográfica. Estamos diante de um novo paradigma que surge a partir do momento que ela se encontra com a Playboy. O corpo transgênero agora estava nu, ela exibia a sua feminilidade numa revista masculina de projeção nacional, sem figurinos, maquiagens ou adereços, o que as pessoas queriam ver era a produção do feminino na carne. O debate agora não gira apenas em torno da “travesti de verdade”, é sobre a “mulher de verdade”.

Enquanto ela tirava a roupa, o seu corpo era coberto de significados, não se tratava apenas de um corpo individual, ela encarnava o corpo de uma época. Os gays, as transformistas e as travestis estavam nos programas de humor, de auditório ou de entrevista, faziam parte das matérias de jornais e de revistas, alimentando esse imaginário de fascínio ou estigma que ajudou a construir a identidade das travestis. Mas, não representava apenas a existência de um novo modelo de subje­tividade, o que ela mostrava era a coexistência de vários paradigmas.  De um lado, temos Roberta Close “nas capas das revistas, nas telas das tevês”, “nos jornais”, nas mentes e nas bocas do povo”. Ela era uma brecha por onde as pessoas podiam ver (bem ou mal) as “sexualidades disparatadas”.

De outro lado, temos os conservadores, eles estavam nos jornais e nas revistas, usando a ascensão das indústrias “eletrônicas, de informática e de comunicação para criar um contra-discurso. Era uma reação diante da presença das travestis nas ruas de Fortaleza, das pesquisas sobre sexualidade, dos novos medicamentos, do aumento de saunas, boates e cinemas pornôs, do fenômeno do vídeo cassete, do surgimento dos novos movimentos sociais, da expansão das mídias e da indústria pornográfica.

A terceira marca5 nasceu através do encontro com os Jornais de Fortaleza, dos enquadramentos da polícia e dos meios de comunicação. A orgia, dessa vez, aconteceu com A Vida dos homens infa­mes e A História da Sexualidade, de onde surgiu o “Dispositivo do estigma”. O que vemos é uma rede, que liga vários elementos, produzindo uma imagem das travestis nos campos de prostituição e nas organizações criminosas. Os corpos de Rogéria, de Roberta Close, de Thina, de Erdmann, de Foucault, juntamente com os corpos d’O Povo e Diário do Nordeste, movimentam o ponto de encontro, alimentando essa zona de visibilidade e dizibilidade.

Elas são classificadas, através de um pré-julgamento, como causadoras da desordem, dos escândalos, da violência e dos assassinatos. As forças policiais e a imprensa legitimaram a regu­lação e o encarceramento, os discursos médicos e religiosos criaram a imagem da “peste gay” ou do “câncer gay”. Mas, essa não é uma história apenas de luto e de agouro. Os Estados Nacionais criaram Políticas Públicas de Assistência Social, de produção e distribuição de medicamentos, transformando as travestis em portadoras de direitos. Estamos diante de duas formas de visibilidade, a primeira foi construída através do estigma, é resultado do encontro dessas vidas infames com o poder. A segundo é uma visibilidade de resistência, construída através do Movimento Nacional e Internacional de Travestis.

Esse mesmo exercício, de perceber os contra-discursos, poderia ter sido feito também no primeiro capítulo, quando as “agulhas da beleza” ganharam um status de glamour. Diante da realidade social de carência e das imagens do que seria uma “travesti (ou uma transexual) de ver­dade”, os procedimentos ilegais aparecem como a única possibilidade de beleza. Não se trata apenas da emergência de um sujeito, é do apagamento de todas as travestilidades e transexualidades que não cabem nessas fôrmas. Essa é uma das dimensões que o autor pode analisar melhor em outra ocasião, o lado cruel desse processo de subjetivação. O perigo das travestis não estava apenas na polícia, nos jornais e no dispositivo do estigma, estava no próprio conceito de “travesti de verdade”, a estigmatização não é fruto apenas das páginas policiais, é resultado dessa hierarquia entre “tra­vestis de verdade” e travestis de mentira.

Se olharmos esse dispositivo como se fosse uma receita, uma gramática ou um mapa, podemos pensar as travestis como sujeitas da vida cotidiana, que burlam essas normas e constroem táticas de resistência, como fizeram com a polícia. O sujeito, nesse caso, não é apenas o sujeito coletivo das normas, é uma pessoa, ou um grupo, que burla os códigos (CERTEAU, 2008, p. 116). Se Foucault não se resume apenas às relações de poder ou aos dispositivos de poder, como podemos falar sobre a resistência das travestis diante da emergência desse lugar de sujeito? De que maneira essas práticas que existiam, com o nome de travestismo ou com outros nomes, podem ser estudadas?

Não se trata do mesmo tipo de sujeito, ou do mesmo conceito de sujeito, parte das pesquisas sobre travestis surgiram no momento da emergência do sujeito travesti da sociedade farmacopor­nográfica, generalizando o conceito de maneira anacrônica para o passado. Precisamos ir, através da História, além da antropologia e da sociologia, sem negar a importância dessas pesquisas. Há quem diga que esse livro impossibilita a construção de uma história das transições de gênero que aconteciam de maneira permanente e duradoura antes da década de 1970. Que existiram outras travestilidades que não cabem nos conceitos que foram apresentados. Mas, ao invés de pensar através 4 de 5  dessa dualidade, eu prefiro fazer o cruzamento, a pesquisa que foi apresentada é um convite para pensar as transições de gênero em outros períodos da história. O que foi feito através desse recorte e dessa trama serve como exemplo para pensar outros recortes e outras tramas.

Não podemos exigir que ele fizesse o que não se propôs a fazer, a sua pesquisa é sobre a emer­gência do sujeito travesti na sociedade farmacopornográfica, existe uma metodologia e um recorte de tempo e de espaço, ele estar falando da segunda metade do século XX através de Fortaleza, embora, em alguns momentos, possa ampliar para o Brasil. A pesquisa parte de uma problemática e de alguns objetivos, não podemos exigir que ele escrevesse, na época, uma história sincrônica e diacrônica do conceito de travesti, que fizesse uma cartografia de outras travestilidades ou que apresentasse todas as possibilidades interseccionais. Mas, poderia ter feito pelo menos um exercício nesse sentido.

Essa é uma visão de quem olha de fora, de quem imagina que esse corpo poderia ter sido construído de outra maneira. É preciso fazer, também, o exercício contrário, tentando perceber como esse corpo se construiu e qual a sua importância para os historiadores e as historiadoras que pesquisam sobre Travestis. Essa é uma das grandes contribuições de Elias, ele conseguiu fazer corpo com a tinta e o papel, as letras transformam-se em hormônio, em silicone, em vestimentas, em bolsas, em maquiagens, em manchas de batom e de sangue.

Ao olharmos para o Grupo de Estudo que ele coordena na UFAL, para as reportagens que escreveu no Jornal O Povo e para o Simpósio Temático Clio ‘Sai do armário’: Homossexualidades e escrita da História, percebemos a existência de debates sobre a interseccionalidade e o período da Ditadura. O corpo ganha novas cores, aparece com mais ou menos maquiagem, com novas próteses, dependendo do tipo de montagem. Não estou falando apenas das novas edições, o corpo do livro e de Elias podem devir outros corpos, parindo novas travestilidades.

Referências

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1: artes de fazer. 15. ed. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 2008.

FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In: FOUCAULT, Michel. Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 203-222. (Coleção Ditos e Escritos, IV.)

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edição Graal, 1988.  PELBART, Peter Pal. A vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.

PRECIADO, Paul Beatriz. Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: N-1, 2018.

ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental. Transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989.

Notas

1 Thyago Nogueira é o criador da capa; Helena Vieira é uma autora transfeminista que escreveu o prefácio da segunda edição; Luma Nogueira de Andrade é uma travesti professora da UNILAB que fez o texto da orelha do livro e Durval Muniz de Albuquerque Júnior é um historiador da UFPE que participou da banca de doutorado e escreveu o prefácio da primeira edição.

2 Orientadora de Elias Veras no Programa de Pós-Graduação em História da UFSC.

3 O Nome desse Capítulo é “Do Tempo das Perucas ao tempo dos hormônios” e está dividido em três tópicos: “Tempo das Perucas ou quando não existia o sujeito travesti”, “Entre Perucas e Hormônios, o carnaval como heterotopias de gênero” e “Tempo dos hormônios ou a invenção do sujeito travesti”.

4 O segundo capítulo foi intitulado de “O ‘Fenômeno Roberta Close’ como acontecimento farmacopornográfico” e está dividido em três tópicos: “Tempo fármaco-pornográfico: excitação e controle”, “La Close e a confusão de gênero”, “La Close e as ‘sexualidades periféricas’ no centro da cena público midiática”.

5 O terceiro capítulo foi intitulado “Dispositivo do estigma e os contra-discursos Travestis” e está dividido em três tópicos: “O dispositivo do estigma”, “O dispositivo da prostituição e da AIDS” e “contra-discursos travestis”.

José Wellington de Oliveira Machado Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: [email protected].

As Américas na primeira modernidade – CAÑIZARES-ESGUERRA (H-Unesp)

CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge; FERNANDES, Luiz Estevam de Oliveira; MARTINS, Maria Cristina Bohn. (Orgs.), As Américas na primeira modernidade. Curitiba: Prismas, 2017. 1, 359p. Resenha de: SÁ, Charles Nascimento. Novo Mundo e Modernidade: debates e estudos sobre a colonização das Américas na Idade Moderna. História v.38  Assis/Franca  2019.

Uma das qualidades que se busca na produção acadêmica é a capacidade de cativar e prender a atenção de seu leitor. Ao longo de séculos, escritores e suas obras têm tido sucesso ou insucesso nesse sentido: conseguir produzir um texto que seja interessante, que produza reflexões no ledor e que estimule a busca por mais conhecimento, seja para seu interesse pessoal ou para sua área profissional, é prova inequívoca de que o trabalho atingiu seu objetivo.

Em um romance publicado pela Editora Record, intitulado A livraria mágica de Paris, de autoria da francesa Nina George, a autora, por meio de seu personagem Jean Perdu, define a função da livraria similar à de uma farmácia literária. Perdu nega-se a vender um livro quando percebe que não é aquele que a pessoa necessita. Por meio dos livros, o indivíduo, com seus problemas, dores, tristezas e incertezas, pode aí encontrar sua cura, ou, pelo menos, um paliativo (GEORGE, 2016).

Inicio esse texto abordando uma obra literária porque entendo que, no que concerne à escrita e seu reflexo na formação e melhoramento do conhecimento humano, todo tipo de saber deve ser aproveitado. Seja para momentos de deleite – de puro prazer literário, seja para crescimento profissional e acadêmico, todo livro deve trazer em seu bojo as benesses que uma boa escrita traz para a mente e o coração.

Se na obra literária a narrativa deve sempre buscar a atenção do leitor, prendendo-o com recursos estilísticos diversos – suspense, drama, assassinatos, crises, traições, reviravoltas, etc. -, no livro acadêmico nem sempre isso é possível, ou tem o autor a verve necessária para produzir tal feito. Algumas obras historiográficas conseguiram esse feito: Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Júnior, Caminhos e Fronteiras, de Sérgio Buarque de Holanda, Apologia da História, de Marc Bloch, Segredos Internos, de Stuart Schwartz, Um Contraponto Baiano de Bert Barickman são alguns dos autores que produziram obras acadêmicas relevantes e paradigmáticas que também possuem estilo literário que cativa e prende a atenção de seus leitores.

As obras acima referidas possuem outra característica em comum: são frutos de um único autor. Nesse sentido, possuem uma coerência narrativa e vigor estilístico que surge da força criativa, da concepção teórica e da escrita de seu autor, ou mesmo de um dom que este possua.

Essa capacidade da escrita de ser leve e profunda, de fácil percepção para quem lê, nem sempre é conseguida em livros com vários autores. Obras coletivas, mesmo as literárias, perdem muito pela forma e característica com que cada escritor percebe sua produção e a transmite por meio de sua grafia. Esse desequilíbrio é sempre um fator a desmerecer o quantum de uma obra com vários autores.

Passados por esta breve introdução, adentremos no que de fato concerne este texto, isto é, a análise do livro: As Américas na primeira modernidade (1492-1750). Organizado por Jorge Cañizares-Esguerra, Luiz Estevam de Oliveira Fernandes e Maria Cristina Bohn Martins, publicado pela Editora Prismas, conta com textos de diversos autores em colaboração com os três já citados, ou em outras parcerias. Os autores são docentes e pesquisadores do Brasil, Estados Unidos e Europa. Instituições como Unicamp, UNISINOS, Universidade da Califórnia, Universidade do Texas, Universidade da Integração Latino-Americana e Universidade de Barcelona estão aí representadas. Todos esses centros estudam e pesquisam o passado do continente americano, e seus professores, presentes no livro, demonstram por meio dos capítulos o estágio atual da pesquisa sobre a história da América colonial.

Na introdução da obra, os organizadores fazem uma análise historiográfica da produção sobre a América na Idade Moderna. O processo de colonização, os entendimentos sobre a conquista, as ideias e conceitos que foram utilizados ao longo do tempo para compreensão desse fenômeno são aí abordados. Ao mesmo tempo, indicam os novos olhares e caminhos que têm sido discutidos pelos estudiosos para o entendimento da colonização do continente entre os séculos XV até o XVIII.

Alexandre C. Varella abre o primeiro capítulo, intitulado: Os índios: povos ancestrais, sujeitos modernos. Estes são tratados não apenas dentro de sua ancestralidade, mas também naquilo que carregavam e carregam de moderno. Os povos indígenas que habitavam o continente não são encarados como vítimas circunstanciais da dominação europeia na América, mas se apresentam como indivíduos ou coletivos que produzem com suas ações e ideias sua própria história. Em seu texto, a dicotomia usual entre opressores e oprimidos cede lugar a “caleidoscópio de posições e situações instáveis, contextuais, plurais”. No seu texto fica claro que “existem mais paradoxos que soluções para a análise dos indígenas no início da modernidade” (p. 48).

O segundo capítulo traz em seu bojo o processo de conquista da América, intitulando-se A conquista da América como uma história emaranhada: o intercâmbio de significados de uma palavra controversa. O primeiro item a destacar aqui diz respeito ao fato que esta ação deve ser compreendida não apenas como um processo unilateral, que parte de ibéricos sobre americanos. Segundo o texto de Luiz Estevam de Oliveira Fernandes e Eliane Cristina Deckman Fleck, um dos elementos a obnubilar o entendimento do conflito que terminou por colocar o continente americano sobre a égide espanhola foi o de entendê-lo a partir de uma visão unilateral.

Para os autores do segundo capítulo, a gênese e o desenvolvimento de todo esse épico conflito devem ser compreendidos a partir das junções de acordos e da geopolítica que envolvia os povos e nações existentes no mundo mexicano e peruano, para ficar aqui nas regiões mais famosas. Para os ameríndios que participaram do processo que resultou na queda de Tenochititlán e Cuzco, os espanhóis não foram os senhores que comandaram o processo, mas parceiros em toda a guerra que resultou na queda dos adversários históricos dos grupos oprimidos por astecas e incas. Além disso, o texto possui uma fluidez e uma escrita muito cativante. Nesse texto, o leitor torna-se partícipe de todo o conflito, a narrativa possui aquela característica tão carente em obras de história feita por historiadores: lucidez e simplicidade, atrelados a excelente pesquisa de fontes e bom diálogo com outros autores.

O terceiro capítulo, de autoria de Maria Cristina Bohn Martins e Leandro Karnal apresenta a questão da fé, atrelado a dois outros efes: fama e fortuna, seu título, por isso mesmo chama-se Fama, fé e fortuna: o tripé da conquista. Nesse texto, os autores desenvolvem uma interessante discussão sobre o impacto que a chegada dos europeus e a conquista dos impérios asteca e inca tiveram no desenvolvimento do imaginário europeu no início da modernidade e a importância disso para que outros indivíduos sonhassem em conquistar os mesmos louros que Cortez e Pizarro. Questões envolvendo fé, fama e fortuna foram paralelas e congênitas no empreendimento que resultou na conquista do Novo Mundo. Para os autores, porém, é importante não esquecer que o elemento que dominou toda a ação dos ibéricos foi sempre a fé católica e sua propagação para outros povos, afinal, “a compreensão das ações espanholas não pode prescindir da sua dimensão religiosa e espiritual” (p. 176). Nesse sentido, assemelha-se ao que Charles Boxer, em sua clássica obra O império marítimo português – 1415-1825, já assinalava quando de sua publicação em 1969. Para o historiador britânico, das quatros questões que nortearam a expansão lusitana – a saber, a guerra contra infiéis, a busca de ouro, a busca do reino de Preste João e a expansão da fé católica, foi sempre esta última a que de fato serviu como elemento justificador e impulsionador das navegações portuguesas em mares nunca dantes navegados (BOXER, 2002).

No quarto capítulo, que tem como título O lapso do rei Henrique VIII: inveja imperial e a formação da América Britânica, Jorge Cañizares-Esguerra e Bradley J. Dixon analisam o impacto da conquista e a formação do império ibérico no mundo anglo-saxão. Com suas minas e riquezas advindas do Novo Mundo, a Espanha se consolidou como a maior potência na Europa do início da modernidade. Isso, mais a rivalidade com a consolidação da Reforma na Inglaterra, levou os ingleses a buscarem imitar seus rivais castelhanos na construção de colônias na América. Ao longo dos séculos XVI e XVII encontrava-se na península ibérica a inspiração que os ingleses buscavam para a construção de seu próprio império. Foi somente no século XVIII, com a disseminação da “Legenda Negra” e a percepção de que o modelo ibérico não seria viável para os objetivos anglicanos, que a Grã-Bretanha encetou novo processo de povoamento e conquista na América desvinculado do modelo ibérico. Isso, porém não simbolizou o abandono do modelo espanhol. Durante todo o período de construção de suas colônias a Inglaterra teria no seu adversário o exemplo a seguir ou criticar.

Não foi só de pessoas que se constituiu a formação do mundo colonial americano. Benjamin Breen, no quinto capítulo do livro, analisa o Meio ambiente e trocas atlânticas. A migração de povos do Velho para o Novo Mundo se deu por volta de 60.000 anos atrás, segundo as pesquisas desenvolvidas por vários arqueólogos na América. Houve contatos com vikings durante o ano 1.000, mas as colônias por eles fundadas desapareceram sem deixar traços mais profundos. Assim, ao longo de vários séculos, povos, animais e plantas, além dos micro-organismos, estiveram longe do contato com outras espécies. A vinda dos europeus trouxe consigo não apenas as transformações no estilo de vida desses povos, mas representou também o intercâmbio entre diferentes indivíduos e seres vivos. Dessa forma,

[…] a história ambiental do mundo atlântico também ajuda a compreender duas das mais colossais catástrofes da história humana recente. A primeira é a impenetrável tragédia ocasionada pelas mortes de dezenas de milhões de nativos americanos devido a doenças infecciosas como a gripe, o sarampo e a varíola, contra as quais os indígenas não possuíam resistência. A segunda é a contínua diminuição da biodiversidade global, a qual muitos ecologistas identificam agora como a maior extinção em massa desde o desaparecimento dos dinossauros há 65 milhões de anos (p. 247).

As trocas envolvendo os dois lados do Atlântico e a inclusão do Índico e suas variedades de fauna e flora estão diretamente vinculadas à constituição do mundo contemporâneo e suas variedades de flores, frutos e fauna tal qual conhecemos hoje; seu custo para povos e seres que habitavam a América foi altíssimo.

O sexto capítulo da obra, Saberes e livros no mundo atlântico: o intercâmbio cultural na carreira das Índias, aborda as trocas de livros e saberes no mundo atlântico moderno. De autoria de Carlos Alberto González Sánches e Pedro Rueda Ramírez, faz uso de documentos e produções do período para discutir como o saber e sua disseminação por meio de obras muitas vezes não permitidas se fizeram presentes no universo colonial ibérico. A perseguição da Coroa e da Igreja a obras consideradas impróprias e a manutenção por parte do Estado espanhol do sigilo em torno de mapas e descrições do Novo Mundo, com o objetivo de proteger suas minas e riquezas de seus adversários, foram elementos a direcionar a atuação do governo e sua censura sobre livros e saberes.

No último capítulo da obra, Entre textos, contextos e epistemologias: apontamentos sobre a “Polêmica do Novo Mundo”, Beatriz Helena Domingues e Breno Machado dos Santos discutem os textos e obras que, no século XVIII, polemizaram a respeito do Novo Mundo e seus habitantes. De modo particular são aqui estudadas as obras de Buffon e De Paw, na discussão que o italiano Antonello Gerbi denominou como disputa ou controvérsia do Novo Mundo em seu clássico livro O Novo Mundo: história de uma polêmica.

Nesse texto que encerra o livro, as discussões sobre as características inferiores que a América apresentaria quando comparada com o Velho Mundo, tese defendida por Buffon e ampliada por De Paw, são contextualizadas e inseridas dentro de todo o debate que os estudos desses dois intelectuais produziram no período das Luzes. De modo particular, tem-se aqui a ação dos padres jesuítas da América espanhola e portuguesa, bem como dos representantes dos recém-emancipados Estados Unidos, em sua defesa pela semelhança entre os continentes da América e Europa.

A atuação de personagens da América espanhola e dos norte-americanos foi mais destacada que a dos residentes na América portuguesa. Tal fato é explicado por terem sido os padres jesuítas lusitanos encarcerados em Portugal na ocasião da expulsão dos membros da Ordem pelo Marquês de Pombal. Já os espanhóis puderam ir para o exílio em Bolonha, nos Estados Pontifícios. Como apontam os autores: “ainda que a situação do exílio seja sempre terrível, há uma enorme diferença entre Bolonha e as masmorras portuguesas” (p. 336).

Retomam-se aqui, para concluir a presente resenha, os tópicos indicados no início desse texto. Quando escreveu seu emblemático livro Apologia da História, ou o ofício do historiador, o historiador francês Marc Bloch disse: “decerto, mesmo que a história fosse julgada incapaz de outros serviços, restaria dizer, a seu favor, que ela entretém” (BLOCH, 2001, p. 43). Em outras palavras, quis esse estudioso indicar que compete ao texto histórico fazer com que seu leitor se entusiasme pelo que lê. Partindo desse ponto, os artigos encontrados no livro As Américas na primeira modernidade, 1492-1750 cumprem a contento tal expectativa. Torna-se prazerosa e instrutiva sua leitura, pois o leitor fica preso ao texto. Ao mesmo tempo, a precisão acadêmica, o confronto entre diferentes fontes, o diálogo envolvendo a bibliografia mais atual e a já consagrada encontram-se aí presentes. Sendo uma obra coletiva, o vigor acadêmico em nenhum momento se perde no conjunto da obra.

Outra perspectiva que a obra possui tem correlação com aquilo que o historiador Luiz Felipe de Alencastro defende em sua obra O Trato dos Viventes (2000) Nela, Alencastro aponta que, para entender o Brasil dos séculos XVI ao XVII, é preciso ir para fora dele, isto é, só se pode compreender a gênese da formação da América portuguesa olhando para o Atlântico. Nesse oceano e em suas conexões, no caso de Alencastro, de modo particular, a África, pode-se esclarecer e entender todo o processo formativo da sociedade e economia brasileira nesses dois séculos. O livro organizado por Jorge Cañizares-Esguerra, Luiz Estevam de Oliveira Fernandes e Maria Cristina Bohn Martins cumpre bem esse papel ao dar o destaque necessário às correlações envolvendo povos e territórios do além-mar e suas conexões não apenas com a Europa e África, mas também com a Ásia.

Tanto o indicativo de Bloch quanto o de Alencastro são seguidos no livro. Outro item que vem tendo destaque nas pesquisas envolvendo o mundo colonial da era moderna é abordado no volume que analisamos. Trabalhos oriundos dos Estados Unidos e Europa, bem como outros feitos na África, Ásia e América Latina, têm chamado a atenção para a necessidade de se pesquisar o passado colonial focando em questões e conceitos muitas vezes relegados pela historiografia. As noções de rede, nobreza, império ultramarino, monarquia pluricontinental, monarquia compósita, Antigo Regime, absolutismo, conquista, colonização, hibridismo cultural, miscigenação, direito, dentre outras temáticas foram incorporadas ou rediscutidas para compreensão do passado colonial da América e suas conexões com outros povos.

Nesse sentido, As Américas na Primeira Modernidade tem o mérito de abordar em seus capítulos essa discussão já tão presente no mundo europeu, na América do Norte, em partes da África e do continente asiático. A literatura por eles utilizada assenta-se em nomes como Serge Gruzinski, Sanjay Subrahmanyam, Stuart Schwartz, Jack Greene, Anthony Pagden, Vitorino Godinho, Charles Boxer, Antonello Gerbi, além dos próprios organizadores da coleção e seus autores. Nesse sentido, o diálogo aí presente é fecundo e levanta diversas indagações.

Nós, latino-americanos, fomos marcados pela intolerância, perseguição, guerras, mortes, doenças e pela conquista, mas também nos caracterizamos por dotar o planeta de sua concepção de modernidade. Foi somente pela chegada dos europeus ao Novo Mundo que o planeta iniciou o processo de constituição da economia mundo, afinal “o impacto das explorações oceânicas europeias estava sendo sentido fora da Europa, em uma terra que não possuía atividades transatlânticas […]” (WOOLF, 2014, p. 257).

Ao mesmo tempo, ao saber que outros povos e outras concepções de mundo existiam além do universo do Velho Mundo, religiosos e estudiosos depararam-se com temas que os levaram a redefinir suas concepções sobre o planeta, bem como sobre suas crenças. Como indica Serge Gruzinski, as certezas do conhecimento clássico foram postas em cheque e um novo saber pôde ser realizado.

A obra, porém, possui um revés. Mesmo se tratando das “Américas”, o livro ainda permanece com a divisão que exclui do universo colonial do Novo Mundo a América portuguesa. A região dominada pelos lusitanos somente é abordada no último texto e em vagos momentos está presente em outros poucos capítulos. Argentina, Paraguai e Uruguai são também pouco abordados. Nesse sentido, é necessário que se possa de fato interconectar os diversos povos e histórias da América em seu contexto colonial. Cada vez é maior o número de pesquisas no Brasil, e fora dele, que apontam para as redes abarcando os mercados e povos do mundo luso tropical com áreas da América sob domínio de Madri ou Londres. Envolver esses povos e territórios em uma única rede, ou em várias conexões, tende a tornar a história do continente em algo verdadeiramente americano.

O ponto acima não desmerece o livro analisado aqui. Pelo contrário, serve de indicação para outras obras futuras. Estas, por sua vez, tendem a ser beneficiadas pelo roteiro bibliográfico que todos os capítulos, bem com a Introdução do livro, trazem. Neles é possível entrar em contato com a historiografia sobre o continente e suas diversas concepções. O livro As Américas na primeira modernidade torna-se, assim, valioso contributo para todos aqueles que pesquisam, estudam ou querem entender o passado colonial de Novo Mundo, sejam alunos ou professores.

Primeiro volume de uma coleção que deverá ter mais dois livros, essa obra inaugural nos leva à expectativa quanto ao teor e profundidade dos demais, ao mesmo tempo em que embala novos debates e saberes sobre o mundo colonial da América. Boa leitura.

Referências

ALENCASTRO, Luiz Filipe de. O Trato dos Viventes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. [ Links ]

BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001. [ Links ]

BOXER, Charles R. O império marítimo português. São Paulo: Companhia das Letras , 2002. [ Links ]

CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge; FERNANDES, Luiz Estevam de Oliveira; MARTINS, Maria Cristina Bohn. (Orgs.) As Américas na primeira modernidade. Curitiba: Prismas, 2017. v. 1. 359 p. [ Links ]

FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima. Na trama das redes: política e negócios no império português. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. [ Links ]

GEORGE, Nina. A livraria mágica de Paris. Rio de Janeiro: Record, 2016. [ Links ]

WOOLF, Daniel. Uma história global da história. Petrópolis: Vozes, 2014. [ Links ]

Charles Nascimento de Sá – Historiador, Mestre em Cultura e Turismo, Doutorando em História e Sociedade na UNESP/Assis. Professor da Universidade do Estado da Bahia -UNEB, campus XVIII, Av. David Jonas Fadini, 300, Eunápolis 45823-035, Bahia, Brasil. E-mail:  [email protected].

Terras da Annoni: entre a propriedade e a função social | Simone Lopes Dickel

Simone Lopes Dickel é doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (PPGH/UPF), é mestre em História, também, pelo PPGH/UPF. Sua graduação foi em História – Licenciatura Plena, pela UPF no ano de 2009 e atualmente é professora de História da Rede Pública Estadual do Rio Grande do Sul, na Escola Estadual de Ensino Médio Zumbi dos Palmares e Escola Estadual de Ensino Fundamental 29 de Outubro, ambas localizadas no município de Pontão/RS, berço da desapropriação da Fazenda Annoni. Leia Mais

A Sociedade dos Amigos dos Negros: a Revolução Francesa e a Escravidão (1788-1802) | Laurent de Saez

A obra “A Sociedade dos Amigos dos Negros”, escrita pelo historiador Laurent de Saes, traz o debate sobre a escravidão nas relações entre a França do período revolucionário e as colônias francesas da América, sobretudo, de Saint Domingue. Dentro dessa limitação espaço-tempo, o autor apresenta a primeira sociedade antiescravista francesa, designada como a Sociedade dos Amigos dos Negros, como um grupo criado e liderado, incialmente, por Jacques-Pierre Brissot de Warville, Étienne Claviére e Mirabeau e, posteriormente, com a adesão de outros ativistas, na França, em 1788, que realizava uma campanha em favor do abolicionismo e uma transformação gradual do sistema colonial, sob os auspícios da nova ordem, jurídica e ideológica, do período pós Revolução Francesa.

O livro traz um panorama da escravidão e suas contradições internas, dentro da relação metrópole-colônias, mostrando o impacto da Revolução Francesa e de seus ideais sobre a questão do abolicionismo e da relação entre metrópole-colônia. A defesa da liberdade, igualdade e fraternidade, princípios revolucionários liberais, foram incapazes de levar a abolição às colônias, ao contrário, por conta disso, fomentaram lutas de classe e revoltas violentas de escravos, ansiosos por independência e a emancipação. Para tanto, o estudo é estruturado em 03 (três) partes, compreendendo o período de 1788 a 1802, lapso temporal a partir da fundação da Sociedade dos Amigos dos Negros, passando pelo abolicionismo, pelas revoltas coloniais, até o restabelecimento da escravidão.

A primeira parte, intitulada “A revolução francesa diante da escravidão negra”, aborda as bases do pensamento da Sociedade dos Amigos dos Negros que defendia a tese, em seu programa inicial, da abolição do tráfico negreiro, a abolição gradual da escravidão, melhora das formas de tratamento dados aos escravos e um novo projeto colonial. Destaca-se o entendimento à época que a emancipação gradual da mão-de-obra escrava e inserção dos negros no sistema de trabalho assalariado seriam benéficos, tanto aos próprios escravos, em face da liberdade a ser obtida e melhores condições de vida, quanto aos próprios comerciantes coloniais e plantadores que obteriam uma maior produtividade e qualidade superior do trabalho. Os ideais da Revolução Francesa foram a base jurídica para argumentação abolicionista, contudo, a extensão de seus efeitos às colônias e os colonos e comerciantes franceses mostram-se barreiras de difícil transposição, visto que o sistema colonial do comércio e das plantations ainda eram consideradas as bases da economia.

A segunda parte do livro descreve como ocorreu a abolição da escravatura nas colônias francesas e seus principais fatores, favorecidas, principalmente, pela insurreição escrava nas colônias. A ascensão do abolicionismo radial, nascido a partir do levante em Saint Domingue, se inspirava no movimento da metrópole pela liberdade e igualdade, num mesmo momento que havia uma retomada da guerra entre França e Grã-Bretanha (1793), inclusive com a invasão inglesa das ilhas do caribe. Dentro desse contexto, a França foi pressionada a abolição da escravidão, sob o risco de perda das colônias.

A terceira e última parte nada mais traz do que a reação política ao movimento abolicionista, restabelecendo, paulatinamente, ao status quo. A ascensão do regime Consular, guiado por Napoleão Bonaparte, pautado pelos interesses da burguesia mercantil, trouxe uma política restauracionista e expansionista das relações coloniais, por conseguinte, o movimento abolicionista não conseguiu superar a forte atuação dos interesses do Estado nacional, na defesa dos seus interesses políticos e comerciais, culminado, inclusive, criando uma ordem constitucional segregada, em face a extinção do princípio da assimilação (1799).

Dentro desse arquétipo, pode-se notar que a obra foi desenvolvida a partir da concepção do materialismo histórico de Karl Marx e Friedrich Engels, uma vez que o autor traz, à fundamentação para sua tese, diversos documentos, manuscritos e impressos, a fim de consolidar e embasar o seu modo de pensar. Sendo assim, o texto se desenrola dentro de um processo progressivo e histórico, em que os conflitos de classe e as contradições internas se mostram latentes e no entro do debate. Trazemos, à questão que muito bem alicerça a adoção dessa opção metodológica, o paradoxo que era a tentativa de abolição da escravatura, sem, contudo, defender o fim modo de produção colonial como base da economia1. Ao contrário, a França, no período revolucionário ainda era pouco industrializada e extremamente dependente do modelo colonial. Inobstante isso, as contradições de classes também se faziam presentes, visto que, embora silenciada no período consular, a elite abolicionista e os movimentos populares e antiescravistas não deixaram de fomentar o embate interno contra a elite aristocrática e da burguesia mercantil, tanto que desaguaram nas Revoluções de 1830 e 1848 [2].

Nota-se que o autor apresenta causas múltiplas para esses acontecimentos, desde as contradições inerentes entre classes sociais, construídas dentro de um modelo das relações da escravidão e do pacto colonial, até as revoltas violentas dos escravos, o surgimento de um movimento, de cunho popular e abolicionista, na metrópole e as guerras revolucionárias. Portanto, devemos destacar as contradições mostram-se um tema fulcral ao debate, uma vez que a liberdade, um dos pilares da Constituição francesa, não atingiu as colônias, nos mesmos termos. A Constituição francesa declarou a abolição da escravatura, extensível às colônias [3], contudo, não foi aplicado, no ímpeto de impor ordem e controle colonial pela metrópole até que houve a reformulação do sistema, adotando uma dualidade constitucional [4]. Os grilhões do modo colonial impediam a liberdade do trabalho nas plantations, sob o argumento que impunha risco de fuga e escassez da mão de obra. Para equacionar o problema, adotou-se um regime híbrido que unia o trabalho compulsório e assalariado [5], mas não foi suficiente, tendo que chegar ao ápice a restauração da escravidão. Conforme podemos observar nos casos suscitados, à guisa de exemplos, os conflitos de classes e o modo de produção são características intrínsecas a obra e que impactam diretamente sobre a escravidão.

As discussões postas no estudo partem de uma extensa bibliografia francesa que rompia o silêncio da Revolução Haitiana, no período de descolonização no pós II Guerra Mundial. Cabe destacar que o debate historiográfico que emerge a obra do autor Laurent de Saes está situado na questão da continuidade ou não da escravidão do período revolucionário. Trazendo as ideias de Seymor Drescher [6], que defende que há uma temporalidade única e linear, ainda que separados em dois ciclos distintos, da escravidão no século XIX, tal qual o autor descreve na obra em questão. Portanto, nos dois grandes períodos abolicionistas seriam considerados como uma unidade histórica, dentro de “um mesmo processo histórico de aproximadamente cem anos” [7].

A outra interpretação sobre a escravidão, trazemos o autor Dale Tomich [8] para contrapor a visão acima exposta. Esse autor defende que há uma descontinuidade espaço-tempo entre o escravismo colonial e a escravidão do século XIX. Foi no período revolucionário, compreendido entre 1790 a 1820 que foram criadas as diversas condições para inaugurar a segunda escravidão, integrada ao desenvolvimento do capitalismo industrial e do mercado [9], uma vez que os espaços colônias ainda não estariam integrados plenamente na econômica capitalista mundial. Portanto, as revoluções europeias do longo século XIX significaram uma aceleração, tanto do tempo quanto do espaço, que permitiram modelar a escravidão, a partir da massificação de novos padrões de consumo e da mecanização do processo industrial, impostos pela Revolução Industrial.

Merece o devido comentário acerca de outro debate historiográfico em que as análises estruturais, mais amplas, foram deixadas de lado ao longo do tempo. Os estudos sobre a escravidão passaram o seu foco de investigações para casos mais circunstanciais, sob a visão dos subalternos. Embora não tenha sido totalmente abandonada a visão mais angular, foi somente na primeira década do século XXI que apareceram estudos mais alargados, seja através das diversificação dos países, das heterogeneidades culturais e eventuais conexões com o sistema-mundo, ainda que para estudar de forma comparativa as colônias unidas por um sistema de exploração colonial, mas separadas por um oceano [10].

A partir dessa percepção historiográfica, utilizando para tanto o pensamento de Eric Wiliams [11], que estabelece a conexão da escravidão com o colonialismo e com a Revolução Industrial. A partir desse enlace, o referido autor defende a tese que o escravismo caribenho como fomentador do acumulo de capital inglês e como este ultimo contribuiu para a extinção do escravismo, a partir da Revolução Industrial. Nota-se, portanto, que o papel da Inglaterra para o escravismo foi de suma importância, principalmente no mundo atlântico.

Partindo da premissa acima da importância do papel da Inglaterra na história da escravidão e do olhar mais abrangente da história da escravidão, devemos trazer a crítica à obra, o porquê o autor não trouxe o tema ao debate, uma vez que ele cita, por exemplo, que a sociedade dos Amigos dos Negros foi apresentada como uma filial da sociedade abolicionista inglesa [12], cita, também, o papel da Inglaterra nas Guerras Revolucionárias [13] e a ocupação britânica de ilhas caribenhas Guadalupe e Martinica) [14], sem, contudo, citar os efeitos da Revolução Industrial na França e as Colônias. Se pensarmos o objetivo da obra como o estudo sobre a escravidão nas relações entre a França do período revolucionário e as colônias da América, sobretudo, de Saint Domingue, ficaria difícil de não estabelecer elos mais aprofundados com a Inglaterra, quando o assunto fosse a escravidão.

Portanto, a obra “A Sociedade dos Amigos dos Negros” muito bem atinge o seu objetivo, permitindo analisar a escravidão dentro de uma relação dialética, mais abrangente e algumas das vezes contraditória, entre a França e as Colônias, sobretudo, Saint Domingue. O período, a partir da Revolução Francesa até o período consular, restou caracterizado pela atuação moderada da organização abolicionista, por meio de uma abolição do tráfico de escravos e da abolição de forma moderada, a permitir a absorção da mão de obra negra no mercado livre de trabalho, sem, contudo, romper com o sistema colonial. Todavia, ao deixar de analisar o papel da Inglaterra, dentro da percepção mais abrangente do autor, peca, visto que ele mesmo ressalta a participação inglesa na escravidão e nas relações, ainda que conflituosa, com a França e suas colônias.

Notas

1. SAES, Laurent de. A Sociedade dos Amigos dos Negros: a revolução francesa e a escravidão (1788-1802). Curitiba: Prismas, 2016, p.681.

2. Ibidem, p.684/688.

3. Ibidem, p.461.

4. Ibidem, p.542.

5. Ibidem, p.513.

6. DRESCHER, Seymour. Abolition: A History of Slavery and Antislavery. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.

7. YOUSSEF, Alain El. Nem só de flores, votos e balas: abolicionismo, economia global e tempo histórico no Império do Brasil. Almanack no.13, Guarulhos May/Aug. 2016. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S2236-46332016000200205 , acessado 04-12-17.

8. TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Edusp, 2011.

9. SALLES, Ricardo. A segunda escravidão. Revista Tempo (Niterói, online). Vol. 19, n. 35. p. 249-254, jul-dez., 2013.

10. SECRETO, María Veronica. Novas perspectivas na história da escravidão. Revista Tempo (Niterói, online). Vol. 22 n. 41. p.442-450, set-dez., 2016.

11. WILLIAMS, Eric. Capitalismo e Escravidão. Rio de Janeiro: Americana, 1975.

12. SAES, op. cit., p.85 e 87.

13. Ibidem, p.649,655.

14. Ibidem, p.502.

Marcus Castro Nunes Maia – Aluno de graduação – História (UFF). E-mail: [email protected]


SAEZ, Laurent de. A Sociedade dos Amigos dos Negros: a Revolução Francesa e a Escravidão (1788-1802). Curitiba: Prismas, 2016. Resenha de: MAIA, Marcus Castro Nunes. A escravidão no Império Francês no período Revolucionário. Cantareira. Niterói, n.29, p. 282- 285, jul./dez., 2018. Acessar publicação original [DR]

Elementos Inflamáveis: organizações e militância anarquista no Rio de Janeiro e São Paulo (1945-1964) – SILVA (RBH)

SILVA, Rafael Viana da. Elementos Inflamáveis: organizações e militância anarquista no Rio de Janeiro e São Paulo (1945-1964). Curitiba: Prismas, 2017. 338p. Resenha de: SANTOS, Kauan William dos. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.37, n.76 São Paulo set./dez. 2017

Uma visão clássica do anarquismo no Brasil e em algumas partes do mundo afirma que essa corrente política, predominante no movimento operário nas primeiras décadas do século XX, apresentou declínio evidente após 1920, sofrendo sua derrota em nosso país na Era Vargas, com suas mudanças no mundo sindical. Nas análises de certos militantes que buscam legitimar outras propostas de transformação, o anarquismo seria um movimento prematuro, com a ausência de alianças concretas e apresentando um projeto falho para a sociedade. Enquanto isso, para um número significativo de pesquisas atentas ao mundo do trabalho, reverberando em parte tal visão, o anarquismo quase desapareceu desde então e não apresentou grande influência para o movimento operário, principalmente depois da segunda metade do século XX.

Buscando rebater e relativizar tais visões temos em mãos Elementos inflamáveis, livro ligeiramente modificado da dissertação de mestrado de Rafael Viana da Silva, defendida em 2014 no programa de pós-graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Aproveitando pesquisas recentes e também proeminentes que já apontaram a resistência dos anarquistas, seja no âmbito cultural ou sindical, durante os anos de 1930 e 1945, o autor tenciona mostrar a reorganização do anarquismo durante a chamada redemocratização, entre os anos 1945 e 1964. Sem ignorar o contexto para tal, Silva mostra como, em meio à crise do Estado Novo, os anarquistas vão aproveitar brechas para se organizarem de forma mais sistemática e tentarem aumentar sua influência entre as classes populares, assim como incrementar suas fileiras militantes, fato que se deu nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro e, em certa medida, no estado do Rio Grande do Sul.

Entre as primeiras atitudes dos adeptos da bandeira negra esteve a criação e a reativação de seus periódicos. Entre eles cita-se o Remodelações, que circulou entre 1945 e 1947 e era coordenado pelos militantes cearenses Moacir Caminha e Maria Iêda, contando também com militantes clássicos como José Oiticica. Em 1947 foi relançado o periódico A Plebe, um dos mais importantes para o anarquismo anos atrás e também essencial para a nova aproximação com as demandas sindicais. Outro importante órgão para a difusão da cultura política anarquista foi o Ação Direta, essencial para as propostas de organização interna do movimento.

Nesse último sentido surgem as primeiras contribuições importantes de Rafael Silva para o tema. Com a aproximação de diferentes gerações militantes concluiu-se em seus debates ser inadmissível ver as estratégias anarquistas como imóveis e imutáveis – era necessário encaixar as demandas libertárias aos novos condicionamentos. Esses militantes referiam-se principalmente à ausência de organização política entre os anarquistas durante as primeiras décadas do século XX, que seria uma das causas, nessa visão, da perda de suas influências. Os anarquistas brasileiros, diferentemente do que se observou em outros países, não conseguiram efetivar suas propostas de organização interna, chamadas de alianças ou partidos, que se protegeriam em momentos de refluxo e também garantiriam certa homogeneidade em suas práticas. Estando os anarquistas enraizados profunda e quase exclusivamente no movimento sindical, este quando foi transformado na década de 1930 garantiu o declínio da estratégia do sindicalismo revolucionário e da consequente influência anarquista, restando apenas seus grupos de afinidade dispersos para a continuação de suas propostas, perdendo assim o contato com os trabalhadores. Na perspectiva dos militantes anarquistas entre 1945 e 1964, portanto, antes de tudo era necessário se organizar politicamente e então garantir formas e estratégias diversas para recuperar esse e outros contatos.

Seguindo esse debate, Silva examina na primeira parte do livro as discussões e dilemas internos do anarquismo. No primeiro capítulo dessa seção, evidencia-se a importância da participação dos militantes em congressos internacionais, absorvendo e disseminando experiências transnacionais para o anarquismo em nível global. O autor segue analisando os congressos anarquistas no país, em 1948, 1953, 1959 e 1963, essenciais para a reorganização do movimento. No terceiro capítulo, debate-se a retomada da estratégia do sindicalismo revolucionário no papel da transformação da realidade para os anarquistas no período. Nesse sentido, longe de se ater principalmente a propostas culturais como se imaginou, a intentona majoritária anarquista continuou sendo, ao menos até 1959, o sindicalismo e o movimento operário, onde seus militantes dispensaram numerosas energias (p.182).

Percebemos que as principais referências metodológicas do livro nessa parte são os autores que desenvolvem as concepções de cultura política como Serge Berstein, já que é importante, para Rafael Silva, perceber o desenvolvimento do anarquismo dentro de suas próprias referências, da sua família política, suas leituras e dilemas. Já na segunda parte da obra o autor analisa como tais estratégias foram absorvidas e articuladas no movimento operário, em meio aos trabalhadores e, também, aos grupos militantes de outras vertentes ideológicas. Por isso, decide utilizar como referência Edward Palmer Thompson, inspirado nos estudos que mostram as ideologias e práticas como não estanques aos comportamentos de classe.

Seguindo essa tendência, no quarto capítulo, primeiro dessa seção, evidencia-se o importante papel dos jornais e impressos também para disseminar a influência do anarquismo e de seus debates externos com outras correntes políticas, assim como em sua adaptação ao contexto. Nesse sentido, até mesmo a forma de venda ou doação desses periódicos foi importante, como numa banca de jornais em frente ao posto de trabalho da Light.

No quinto capítulo, Silva adentra com mais profundidade as relações e articulações políticas dos anarquistas em âmbito internacional e nacional. Na primeira parte, além de ver suas influências e ligações com a Federação Anarquista Ibérica (FAI) e a Solidariedade Internacional Antifascista (SIA), evidencia-se a recepção dos anarquistas aos imigrantes, principalmente saídos das ditaduras de Franco e Salazar, alguns com experiências na Revolução Espanhola. Esse contato foi essencial para a reformulação de estratégias e táticas e para alavancar o próprio movimento anarquista no país. Após isso, o autor nos mostra os embates no anarquismo com o Partido Comunista Brasileiro, principal força de esquerda do período. A principal crítica dos libertários ao partido se referia exatamente às posições do sindicalismo – os primeiros eram contrários a disputar a estrutura corporativista desses espaços, propondo novos organismos e frentes que respondessem aos interesses dos trabalhadores fora de um ambiente supostamente impregnado pelos mecanismos da classe dominante. O autor discorda da historiografia que viu os trabalhadores e militantes desse período como estagnados, presos à estrutura e aos condicionamentos do período, mas também rebate a corrente que afirma total liberdade e agência dos personagens em torno do sindicalismo do período. Sua posição é a de que os trabalhadores, de fato, negociavam e barganhavam em meio às regras do sindicalismo e da política do período, mas também, por vezes, se sentiam pressionados a essa estrutura e, além de não conseguirem alcançar seus alvos, também decidiam lutar recorrendo a outros instrumentos.

Esse debate se estende ao último capítulo da obra, no qual o autor adentra a inserção social do anarquismo. Na primeira parte, Rafael Silva analisa como as estratégias sindicais dos anarquistas foram recebidas e efetuadas na prática. Os anarquistas conseguiam dialogar com os marxistas críticos do stalinismo e sindicalistas independentes criando o Grupo de Orientação Sindical dos Trabalhadores da Light e deixando uma influência visível no Sindicato dos Trabalhadores Gráficos, também de caráter combativo, convergindo, posteriormente, para a criação do Movimento de Orientação Sindical (MOS). A inserção libertária nesses ambientes garantiu posições nas manifestações importantes no período, como a greve dos 400 mil em 1957. Na última parte da obra, o autor mostra como as ações culturais dos anarquistas eram mediadas entre as culturas de classe dos trabalhadores e dos grupos subalternos, ainda os principais alvos do anarquismo. Nesse sentido, mostra-se a importância de espaços como o Centro de Cultura Social para a formação de novos militantes e de trabalhadores, principalmente informais. Os periódicos também foram importantes para a criação de centros de cultura e estudos, poemas e debates públicos, inserção que se dava muito fortemente entre os estudantes universitários. As táticas educativas e o apoio às ações culturais nesse período foram importantes para garantir um lugar a partir do início da década de 1960, quando os militantes libertários deixavam aos poucos os ambientes estritamente sindicais, interpretando que gastavam muita energia para barrarem o reformismo e a disputa com outras tendências de esquerda. O apoio a outros ambientes, dessa vez discutidos e minimamente organizados nos congressos citados, garantiu a sobrevivência mínima do anarquismo nas décadas posteriores, durante a Ditadura Militar, quando os anarquistas enfrentaram outros dilemas.

Tudo isso torna o livro de Rafael Viana da Silva uma importante contribuição a um período não muito estudado, inclusive entre os próprios anarquistas contemporâneos, que preferem visualizar o anarquismo áureo a se ater em épocas nas quais foi mais difícil implementar e articular suas estratégias. Ainda assim, aprendemos que quando o anarquismo não foi um elemento explosivo, certamente foi um elemento inflamável.

Kauan Willian dos Santos – Doutorando em História Social. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected].

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Trabalhadores exilados: a saga de brasileiros forçados a partir (1964-1985) – CHOTIL (HO)

CHOTIL, Mazé Torquato. Trabalhadores exilados: a saga de brasileiros forçados a partir (1964-1985). Curitiba: Prismas, 2016. 346 p. Resenha de: ROSALEN, Eloisa. A história dos/as trabalhadores/as exilados/as durante a ditadura. História Oral, v. 19, n. 2, p. 207-211, jul./dez. 2016.

Muito já foi falado a respeito do exílio de brasileiros durante a ditadura (1964-1979), como se pode ver nas pesquisas realizadas por Denise Rollemberg publicadas no livro Exílio: entre raízes e radares, em que a autora busca contar o exílio a partir dos ângulos político, histórico, pessoal e emocional percorrendo os mais variados temas, como as vivências, as lutas, os conflitos, o trabalho, os estudos etc. (Rollemberg, 1999). Do mesmo modo, o livro Caminhos cruzados: história e memória dos exílios latino-americanos no século XX, organizado por Samantha V. Quadrat, apresenta discussões importantes a respeito das categorias e aspectos gerais dos/as exilados/as das ditaduras latino-americanas (Quadrat, 2011). Há também as pesquisas que se preocuparam em explicitar o contato das mulheres exiladas com o feminismo, os ambientes de debates feministas (círculos) que emergiram no exterior e a reformulação da esquerda (Abreu, 2010; Back; 2013; Pedro; Wolff, 2007).

Mas uma questão que merecia uma adequada atenção e ainda se encontrava um tanto escondida era a partida, a inserção e o retorno de exilados/as das camadas populares. Como pode ser visto nas obras supracitadas, a grande maioria dos/as exilados/as políticos/as da ditadura eram provenientes das camadas médias que viviam em grandes centros urbanos do país como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Belo Horizonte. No entanto, ao se concentrar somente nos sujeitos das camadas médias, a escrita da história exilar sempre negligenciou as experiências daqueles que não tinham tais condições.

Mazé Torquato Chotil, ao realizar a sua pesquisa de pós-doutorado e publicar a sua produção, com o título Trabalhadores exilados: a saga de brasileiros forçados a partir (1964-1985), tirou da invisibilidade as situações dos sujeitos trabalhadores provenientes das camadas populares que deixaram o Brasil durante o período, muitas vezes em condições muito mais precárias do que os sujeitos estudados até o momento dessa publicação. A autora esclarece que, entre os/as exilados/as, os/as trabalhadores/as estavam em muito menor número que intelectuais e estudantes de classe média; no entanto, mesmo se tratando de uma pequena parte, a análise das trajetórias e o levantamento das vivências dos/as exilados/as trabalhadores/as são de suma importância para uma escrita da história dos sujeitos com esse perfil e dos movimentos sindicais aos quais estavam vinculados.

Ao longo dos três capítulos, Trabalhadores exilados apresenta as várias facetas (com seus aspectos negativos e positivos) vivenciadas por aqueles sujeitos que não possuíam certo capital cultural e econômico. Para a análise, a autora utilizou-se de um vasto levantamento de fontes; entre as principais, entrevistas, livros de memórias (como aqueles do projeto Memórias do exílio1) e listas de banidos. Com esse inventário, foi possível verificar o perfil desses indivíduos, os tipos de exílio que tiveram e as principais características de suas experiências.

Juntamente com a obra resenhada aqui, as pesquisas citadas no início deste texto são devedoras de uma explosão de memórias, escritas no período de exílio ou ao longo dos anos 1980 e 1990. Autobiografias, livros de memórias e entrevistas construídas com base nas teorias e metodologias da história oral se tornaram as principais fontes para as pesquisas acerca do exílio, sobretudo porque possibilitaram perceber como as pessoas que o viveram registraram seu cotidiano, exteriorizaram suas experiências sobre o período e inventaram/construíram a si mesmas.

A partir dessas fontes, Mazé T. Chotil leva em consideração, para a estrutura de sua análise, o antes, o durante e o depois do exílio. Assim, ela pensou de maneira completa o fenômeno social do exílio e as trajetórias dos sujeitos. Dessa forma, no primeiro capítulo a autora caracteriza o perfil dos grupos de exilados/as antes da partida. No segundo capítulo, apresenta o exílio, com os lugares de destino, as inserções, as militâncias, as formações (linguísticas e universitárias), as experiências afetivas etc. O último capítulo se dedica ao retorno e à reintegração desses sujeitos no Brasil, bem como às suas contribuições aos movimentos sindicais.

Ao realizar a sua pesquisa, Mazé T. Chotil produziu um quadro comparativo entre a condição socioeconômica que cada exilado/a tinha ao deixar o Brasil e a que alcançou ao se estabelecer no país de acolhida. Essa dimensão, muito bem levantada pela autora, foi relacionada às dificuldades da viagem, aos lugares de destino, ao trabalho (antes, durante e depois do exílio), à militância política no exterior, ao aprendizado e à formação acadêmica, entre outras questões. Além disso, com o livro é possível visualizar a importância do capital cultural, principalmente no que diz respeito ao conhecimento de uma língua estrangeira, de que os setores médios dispunham e as camadas populares não. Esse último aspecto foi muito relevante para a inserção inicial desses sujeitos nos lugares de destino.

No entanto, o grande mérito do livro encontra-se na análise da articulação e da influência que os exilados tiveram no convívio com organizações sindicais no exterior. Ao levantar essa questão, a autora apresenta o importante papel que teve, para a história do sindicalismo brasileiro, a circulação de ideias e o contato com organizações sindicais de outros países. Ela também aborda a militância que vários desses sujeitos exerceram e suas articulações com as organizações brasileiras desempenhadas durante no exílio. Por isso, além de tirar da invisibilidade os trabalhadores exilados, a autora amplia as discussões sobre o exílio, dando uma nova (e importante) dimensão às experiências vividas no período.

O único demérito que pode ser encontrado nessa pesquisa está ligado a algumas ausências: a primeira delas é a de uma lista completa – como anexo, talvez – dos nomes dos sujeitos que pertenciam ao grupo dos/as exilados/as.

A segunda está relacionada a informações mais detalhadas acerca das fontes das quais foram retiradas certas informações. Muitas vezes, a autora acaba não citando suas fontes, o que deixa lacunas ao/à leitor/a especializado/a que busque extrair de sua pesquisa as informações necessárias para uma investigação futura. Uma dessas situações se dá já no início da obra, quando deixa de explicitar as fontes relacionadas ao projeto Memórias do exílio às quais teve acesso.

Uma ausência pertinente também diz respeito às análises ligadas ao gênero. No segundo capítulo, ao desenhar o perfil dos/as exilados/as, Mazé T. Chotil apresenta uma importante referência: 23% dos “seus” analisados eram mulheres. No entanto, nos capítulos restantes, nos quais analisa principalmente as inserções e as militâncias, a autora esquece-se de relacionar de maneira interseccional o gênero, as camadas populares e as distintas inserções.

Certamente, ser mulher, militante de esquerda e banida era muito diferente de ser homem, militante de esquerda e banido, o que resultou, obviamente, em processos de inserção diferentes. Um exemplo se encontra na omissão de análise sobre a ausência de mulheres narrando suas experiências ligadas ao movimento sindical.

Embora tenham sido sentidas algumas ausências, de um modo geral Mazé T. Chotil realizou um excelente trabalho, abrindo caminho para inúmeras outras pesquisas e questões que ainda precisam ser respondidas a respeito do exílio de trabalhadores/as durante a ditadura brasileira (1964-1985).

Nesse sentido, além de dar visibilidade aos/às trabalhadores/as e de narrar as experiências desses sujeitos, a autora deixa um amplo corpo bibliográfico e documental para os futuros questionamentos que ainda devem emergir sobre a temática.

Referências

ABREU, Maira L. G. de. Feminismo no exílio: o Círculo de Mulheres Brasileiras em Paris e o Grupo Latino-Americano de Mulheres em Paris. 2010. 245 p. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Unicamp, Campinas, SP, 2010.

BACK, Lilian. A Seção Feminina do PCB no exílio: debates entre o comunismo e o feminismo (1974-1979). 214 p. Dissertação (Mestrado em História) – UFSC, Florianópolis, SC, 2013.

PEDRO, Joana Maria; WOLFF, Cristina Scheibe. Nosotras e o Círculo de Mulheres Brasileiras: feminismo tropical em Paris. ArtCultura, Uberlândia, v. 9, n. 14, p. 55-69, jun. 2007.

QUADRAT, Samantha V. (Org.). Caminhos cruzados: história e memória dos exílios latino- -americanos no século XX. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011.

ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. Niterói: Record, 1999.

ROSALEN, Eloisa. Das muitas memórias dos exílios: uma leitura analítica dos livros Memórias do Exílio e Memórias das Mulheres do Exílio. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 28, 2015, Florianópolis. Anais eletrônicos… p. 1-15. Disponível em: <http:// www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1438608862_ARQUIVO_AnpuhNacional EloisaRosalen.pdf>. Acesso em: 24 ago. 2016.

1 O projeto Memórias do exílio resultou nos livros Memórias do exílio e Memórias das mulheres do exílio, que buscavam publicar memórias de sujeitos exilados durante a ditadura brasileira. Trata-se de uma das primeiras coletâneas a trazer memórias dos/as exilados/as. Na primeira obra, de 1978, muitas memórias de homens foram publicadas, o que criou uma insatisfação entre as mulheres exiladas. Nesse sentido, no ano de 1980 (com memórias recolhidas ainda antes da Anistia, em 1979), foi lançado um segundo volume, dedicado somente às mulheres (para dar visibilidade às experiências exilares delas). Além da característica geral de divulgar memórias do exílio, a segunda obra foi organizada pelo Grupo de Mulheres Brasileiras de Lisboa, que tinha conotações feministas (Rosalen, 2015).

Eloisa Rosalen – Mestra em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: eloisa [email protected].

Os Heróis da Pátria: Política Cultural e História do Brasil no Governo Vargas – FRAGA (VH)

FRAGA, André Barbosa. Os Heróis da Pátria: Política Cultural e História do Brasil no Governo Vargas. Curitiba: Editora Prismas, 2015. 269 p. PAIXÃO, Carlos Nássaro. Varia História. Belo Horizonte, v. 32, no. 59, Mai./ Ago. 2016.

Os principais objetivos do livro acima referenciado são identificar, descrever e analisar o processo de constituição de uma política coordenada de Estado, no sentido da construção de um panteão de heróis nacionais durante o primeiro governo Vargas (1930-1945). Esta tinha por objetivo constituir uma gama de exemplos e valores que deveriam formar o cidadão novo, em conformidade com os ideais do regime, a saber, o patriotismo, o nacionalismo, a obediência à ordem e o sacrifício pelo Brasil, bem como: buscar no passado as respostas e as formas de agir em uma dada conjuntura no presente. Isto seria realizado pelos usos políticos do passado e pela construção de uma memória histórica.

O princípio da argumentação busca definir a política estabelecida desde o início do regime Vargas, com a valorização dos diversos símbolos nacionais, tais como o Hino Nacional e a Bandeira, dentro de um processo mais amplo de legitimação e manutenção do governo. Entre os símbolos eleitos pelo regime, o autor analisa especialmente o herói nacional.

Na política de valorização dos heróis, houve um processo de formação de um panteão, a partir de uma série de ações que tinham o intuito de potencializar a formação e o culto de vultos do passado. Estas foram marcadas pelo batismo de logradouros, inauguração de bustos e monumentos em sua homenagem. Foram criados instituições e espaços voltados amplamente para o culto ao passado, como o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 1937, o Museu da Inconfidência (1942), na cidade de Ouro Preto e do Museu Imperial (1940), em Petrópolis.

Além disso, os restos mortais dos inconfidentes foram procurados e trasladados para o Brasil, expostos em várias cidades e, finalmente, instalados no panteão dos inconfidentes, quando da inauguração do Museu da Inconfidência. Todo este processo culminou na construção do próprio Vargas como um herói: aquele que conduziria o Brasil à máxima realização do seu destino.

O processo de construção dos heróis que melhor respondiam aos interesses do regime foi marcado por seleção e hierarquização, além de uma política consertada entre os membros do governo para a valorização de determinados vultos. O autor percebe que esta escolha foi amplamente marcada pelo contexto e, principalmente, pelos valores que se queriam difundir. Durante o período, três figuras foram evidenciadas: Duque de Caxias, Barão do Rio Branco e Tiradentes. Em uma conjuntura marcada por forte discurso anticomunista – potencializado e amplificado desde o movimento comunista de 1935 – e depois, a eclosão da Segunda Guerra Mundial fez com que o governo mobilizasse os discursos em defesa da nação e do patriotismo, e valorizasse os personagens em que se pudesse atribuir os valores militares e diplomáticos de defesa da pátria.

Cada um desses vultos contou com a ação de patrocinadores de seus cultos no âmbito da alta administração governamental, que, por meio de recursos financeiros e simbólicos, mobilizou suas estruturas ministeriais na valorização de suas memórias. Caxias, Rio Branco e Tiradentes, foram “adotados” respectivamente, em uma ação conjunta, por Eurico Gaspar Dutra (Guerra), Oswaldo Aranha (Relações Exteriores) e Gustavo Capanema (Educação e Saúde), três dos ministros mais importantes na conjuntura em questão.

Fechando o ciclo de conformação de uma galeria de heróis nacionais, Fraga analisou duas coleções responsáveis pela biografia de diversos personagens do passado, provenientes de várias áreas, como políticos, militares, literatos, artistas, médicos, engenheiros, entre outros. São elas: “Os nossos grandes mortos”, resultado de uma série de conferências organizadas pelo Ministério da Educação e Saúde e “Vultos. Datas. Realizações”, organizada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). A primeira foi criada no contexto da chamada Intentona Comunista e no processo de endurecimento do regime. A segunda surgiu no momento da entrada do Brasil na guerra ao lado dos aliados e contra o nazi-fascismo. Diante disso, afirma o autor, “os vultos nacionais foram requisitados todo o tempo (…), em contextos políticos os mais diversos, servindo nos planos do governo como uma carta coringa, adaptável a qualquer situação” (p.255).

Para responder aos objetivos propostos, o autor se vale de uma gama variada de documentos, tais como: cartas, livros, decretos, jornais e revistas, discursos, fotografias, monumentos, relatórios, atividades escolares, cartilhas, cédulas, moedas, conferências, peças de teatro e roteiro de filmes, depoimentos, projetos de lei. Toda a pesquisa demonstra a preocupação com o rigor e a solidez do trabalho documental, a partir do qual, ele desenvolve seus argumentos em cotejamento sistemático com as fontes.

O trabalho apresenta um diálogo constante com os debates em torno das discussões da memória, sobre os usos, abusos e manipulações que aqueles que ocupam posições de poder dentro do Estado, fazem do passado no intuito de estabelecer seu domínio no presente. Abre uma possibilidade de valorização das questões simbólicas como fundamentais para o exercício de poder. Dentre tantos trabalhos que abordam as relações do governo Vargas com a manipulação do passado, este livro traz, como inovação temática e interpretativa, a análise da ação consciente e sistematizada do Estado no sentido de utilizar personagens do passado, transformando-os em heróis, para responder demandas conjunturais, difundindo exemplos comportamentais úteis ao status quo.

O livro se insere nos debates historiográficos mais recentes sobre as diversas nuances do regime Vargas. Fraga destaca os diversos processos utilizados pelo Estado no sentido da construção de um aparato simbólico voltado para a construção de uma identidade nacional em consonância com suas diretrizes. A escrita é marcada pelo rigor teóricometodológico, a linguagem é densa e, ao mesmo tempo, envolvente, facultando ao leitor o entendimento daqueles processos.

A leitura é recomendada para estudantes e profissionais de história em todos os níveis que se interessem pelo período em questão, pois lança novas luzes sobre o exercício de poder e de dominação do regime, situado para além da repressão.

Carlos Nássaro Paixão – Programa de Pós-Graduação em Memória Linguagem e Sociedade, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Estrada do Bem Querer Km 04, CP 95, Vitória da Conquista, BA, 45.083-900, Brasil. [email protected].

Como se constrói um santo: a canonização de Tomás de Aquino | Igor Salomão Teixeira (R)

TEIXEIRA Igor Salomao Tendências Historiográficas na Revista Brasileira de História
TEIXEIRA I Como se constroi um santo Tendências Historiográficas na Revista Brasileira de HistóriaIgor Salomão Teixeira | Foto: AracneTV |

O fenômeno de santidade, marcado pela sua complexidade e pelo ânimo que alimenta a espiritualidade cristã ocidental, traz consigo toda a densidade que o comporta no que tange ao seu processo de desenvolvimento. Sendo o santo o expoente máximo, cuja vivência terrena lhe confere o acesso irrestrito ao plano sagrado, seu caráter intercessor o torna um importante elemento mediador entre a instância divina e o fiel.

Pensando-o como construção, isto é, imergindo mais profundamente em seu caráter sócio-cultural de concepção, ele é o produto de um intento individual ou coletivo. Nessa linha de raciocínio, ele segue um sentido de ser, encontrando seu delineamento a partir de determinados interesses. O santo reúne em si uma confluência de elementos característicos que ocupam, na lógica social na qual tem origem, finalidades específicas.

Levando em conta o acima exposto, trabalhar o processo de construção de um santo não se torna um exercício de simples execução, dado as múltiplas dimensões que envolvem seu desenvolvimento. Nesse sentido, Igor Salomão Teixeira encontra em sua empreitada um espinhoso, mas interessante caminho de buscar entender como se deu o processo de canonização de Tomás de Aquino e seus consequentes interessados.

Publicado no ano de 2014, o livro de Teixeira traz como objeto de pesquisa o desenvolvimento do processo de canonização de Tomás de Aquino, levado a cabo no papado de João XXII, bem como os possíveis interessados na santificação do dominicano. Trabalhando com o conceito de tempo de santidade (intervalo compreendido entre a morte da personalidade e sua efetiva canonização, de modo retroativo), o autor analisa comparativamente tais lapsos entre figuras contemporâneas e/ou próximas a Tomás de Aquino, buscando realçar semelhanças e diferenças entre elas e possíveis motivações ao resultado obtido no processo.

Sete questões norteiam o desenvolvimento da proposta: quem seriam os interessados na canonização de Tomás? Qual a santidade de Tomás de Aquino entre os dominicanos? Os interrogados conheceram Tomás de Aquino? Que relação tiveram com o candidato a santo? Qual a atuação do papa João XXII no processo? Ao final, canonizado, que santo é Tomás de Aquino? Como se deu a operação da construção narrativa que resultou na Ystoria? O que a canonização de Tomás de Aquino explica sobre o período e sobre as pessoas envolvidas? Outras tantas questões, de cunho secundário, são apresentadas, servindo de pontos de apoio para progressões mais detalhadas que auxiliam na costura do todo.

Procurando alicerçar seu posicionamento, buscando base no alinhamento ou refutação do que a bibliografia viabiliza ao tema, Teixeira estabelece diálogos com autores, como, por exemplo: Sylvain Piron, Andrea Robiglio, Roberto Wielockx, Isabel Iribarren, André Vauchez, etc. Em relação ao último, seu conceito de santidade seria contestado por Teixeira a partir da reflexão por ele feita tomando por base a noção de tempo de santidade, identificando com isso o que o processo de Tomás de Aquino carregaria de mais singular.

O livro se desenvolve basicamente em três capítulos, sendo cada um deles responsável por uma parte relevante na composição argumentativa do autor. O primeiro, voltado aos Inquéritos efetuados em 1319 e 1321, destaca, entre outros, uma não aproximação de João XXII com os dominicanos, dado sua negativa em iniciar o processo do também dominicano Raimundo de Peñafort, o que poderia indicar um possível favorecimento à Ordem. Nele também é destacada a predileção por um teólogo a um jurista, assim como era Peñafort. O alcance da santidade de Aquino é apresentado como sendo circunscrito ao local de seu sepultamento, assim como também é realçado o fato de as Ordens religiosas não comporem o corpo massivo nas oitivas, sendo os Pregadores inclusive menos numerosos que os cistercienses.

O segundo capítulo é direcionado para a questão da santidade de Tomás de Aquino em relação à Ordem dos dominicanos. Nele, Teixeira conclui que não havia uma unanimidade no que diz respeito ao posicionamento da Ordem em relação a Tomás de Aquino, sendo as variações produto dos diversos momentos experimentados pelos Pregadores. Nesse sentido, ganha ênfase o fato de no contexto da canonização nem todos estarem de acordo com os posicionamentos de Aquino. Em linhas gerais, por mais que o resultado comparativo efetuado entre as hagiografias de Pedro Mártir, Domingos de Gusmão e Tomás de Aquino indicassem um alinhamento deste ao propósito dominicano, assim como os demais, a carência de milagres e o desenvolvimento de um culto na Sicília dariam indícios de uma canonização que excede os interesses dominicanos.

Já no terceiro capítulo, trilhou-se o caminho de trabalhar o reconhecimento papal da santidade de Aquino a partir de aspectos teológicos. Havia, segundo Teixeira, um interesse, por parte do papado, em promover a canonização do dominicano em virtude da disposição existente entre ambos em relação à questões teológicas pontuais que favoreciam João XXII.

As necessidades alimentadas por um contexto turbulento (século XIV), no qual a autoridade papal se via em meio a constantes reviravoltas, fez com que João XXII, ao assumir um trono vacante (desde a morte de Clemente V, em 1314), iniciasse uma série de reformas, o que teria elevado as finanças papais. As diretrizes centralizadoras implementadas por ele, expropriando bens, aumentando taxas, aumentariam ainda mais o patrimônio eclesiástico. Para Teixeira, a canonização de Tomás de Aquino seria motivada dada a posição do teólogo em relação à pobreza radical da Igreja, sendo ele contrária a ela. Tal linha de pensamento, alinhada aos interesses de João XXII, teria feito com que este, buscando legitimação de suas ações, promovesse o processo de reconhecimento da santidade de Aquino.

Em linhas conclusivas, respondendo às questões principais de seu livro, destaca o autor que três seriam os possíveis interessados na canonização de Tomás: os dominicanos, sua família de nobres da região de Nápoles e o Papa João XXII, sendo o último o que de fato a procedera. Em relação à santidade de Aquino junto aos dominicanos, o autor percebe um posicionamento discreto destes no processo de canonização, com certa divergência dentro do grupo acerca das linhas de pensamento tomistas. No que diz respeito ao processo de canonização, poucos foram, dos que participaram do Inquérito, os que tiveram contato com Tomás de Aquino em vida.

A rapidez da canonização de um teólogo e não de um jurista, entre outras posições, desponta como resposta à atuação do papa João XXII no processo. Ao que se relaciona ao santo que é Aquino, bem como à construção narrativa que originou a Ystoria (sua hagiografia, de Guilherme de Tocco), destaca Teixeira que o santo tinha todos os caracteres dos demais santos da “Igreja Católica” (castidade, virgindade, virtuosidade, etc.), sendo a obra elaborada a partir de uma inserção de seu autor, Guilherme de Tocco, na própria narrativa, destacando os elementos que dariam conta de confirmar a santidade em proposta.

No que tange ao que a canonização de Aquino explica sobre o período e as pessoas envolvidas, o autor destaca as tensões existentes entre o papado e as Ordens religiosas, e mesmo entre estas, nos séculos XIII-XIV. Explica que a criação de uma crença e seu devido reconhecimento leva em conta um emaranhado complexo de elementos de ordem política, social, doutrinária, etc. Tais elementos formariam uma conjuntura que favorece os posicionamentos tomados para o desenvolvimento do processo e para a canonização.

O livro de Igor Salomão Teixeira, ao trabalhar os liames que envolveram a canonização de Tomás de Aquino, levando em conta os interesses envolvidos, traz a necessidade de pensar o próprio processo não unicamente como fonte para o estudo da santidade, mas primeiro como peça jurídica dentro de uma lógica que transcende exclusivamente esta questão. Só assim, os interesses envolvidos no reconhecimento da santidade puderam ficar evidentes, dando noção dos intentos que poderiam mover os agentes em tais processos.

Assim, ao trabalharmos com o fenômeno de santidade, seja através do estudo dos inquéritos desenvolvidos, ou das produções hagiográficos em si, entre outros, levando em conta o sentido dado a partir da construção discursiva, a necessidade de considerar as múltiplas dimensões que envolvem a constituição do santo se fará presente. Nesse sentido, pensar a densidade que os estudos hagiográficos, por exemplo, possam conter, considerando-os também como um elemento que compõe a peça jurídica, elevam em importância o teor narrativo que a obra traz consigo, demandando do pesquisador um fôlego a mais para além da pura santificação.

Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira – Mestrando PPGHC-UFRJ/Bolsista Capes. E-mail: [email protected]


TEIXEIRA, Igor Salomão. Como se constrói um santo: a canonização de Tomás de Aquino. Curitiba: Prismas, 2014. Resenha de: OLIVEIRA, Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.15, n.2, p. 229-233, 2015. Acessar publicação original [DR]