Usos do passado, ética e negacionismos/Fronteiras – Revista Catarinense de História/2023

Introdução

A questão dos usos públicos e políticos do passado, a dimensão ética do discurso histórico e a proliferação dos negacionismos históricos são temas que vêm ocupando cada vez mais espaço na agenda de investigação no campo historiográfico contemporâneo. A maior atenção dada a essas temáticas é motivada por fatores diversos e interligados. A digitalização da vida social, que favorece a apropriação episódica de elementos do passado (em detrimento de abordagens mais processuais que caracterizam a historiografia disciplinar), somada ao acirramento das guerras culturais (ROCHA, 2021) que são alimentadas, em larga medida, pela disseminação de narrativas históricas que contestam consensos estabelecidos em nome da defesa de posições político-ideológicas, tem produzido efeitos cada vez mais sensíveis na vida social e política no Brasil e em outros países do globo.

Para introduzir o campo de questões que motivam o presente dossiê temático, propomos neste texto de apresentação algumas considerações sobre como os debates coevos dos usos do passado, ética e negacionismos parecem estar conectados com as recentes mutações no âmbito da experiência social do tempo na contemporaneidade. Com efeito, muitos estudiosos afirmam que desde a segunda metade do século XX tem ocorrido nas sociedades contemporâneas ocidentais e ocidentalizadas um aumento exponencial no interesse pelo passado (HUYSSEN, 2000; SARLO, 2007). Esse fenômeno manifesta-se em iniciativas diversas, tais como: a febre por comemorações públicas, a emergência do paradigma da justiça de transição, elevação do estatuto político e moral do testemunho, o avanço das políticas de patrimonialização, a comercialização da nostalgia, dentre outras práticas. No âmbito acadêmico, o tema da memória consolidou-se em diversas áreas das ciências humanas, e em alguns espaços assistiu-se à consolidação dos memory studies como um campo de pesquisa.

O crescimento da demanda social por passados trouxe novos desafios e questões para o campo historiográfico. Esse processo evidenciou que a historiografia acadêmica não detém o monopólio ou a palavra final sobre a representação social do passado, pois ela se vê pressionada pela concorrência de outras modalidades como a memória, o testemunho e os diversos tipos de usos e abusos públicos do passado, incluindo a variedade de negacionismos históricos. Esse cenário complexo motivou certos deslocamentos teóricos importantes no interior da historiografia profissional, que exploraremos nas páginas seguintes.

Mutações atuais na experiência do tempo e as tensões entre história e memória

Segundo muitos estudiosos, a centralidade que a memória assumiu em muitas sociedades ocidentais e ocidentalizadas diferencia a cultura e a política contemporânea com relação ao privilégio do futuro ditado pelos paradigmas de modernização dominantes desde pelo menos o século XIX. Autores como Andreas Huyssen (2000), por exemplo, destacam que o interesse social pela memória veio na esteira da crise da ideologia do progresso, ensejando uma nova sensibilidade temporal. Para Huyssen, discursos de memória de um novo tipo teriam surgido como consequência das experiências traumáticas que marcaram a história de muitos países ao longo do século XX – as guerras mundiais, os grandes genocídios, as experiências ditatoriais na América Latina, o Apartheid, entre outros.

Essas experiências reforçaram a injunção moral e política do “dever de memória” que, com os seus frequentes usos e abusos (RICOEUR, 2007; TODOROV, 2000) desafiou a ideia de que o passado pode ou deve ser deixado “passar”. A reiteração da lembrança acentua a percepção pública de que o passado havia fincado raízes no presente, ao mesmo tempo que a visão do futuro como progresso universal e necessário perdia grande parte de sua energia social. Essa tensão provocou mutações significativas no âmbito da experiência do tempo na contemporaneidade. Nesse sentido, cabe destacar que a percepção dos “passados que não passam” vai diretamente de encontro ao modo de representação do tempo fundante do discurso historiográfico moderno, pois este último parte do princípio de que o passado de fato “passa”, isto é, se descola e se diferencia do presente pela própria força da passagem do tempo (LORENZ, 2014). Em outros termos, o discurso histórico acadêmico, tal como ele se constitui com a sua institucionalização enquanto disciplina científica autônoma, se fundou em uma representação específica do tempo histórico, a saber, na separação qualitativa entre passado e presente. Nos termos de Marieta de Moraes Ferreira (2018), a historiografia científica se pautou no princípio da visão retrospectiva, que visava assegurar a primazia do historiador no agenciamento do passado ao colocá-lo à distância do presente. Essa visão retrospectiva seria assim um requisito básico da objetividade do historiador.

Importa ressaltar que não se está dizendo que o passado é simplesmente anterior ao presente, mas sim que esses tempos são qualitativamente diferentes entre si. Esse aspecto qualitativo consiste na noção de que o presente se destaca do passado por constituir um horizonte de referências que lhe é próprio e singular, não se confundindo com a singularidade das épocas do passado. Assim, conhecer o passado “tal como ele realmente foi” (Ranke) significa estudá-lo segundo “os seus próprios termos”, sem permitir que os termos do presente orientem indevidamente a interpretação. O veto ao anacronismo e a noção de objetividade fundada na distância temporal estão fundamentados nesse princípio da separação qualitativa entre passado e presente. Esta é a premissa essencial para proceder a uma perspectivação histórica do passado, tal como afirma Enzo Travesso (2012).

Nesse sentido, a própria passagem do tempo se encarregaria de transformar a “memória” em “história”, estabilizando o passado como um tempo ausente e distante do presente e, portanto, passível de um estudo crítico e metódico pautado por critérios de objetividade. As perspectivas que opõem memória e história tomam como um de seus critérios essa diferença temporal, como já ficara expresso em Maurice Halbwachs (1990), para quem o trabalho do historiador entra em cena quando os grupos sociais que sustentam as memórias coletivas desaparecem. Em outra chave de diferenciação, pode-se lembrar da oposição proposta por Hayden White (2014) em seu último livro em vida entre o “passado histórico”, reconstruído pelo critério da separação para com o presente, e os “passados práticos”, isto é, aquele que as pessoas lançam mão no seu cotidiano para fins de orientação prática em uma dada situação presente.

O incremento da percepção dos “passados que não passam” desloca essa representação do tempo que está na base da tradição historiográfica disciplinar. Paralelamente, os discursos centrados na memória ganharam forte impulso no espaço público por justamente se fiarem na afirmação da continuidade e persistência substantiva do passado no presente. Com efeito, não foram raras as vezes em que historiadores e testemunhos vivos dos eventos traumáticos protagonizaram embates profundos, tanto em termos epistemológicos quanto políticos e morais (JOUTARD, 2007; ROUSSO, 2016). Uma tensão de novo tipo se estabelece entre memória e história, o que suscitou reações diversas no campo historiográfico contemporâneo.

Dentre essas reações, pode-se destacar algumas proposições que, em vez de insistir no primado da representação histórica do passado como tempo ausente e distante, propõe abrir a análise histórica para os múltiplos modos pelos quais o passado persiste e circula no presente. Nesse sentido, no lugar de opor história e memória – como em Halbwachs (1990) e também em Pierre Nora (1993) no famoso texto de abertura do projeto sobre os “lugares de memória” – alguns historiadores têm proposto uma perspectiva de análise que atenta para os diferentes modos pelos quais o passado é produzido, referenciado e apropriado no presente. Essa perspectiva põe em evidência a construção dos atores de sua própria identidade e reequaciona as relações entre passado e presente, chamando a atenção para os usos públicos do passado, orientados para fins políticos, ideológicos, comerciais, morais, estéticos e/ou culturais.

Esse debate aponta para o crescente interesse dos historiadores em estudar as práticas simbólicas nas quais os eventos e processos do passado são coletivamente apropriados no presente – não simplesmente para “corrigir” esses discursos e práticas extra-acadêmicos, mas de entender os processos de construção do passado no presente, suas motivações, estratégias e lógicas subjacentes.

Passados presentes e a ética do discurso histórico

Dentre os desdobramentos desse profícuo debate, pode-se apontar para a emergência e consolidação da história do tempo presente, um campo de investigação que coloca em tensionamento justamente a referida separação qualitativa entre passado e presente. Em vez de entender o passado como um tempo ausente e distante, restrito ao ponto de vista do acabado, os historiadores do tempo presente se dedicam a entender as diferentes formas de produção, evocação e circulação dos passados no presente. Daí a centralidade que o campo dedica aos temas da memória, os usos e abusos do passado, bem como o fenômeno dos passados que não passam. Para além de questões estritamente epistemológicas – entendidas como os problemas relativos às condições que tornam o conhecimento histórico possível e seguro – a história do tempo presente coloca também novos desafios de ordem ética para a historiografia, na medida em que o trabalho com o tempo vivido implica considerar a questão da responsabilidade social e política do historiador, em um jogo complexo entre a pesquisa, as demandas sociais de seu tempo e, além disso, a presença de testemunhos vivos.

No cruzamento entre passados presentes e a ética do discurso histórico, cabe destacar dois pontos que importam para este texto de apresentação. O primeiro diz respeito à temática do “passado assombroso”, o qual tem ganhado notoriedade no campo da história do tempo presente e joga luz para as relações complexas entre história, memória e experiências traumáticas. O segundo ponto diz respeito ao problema dos abusos da história no presente, como ilustra a proliferação dos negacionismos históricos.

O problema do passado assombroso revela os limites epistemológicos e éticos da referida separação rígida entre passado e presente. Berber Bevernage (2018) se ocupou dessa temática ao analisar os discursos de perpetradores e vítimas em contextos de justiça de transição, identificando um conflito entre duas representações do tempo histórico. Por um lado, os perpetradores se fiavam na noção de que o passado é um tempo ausente e distante do presente, sendo necessário deixar os mal feitos do passado “para trás” em nome da construção de um futuro diferente. Por outro lado, as vítimas insistiam que o passado de crimes e injustiças persiste e se adere substancialmente no presente, acusando toda forma de fazê-lo “passar para trás” como um desvio político e moral. Para Bevernage, o fato de o discurso histórico moderno se pautar pela ideia de passado como um tempo ausente e distante aproxima-o mais da posição dos perpetradores do que das vítimas. Mais ainda, o discurso histórico moderno apresenta dificuldades em levar a sério o discurso das vítimas e seus representantes, na medida em que ele parte do princípio de que o passado deve “passar” para que possa ser inteligível e dar lugar à construção do novo.

Exemplo marcante dessa tensão é a recusa resoluta das Madres de Plaza de Mayo em apoiar certas políticas de memória planejadas por acadêmicos, como a construção de um monumento aos mortos da ditadura argentina. Essa recusa das Madres chocou parte da comunidade de historiadores por esses terem a intenção de prestar homenagem aos “mortos” do regime militar, mas a posição delas era que seus filhos e netos devem permanecer em seu estatuto de desaparecidos – daí a força ético-política do lema aparición con vida. Em outras palavras, transformar os desaparecidos em “mortos” significaria relegá-los a um passado distante, quando na verdade a política do tempo histórico defendido pelas Madres era de que esse passado não pode se desassociar do presente, mas o “assombra” tal como um espectro que continua a clamar por justiça enquanto os perpetradores continuarem livres e impunes. Esse estatuto espectral do desaparecido confronta diretamente a noção de passado ausente e distante. Caso se assuma este último princípio como a única forma possível de conceber o tempo, não apenas deixamos de perceber a racionalidade temporal complexa e sofisticada das Madres, como também esvaziamos o potencial ético-político dessa relação proposta entre presente e passado.

O exemplo das Madres mostra que a noção de passados assombrosos pode servir como importante veículo de mobilização política na busca por justiça e enfretamento de experiências dolorosas no presente. No entanto, essas experiências podem também resultar em efeitos colaterais, especialmente (mas não exclusivamente) quando esses passados não são conjurados em processos de discussão e visibilidade pública mais ampla. Entre esses efeitos negativos se destaca o fenômeno do negacionismo histórico – conceito popularizado por Henry Rousso no livro Le syndrome de Vichy (1990). Segundo Enzo Traverso (2012), o negacionismo se alimenta principalmente dos passados sensíveis, adentrando a disputa de memórias por meio de releituras da história ideologicamente orientadas. As narrativas negacionistas visam redistribuir o ônus da responsabilidade dos crimes e injustiças do passado, invertendo juízos social e historiograficamente dominantes de modo a converter os opressores em vítimas. Nesse sentido, e em linha com argumentos já apresentados por outras(os) historiadoras(es), a atual proliferação do negacionismo deve ser visto como uma reação contra uma agenda política que postula a necessidade de enfrentar o passado para a promoção da democracia e da justiça no tempo presente.

Atualmente, o surgimento de um cenário midiático-digital global facilitou a ampla disseminação dos negacionismos históricos, cujos efeitos políticos têm se tornando cada vez mais candentes – como é o caso do Brasil hoje, mas que de modo nenhum se trata de um caso isolado. Nesse mesmo passo, o campo historiográfico tem se dedicado a refletir mais detidamente sobre o fenômeno e buscar estratégias para o seu enfrentamento. Uma das posições defende o reforço do compromisso com o rigor e a objetividade da pesquisa, destacando a potência de convencimento da evidência como enargeia – a capacidade de, pela força da palavra, fazer ver uma realidade passada. Um exemplo recente e elucidativo dessa posição foi dado por Carlos Fico. Em abril de 2022, o deputado Eduardo Bolsonaro atacou e debochou da jornalista Miriam Leitão ao publicar no Twitter a frase “ainda com pena da cobra”, em alusão à experiência de tortura sofrida pela jornalista. Diante das reações do público acerca de seu deboche, o filho do ex-presidente da República negou a existência de tortura durante a ditadura militar, afirmando se tratar apenas de alegações da jornalista sem evidências além de sua própria palavra. Como resposta, Fico repassou a Leitão áudios de sessões do Superior Tribunal Militar nos quais os próprios ministros militares manifestam desconforto à prática de tortura perpetrada pelo regime. A jornalista divulgou alguns desses áudios como uma espécie de resposta a Eduardo Bolsonaro, o que provocou uma grande repercussão na opinião pública nacional (ANPUH BRASIL, 2022).

O conceito de enargeia foi mobilizado por Carlo Ginzburg na polêmica com Hayden White acerca do problema do negacionismo do Holocausto. Mas, como mencionamos no parágrafo precedente, existem outras posições teóricas e historiográficas para combater o negacionismo, que, inclusive, veem nas reflexões do historiador estadunidense um grande potencial para o enfrentamento aos negacionismos históricos. É o caso, por exemplo, de Arthur Ávila (2021), que em artigo recente argumentou que as estratégias negacionistas analisadas por ele se baseiam menos na falsificação empírica do que em representações omitidas em nome de uma suposta verdade única e absoluta, embora “sufocada” ou “sequestrada” pela historiografia acadêmica. Nesse sentido, Ávila propôs o conceito de “pluralismo historiográfico” para defender que o melhor antídoto contra os abusos negacionistas do passado consiste em ampliar a pluralidade de narrativas e pontos de vista sobre o passado para contestar as tentativas de fechamento da história em uma narrativa única e absoluta, reforçando assim a historicidade do próprio discurso histórico. Ou seja, o negacionismo seria caracterizado mais pela tentativa de impor um fantasioso uníssono do que por uma inapropriada exploração da pluralidade de perspectivas da historiografia.

Como se vê, os debates sobre o fenômeno político e social do negacionismo e, de maneira mais ampla, dos usos públicos e políticos do passado, envolvem questões complexas e diversas, que podem ser situadas nas fronteiras entre a epistemologia e a ética da história. Ao nos situarmos nessa fronteira, faz-se necessário estar atento à instrumentalização da história pela demanda social e repensar os vínculos entre função do conhecimento e função social da história, especialmente quando se trata da análise de passados sensíveis. Em vez de tentar responder às demandas sociais de maneira irrefletida, caindo em certos abusos ligados ao “dever de memória”, cabe aos historiadores refletir e historicizar os motivos dessas demandas, de modo a fomentar o “direito à história” (ARAUJO, 2017) como um valor democrático fundamental.

Apresentação dos textos

A organização deste dossiê temático é uma iniciativa criada a partir da realização do XIX Encontro Estadual de História da ANPUH-SC, que ocorreu na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) entre os dias 22 e 26 de agosto de 2022. O evento, cujo tema foi o mesmo deste número especial, foi realizado de forma híbrida e contou com o total de 894 inscrições nas suas diferentes modalidades: minicursos, simpósios temáticos, painel de graduandos, painel de professores da educação básica, contrapontos dialógicos, além das conferências de abertura e encerramento.

Para compor este dossiê, contamos com a colaboração de quatro autores(as) convidados(os) que participaram das atividades do evento. A conferência de abertura foi realizada pelo professor Valdei Araujo, atualmente presidente da ANPUH-Brasil, e que publicamos neste número especial com o título Independência, atualismo e negacionismo: como enviar histórias para o futuro. No texto, Araujo analisa a cultura histórica e a historicidade nas conjunturas de 1822 e 2022, demonstrando a permanência de algumas estruturas históricas e historiográficas. A conferência de encerramento foi proferida pela professora Joan Wallach Scott, que aqui publicamos nas versões em inglês e em português. Em sua conferência, intitulada Os usos políticos da história, Scott analisa como o conceito de história tem sido mobilizado e contestado em disputas políticas recentes nos EUA, podendo assumir significados variados.

Os textos do professor Marcus Leonardo Bomfim Martins e da professora Juliana Teixeira Souza consistem na participação de ambos na mesa de Contrapontos dialógicos promovido no evento da ANPUH-SC. Os textos relacionam o tema geral do evento e deste dossiê com o campo do Ensino de História. Em Conhecimento histórico escolar em tempos de negacionismo: dilemas éticos e experiências democráticas, Marcus Martins explora as interpelações ao conhecimento histórico escolar em um contexto nacional de tensionamentos à democracia, tecendo um diálogo interdisciplinar que busca ir além de perspectivas moralistas. Já em Ações afirmativas, negacionismo e doutrinação ideológica: as decorrências políticas e éticas da historiografia escrita e ensinada, Juliana Souza retoma algumas posições públicas de alguns historiadores para fazer uma análise abertamente provocativa, de modo a pensar sobre o lugar da ética no ensino e na pesquisa histórica.

O dossiê temático segue com contribuições advindas de historiadores(as) que enviaram suas contribuições a partir da chamada aberta pela revista Fronteiras. O artigo A questão da verdade na historiografia após a Shoah: negacionismo, revisionismo e narrativismo, de Sabrina Costa Braga, analisa o problema da verdade histórica à luz das discussões historiográficas ocorridas a partir de 1945, um período marcado pela abertura da história para os processos de memória e a ascensão pública do testemunho. A autora estuda os debates sobre o negacionismo e o revisionismo da Shoah, dialogando com a teoria narrativista representada por Hayden White. Este referencial teórico é também um dos protagonistas do estudo de Fernando Gomes Garcia, Representação Histórica e Experiência: (des)continuidade temporal e possibilidade de verdade na narrativa histórica. Mas além da posição narrativista, Garcia contempla também a tradição fenomenológica da teoria da história contemporânea, cotejando os argumentos dessas posições acerca do problema da verdade e da (des)continuidade entre experiência e narração.

O artigo de Cesar Capitanio, José Carlos Radin, Narrativas sobre a morte do vereador Marcelino Chiarello, um ativista de Direitos Humanos, analisa a disputa de narrativas em torno da morte do vereador chapecoense ocorrida em 2011. O texto de Luiz Fernando Soares Pereira aborda uma temática próxima. Disputas e usos de um passado recente: o Caso Araceli entre a memória e o esquecimento no estado do Espírito Santo analisa as disputas de memória em torno do assassinato de uma menina de oito anos de idade, que inspira políticas atuais de enfrentamento aos maus tratos infantis e criação de monumentos em Vitória-ES.

Por fim, o artigo de Victor Barone e Glaydson José da Silva, A Grande Substituição, o colonialismo projetado e os usos do passado: esboço para uma crítica ao caráter paranoico da Nova Direita francesa, estuda a obra A grande substituição de Renaud Camus, representativa da “Nova Direita” francesa e da extrema-direita mundial, a partir de uma perspectiva que cruza História e Psicanálise para entender os usos do passado feitos por esse espectro ideológico na contemporaneidade.

Outros textos

Além dos textos que compõe o referido Dossiê, este número é composto por mais 3 artigos e uma entrevista. O primeiro texto, intitulado Uma década de Pós-graduação: o que a experiência da UFFS evidencia?, de autoria de Joviles Vitório Trevisol e Geomara Balsanello traz um importante estudo sobre a interiorização da Pós-Graduação (PG) no Brasil a partir do estudo de caso da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). A pesquisa foi desenvolvida através de análise documental e da sistematização dos indicadores disponíveis na Plataforma Sucupira. Importantes constatações são lançadas após o estudo, tais como: o tempo médio de titulação (2014-2020) foi de 24,7 meses e a evasão anual (2013-2020) foi de 6,45%, os egressos são majoritariamente mulheres (72,1%); brancos (82,4%); com residência nos estados da região Sul (98,8%) e atuação principal em instituições públicas (61,3%). O texto traz dados inovadores e nos permite visualizar a importância da introdução de cursos de Pós-graduação, além das regiões de capitais.

Em As transcrições de Narciso Garay e a construção de uma paisagem musical panamenha no século XX, Samuel Robles analisa a publicação de autoria de Narciso Garay, no Panamá em 1930, que contendo inúmeras transcrições de música tradicional que o autor compilou em cinco anos de viagens pelo território panamenho como parte de um esforço de construção de identidade. No artigo, Robles mostra que os compositores panamenhos Alberto Galimany, Roque Cordero e Eduardo Charpentier participaram de um processo de redefinição desse esforço, citando essas transcrições e criando obras em vários estilos onde recontextualizam a música compilada por Garay. O texto mostra também como as citações desses compositores sob a perspectiva da formação consciente de identidades e do “Panamá imaginado” durante as primeiras décadas da república e a influência que esse repertório exerceu na construção de uma paisagem musical daquele país.

O texto Nova História Política e História Global: reflexões metodológicas para um estudo do trabalhismo, de Joelson Lopes Maciel, traz conexões e comparações entre o trabalhismo brasileiro e o trabalhismo britânico no contexto pós-Segunda Guerra Mundial e assenta-se no campo da Nova História Política. O artigo se preocupa em abordar uma perspectiva transnacional e buscou reflexões e estratégias metodológicas no emergente campo da História Global.

Para encerrar, o número 41 da Fronteiras: Revista Catarinense de História, traz a entrevista conduzida pela Silvia Vitorassi, com título: História pública e divulgação científica na luta do PCESP pela educação democrática. A entrevistada foi Renata Aquino, pesquisadora dedicada ao ensino de história, teoria da história, movimentos conservadores na educação, neoliberalismo e tecnologia. A entrevista é instigante e nos remete a várias reflexões sobre História Pública; Divulgação científica; Pluralidade de ensino e educação democrática.


Referências

ANPUH BRASIL. A banalização da tortura e os áudios do Superior Tribunal Militar. YouTube, 26 de abril de 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=R_WfAYe2sjo. Acesso em: 15 jan. 2023.

ARAUJO, Valdei Lopes de. O direito à história: o(a) historiador(a) como curador(a) de uma experiência histórica socialmente distribuída. In: GUIMARÃES, Géssica; BRUNO, Leonardo; PEREZ, Rodrigo. Conversas sobre o Brasil: ensaios de crítica histórica. Rio de Janeiro: Autografia, 2017, p. 191-216.

AVILA, Arthur Lima de. Qual passado escolher? Uma discussão sobre o negacionismo histórico e o pluralismo historiográfico. Revista Brasileira de História, v. 41, n. 87, p. 161-184, 2021.

BEVERNAGE, Berber. História, memória e violência de Estado: tempo e justiça. Serra, ES: Editora Milfontes / Mariana: SBTHH, 2018.

FERREIRA, Marieta. de Moraes. Notas iniciais sobre a história do tempo presente e a historiografia no Brasil. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 23, p. 80-108, 2018.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990.

HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.

JOUTARD, Phillipe. Reconciliar História e Memória? Escritos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 223-236, 2007.

LORENZ, Chris. Blurred Lines: History, Memory and the Experience of Time. International Journal for History, Culture and Modernity, v. 2, n. 1, p. 43-63, 2014.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, v. 1, p. 7-28, 1993.

RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007.

ROCHA, João Cezar de Castro. Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil pós-político. Goiânia: Editora e Livraria Caminhos, 2021.

ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente e o contemporâneo. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016.

ROUSSO, Henry. Le syndrome de Vichy: de 1944 à nos jours. Paris: Éditions du Seuil, 1990.

SARLO, Beatriz. Tempo passado: Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Cia das Letras, 2007.

TODOROV, Tzvetan. Los abusos de la Memoria. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 2000.

TRAVERSO, Enzo. O passado, modos de usar: história, memória e política. Lisboa: Edições Unipop, 2012.

WHITE, Hayden. The practical past. Evanston: Northwestern University Press, 2014.


Organizadores

Walderez Ramalho – Universidade do Estado de Santa Catarina.

Augusto de Carvalho – Pós- doutorando pela Universidade do Estado de São Paulo.


Referências desta apresentação

RAMALHO, Walderez; CARVALHO, Augusto de; MORETTO, Samira Peruchi. Apresentação. Fronteiras – Revista Catarinense de História, n. 41, p. 4-14, jan./jun. 2023. Acessar publicação original [DR/JF]

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