Viagens e relatos: representações e materialidade nos périplos de latino-americanos pela Europa e Estados Unidos no século XIX | Stella Maris Scatena Franco

Por uma série de motivos, os livros de viagem têm despertado, ao longo do tempo, considerável interesse e conquistado gerações de ávidos leitores, estando como que inscritos na cultura ocidental. É extensa a lista de autores que marcaram época com seus relatos e ainda hoje são objeto da atenção de leitores e estudiosos, tais como Heródoto (séc. V a.C.), Marco Polo (1254-1324), Américo Vespúcio (1454-1512) ou Alexander von Humboldt (1769-1859). De formatos variados e natureza essencialmente híbrida, as obras que contêm relatos dos sucessos e desventuras dos viajantes por povos e culturas estranhos despertaram tamanho interesse basicamente por duas razões – especialmente nos últimos 500 anos: a) primeiramente, tendiam a satisfazer a curiosidade do público leitor europeu a respeito dos outros – fossem eles asiáticos, árabes, africanos ou nativos americanos – em meio à expansão comercial/colonial dos tempos modernos, por vezes afigurando-se como únicas formas de informação em um mundo sem cinema, rádio, televisão ou internet; b) segundo, tendem a abrir – em menor ou maior grau – uma porta para a intimidade do autor/viajante, revelando aspectos da sua subjetividade difíceis de se captar em obras diversas, de cunho ensaístico – e por isso ainda fazem sucesso nos dias atuais, ao lado dos diários pessoais e das autobiografias, propriamente ditas.

É pelo mérito em conseguir nos guiar porta adentro e além na análise dos sujeitosviajantes que lemos com semelhante interesse a obra Viagens e relatos: representações e materialidade nos périplos de latino-americanos pela Europa e Estados Unidos no século XIX, vinda a lume em 2018, pela Editora Intermeios. A autora, Stella Maris Scatena Franco, é professora Livre Docente de História da América Latina Independente do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), atuando igualmente na Pós-Graduação em História Social da mesma universidade. A obra aqui resenhada é fruto direto da sua trajetória na USP, posto que inicialmente fora apresentada como Tese de Livre Docência, em 2017.

Conforme a prefaciadora, professora Mary Anne Junqueira, também da USP, “o livro que agora vem a público evidencia maturidade e autonomia da historiadora na produção de investigação erudita, consciente e sofisticada” (apud FRANCO, 2018, p. 11). Com efeito, Viagens e relatos trouxe incremento no número e diversidade das fontes em comparação com o primeiro livro de Stella Maris Scatena Franco sobre a temática das viagens, Peregrinas de outrora: viajantes latino-americanas no século XIX, de 2008, fruto da sua Tese de Doutorado, defendida na USP três anos antes. Enquanto em Peregrinas foram trabalhados relatos de três viajantes latino-americanas, Viagens e relatos contemplou doze autores, sendo nove homens e três mulheres, selecionados em meio a um universo de dezenas de relatos latino-americanos de viagem à Europa e/ou Estados Unidos no século XIX, levantados ao longo de anos de pesquisa.2

Ainda segundo Mary Anne Junqueira, “o grande mérito do trabalho foi reunir duas temáticas importantes que os relatos de viagens do passado ensejam e que nem sempre andam juntas nas investigações acadêmicas” (apud FRANCO, 2018, p. 10). Nas palavras da própria professora Scatena Franco (2018, p. 22), a proposta foi “aliar a análise da materialidade das viagens à das representações e discursos produzidos pelos viajantes, entendendo que estas fontes são especialmente ricas para a abordagem de ambos os âmbitos”. Efetivamente, os relatos de viagem têm sido fontes valorizadas pela historiografia, particularmente a brasileira, que privilegiou as obras de europeus – via de regra homens imbuídos da cultura imperial eurocêntrica – como fonte para a reflexão acerca de paisagens urbanas/rurais, hábitos, costumes e hierarquias sociais do Brasil imperial. Stella Maris Scatena Franco, em Viagens e relatos, percorreu novamente caminho inverso ao ter como enfoque os “relatos na contramão”, como definiu os relatos da lavra de autores (e autoras) que da América Latina partiram rumo às zonas tidas como centrais no mundo ocidental, Europa e Estados Unidos.

Sendo o livro dividido em quatro capítulos, logo no primeiro, “Das viagens, dos relatos e da arte de narrar”, Scatena Franco apresenta os critérios envolvidos na seleção dos relatos que compuseram o corpus documental primordial da obra, bem como promove sua divisão em grupos tendo como referencial a motivação das viagens. Das doze viagens relatadas, seis foram motivadas pela execução de missões oficiais governamentais, duas foram realizadas por motivações particulares/familiares, outras duas por motivos comerciais/financeiros, e mais uma para fins de estudo e outra para exercício da atividade de correspondente de periódico. É nessa seção do livro que a autora apresenta breves resumos biográficos dos viajantes e contextualiza suas viagens, algo salutar para a inteligibilidade do restante do livro por parte do leitor.

Sempre atenta ao embasamento de suas opções teórico-metodológicas, Scatena Franco manejou vasta bibliografia, esclarecendo para o público alguns debates pertinentes às questões que discute, como por exemplo quanto à natureza da fonte/objeto de pesquisa que trabalha:

Considero absolutamente pertinente afirmar que os relatos de viagem pertencem a uma categoria de produção textual híbrida, que esses textos possuem um caráter representacional importante para se compreender o passado, e que informam tanto sobre as percepções particulares dos autores quanto sobre as sociedades nas quais estavam inscritos. (FRANCO, 2018, p. 46).

Quanto à materialidade dos próprios relatos em si, a autora empreendeu em Viagens e relatos análises quanto aos distintos formatos – diários, cartas ou relatos de impressões –, bem como acerca do contexto de produção e veiculação destas fontes. Não somente no primeiro capítulo, mas ao longo de todo o livro, busca estabelecer os nexos, as possíveis leituras intertextuais entre os relatos, trazendo mesmo diálogos entre autores e seus leitores, como no caso do argentino Domingo F. Sarmiento (1811-1888), que ao publicar suas impressões de viagem de forma epistolar em periódico, deu-se ao trabalho de rebater as críticas recebidas do público.

No segundo capítulo, “Dimensões materiais das viagens”, Scatena Franco trata de desfazer a aura de glamour na qual as viagens ao exterior estavam revestidas:

As imagens que revestem apenas de glórias e requintes as viagens ao “centro” são quase sempre fantasiosas. Os registros deixados pelos viajantes que embarcavam nesses périplos dão conta das múltiplas demandas envolvidas para que as viagens acontecessem tal como sonhado e das inúmeras dificuldades enfrentadas, não só na travessia, mas também nos lugares de destino. (FRANCO, 2018, p. 99).

Para satisfação daqueles que apreciam/estudam os livros de viagem, nesse capítulo a faceta mais humana dos viajantes – e de nós, leitores – vem à tona. Como não se compadecer com as desventuras vivenciadas pelos viajantes, e examinadas pela autora? Para qualquer um que já viajou a um destino turístico famoso, impossível não se identificar com os constrangimentos impostos pela indústria do turismo de massa, algo que já era experimentado de forma embrionária desde o século XIX.

Sem recorrer à construção de uma “galeria de curiosidades” na análise das condições materiais das viagens, Scatena Franco reconstitui os expedientes – mais ou menos comuns – envolvidos em viagens ao exterior. Quanto aos preparativos, contextualiza a obtenção de cartas de recomendação por parte dos viajantes para boa acolhida nos círculos intelectuais europeus/norte-americanos e sua eficácia. Nas travessias transoceânicas, destaque dado às doenças, aos (des)confortos e às transformações tecnológicas ao longo do século XIX, da navegação à vela ao navio a vapor. Na chegada aos destinos estrangeiros, questões envolvendo martírios com a burocracia nas alfândegas, problemas com o domínio dos idiomas, com adequação ao vestuário ou à culinária locais são ressaltados. A atenção também recai sobre a infraestrutura turística existente e os impactos da tecnologia na realização das viagens terrestres, como diligências e principalmente a expansão da malha ferroviária. Buscando evitar “uma história linear dos suportes utilizados”, o propósito da autora foi “entender como a presença dessas condições afetava as viagens e tocava os viajantes, que pertenciam a um grupo relativamente homogêneo, mas nem por isso composto por pessoas de idêntica condição social” (FRANCO, 2018, p. 101).

O terceiro capítulo, “Viagens e identidades: Europa, América Latina e Estados Unidos”, trata das formulações identitárias e suas representações em meio ao contexto de contato dos latino-americanos com as civilizações europeia e/ou estadunidense oitocentistas. Conforme a autora, “Viajar para o ‘centro’ e sentir-se parte de um idealizado mundo civilizado, culto, organizado e racional era a expectativa de homens e mulheres da América Latina no século XIX” (FRANCO, 2018, p. 169). Interessante notar a conformação identitária dos viajantes, que tendia inicialmente a dar vazão à dicotomia civilização/progresso (Europa/EUA) versus atraso/barbárie (América Latina). Nesse processo, segundo Scatena Franco (2018, p.188), operava uma “lógica das ausências”, visando apontar a defasagem civilizacional latino-americana: “Nessa formulação, quando as regiões centrais eram descritas, marcavam-se as presenças, ocorrendo o contrário quando a América Latina era o foco da descrição”. Não obstante, demonstra que a experiência no exterior por vezes levava a um sentimento de alteridade, fosse pelo estranhamento cultural ou pelo desprezo europeu pelos latino-americanos, o que fomentava um rechaço aos referenciais “centrais”, corroborando o sentimento de pertencimento nacional às suas pátrias de origem. De qualquer sorte, ainda conforme a autora, prevaleciam nos relatos as convenções que perpetuavam a idealização da Europa enquanto locus da história, berço da civilização ocidental, reproduzindo a lógica da cultura imperial. Quanto aos EUA, vemos que em fins do século XIX já eram tidos por muitos como tendo um patamar civilizatório comparável ao europeu – ao menos no plano do progresso material. Ilustrativa a respeito a afirmação da cubana Aurelia Castillo de González (1842-1920), correspondente de periódico na Exposição de Chicago (1893), que deslumbrada com tantas realizações e inovações norte-americanas, avaliou que “Chicago es una Torre Eiffel” (apud FRANCO, 2018, p. 265). Além do progresso, a condição feminina na sociedade estadunidense, principalmente o “proverbial desembaraço” das solteiras, era tema dos mais presentes nos relatos de latino-americanos sobre os EUA. 3

É no quarto e último capítulo, “Relações de gênero e viagens”, que Scatena Franco reavalia questões postas desde a pesquisa de doutoramento e publicadas em sua obra já citada, Peregrinas de outrora. Investigando três novas viajantes, debate a ambiguidade contida nos relatos femininos, nos quais encontramos tanto a reiteração das normas patriarcais quanto os desafios a tais normas pelo próprio exemplo de viajar e escrever, realizações tidas à época como pertencentes à esfera masculina. Note-se que o caminho inverso, o desempenho de atribuições da esfera feminina por homens, ganha atenção com o exemplo do argentino Florencio Varela (1807-1848), que viajou à Europa acompanhado do filho de onze anos, que ficara aos seus cuidados.

Pelo pouco aqui exposto, ficam evidentes os méritos de Viagens e relatos e sua contribuição para a historiografia dos relatos de viagem. Destaque para a análise do processo de conformação da clivagem identitária entre a América anglo-saxônica e a América Latina anterior aos seus tradicionais marcos – as guerras México-EUA (1846- 1848) e Hispano-Americana (1898). Se outras questões poderiam ter ganho maior relevo, como a condição de exilado de alguns viajantes, por exemplo, a própria autora esclarece ao seu leitor: “Estou certa de que este não é o único caminho a se trilhar, mas apenas uma dentre as inúmeras rotas que podem ser traçadas investigando estes materiais. Foi a que se configurou, ao fim e ao cabo, como a minha viagem” (FRANCO, 2018, p. 39).

Notas

2 Ver FRANCO, Stella Maris Scatena. Peregrinas de outrora: viajantes latino-americanas no século XIX. Florianópolis: Editora Mulheres, 2008. Consultar igualmente banco de dados oriundo do Projeto Quem ao “centro” se encaminha: viajantes latino-americanos no século XIX, desenvolvido no âmbito do Laboratório de Estudos de História das Américas (LEHA/USP), entre 2014 e 2016, disponível em https://leha.fflch.usp.br/juan-baustista-alberdi-argentina-1810-1885 . Acesso em 06 ago. 2018.

3 Segundo o cearense Adolpho Caminha (1867-1897), o “proverbial desembaraço das americanas manifestase a todo instante. Prontas sempre a repelir com dignidade um ataque à sua honestidade, elas se dirigem aos homens em qualquer parte, na rua ou nos salões, com a mesma simplicidade com que o fazem às amigas.” ______. No paiz dos Yankees. Rio de Janeiro: Domingos de Magalhães Editor, 1894, p. 91.


Resenhista

Lucas de Faria Junqueira – Doutorando em História Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Professor Assistente de História da América, Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB). E-mail: [email protected] e [email protected]


Referências desta Resenha

FRANCO, Stella Maris Scatena. Viagens e relatos: representações e materialidade nos périplos de latino-americanos pela Europa e Estados Unidos no século XIX. São Paulo: Intermeios; USP-Programa de Pós-Graduação em História Social, 2018. Resenha de: JUNQUEIRA, Lucas de Faria . “Chicago es una Torre Eiffel”: entre representações e materialidade nos relatos de viagem latino-americanos pela Europa e Estados Unidos no século XIX. Revista Eletrônica da ANPHLAC, v. 20, n. 28, p. 460-466, jan./Jul. 2020. Acessar publicação original [DR[

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