Virada global: tensões, limites e perspectivas / Esboços / 2019

A juventude, abertura e multiplicidade da história global são topoi recorrentes nas apresentações do campo, assim como as ressalvas diante do risco de que se trate apenas de mais uma moda acadêmica. No entanto, a multiplicação dos livros e artigos introdutórios à história global (SACHSENMAIER, 2011; OLSTEIN, 2014; KUNTZ FICKER, 2014; CROSSLEY, 2015; POTTER; SAHA, 2015; MARQUESE; PIMENTA, 2015; CONRAD, 2016; BELICH; DARWIN; FRENZ; WICKHAM, 2016; GARCIA; SOUSA, 2017; SANTOS JÚNIOR; SOCHACZEWSKI, 2017; DRAYTON; MOTADEL, 2018), com suas particulares seleções de autores precursores e modelares, aponta para a consolidação da área em um contexto onde a crítica ao chamado “globalismo” também ganha cada vez mais adeptos, espaço e voz no Brasil e no mundo (BORGER, 2018; VILELA, 2019). Mas afinal, o que é a história global? Seria a boa abordagem histórico-global aquela herdeira de Fernand Braudel (1967) ou a tributária de William McNeill (1991)? Ela se definiria pelas macro ou pelas microanálises? Sua ênfase recairia sobre a comparação, a conexão, o cruzamento ou a integração? Seu objeto seria o globo, a globalização ou as globalizações? Há uma história global ou várias?

Diversas abordagens e modos de se fazer história global convivem e/ou competem pela hegemonia. Assim, ao lado de uma renovada world history, que procura reconfigurar as narrativas da história do mundo todo (CHRISTIAN, 2014; DUNN; MITCHELL; WARD, 2016; KARRAS; MITCHELL; BENTLEY, 2017), os estudos inspirados nas teorias dos sistemas-mundo (WALLERSTEIN; ROJAS; LEMERT, 2015; KORZENIEWICZ, 2017) e do desenvolvimento desigual e combinado (ANIEVAS; MATIN, 2016; ANIEVAS; NIŞANCIOĞLU, 2015) buscam organizar analiticamente as relações entre diferentes estruturas e macrorregiões, a big history, que se propõe integrar a história em contextos espaço-temporais de escala cósmica (CHRISTIAN, 2011; SIMON; BEHMAND; BURKE, 2015), convive com a micro-história global, que demonstra a presença de processos globais em unidades de análise restritas a locais ou mesmo trajetórias individuais (ANDRADE, 2010; SACHSENMAIER, 2018), e com a história conectada, que explora os fluxos e circuitos a partir dos quais dinâmicas são construídas e efetivadas (GRUZINSKI, 2017; SUBRAHMANYAM, 2017), enquanto a história comparada supera as unidades estanques na direção de comparações integradas (POMERANZ, 2000); histórias totalizantes de séculos inteiros (CONRAD; OSTERHAMMEL; IRIYE, 2018; OSTERHAMMEL, 2014) ou de oceanos (ARMITAGE; BASHFORD; SIVASUNDARAM, 2017) convivem com histórias globais do trabalho (HOFMEESTER; LINDEN, 2018) ou da família (MAYNES; WALTNER, 2012). Ao mesmo tempo, os estudos pós-coloniais questionam epistemológica e concretamente a centralidade e/ou o provincianismo da Europa na produção de narrativas e interpretações de alcance planetário (CHAKRABARTY, 2000). As “histórias globais” são múltiplas, seja do ponto de vista dos objetos (a globalização contemporânea, as globalizações ou processos semi- ou subglobais, as redes de integração e a produção de fronteiras, as dialéticas entre o local/global etc), dos diálogos interdisciplinares (com a economia, a antropologia, a sociologia histórica etc) e de suas modalidades (dos diversos métodos comparativos à construção de narrativas singulares ou plurais). Cada abordagem combina-se de modos específicos com outras de acordo com as agendas, trajetórias intelectuais e acadêmicas dos pesquisadores. Categorias compartilhadas, tais como as de “conexão”, “fluxos”, “circuitos”, “integração” e “fronteiras” são reconfiguradas em função de seus múltiplos usos em esquemas interpretativos distintos. O contexto cada vez mais multivocal, marcado pela construção de redes de pesquisa que ultrapassam as fronteiras dos centros globais, em particular com a incorporação de vozes de historiadores do sul global, amplia a tensão acerca do sentido e da pertinência das “histórias globais” na prática historiográfica contemporânea. Trata-se, pois, de uma arena aberta, em disputa e em construção.

Se a consolidação da história global como campo e/ou abordagem, em sua multiplicidade, indica que não se trata apenas de mais uma moda historiográfica entre tantas, surge a questão dos impactos – reais ou potenciais – de seus debates específicos nos demais campos historiográficos, sejam eles definidos por períodos, objetos, fontes ou abordagens. Para seus proponentes mais otimistas, a incorporação de historiadores de diferentes especializações à história global começa a se constituir como uma “virada global” (BALACHANDRAN, 2017; DRAYTON; MOTADEL, 2018; ROMÁN, 2017). Diante disso, pode-se questionar: os debates do campo da história global têm relevância do ponto de vista dos territórios historiográficos tradicionais? A discussão sobre as conexões históricas e os processos de integração e produção de fronteiras ajuda a repensar os objetos consolidados ou, ainda, ajuda a construir novos objetos nos campos tradicionais?

As respostas a essas questões são tão variadas quanto os praticantes da história global. Mais do que realizar um levantamento das múltiplas formulações do que é ou do que deveria ser o campo, é possível analisar o fenômeno de sua consolidação considerando sua juventude: os “historiadores globais” e algumas comunidades em geral se formaram em espaços consolidados da historiografia e encontram na história global uma possibilidade de renovação dos debates e das abordagens habituais. Nesse sentido, a história global é, ao mesmo tempo, um campo no qual se encontram historiadores oriundos de diferentes contextos acadêmicos e portadores de diferentes agendas intelectuais; e uma abordagem com a qual os historiadores repensam suas agendas e contextos de formação. A proposta deste dossiê é discutir a integração da história global com áreas tradicionais, sejam elas definidas em termos de objeto, abordagem ou escopo. As estratégias dos autores do dossiê foram variadas, demonstrando os múltiplos caminhos pelos quais o problema pode ser explorado. Vejamos com mais detalhe.

Rafael de Bivar Marquese, em seu artigo “A história global da escravidão atlântica: balanço e perspectivas”, elabora uma extensa discussão historiográfica das transformações do campo da história da escravidão, em particular nos contextos caribenho, norte-americano e brasileiro, para demonstrar que o diálogo com a história global, longe de se apresentar como uma novidade radical, se dá nos termos da retomada de tradições internas já existentes que ganham força por meio do contato com os debates contemporâneos. Assim, “a história global da escravidão atlântica: balanço e perspectivas” é pensada a partir da recuperação das abordagens comparadas e integradas desenvolvidas em meados do século XX, superando tanto o nacionalismo metodológico que “peculiarizava” as instituições escravistas a cada país, quanto a recusa às análises estruturais em favor de um – segundo o autor – excessivo peso dado à subjetividade dos atores sociais. Favorecendo a leitura da história global como uma abordagem, Marquese sugere a incorporação de diferentes tradições teóricas (a perspectiva do sistema-mundo, a história comparada, o materialismo histórico- -dialético) para a construção de uma história integrada da escravidão como fenômeno total, umbilicalmente ligado ao capitalismo histórico.

Carlos Riojas, em seu artigo “Luces y sombras sobre América Latina en una historia global”, discute os lugares reais e potenciais da América Latina tanto nos principais periódicos quanto em determinadas macronarrativas da história mundial e global. A partir da análise bibliométrica dos números do Journal of World History e do Journal of Global History nos últimos anos, o autor aponta para a periferização da América Latina como tema dos artigos em vista da hegemonia da Europa e da Ásia. Tal periferização é contraposta à grande quantidade de temas e períodos nos quais a América Latina exerce um papel central em processos de escopo global, tanto no plano material quanto na produção e circulação de saberes tais como: a conquista, colonização e crise das narrativas bíblicas nos séculos XVI e XVII, a reorganização do sistema interestatal na economia mundial e nas concepções da natureza nos séculos XVIII e XIX, o impulso na perspectiva terceiro-mundista e a elaboração da teoria da dependência no século XX etc. Como hipótese, o autor sugere que a periferização se mantém em função de uma transição de “encapsulamentos”: das fronteiras das áreas de estudo, base do tão criticado nacionalismo metodológico, a história global passaria ao anglocentrismo linguístico, cuja agenda de poder e saber manteria o caráter periférico da América Latina. O autor conclui o artigo apontando as possibilidades e os caminhos para a construção de histórias que articulem a história latino-americana a fenômenos globais e vice-versa.

Um exemplo de encapsulamento, agora na perspectiva francesa, é oferecido por João Júlio Gomes dos Santos Júnior em seu artigo “A história política na hora da virada transnacional: novas possibilidades de pesquisa”. A estratégia adotada pelo autor foi a de avaliar até que ponto um dos principais nomes da nova história política, Jean-François Sirinelli, dialoga – ou deixa de dialogar – com a história global. Sirinelli, na recuperação do autor, aponta, em artigo de 2011, para o autocentramento da nova história política francesa das últimas décadas: após a reabilitação da história política por meio da multiplicação dos objetos e abordagens, o campo teria se isolado dos desenvolvimentos das demais ciências humanas e limitado excessivamente seu escopo às fronteiras do Estado nação. Com isso, apontava Sirinelli, perdia-se a perspectiva transnacional ou mundial, fundamental para a compreensão dos fenômenos políticos, em particular no contexto do século XXI. No entanto, como aponta João Júlio dos Santos Júnior, Sirinelli apresenta como solução teórica um retorno ao “jogo de escalas” de Jacques Revel: ignorando os múltiplos desenvolvimentos da história mundial, em particular o de sua matriz norte- -americana, e da história global, Sirinelli receitaria o “novo” autocentramento como remédio para o “antigo” autocentramento.

Em síntese, os três artigos do dossiê apresentam a multiplicidade de arranjos construídos pela incorporação da história global nos campos tradicionais e dos campos tradicionais na história global. A história da escravidão atlântica se enriquece no diálogo com a história global, apropriada a partir de estruturas autóctones; a história global periferiza a história da América Latina não mais pelo isolamento metodológico, mas pelo anglocentrismo linguístico e suas agendas; a história política, de matriz francesa, se emparelha com a história global pelo recurso a tradições locais, evitando um entrecruzamento talvez mais transformador. Diferentes campos, variadas combinações. Esperamos, com este dossiê, estimular a reflexão dos pesquisadores e pesquisadoras a respeito dos modos como a história global é apropriada, reforçando seu caráter aberto e essencialmente agonístico.

Referências

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Fábio Augusto Morales –  Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected]  https://orcid.org/0000-0002-9942-5011

Mateus Henrique de Faria Pereira –  Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: [email protected]  https://orcid.org/0000-0001-7489-7365

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