Visões do feminino: a medicina da mulher nos séculos XIX e XX | Ana Paula Vosne Martins

O livro de Ana Paula Vosne Martins despertou minha atenção em função do interesse que tenho mantido na pesquisa da metodologia, da epistemologia e da história da ciência de um modo geral. De forma específica, o livro trata desses temas voltados para o caso de duas especialidades da medicina, tais sejam, a ginecologia e a obstetrícia. Fortemente apoiada em uma metodologia foucaultiana, bem como em uma literatura contemporânea sobre a história cultural do corpo, a Autora discorre sobre o modo como a comunidade científica em geral e a medicina especializada, de modo particular, produziram um vasto arsenal de representações da mulher, que trataram de reduzir a mulher a um corpo problemático, em contrapartida à racionalidade atribuída ao homem.

A História e a Cultura universal têm muitos exemplos de valorização da figura feminina. De Helena, passando por Joana d’Arc, ou por Inês de Castro, até Maria Bonita, muitas foram as mulheres que povoaram o imaginário de histórias e lendas. Em Homero ou em Cervantes, em Luis de Camões ou Emile Zola a mulher aparece sempre com destaque. Lendas, deusas e mitos femininos estão por toda parte e em todos os tempos. Recentemente, na literatura, Dan Brow popularizou, novamente, o mito do sagrado feminino em seu best seller “O Código da Vinci”, que destaca o culto e a defesa de Madalena. Ainda mais forte é a impressão de Lewis Munford, em “A Cidade na História”, que confere à mulher o poder de uma revolução fundamental no processo civilizatório da humanidade. Segundo o Autor, na revolução agrícola, que marca a passagem do homem de nômade para sedentário, antes de todas as histórias escritas (há cerca de 12.000 anos), a mulher teria sido a grande responsável pela descoberta do ciclo de crescimento dos vegetais. A mulher, afeita às tarefas mais lentas, como o cuidado com os recém nascidos, mais do que o homem, veloz caçador e guerreiro, teve tempo para o cultivo de plantas, sendo essa revolução antes uma revolução sexual. É inegável a contribuição feminina em toda a história.

Entretanto, a contribuição feminina quase sempre aparece acompanhada de um olhar preconceituoso. As imagens e representações que são feitas da mulher, em todos os tempos, primam pela valorização de aspectos comportamentais, naturais e culturais que apontam para uma discriminação de gênero. O valor do feminino aparece na beleza do corpo, no erotismo e em tantas outras maneiras que apontam para uma inferioridade de sua natureza. Essas imagens e representações aparecem não apenas no imaginário popular, mas são produzidas e difundidas também pelos meios científicos e pelos padrões sociais dominantes. O corpo feminino ora é louvado, ora é diabolizado, expressando os diferente olhares a que se submete.

A capa do livro de Ana Paula Vosne Martins mostra a pintura impressionista de Paul Cézanne intitulada “O Eterno Feminino” (1875-77). Trata-se de uma alusão direta a uma das visões do feminino mais em voga nas representações dos séculos XIX e XX. A obra retrata a Mulher no centro da cena, como uma figura inerte e contraditoriamente passiva diante da voracidade dos homens que a cercam, identificados por seus símbolos heterogêneos e dinâmicos (pintor, religioso, músico, escritor, etc.). Fica evidente a visão tradicional do artista que representa o gênero feminino como o centro da curiosidade e da admiração quase obscena a que está submetido.

Visões do Feminino é um livro que retrata isto: uma representação da mulher moderna advinda de um discurso científico que representa uma parte da produção histórica de saberes e práticas sobre o corpo feminino. Mostra o processo pelo qual as mulheres foram aprisionadas em seus próprios corpos e a influência da produção médico-científica na construção de uma imagem da mulher cuja identidade foi marcada pela relação com o corpo e a função reprodutiva

GÊNERO, CIÊNCIA E CULTURA.

No primeiro capítulo a Autora analisa o interesse científico pelas diferenças sexuais entre homens e mulheres, que não aparece apenas nas ciências médicas, mas sim, está presente em um contexto mais amplo. Foi justamente este conhecimento sobre a diferença da mulher que passou a fazer parte de uma construção social de gênero que repercutiu na vida das mulheres. Ao analisar o conhecimento produzido ao longo dos séculos XVI e XVII reconhece a enorme carga humanista, pragmática e, sobretudo, cada vez mais racionalista que caracteriza essa produção. Aparece no centro do debate a discussão entre “aristotélicos e copernicianos, entre as visões finitas e hierárquicas do universo e as idéias de movimento, infinitude e leis naturais.” O princípio de natureza dualista, que inspira os cientistas, apresenta outras dicotomias importante na produção do conhecimento científico como natureza/cultura, emoção/razão, corpo/mente, sendo marcado também pela predominância e poder de um dos pares sobre o outro. Nesse contexto as associações de gênero surgem como inevitáveis e explicadoras do domínio do macho sobre a fêmea, do masculino sobre o feminino e do homem sobre a mulher. As associações de gênero, de fato, aparecem nas formulações científicas como elementos justificadores da estrutura ideológica das ciências, e não apenas como um recurso lingüístico.

A questão sexual perseguiu muitos homens da ciência vivamente no século XIX, particularmente os médicos, responsáveis pelo estabelecimento da natureza e da identidade dos indivíduos. Baseados nesta documentação científica começaram a ser elaborados numerosos manuais sobre sexo, amor e casamento. Grandes sucessos editoriais que contribuíram para a educação sexual de homens e mulheres do século XIX. A questão de identidade sexual das pessoas passou a ser determinante, superando o modelo hierárquico de “sexo único” ou “homologias sexuais”, presentes em Aristóteles ou Galeno. Foucault, ao discutir a questão do hermafroditismo, salienta que com as novas teorias acerca da sexualidade já não era mais admitida a existência dos dois sexos no mesmo corpo e nem a possibilidade de escolha do indivíduo por um dos dois sexos. A questão passava agora a ser definida pelo perito, detentor do conhecimento e da autoridade sobre o assunto.

A alteridade feminina começa a ser definida a partir da vasta produção historiográfica relativa à história da mulher e sua sexualidade, objetivando entender, ou moldar, a natureza específica da mulher. A partir dos séculos XVIII e XIX a Autora identifica uma diferença fundamental entre os tratados produzidos a respeito da preocupação em definir a especificidade feminina. A partir daí o conhecimento produzido toma por base critérios muito mais objetivos, como a anatomia, a craniologia e a fisiologia, tornando o conhecimento mais imparcial e objetivo do que o anterior. De qualquer forma, a relação entre fisiologia e patologia ainda era bastante forte para explicar as particularidades femininas como a menstruação e a maternidade, por exemplo. Se a mulher usasse adequadamente seus atributos próprios e particulares tinha uma imagem superior. No entanto, se não controlasse seus desejos e cedesse à sua natureza, facilmente ultrapassaria a fronteira entre a normalidade e a patologia.

Torna-se inegável, na produção científica dos séculos XVIII e XIX que por trás dos discursos que buscavam entender e explicar a diferença feminina havia um procedimento justificador da ordem social, ancorado na naturalização das diferenças humanas.

A CIÊNCIA OBSTÉTRICA.

No capítulo em que analisa a história da ciência obstétrica, ou a história da obstetrícia como uma especialidade da medicina, a Autora discorre sobre a verdadeira luta existente entre parteiras, parturientes e médicos (cirurgiões), pelo menos até o século XVIII. Tida como uma atividade eminentemente feminina, o parto era praticamente vedado aos homens, um verdadeiro assunto entre mulheres, como sugere a etimologia da palavra inglesa para obstetrícia, midwifery, que no inglês antigo significa “entre mulheres” ou “com mulheres”. Para além disso e de uma divisão do trabalho entre homens e mulheres, o parto era desqualificado pelos médicos, como uma atividade inferior.

A crescente atuação dos cirurgiões entre as parturientes se deu pelo crescente estudo da anatomia humana e, no caso específico, pelo interesse crescente no estudo do corpo feminino, marcado também pelo conflito ideológico entre cirurgiões e parteiras. Cada vez mais presentes ao lado das parturientes, os médicos tornaram-se especialistas não só no parto mas também na gravidez, no puerpério, na saúde e na doença dos recém nascidos. Com as crescentes preocupações de natureza social…

A CIÊNCIA DA MULHER.

Mesmo sendo uma especialidade bastante antiga a ginecologia só recebeu o status de uma especialidade médica a partir da segunda metade do século XIX, tendo sido definida como “ciência da mulher”. Assim, ficava definido o perfil de uma categoria de pacientes. Mas, os médicos se juntaram aos ideólogos nesse período e construíram uma imagem da mulher em que ela aparece como instável, graças à organização nervosa do corpo feminino. Qualquer excitação periférica poderia causar um desequilíbrio causador de muitas patologias, inclusive. No início do século XX a ginecologia já era uma especialidade reconhecida e as publicações da área gozavam de prestígio. As antigas práticas acerca do corpo da mulher cederam lugar a um campo do conhecimento sobre o corpo feminino bem mais amplo, definido e estruturado.

A OBSTETRÍCIA E A GINECOLOGIA NO BRASIL.

Até a década de 1870, há que se ressaltar que, tanto o ensino como a prática da obstetrícia e da ginecologia foram muito precários. A Autora traça uma evolução do ensino destas especialidades desde a criação da Escola de Cirurgia da Bahia, após a vinda da família real para o Brasil. É sabido que o ambiente colonial sempre se caracterizou por um acanhado desenvolvimento de sociedades e academias científicas, dificultando o amadurecimento de novos saberes. O texto relata a importância do sistema das enfermarias para o ensino da obstetrícia, onde os estudantes podiam, apesar das fortes resistências de ordem moral, estudar o corpo feminino e saber agir nos casos de partos. De qualquer sorte, o corpo feminino ainda apresentava mistérios, como se depreende dos estudos apresentados pela autora a respeito da patologia da menstruação. Tudo conduz a constatação de que ainda eram comuns as reproduções, sob a denominação de ciências, de representações antigas do corpo feminino.

O MÉDICO DE SENHORAS E A CLÍNICA DE MULHERES.

Inicialmente é bastante evidente o desinteresse à entrada de médicos na cena do parto, o que parece só foi alterado em meio ao século XIX. As publicações e o número de estudos referidos à área a partir de 1850 dão conta de uma sensível diferença. Os casos relatados pela Autora mostram as representações e as práticas da “ciência da mulher”. Superando as dificuldades impostas pela precariedade do ensino e das instituições, havia maior preocupação com a formação acadêmica.

A MULHER NO DISCURSO MÉDICO E INTELECTUAL BRASILEIRO.

A cultura literária e humanista dos médicos brasileiros no século XIX é bastante grande. Será a crença na missão “civilizadora” do homem que levará os médicos a formular um projeto de reorganização da sociedade. A Autora analisa profundamente uma profusão de textos onde se pode perceber as distintas representações da mulher na concepção médica e intelectual brasileira. Na verdade, o que se revela, são relatos masculinos racionais e imaginários sobre o “eterno outro” da cultura ocidental.

Ao concluir, a Autora avalia que as particularidades descobertas na outras espécie humana não poderiam passar despercebidas pelos homens das Luzes. Os filósofos, naturalistas e médicos continuavam a ver a mulher como inferior ao homem, o entanto ganhou notoriedade a partir da sua concepção complementar do homem. Essas conclusões afetariam não só os indivíduos, mas também as instituições e a sociedade. A partir daí a busca por uma finalidade do ser feminino orienta uma série de transformações na construção do saber sobre a mulher. Todos esses produtos dão origem a uma vasta documentação sobre uma criatura: a Mulher. Entretanto, este ser em nada tinha a ver com as mulheres reais e concretas existentes na sociedade. Os estudos sobre a natureza feminina, segundo demonstra a Autora, “conseguem evidenciar como os saberes produzidos pela ciência sexual e pela medicina da mulher têm como motivação a redefinição política das relações de gênero e também a curiosidade gerada pela ansiedade masculina em explicar a mulher”. Segundo Martins, “a questão do enigma e do mistério em relação ao Outro levou à produção de representações alegóricas e poéticas, criadoras de mitos como a mulher inatingível, a musa inspiradora, a mãe amorosa e tantas outras criações da imaginação artística e literária, por exemplo.” Certamente que a partir destas criações se desenvolveram práticas e saberes que muito contribuíram para o efetivo conhecimento do corpo feminino e que foram responsáveis por uma intervenção mais eficaz no tratamento de patologias específicas. No entanto, a advertência da Martins é bastante elucidativa de uma interpretação correta destes fatos. Não podemos ver a questão apenas a partir do desenvolvimento ou progresso da ciência. É necessário analisar a natureza das relações que se estabelecem entre os que produzem o saber e aqueles que são alvoou objeto de tal conhecimento. “Estas relações são, na verdade, políticas, em primeiro lugar, porque se constituem a partir de uma cisão epistemológica fundamental: a escrita prolífica sobre o corpo silencioso, que (…) revela o poder lingüístico dos homens”. Além disto, é preciso salientar que a criatura estudada pelos médicos e cientistas neste contexto, exerce influência sobre a vida e as escolhas das mulheres, definidas, assim, como instáveis, frágeis e delicadas, seja pela natureza de seus órgãos reprodutivos, ou pelos hormônios, ou por outra particularidade feminina. Enfim, as visões do feminino produziram representações significativamente fortes para serem suprimidas abruptamente, perduram ainda hoje.

A AUTORA.

Ana Paula Vosne Martins é professora do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde coordena o Núcleo de Estudos de Gênero da UFPR. A Autora é doutora em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e publicou também o livro “Um lar em terra estranha: a Casa da Estudante universitária de Curitiba e o processo de individualização feminina nas décadas de 1950 e 1960”. Escreveu também diversos artigos sobre o tema em revistas e periódicos especializados.

A EDIÇÃO.

Trata-se de uma obra de boa apresentação, em formato 16 x 23 cm, com 285 páginas. Integra a Coleção História e Saúde, da Editora Fiocruz, pertencente à Fundação Oswaldo Cruz, do Rio de Janeiro. A coleção tem publicado títulos que buscam discutir a história da saúde pública, da medicina e das ciências da vida, sob o enfoque da historiografia contemporânea. O trabalho da Autora teve origem em sua tese de doutoramento junto à Universidade Estadual de Campinas, sob a orientação da Profa. Dra. Leila Mezan Algranti, professora do Departamento de História da Unicamp.

Referências

BRONW, Dan. O código da Vinci. São Paulo: Sextante, 2004.

FOUCAULT, M. Herculine Barbin: O diário de uma hermafrodita. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.

MUNFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

MARTINS, A. P. V. Visões do feminino. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2004, p. 21.

MARTINS, Ana Paula Vosne. Visões do feminino: a medicina da mulher nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2004


Resenhista

Sidney Gonçalves Vieira – Professor Adjunto do Departamento de Geografia e Economia, ICH/UFPel e do Curso de Pós-Graduação em História do Brasil, ICH/UFPel. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

MARTINS, Ana Paula Vosne. Visões do feminino: a medicina da mulher nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2004. Resenha de: VIEIRA, Sidney Gonçalves. História em Revista. Pelotas, v.11, dez. 2005. Acessar publicação original [DR]

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