Entre controvérsia e hegemonia: os transgênicos na Argentina e no Brasil – MOTTA (TES)

MOTTA, Renata. Entre controvérsia e hegemonia: os transgênicos na Argentina e no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2018. 260p. Resenha de: ALMEIDA, Vicente Eduardo Soares de; FRIEDRICH, Karen. Lavouras transgênicas: ciência, liberdades civis e Estado de Direito em risco. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.18, n.1,  2020.

Descortinar os caminhos que explicitam a controvérsia e a construção da hegemonia no contexto da implantação de culturas transgênicas na Argentina e Brasil é o objeto de análise do instigante estudo “Entre controvérsia e Hegemonia: os transgênicos na Argentina e no Brasil” de autoria de Renata Motta. A obra lança mão de instrumentos metodológicos que nos permitem aprofundar ao nível mais explícito possível, evidenciando não apenas seu contexto macro político e social, mas as estratégias adotadas por atores sociais preponderantes nessa trama.

Sob o construto conceitual da bio-hegemonia, a autora disseca o modus operandi de uma renovada aliança das elites ruralistas envolvendo o poder material, institucional e discursivo de grandes corporações, decisores políticos, elites agrárias e especialistas, para os quais a fome é apenas uma “oportunidade” manipulável por grandes corporações da indústria agrobioquímica. Aponta ainda que essa elite busca não só fazer prevalecer sua narrativa mas, especialmente, construir um consenso de que seus interesses na promoção dos organismos geneticamente modificados refletem os interesses da sociedade, embora falsos axiomas como a diminuição do uso de agrotóxicos e o aumento da produtividade agrícola venham sendo refutados em estudos com dados do Brasil e de outros países ( Benbrook, 2016 ; Almeida et al, 2017).

A busca por esse “consenso” passa por estratégias de supressão das liberdades democráticas dos movimentos de resistência, incluindo a criminalização de movimentos sociais camponeses e o silenciamento de cientistas dissidentes.

Neste contexto, a autora nos apresenta uma reflexão de que o sistema político bio-hegemônico não suporta a dissidência nem a existência de pesquisas continuadas sobre os impactos ambientais e na saúde dos Organismos Geneticamente Modificados (OGM). Que a tendência cada vez maior no sentido de cientifização da política e a politização da ciência tem sido alvo de diversos estudiosos sobre controvérsias relativas aos transgênicos, considerando os debates da mídia e as consultas públicas patrocinadas por governos.

Com um caminho teórico que combinou análise macrossociológica com foco no ator social com os níveis meso e macrossociológico, a autora lançou mão de categorias analíticas tais como: 1. Quem são os ativistas (suas bases sociais e organizacionais e suas identidades coletivas); 2. Como os movimentos agem (suas estratégias ou repertórios de ação); 3. Quais significados eles associam aos transgênicos (os problemas encontrados e os enquadramentos discursivos); 4. Quais são os resultados e 5. Quais são as estruturas de oportunidades e as ameaças que enfrentam.

O discurso e a agenda dos movimentos de resistência ao modelo bio-hegemônico, combinaram as temáticas ambientais, direitos humanos e direito a informação, trazendo um novo e fortalecido fronte de batalha com ideias associadas ao “interesse público, participação, transparência e responsabilidade pública, em oposição às práticas descritas como portas fechadas, ilegalidade e percepção de ilegitimidade” (p. 164). No entanto, como demonstra a autora, essa expressiva atuação dos movimentos sociais de resistência aos transgênicos no Brasil, não foi observada na mesma intensidade na Argentina.

Uma contribuição fundamental do livro trata da reflexão sobre as contradições existentes na condução do Estado Brasileiro por governos progressistas e suas decisões no sentido de consolidação dos interesses hegemônicos baseado numa política de conciliação de classes, equivocadamente vista pelos movimentos sociais como uma expressão de um “governo em disputa” (p. 157). As políticas de não enfrentamento de classe no campo agrário e na lógica econômica do assim chamado “agronegócio”, eram seguidas de táticas compensatórias e não estruturantes que, além de permitirem um avanço do modelo hegemônico, lastreavam uma série de programas sociais que “amorteciam” as bases sociais desses movimentos, impedindo-os de “radicalizar” suas pautas de reivindicação.

A formalização da aliança PT/PMDB, ainda no segundo mandato do governo Lula, culminando com a ocupação de vários quadros ruralistas da base do PMDB no governo, foi o sinal dado à sociedade de que as políticas para o modelo de desenvolvimento agrário seguiriam os interesses da chamada “governabilidade”, subordinando os temas ambientais, agrários e até mesmo de direitos humanos, ao crivo dessa aliança. E se, por um lado, o esforço econômico era de reduzir desigualdades por meio de transferência de renda do Estado, por outro, a concentração da terra se manteve intacta, e o poder político e econômico da elite agrária, com o boom dos preços das commodities e o amparo Estatal, foi enormemente ampliado.

O racha na bancada no Partido dos Trabalhadores – PT quanto à liberação dos transgênicos foi um outro golpe profundo na Campanha Por um Brasil Livre de Transgênicos, o que acabou por fragilizar o movimento, além das políticas de cooptação e amortização social.

Assim, a biotecnologia foi, neste período de governos progressistas, a “pedra de toque” para penetração do capital na agricultura, onde a ação negligente sobre a regulação das normas de investigação e monitoramento dos impactos ambientais e à saúde na população contaram mais do que seus alegados atributos tecnológicos, ou mesmo das garantias legais de uma lei de direitos de propriedade intelectual sobre as sementes. E os governos têm sido, via de regra, permissivos ao projeto bio-hegemônico, com o estabelecimento de padrões questionáveis de proteção à saúde e ambiente, alvos de crítica e alerta de cientistas em todo o mundo. No Brasil, a regulação dos transgênicos cabe a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBIO), instância colegiada multidisciplinar, instituída em 2005 pela lei 11.105 de 24 de março. A atuação da Comissão é repleta de fragilidades técnicas e conflitos de interesse como exposto em uma carta denúncia de ex-membro da Comissão ( Torres, 2018 ).

O efeito discursivo e midiático das grandes corporações não foi suficiente para suplantar os obstáculos da resistência à implantação dos transgênicos no Brasil, o que reforçou suas táticas diretas de violência contra ativistas, com assassinatos, perseguições e criminalizações praticados por diversos setores integrantes dessa rede biotecnológica; cassando os direitos civis e políticos de seus adversários. Segundo a autora, o ato de violência contra um ativista defensor dos direitos humanos é um ato exemplar para demonstrar que o ativismo político e a mobilização não serão tolerados. Em sua essência, o livro nos traz a compreensão de que o regime agroalimentar bio-hegemônico é, portanto, um regime politicamente autoritário e repressivo, incapaz de reconhecer dissidências e tolerar o exercício pleno da democracia nas suas dimensões mais fundamentais da dignidade humana como o direito à informação e a alimentação e ao ambiente saudável.

Em tempos de restrição democrática em que vive o Brasil, ainda mais notórios são os interesses que justificam a aliança ruralista no atual governo, por sua natureza fascista e refratária aos direitos civis e ao ativismo social e ambiental. Daí a importância estratégica desse livro que busca, na investigação do tema, apreender a dinâmica dos conflitos existentes de forma tão honesta e profunda, que, claro, não esgotam os esforços de entendimento e superação das limitações da organização social em busca da soberania alimentar e do exercício da cidadania.

Assim, um roteiro categórico sobre a agenda de pesquisas que possam investigar as oportunidades de transformação dessa realidade, a partir do referencial dos movimentos sociais, são elencados pela autora, tais como: 1. A existência de uma democracia participativa; 2. A independência e pluralidade dos meios de comunicação; 3. A efetiva independência de divisão entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; 4. A existência de políticas e ações concretas contra a violência e a criminalização a ativistas e aos pobres do campo e lideranças rurais; 5. Proteção contra o clientelismo e a cooptação política.

Em breve análise desses indicadores, vimos que o conjunto da obra das políticas e decisões do atual governo versam em sentido contrário as oportunidades de transformação citadas acima. A desconstituição do Conselho Nacional de Segurança Alimentar – CONSEA é um dos exemplos mais evidentes dessa política de destruição da democracia participativa, que avança assustadoramente em vários setores da vida política do país. Ou ainda o alinhamento dos meios de comunicação, centralizado e guiado por uma política anti-pluralista e anti-cidadã, focada na cobertura de agendas políticas ditadas pela elite financista e empresarial, como a reforma trabalhista e previdenciária. A desconstrução dos espaços de controle social e as tentativas de negação e revisionismo histórico da política de tortura e perseguição dos dissidentes como ocorrido na ditadura militar, são fatos preocupantes que apontam para uma realidade de reforço do modelo hegemônico. Mas mesmo num contexto tão desfavorável, a conclusão do estudo inspira a necessidade de lutar, pois o direito é resultado de um construto social dinâmico, e não um resultado automático dos marcos legais eventualmente e efemeramente civilizatório. Em suma, mesmo que as controvérsias não resultem em mudanças concretas na correlação de forças, estas são necessárias para a construção de um novo tempo e manter acesa a chama de uma sociedade verdadeiramente justa, democrática e plural.

Referências

ALMEIDA , Vicente E. S. et al . Use of Genetically Modified Crops and Pesticides in Brazil: Growing Hazards . Ciencia e Saúde Coletiva , Rio de Janeiro , v. 22 , n. 10 , out . 2017 . [ Links ]

BENBROOK , Charles M . Trends in glyphosate herbicide use in the United States and globally . Environmental Sciences Europe , v. 28 , n. 3 , p. 1 – 15 , 2016 . [ Links ]

TORRES , Raquel . Carta de Antonio Andrioli sobre CTNBio . Outra Saúde , São Paulo . 22 abr . 2018 . Disponível em: https://outraspalavras.net/outrasaude/carta-de-antonio-andrioli-sobre-ctnbio/ . Acesso em: 21 jul. 2019 . [ Links ]

Vicente Eduardo Soares de Almeida1 Universidade de Brasília , Brasília , DF , Brasil.
Karen Friedrich
2 Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca , Rio de Janeiro , RJ , Brasil. Email: [email protected]

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Biodiversidade e renovação da vida: em questão – BARROS (Ge)

BARROS, Henrique Lins de. Biodiversidade e renovação da vida: em questão. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011. 94p. Resenha de: NEVES, Ana Carolina de Oliveira; MACHADO, Carla Jorge. Sempre haverá renovação? Geografias, Belo Horizonte, v.8, n.1, p.103-106, jan./jun., 2012.

Lançado em 2011, o livro ‘Biodiversidade e renovação da vida: em questão’, editado pela Claro Enigma em parceria com a Editora Fiocruz, é o primeiro volume da nova coleção de ciências da Fiocruz. O autor da obra, Henrique Lins de Barros, possui doutorado em Física e se dedica aos estudos na área de biofísica, história da ciência e museologia.

Na Introdução, o autor tece um panorama geral do que é a ideia de biodiversidade e de como ela surgiu. Da ideia de biodiversidade, passa às noções de diversidade cultural e argumenta que os europeus, colonizadores do Novo Mundo, não souberam se aproximar de outras culturas, pois não haviam aprendido outra relação com o mundo natural que não fosse de exploração para consecução de seus próprios anseios. Nesse eixo temático, dando conta das dificuldades que o colonizador europeu tinha em relação às culturas diversas da sua, o autor desenvolve cada um dos oito capítulos do livro.

O primeiro capítulo “Biodiversidade e Diversidade Cultural: eis a questão”, trata das diferenças que são extremamente necessárias não apenas da perspectiva biológica, mas também no tocantes às relações entre as pessoas. Sem a aceitação de um pelo outro, ou sem a tolerância, não é possível conviver com o diferente. À essa luz, do autor explica que o sentimento do colonizador europeu era de permanente estranhamento em relação à cultura do colonizado. Assim, a devastação ambiental foi simplesmente uma transposição das relações socioespaciais vigentes na Europa de então: se cultura e hábitos dos colonizados não eram compreendidos e, portanto, não eram aceitos, a exploração do ambiente consistiu em desdobramento natural dessa concepção pouco tolerante; concepção essa que fundamentou o extermínio do que não se adequava às pretensões dos europeus.

No segundo capítulo “Espanto, Fascínio e Horror”, o autor discorre sobre a estranheza de portugueses e espanhóis diante das várias culturas – a dos indígenas brasileiros, a incaica, a asteca e a maia. Ao passo que os europeus se pensavam como indivíduos, os colonizados das Américas se pensavam como grupo, acentua ainda o autor nesse capítulo.

“Conhecer para Dominar” é o título do terceiro capítulo que lida com duas questões: a classificação taxonômica das espécies e a compreensão progressiva de que a Terra era mais velha do que supunham os católicos.

Esse capítulo é o mais difícil porque nele há muitas informações distintas, embora unidas por um elo histórico temporal que trata dos avanços dos séculos XVIII e XIX: avanços conducentes ao entendimento de que o que havia na Terra poderia ter desaparecido. Assim, Henrique Lins de Barros inicia o capítulo mencionando que a diversidade encontrada de formas de vida levou o europeu à necessidade de organizar, num sistema de classificação e nomenclatura universal, os seres vivos, de tal forma que fosse possível comparar diferentes observações feitas por diferentes pessoas. O autor descreve, então, o trabalho de Carlos Lineu – o Sistema de Nomenclatura Binomial, que é uma das bases da taxonomia moderna e da biologia – retomando a questão central do livro: a diversidade das espécies em ameaça pelo próprio homem. Os trabalhos do paleontologista Cuvier, que utilizou o sistema de Lineu, mostraram a existência de extinções.

Erasmus Darwin, Lamarck, Smith e Hutton são outros naturalistas que indicaram em seus estudos “que o tempo de existência do planeta é maior do que algumas dezenas de séculos”.

Explicitando a importância crucial dos trabalhos de Darwin e Wallace quanto aos rumos da biologia, o capítulo quarto, “A Evolução por Seleção Natural”, pode ser considerado o eixo central do livro. Wallace e Darwin elaboraram os mecanismos da evolução decorrente da seleção natural em dois pontos cruciais. O número de espécies tende a aumentar e nenhum organismo sobrevive sem interagir com o meio externo são assertivas que substanciam o primeiro ponto. O segundo se refere à noção do tempo, considerada muito longa para que uma nova espécie pudesse surgir na Terra, se comparada à idéia de Deus criava novas espécies num ‘piscar de olhos’. Esses aspectos são importantíssimos, pois trazem a noção de ‘alerta’, que em nossa releitura assumiria a seguinte forma: as espécies precisam do ambiente e, se não puderem ‘contar’ com esse ambiente, podem desaparecer e, com isso, outras espécies podem levar muito tempo (da ordem de milhares a milhões de anos em algumas situações) para surgir.

No capítulo cinco, “A Idade da Terra”, as teorias sobre a idade da Terra são discutidas, e os fundamentos do surgimento da vida na Terra, descritos. A deriva continental e o surgimento de entidades capazes de se replicarem deram origem às informações necessárias para que houvesse vida: os ácidos nucléicos. A discussão do autor leva ao entendimento do ‘que é a vida’: “ela se perpetua, mas não se repete”.

Ainda nesse capítulo, Henrique Lins de Barros pontua o aparecimento de uma nova classe de organismos capazes de realizar fotossíntese, que possibilitou, por sua vez, o surgimento de outros seres.

A história da Terra em seus períodos geológicos, do Pré-Cambriano ao Cretáceo, foi submetida à análise no capítulo seis: “A Vida na Terra”. Os acontecimentos desse período são descritos com ênfase nas grandes extinções dos animais, plantas e fitoplâncton. Segundo o autor, poder-se-ia dizer que “se houvesse inferno, ele estaria se realizando ali“, há 65 milhões de anos, ou seja, no próprio planeta Terra.

“Destruição e Renovação” é o título do sétimo capítulo. Se o capítulo anterior descreve com detalhes a destruição de animais, plantas e fitoplâncton, o capítulo sete surge como um ‘alento’, indicando a crescente diversidade biológica que surgia há 150 milhões de anos desde o aparecimento dos dinossauros até sua extinção. Conforme sugestão do autor, sem a presença dos dinossauros, outros seres conseguiram sobreviver, surgiram os primeiros primatas, com destaque para o Homo sapiens cuja capacidade de adaptação é imensa. Por meio do exemplo elucidativo da ilha de Cracatoa, o autor conclui: “a chave para tamanha capacidade de renovação está na enorme diversidade de formas vivas”.

Henrique Lins de Barros afirma, no capítulo oito, “O Homem na Natureza”, que o aumento da temperatura do planeta, tema comum ao homem moderno, fará com que várias espécies desapareçam; extinção essa produzida pelo próprio homem. O pensar nas gerações futuras impõe ao autor a necessidade de repensar o conceito de indivíduo; assim, a noção de grupo é explicitamente retomada. Se as mudanças são lentas, tudo o que o homem consumista e imediatista teria de fazer hoje seria mudar sua relação com a natureza. Mas não há promessas de curto prazo: os benefícios só seriam sentidos em “uma extensão temporal bem mais larga”. Nesse sentido, o autor termina o livro de forma instigante, fecha um ciclo, ao fazer o leitor retornar ao segundo capítulo e pensar a origem da relação deturpada que temos com a natureza. Enfim, o autor nos traz uma história real, cujo desfecho não será satisfatório, se a forma de compreender o ambiente não for alterada.

Ana Carolina de Oliveira Neves – Doutora em Ecologia, Conservação e Manejo da Vida Silvestre – ICB/UFMG. E-mail: ananeves@biotropicos.org.br.

Carla Jorge Machado – Professora Adjunta do Departamento de Medicina Preventiva e Social da UFMG. E-mail: carlajm@ufmg.br.

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Raça como questão: história, ciência e identidades no Brasil / Marcos Maio

Raça como questão reúne um conjunto de textos que analisam a problemática racial no Brasil, desde o século XIX até os dias atuais. Como os próprios organizadores afirmam na apresentação do livro, “tratam de temas variados e contextos diversos desde os debates sobre as interrelações entre identidade nacional e raça no fim do século XIX até as presentes vinculações de raça com as tecnologias genômicas”.1 Isso nos permite entender o fio temático dos textos, não obstante possam ser lidos isoladamente.

Para Jean-François Véran, no prefácio à obra, “o conceito de raça [é colocado] na interface entre os três domínios nos quais ele vem sendo elaborado historicamente”,2 quer seja o domínio científico, a dimensão política e o plano social. Decerto, o grande valor de Raça como questão não é somente instigar o leitor a participar da discussão sobre o entendimento de “raça” na dinâmica histórica, mas também compreender como esse conceito é formulado nos âmbitos da ciência, da política e do social.

O primeiro capítulo, “Entre a Riqueza Natural, a Pobreza Humana e os Imperativos da Civilização, Inventa-se a Investigação do Povo Brasileiro”, de Jair de Sousa Ramos e Marcos Chor Maio, serve como uma espécie de introdução, pois contextualiza os primórdios da apropriação do conceito europeu de raça pelos intelectuais brasileiros, na segunda metade do século XIX e início do século XX. Esse fato não estava dissociado do que se entendia por civilização, cujo eixo central era a Europa em relação à periférica América Latina.

Nesse período do pensamento ocidental, em que a ideia bipolar do mundo era suficiente para explicar a realidade, havia um projeto de dominação no plano político, ao lado de certo desinteresse em desvendar cientificamente a origem do homem. Nesse sentido, criou-se por parte de escritores europeus a explicação a cerca do “povo” brasileiro, a partir da noção de “natureza exuberante versus raça deficiente”.3

Influenciados pelo pensamento europeu, intelectuais brasileiros tentaram, paradoxalmente, formular uma ideia positiva de civilização brasileira. É com esse ponto de vista que irá se desenvolver a argumentação do primeiro capítulo de Raça como questão. Foi no século XIX que essa ideia ganhou maior expressividade, tendo como apoio teórico “os determinismos climáticos e raciais”, bem como “a ideia de evolução”.4 Tanto o meio físico quanto a raça se tornaram elementos importantes para o cientificismo determinista, que defendia não somente as diferenças entre os povos, mas, sobretudo a hierarquia entre eles. Como informam os autores do texto em apreço:

Assim, a suposta hierarquia racial entre os homens era tomada como expressão de um movimento evolutivo da espécie humana, evolução essa definida pela sobrevivência dos mais aptos e que explicaria o porquê da expansão europeia em todo o globo terrestre e seu domínio sobre outros povos.5

Nesse sentido, Jear de Sousa Ramos e Marcos Chor compreendem que a noção de clima e raça migra do âmbito da ciência para as relações políticas, que, naquela época, reconfiguravam-se a partir do olhar que os europeus tinham, principalmente, sobre a América. A partir daí, criou-se uma imagem pejorativa do Brasil, cuja argumentação principal estava na “população atrasada em termos evolutivos”.6 Entretanto, o texto problematiza a questão, quando põe em evidência os motivos pelos quais as ideias evolucionistas europeias “tiveram ampla aceitação entre intelectuais e políticos latino-americanos”, cuja resposta a essa questão se encontra nas “relações entre centro e periferia desenvolvidas entre Europa e América Latina”.7

Foi durante a Independência do Brasil que “as teorias raciais vão ganhar importância”, devido ao objetivo do país de estabelecer-se como uma nação civilizada, com povo homogêneo. Com a República, encontra-se um espaço mais favorável às teorias deterministas, haja vista que ela “motivou o aparecimento de um novo conjunto de representações sobre a identidade brasileira”.8

Com objetivo de compreender melhor a maneira pela qual os intelectuais brasileiros lidavam com essa questão, os autores discutem o pensamento de três escritores da segunda metade do século XIX e início do século XX, quer seja Sílvio Romero, Raimundo Nina Rodrigues e Euclides da Cunha. Estes intelectuais, embora tenham dialogado com as teorias raciais europeias, interpretaram cada um a seu modo, o Brasil da época como um lócus onde seria possível um avanço social e político, no sentido de nação civilizada.

No segundo capítulo de Raça como questão, intitulado “Raça, Doença e Saúde Pública no Brasil”, propõe-se uma interpretação diferente da que Sidney Chalhoub desenvolve sobre o pensamento higienista do século XIX. Este no capítulo “Febre Amarela”, do livro Cidade febril (1996), defende o ponto de vista que, durante o combate à febre amarela nos séculos XIX e XX, havia uma postura racista e de classe social. Diferentemente, Marcos Chor Maio não concebe determinismo racial, mas uma “continuidade com o ideário neo-hipocrático do século XIX no Brasil”.9

Contextualizando os argumentos históricos de Chalhoub, Marcos Chor mostra-nos que, ao lado da defesa do branqueamento a favor de uma classe privilegiada, havia um conjunto diversificado de ideias que giravam em torno da questão social. Nem todos os intelectuais defendiam a mestiçagem como degenerescência e o branqueamento como a única solução para o progresso do Brasil. Para concluir seu ponto de vista, o autor cita Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freire, em que vê influência do neo-hipocratismo de Cruz Jobim.

Em “Mestiçagem, Degeneração e a Viabilidade de uma Nação”, Ricardo Ventura Santos analisa as investigações feitas por Baptista Lacerda (final do século XIX) e Roquette-Pinto. Ambos, segundo Ventura, posicionam-se favoravelmente à noção de uma mestiçagem não degenerativa. O que importa no debate sobre a questão racial posta em evidência é, sobretudo, a ambientação, o contexto e as condições sociais. O texto de Ricardo Ventura é significativo, pois revela certos intelectuais brasileiros que, não obstante dialogarem com as ideias evolucionistas em voga na época, souberam impor sua autonomia intelectual, numa tentativa de interpretar melhor a nação brasileira. O autor, enfim, desloca a postura bipolar dos fatos para alcançar uma visão mais próxima da complexa realidade.

Continuando o assunto sobre Antropologia no Museu Nacional, o capítulo quatro, de Raça como questão, “Crânios, Corpos e Medidas”, trata de refletir sobre o impacto e a projeção que as pesquisas desenvolvidas no Setor de Antropologia Biológica tiveram no contexto social e histórico brasileiro. A partir de estudos de instrumentos de medição de crânios, percebe-se um conjunto de teorias postas em prática com a finalidade de compreender a moral humana, levando em consideração elementos físicos e biológicos das raças.

Desde a década de 1950, os equipamentos de medição foram transformados em peças do Museu Nacional, mas continuam a representar o pensamento de intelectuais brasileiros que buscaram uma explicação antropológica para a população brasileira, numa certa época e contexto. Decerto, o capítulo em apreço busca despertar o leitor para a dinâmica da interpretação e dos conceitos sobre a realidade histórica.

Outro interessante capítulo é o “Estoque Semita: a presença dos judeus em Casa-Grande & Senzala”, de Marcos Chor Maio. Trata-se de uma releitura da obra de Gilberto Freyre, focalizando a presença “positiva dos judeus ao processo de colonização do Brasil”, em contrapartida com a “ideia que concebe a existência de uma proposta antissemita na obra do sociólogo pernambucano”.10

Com essa interpretação acerca das ideias freyreanas, que relacionam raça e cultura, Marcos Chor redimensiona Casa-Grande & Senzala no debate sobre a questão racial no Brasil. Atribui à referida obra certa importância e novo significado para o pensamento brasileiro, cuja projeção vem se tornando internacional. Observando o diálogo com as ideias de Roquette-Pinto, com a vertente culturalista de Franz Boas e com a perspectiva neolamarckiana, Marcos Chor analisa o avanço de Casa-Grande & Senzala a respeito das questões raciais no Brasil. No cerne dessa análise, está o judeu que contribui para a miscigenação do povo brasileiro. Sem desconsiderar os elementos culturais e ambientais, Gilberto Freyre põe em evidência conceitos chaves para o entendimento sobre os portugueses em “incorporar características de outros povos: adaptação, plasticidade e mobilidade”.11

Em “Cientificismo e Antirracismo no Pós-2ª Guerra Mundial”, Marcos Chor e Ricardo Ventura analisam a Primeira Declaração sobre Raça da Unesco e seus impactos para a comunidade científica, em 1950. A Unesco, com a intenção de resolver a problemática ocasionada pelo genocídio nazista, defendeu uma postura antirracista em tal declaração. Procura, pois, resolver um problema político e social, através da ciência. Por conta dessa abordagem cientificista, a Unesco sofreu severas críticas de biólogos, geneticistas e antropólogos físicos, o que a forçou a organizar um segundo encontro com especialistas. A fragilidade maior do discurso da Unesco, segundo os autores deste artigo, estava na controvérsia sobre o conceito de raça. As considerações acerca da declaração da Unesco são importantes, porque revelam não somente uma tentativa política por intermédio da ciência, mas sobretudo nos mostra que a problemática racial é mais complexa do que se pensava naquele momento.

Em seguida, o sétimo capítulo, cujo título é “Antropologia, Raça e os Dilemas das Identidades na Era da Genômica”, traz a discussão sobre raça, identidade, ciência e política para o contexto do início do século XXI. Constatou-se que, a partir de críticas feitas por grupos diferentes às pesquisas geneticistas realizadas sobre a população de Queixadinha, localidade ao norte de Minas Gerais, a complexa relação entre o conhecimento biológico e as políticas sociais ainda não esta devidamente compreendida. Ricardo Ventura e Marcos Chor, por isso, lançam uma série de questionamentos a fim de problematizar o modo como à construção de identidades culturais é observada tanto pela ciência como por grupos sociais que objetivam um lugar na sociedade.

A construção argumentativa desse capítulo resguarda a mesma imparcialidade e clareza dos textos anteriores de Raça como questão. Apresentam e contextualizam a temática. Depois, relatam o fato e o seu impacto para a sociedade. Finalmente, analisam temas antropológicos numa relação conflituosa com a biologia e a política. No caso do presente capítulo, são aprofundadas as discussões sobre o papel da “nova genética” e as políticas sociais acerca das questões de raça, no contexto atual. Integram esse debate temas como essencialismo, racismo, racialismo e identidade.

“No Fio da Navalha: raça, genética e identidades”, continuam a discussão a respeito das identidades raciais no contexto contemporâneo. Entretanto, o corpus agora se trata de um comercial de testes genéticos na Internet. Compreender até que ponto a biotecnologia e a utilização de testes de DNA interferem nas novas descobertas e quais são os seus impactos sociais e políticos hoje é a preocupação da análise feita pelos autores.

Nesse capítulo, depreende-se da conclusão dos autores o importante papel mediador da biotecnologia em “situações [que] nos falam de encontros, tensões e distanciamentos de pessoas consigo mesmas e com outras de seu entorno”,12 ou seja, as pessoas buscam se entender a partir de certa identidade, que se evidencia não só pelas semelhanças, mas também pelas diferenças. Isso fica percebido tanto no apelo comercial do site da empresa como na procura significativa de pessoas pelo serviço oferecido: o teste de ancestralidade genômica. Os resultados desse exame são, segundo os autores, “racializados e etnicizados, tendo como pano de fundo dinâmicas identitárias particulares”,13 bem como culturais e políticas.

No capítulo nove, “A Cor dos Ossos”, Verlan Valle Gaspar Neto e Ricardo Ventura Santos apresentam um texto repleto de reflexões em torno de “Luzia”, crânio de uma mulher achado em Minas Gerais, com mais ou menos 11.500 anos. Os discursos e representações criados sobre essa peça pré-histórica revelam, a partir de apropriações das descobertas científicas, toda uma questão sócio-histórica e política. Os autores, para comprovar seu ponto de vista, lançam mão de quatro exemplos que veicularam na imprensa, em livros didáticos e na Internet. Analisando-os, observaram neles a tentativa de ressignificação do conceito de racialização, para uma nova configuração no plano social e político.

Em volta da reconstituição subjetiva da face de Luzia, feita com argila por cientistas ingleses, cria-se no Brasil um complexo simbólico, de acordo com o texto em apreço. Na verdade, Gaspar Neto e Ricardo Ventura nos chamam atenção para a relatividade e a apropriação dos conceitos, à medida que a dinâmica histórica nos descortina um novo contexto.

No capítulo “Política de Cotas Raciais, os ‘Olhos da Sociedade’ e os Usos da Antropologia”, Marcos Chor e Ricardo Ventura discutem e analisam o significado de um evento de expansão das políticas públicas de teor racial. Trata-se da vinculação do sistema de cotas raciais para o vestibular na Universidade de Brasília. Nesse evento, segundo os autores, há relação entre história, antropologia e problemas contemporâneos. Logo na introdução, o texto adverte sobre o modo como a UnB procedeu no processo de seleção para pessoas negras. O critério utilizado se assemelhou às práticas comuns entre o final do século XIX e o começo do século XX. As ferramentas podem ser outras, mas a essência é a mesma: a identificação de “negros com base em características físicas como a cor da pele, textura do cabelo e formato do nariz”.14

Justamente por ter o objetivo de retratar uma injustiça histórica e social com os afrodescendentes brasileiros, a maneira como foi conduzido o processo de cotas na UnB revela-se contraditório. Para fundamentar, portanto, a análise a esse respeito, Marcos Chor e Ricardo Ventura afirmam que “é necessário historiar a atuação dos diversos agentes e agências (…) envolvidos nesse processo”.15 Não se trata, entretanto, apenas de relatar a contradição abrupta entre o programa político-social e os procedimentos usados no processo seletivo. O importante, nesse sentido, é compreender de que forma a política de cotas raciais para o ingresso no ensino superior irá impactar na discussão mais ampla e na efetivação de políticas de ação afirmativa, no contexto atual do Brasil. Esse fato, concluem nossos autores, possibilitou uma forte tensão no seio da antropologia contemporânea.

Finalmente, no último capítulo de Raça como questão, “Política Social com Recorte Racial no Brasil”, Marcos Chor Maio e Simone Monteiro analisam a relação entre raça e saúde. Para tanto, abordam o modo como estão sendo implementadas as medidas do Sistema Único de Saúde (SUS) especificamente para pessoas consideradas “negras”. A partir da contextualização e discussão desse processo, que vem sendo colocado em prática desde o final de 1990, o texto mostra que raça representa tanto um mecanismo para evidenciar as desigualdades sociais, como também “um instrumento político de superação das iniquidades históricas existentes no Brasil”.16

Devidamente contextualizada, a temática se desenvolve de maneira a suscitar no leitor uma reflexão sobre o papel positivo dessas ações racializadas no setor da saúde pública no Brasil. Depois da leitura dos capítulos anteriores, compreende-se melhor que o significado da política de saúde para a população negra é apenas mais uma estratégia de política pública, cuja finalidade é a afirmação social. Entretanto, a forma como se operacionalizam as ações é equivocada. Isso se deve ao fato “da existência de concepções variadas sobre o passado e o presente da nação, assim como de distintas visões sobre a identidade cultural do país”.17 Apesar de os autores não negarem, na conclusão, que a reforma da Saúde significa um avanço importante para “segmentos com expressiva presença de negros”,18 advertem-nos que é preciso pensar sobre as consequências de um processo cujas categorias são conceitualizadas pelos próprios opressores.

Ao concluir os onze capítulos que integram o livro Raça como questão, o leitor atento depreende, entre outras coisas, a preocupação dos autores em refletir e compreender o processo histórico que envolve o entendimento de raça, sobretudo, por partes setoriais da sociedade brasileira, tais como intelectuais, mídia, ONGs, programas governamentais, desde o final do século XIX até a atualidade. Percebe-se, também, que há, no conjunto dos textos, o diálogo com as dimensões da realidade histórica: a economia, a política, o cotidiano, o cultural e o biológico, entre outros. Esses elementos fortalecem o argumento analítico que dá sustentação teórica ao livro, sem cair em abstrações universalistas.

Portanto, Raça como questão trata de trabalhar em torno de categorias históricas tais como identidade cultural, raça, mestiçagem, políticas públicas no Brasil, e seus impactos representativos para a sociedade. Os autores abordam essas categorias não de maneira isoladas ou estagnadas, mas buscam observá-las em suas historicidades e em suas temporalidades.

Notas

1 MAIO, Marcos Chor (org.). Raça como questão: história, ciência e identidades no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2010, p. 22.

2 Idem, p. 9.

3 Idem, p. 27.

4 Idem, p. 28.

5 Idem, p. 30.

6 Idem, p. 31.

7 Idem, p. 33.

8 Idem, p. 34.

9 Idem, p. 55.

10 Idem, p. 130.

11 Idem, p. 135.

12 Idem, p. 200.

13 Idem, p. 213.

14 Idem, p. 255.

15 Idem, p. 257.

16 Idem, p. 287.

17 Idem, p. 288.

18 Idem, p. 310.

José Wellington Dias Soares – Professor assistente do curso de letras da FECLESC/UECE e doutorando em história pela UFMG. [email protected]


MAIO, Marcos Chor (org.). Raça como questão: história, ciência e identidades no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2010. Resenha de: SOARES, José Wellington Dias. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.19, p.84-91, ago./dez., 2011. Acessar publicação original. [IF].

Antropologia Brasiliana: Ciência e Educação na obra de Edgard Roquette-Pinto – LIMA (RIHGB)

LIMA, Nísia Trindade; SÁ, Dominichi Miranda de (Orgs). Antropologia Brasiliana: Ciência e Educação na obra de Edgard Roquette-Pinto.Nísia Belo Horizonte, UFMG e Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 2008. Resenha de RIOS: José Arthur. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, a. 171 (447) p.291-298, abr./jun. 2010.R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 171 (447) p.291-298, abr./jun 2010.

O título do livro deriva da expressão cunhada por Edgard Roquette-Pinto, tema principal dessa coletânea de ensaios. As organizadoras, téc­nicas e professoras da Casa de Oswaldo Cruz, uma, socióloga (Nísia), outra, historiadora (Dominichi), ambas se completam na interpretação e na análise documental dos dados e informações colhidos em obras, cor­respondências e arquivos, sobre essa curiosa figura de sábio e pioneiro.

Robert Wegner assina erudito Prefácio completado por uma Apre­sentação das organizadoras que associam a trajetória intelectual de Ro­quette-Pinto à própria história da República na primeira metade do século XX e, mais que isso, à historia das ideias e do pensamento científico naquelas décadas.

Valiosa a transcrição de uma palestra de Roquette sobre “Ciência e Cientistas do Brasil”, proferida em 1939, onde nos dá, com a autoridade de protagonista, o estado da questão, uma visão panorâmica dos avan­ços e atrasos das ciências físico-naturais no Brasil da época. Duas ideias transparecem (Dominichi) nesse texto: – a influência do Positivismo e a preocupação dominante na legitimação da ciência, sobretudo de uma “ciência pura” face a uma “ciência aplicada”.

Na mesma perspectiva interpretativa, Alberto Venâncio Filho analisa a obra de Roquette-Pinto como expressão de humanismo, assinalando a importância da formação positivista, bebida desde tempos escolares, na gênese do pensamento do autor de Rondônia; bem como sua tentativa de conciliar ciência e técnica com as melhores fontes do humanismo do século XIX, sobretudo com a obra de Goethe, de declarada influência na obra de Roquette.

Central, no livro, o ensaio de Nísia Trindade Lima situando o cien­tista na sua geração, no papel renovador e contestatário que esta desem­penhou face à sociedade patriarcal e à cultura que produziu, baseada na inteligentsia bacharelesca, na aversão das elites ao trabalho manual e na retórica romântica.  Nessa perspectiva – do amplo processo de desagregação do regime escravista e da sociedade patriarcal, e a demorada extinção de suas mar­cas – as autoras situam a obra de Roquette. Seria esta mais um capítulo na busca de identidade do povo brasileiro. Escreve em momento de tran­sição social e cultural em que antigas categorias explicativas como “raça” e “mestiçagem” vão cedendo lugar a traços culturais persistentes como analfabetismo, doença e atraso. Tudo isso se prende à ascendência das camadas médias urbanas na sociedade brasileira, ansiosas por abraçar, na nova República, uma ideologia justificadora. Nesse cenário avulta o papel inspirador – e formatizador – do que João Cruz Costa chamou “po­sitivismo difuso”, de remota, mas certa raiz na doutrina de Comte.  Esse Positivismo sui generis é tema do ensaio de Luiz Otávio Fer­reira (“Ethos positivista e a institucionalização das ciências no Brazil”) onde salienta a função do arcabouço institucional então criado, institutos, centros de pesquisas e laboratórios, sem o que as ideias renovadoras dessa nova geração careceriam de uma caixa de ressonância. Como demonstra o autor, mediatizaram essas instituições as inovações intelectuais trazidas pelos cientistas, articulando sua atividade com um sistema de ensino su­perior, criando campo de prova para as primeiras reformas universitárias. Sob esse aspecto, a obra de Fernando de Azevedo, companheiro de gera­ção de Roquette-Pinto, é bastante característica dessas vocações. Nesses avanços científicos, – caruncho no tronco – brota o cientificismo, no qual capitulam os melhores espíritos – Alberto Torres, Oliveira Vianna, Eucli­des, que pagaram preço alto à pseudociência dos tempos.

Essa institucionalização se prende a amplo projeto nacional. É o grande tema de Rondônia, como evidenciam, em outro ensaio, a mãos juntas, Nísia Trindade Lima, Ricardo Ventura Santos e Carlos E. A Coim­bra Junior. A obra de Roquette resultou de um projeto caro à nova Re­pública – a expedição Rondon e a implantação das linhas telegráficas no extremo Oeste. Graças a Rondon, a ciência não se legitimava apenas pe­las elocubrações e descobertas de gabinete, mas por propiciar a extensão do Estado às regiões inóspitas, aos “sertões” do Brasil; e a incorporação das populações indígenas à proteção paternalista do Governo. O “sertão” é assim anexado à cultura urbana e o sertanejo – o homem forte, mas abandonado, de Euclides, – é agora associado à obra coletiva da criação nacional. Em Rondônia, como os autores vêm a obra mestra de Roquette, ocorre a transição da antropologia física de Broca, Bertillon e outros – a antropologia das medidas antropométricas – para uma redefinição do “primitivo” que só poderá se processar em termos culturais.

Ricardo Ventura Santos aborda o mesmo tema sob o ângulo da mes­tiçagem, objeto de acalorados, às vezes transviados, debates na sociologia e na medicina da época e que levaram Roquette, admirador de Euclides, a separar-se, nesse ponto, do cientificismo do autor dos Sertões. Na discus­são o autor exalta, com acerto, a importância da componente nacionalista que vai dominar a polêmica nos anos 20 e 30.

É justamente o momento em que o debate passa do domínio cientifico – ou cientificista – para o campo político e avulta, no cenário internacional do após Primeira Guerra, – cortado de redefinições de fronteiras e movi­mentação de povos, – o problema das migrações. É este objeto do denso, pesquisado e fundamentado ensaio de Giralda Seyferth (“Roquette-Pinto e o debate sobre raça e imigração no Brasil”). Demonstra os obstáculos ideológicos que atravancavam o caminho para uma solução racional e despreconceituosa do problema. Ditadas por uma teorização equivocada e lacunosa, surgem, no cenário brasileiro, propostas que, hoje, nos fazem rir, assinadas por figuras respeitáveis, alguns médicos, de renome.

Típica é a reação de muitos à imigração japonesa, tida como ameaça à nossa pureza racial, a ponto de merecer a denúncia de “perigo amarelo”. Assim também a repulsa à mera possibilidade de uma imigração chinesa acalentada por alguns líderes desde o tempo do Império, como substitu­ta no latifúndio cafeeiro, à escravidão africana – e até considerada nos anos 30 “repugnante”. Obedece aos mesmos preconceitos a sugestão de adoção do sistema de quotas, cópia do modelo americano. Essas ideias, como verifica a autora, resultaram em políticas, ditaram critérios restriti­vos quando não proibitivos, contra correntes imigratórias que nos teriam trazido, como algumas de fato trouxeram, progresso social, tecnologia e prosperidade. Eram todas sustentadas em nome da pureza da raça, concei­to de problemática definição.

A confusão, muitas vezes ciente e consciente, entre raça, etnia, povo e nacionalidade, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial e durante o Estado Novo, resultou de fato em políticas anti-imigrantistas. É o tema de Jair de Souza Ramos (“Como classificar os indesejáveis?”). O autor, no entanto, usa o termo “racialização”, “medidas racialistas”, quando na verdade está falando de racismo, tout court, agravado no período da Se­gunda Guerra, pela entrada do Brasil na luta contra o Eixo e que atingiu, por motivações diversas, os descendentes de italianos, alemães e japone­ses no Sul do Brasil, e também judeus que tentavam fugir à perseguição nazista – como fartamente documentado. Roquette-Pinto prestou-se, no caso, a interpretações nacionalistas, quando afirmou que o brasileiro não precisava de substituto – nivelando-se a outro contemporâneo que ficou célebre pela afirmação “o brasileiro é o melhor imigrante”.

A preocupação da Eugenia, generalizada na época e importada dos círculos científicos europeus e norte-americanos, constituiu tropeço no pensamento de Roquette, como demonstra Vanderlei Sebastião de Souza (“As leis da eugenia na antropologia de Roquette-Pinto”). A Eugenia an­dou muito associada às teorias racistas, tornou-se, na Alemanha nazista, instrumento e desculpa para a eliminação de “indesejáveis” – leiam-se minorias, os chamados “quistos” – termo usado no Brasil para designar as colônias alemãs no Sul – por serem, segundo os autores dessas teorias, inassimiláveis, irredutíveis ao melting pot brasileiro. Assim também fo­ram considerados os “amarelos”, os orientais de várias procedências, cuja assimilação e docilidade à miscigenação tornaram-se hoje evidentes, a olho nu, para quem transita nas ruas de São Paulo, onde se misturam gos­tosamente com os descendentes dos bandeirantes, arianos e não – arianos, caros a Oliveira Vianna.

Os últimos ensaios do livro dedicam-se à descrição do enorme papel desempenhado pelo autor de Rondônia na criação da nossa radiofonia educativa. E, paradoxalmente, na elaboração das normas de censura a esse novo meio de comunicação. Ildeu de Castro Moreira, Luisa Mas­sarani e Jaime Aranha descrevem a importância de Roquette na nossa primeira divulgação científica, enquanto Regina Horta Duarte compõe um retrato do Roquette viajante e Sheila Schwartzman realça sua contri­buição ao uso educativo do cinema.

Enriquece o livro farto material fotográfico e cartográfico e a trans­crição de textos de Roquette-Pinto, alguns inéditos. É de lamentar a falta de um índice onomástico, indispensável face à riqueza das fontes consul­tadas e citadas.  Nenhum praticante das ciências humanas está isento da contamina­ção com teorias espúrias, ranço de seu pensamento cientificismo, seja o darwinismo de seu pensamento social, o positivismo, o marxismo de pacotilha ou a psicanálise de bolso. O livro, de titulo elusivo, mas de lei­tura essencial, é indispensável para uma visão dos caminhos e descami­nhos da antropologia brasileira – ainda que não brasiliana – nas primeiras décadas do século passado; e mais, para uma compreensão dos problemas epistemológicos e metodológicos que enfrentou na transição, ou acomo­dação, entre uma ciência biológica e uma ciência da cultura. Nesse sentido, a obra de Roquette-Pinto, como nos demonstram os ensaios coligidos no livro, é paradigmática. Não se abalançaram as orga­nizadoras a uma síntese conclusiva sobre o ideário de Roquette-Pinto, seu legado às novas gerações, talvez porque a riqueza do material reunido em ensaios tão variados e a vivência do cotidiano institucional na Fiocruz – à qual Roquette esteve tão associado – lhes dificultassem a distância e a perspectiva necessárias.

Que era, afinal, a “antropologia brasiliana”, alem de um modismo?Que resta desse empreendimento, uma vez despido das aderências ideo­lógicas de seu tempo?  O livro mereceria um capitulo sobre o administrador de instituições que foi Roquette – como diretor do Museu Nacional; quando, em mo­mento crítico – a gripe espanhola, – assumiu a direção de uma enfermaria do Hospital Deodoro; ou quando esteve à frente da primeira emissora de radiodifusão do Brasil, depois mutado na Rádio MEC que, em 1937, ele doou generosamente ao Ministério da Educação e Saúde. E quando, ain­da, em 1936, dirigiu o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE).

Essa intensa, importante atividade institucional é mencionada, mas não devidamente descrita e analisada para a compreensão necessária do que seria, naqueles anos, um administrador institucional do porte criativo de Roquette.

Como convivia o cientista, o humanista, com o clima autoritário, depois totalitário do Estado Novo? Como teria disciplinado a censura cinematográfica?Que censura era essa?Qual teria sido o convívio de Roquette com a Ditadura, de origem positivista e constituição salazarista, que iria formalizar-se na carta de 1937 e esterilizou, com o peso de suas burocracias, tanta iniciativa fecunda na educação e na saúde? De um a outro capítulo, delineia-se o perfil de Roquette-Pinto educa­dor. Merecia capítulo à parte. Difícil, também neste passo, compreender como o signatário do “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” – com Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Francisco Venâncio Filho e  tantos outros – documento de tempera liberal, veio a filiar-se ao Partido Socialista Brasileiro, no qual chegou a candidatar-se em 1954 a deputado à Câmara Federal. Que socialismo era esse?O de Proudhon ou o de Saint-Simon? Não seria certamente o de Marx.

Outro ponto que mereceria análise, nessa personalidade – de tão ri­cas e instigantes contradições – era sua religiosidade. Chegou a articular, nos idos de 1935, um curioso Credo (sic), onde parece transitar do Positi­vismo, doutrina conservadora, para um Socialismo reformista.

Não há dúvida que essas tensões eram as de sua geração, alimentada pelas ideias de Darwin, de Spencer, de Comte, e animada por um Roman­tismo fundamental. Nascidos poucos anos depois da Abolição da escra­vatura, esses pensadores cresceram nos padrões e comportamentos per­sistentes de uma sociedade patrimonialista e de uma cultura bacharelesca. Sem a prática do método científico e sem as disciplinas da Universidade esses cientistas formam-se ao acaso do encontro, da viagem, do livro ou da experiência estrangeira, ainda apegados, malgie soi, ao discurso, ao culto da palavra, ao individualismo decorativo – menos ao laboratório, ao trabalho técnico e manual à pesquisa de equipe. Admirável, tenham conseguido produzir uma ciência e uma estrutura institucional, pagan­do alto preço ao ufanismo que os levaria às aberrações nacionalistas dos anos 30, à Ditadura de 37, às restrições criminosas à imigração – enfim, até ao Racismo.

Livrou-se Roquette dessa maleita e do racismo arianista pelo concei­to problemático de uma raça brasileira – ou brasiliana – encontrada por Euclides no sertanejo, por Roquette nos nhambicuaras. Bastante cientista, no entanto, Roquette percebeu que esse brasiliano não podia ser “antes de tudo um forte” e continuasse analfabeto, verminótico, tuberculoso, en­quanto exercesse práticas agrícolas destrutivas – e que era preciso tratá-lo, dar-lhe hospital, vacina, arado. Essa a grande missão que destinava ao Estado e às elites do seu tempo. Nessas esperanças, de alguma forma, comungamos, indivíduos ou instituições. Desse idealismo, não no sentido de Oliveira Vianna, mas no comum, Roquette, como o livro assaz demonstra, foi exemplo egrégio e continua mestre e inspirador.

José Arthur Rios – Sócio emérito do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Visões do feminino: a medicina da mulher nos séculos XIX e XX | Ana Paula Vosne Martins

O livro de Ana Paula Vosne Martins despertou minha atenção em função do interesse que tenho mantido na pesquisa da metodologia, da epistemologia e da história da ciência de um modo geral. De forma específica, o livro trata desses temas voltados para o caso de duas especialidades da medicina, tais sejam, a ginecologia e a obstetrícia. Fortemente apoiada em uma metodologia foucaultiana, bem como em uma literatura contemporânea sobre a história cultural do corpo, a Autora discorre sobre o modo como a comunidade científica em geral e a medicina especializada, de modo particular, produziram um vasto arsenal de representações da mulher, que trataram de reduzir a mulher a um corpo problemático, em contrapartida à racionalidade atribuída ao homem.

A História e a Cultura universal têm muitos exemplos de valorização da figura feminina. De Helena, passando por Joana d’Arc, ou por Inês de Castro, até Maria Bonita, muitas foram as mulheres que povoaram o imaginário de histórias e lendas. Em Homero ou em Cervantes, em Luis de Camões ou Emile Zola a mulher aparece sempre com destaque. Lendas, deusas e mitos femininos estão por toda parte e em todos os tempos. Recentemente, na literatura, Dan Brow popularizou, novamente, o mito do sagrado feminino em seu best seller “O Código da Vinci”, que destaca o culto e a defesa de Madalena. Ainda mais forte é a impressão de Lewis Munford, em “A Cidade na História”, que confere à mulher o poder de uma revolução fundamental no processo civilizatório da humanidade. Segundo o Autor, na revolução agrícola, que marca a passagem do homem de nômade para sedentário, antes de todas as histórias escritas (há cerca de 12.000 anos), a mulher teria sido a grande responsável pela descoberta do ciclo de crescimento dos vegetais. A mulher, afeita às tarefas mais lentas, como o cuidado com os recém nascidos, mais do que o homem, veloz caçador e guerreiro, teve tempo para o cultivo de plantas, sendo essa revolução antes uma revolução sexual. É inegável a contribuição feminina em toda a história. Leia Mais