A pediatra | Andréa del Fuego

A obra em análise é um livro de cento e cinquenta e nove páginas e editado pela Companhia das Letras, de São Paulo, com primeira edição em 2021. O livro em foco foi-nos indicado pela professora doutora Ana Crélia Dias.

Vale informar que este escrito vem de nossa participação no grupo de estudos “Literatura e Educação Literária”, encabeçado pela referida professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e especialista em literatura brasileira.

O livro traz-nos a narrativa de uma médica pediatra e neonatologista Cecília Tomé Vilela, uma profissional sem paciência para os pais de seus pacientes e sem visíveis instintos maternais. Ela estudou medicina por influência da família, pois seu pai era também médico pediatra e sua mãe era enfermeira. A personagem via a medicina como uma série de procedimentos a serem executados com frieza e inteligência: “Ninguém notava que eu tinha pouca vocação e paciência para ser médica, a boa formação garantia que eu não fosse processada, fazia bem-feito o feijão com arroz, procedimentos que qualquer pediatra faz escondiam minha inaptidão” (FUEGO, 2021, p. 19).

Cecília decidiu não ter filhos e sua escolha por uma não maternidade parece ter fundamentos científicos e pouco sentimentais. Era filha única e extremamente lógica em tudo o que fazia. Pensava em tudo, calculando ações e reações a todo momento. Ela divorciou-se e acabou por envolver-se amorosamente com Celso, um executivo casado com a grávida Cacá e pai de Bruninho, um menino de dois anos de idade.

Ainda, a empregada doméstica de Cecília, Deise, também estava grávida. Dormindo na casa da patroa, Deise não deixava de ser um lembrete diário sobre os incômodos proporcionados pela gravidez. Cecília, cercada de gestantes por todos os lados, convivia friamente entre os procedimentos dos atendimentos neonatais do hospital no Itaim e os atendimentos infantis em seu consultório.

Cecília era uma mulher que escolheu pela não-maternidade natural (não biológica), mas tomou para si uma maternidade de “aproximação” a partir do filho de Cacá e Celso, apegando-se a Bruninho de maneira afetuosa e muito próxima. No entanto, quando Bruninho fica doente em sua casa, ela não tem frieza bastante para examinar o menino, levando-o para o hospital do Itaim: “Bruninho faria exames, constatariam o diabetes tipo 1, o casal seria avisado do diagnóstico. Bruninho estava de volta à mãe, agora mãe-pâncreas.” (idem, p. 151).

A pediatra parece não valorizar a maternidade como uma sociedade patriarcal assim o espera de uma mulher. Ao contrário, ela tinha o pleno controle sobre seu corpo e suas intenções de não ser mãe natural. Ela mesma admitia: “Detesto crianças e não sou eu quem as trata, mas a medicina que estudei” (idem, p. 40).

Vale ressaltar aqui a singularidade de pensamento da personagem Cecília em sua busca por uma maternidade de adoção não integral e pela sua frieza com que encarava a sociedade machista que a cercava, utilizando-se de mecanismos de poder social para viver a sua maneira. Cecília chega ao ponto de ter pensamentos arrogantes em relação à babá de Bruninho, quando se impôs: “Subi o tom sem perceber, ali tinha uma mulher que não ama criança e nem por isso deixava de cumprir com a ética médica, jamais mediquei errado, ela que me respeitasse, estava diante da civilização” (idem, p. 118-119). A babá, por falta de instrução superior médica, não participava da civilização ocidental erudita?

Cecília também não via com olhos “civilizados” os atendimentos mais humanizados do neonatologista Jaime, da parteira e da doula que o acompanhavam. Ela desprezava os partos humanizados, as parteiras, os partos domiciliares etc. Essas práticas pareciam-lhe não médicas, pouco higiênicas e desprovidas de ciência. A pediatra chegou a se matricular na Mãe Prana, uma instituição informativa sobre partos humanizados e que referiam as parturientes para o doutor Jaime. “Eu, como pediatra, disse Jaime, defendo a via natural justamente pelo bebê, ele ganha imunidade ao atravessar a vagina, é um bebê que chega mais forte. Ele sorriu, as mães também, se imaginando vigorosas no pós-parto, com filhos olímpicos e imortais. Detesto a linha dele.” (idem, p. 34).

A pediatra Cecília também via as doenças crônicas como mecanismos naturais que acabavam com as forças das mães: “A doença achata, mina, diminui as chances. Nunca amanhece para a mãe-pâncreas, isolada numa madrugada que não clareia, aferindo, observando, aplicando, não conhece descanso.” (idem, p. 152). Ela tinha horror a essas mães-pâncreas, as mais recorrentes pacientes de seu pai também pediatra, sempre pronto a atender os telefonemas de tais mais sofridas em seus desesperos por auxílios médicos.

Vale ressaltar que o pâncreas é uma glândula atrás do estômago e que produz alguns hormônios e enzimas essenciais ao processo digestivo, entre elas a conhecida insulina. Por isso, esta glândula acaba por ser indispensável ao bom funcionamento do organismo humano como um todo. Assim, as mães-pâncreas são aquelas que cuidam com muito esmero da saúde de seus filhos debilitados cronicamente. No entanto, tal esmero acaba por fragilizar as forças físicas e psicológicas destas mães. Elas acabam por colocarem-se integralmente ao cuidado dos filhos, o que causava certa repulsa em Cecília.

A pediatra retrata os preconceitos das classes mais abastadas em relação às classes populares, algo singularmente muito brasileiro. Cecília acaba por reproduzir e funcionar friamente dentro de uma estrutura social de dominação masculina, patriarcal, colonizada, elitista, preconceituosa, racista e classista à brasileira. Isso não faz com que o romance seja lido como preconceituoso, mas como uma criação ficcional a partir de situações que ocorrem na vida real de nosso país.

É importante ressaltar a forma como a autora construiu a narrativa: ela juntou pensamentos, falas, sentimentos e impressões das personagens sem utilizar uma pontuação habitual para diálogos (com travessão, espaçamentos próprios etc). Isso faz com que os parágrafos sejam longos, corridos e com uma amálgama de ideias de várias personagens. Há, também, uma escolha por capítulos curtos e numerados, 55 no total.

Notamos uma estética própria e inusitadamente inovadora da escrita de Andréa del Fuego, ganhadora do Prêmio José Saramago de literatura (dado pela Fundação Círculo de Leitores às obras literárias com primeira edição em língua portuguesa) com o romance Os malaquias, editado pela Língua Geral, em 2010. Essa intercalação de pensamentos, diálogos, observações, sentimentos etc faz com qu o leitor seja flexível e rápido no entendimento do texto. A leitura corre fluida e rápida (infelizmente), pois o romance instiga-nos à continuação. Andréa del Fuego escreveu A pediatra em um mês!

Não podemos nos esquecer que del Fuego traz uma visão atual de uma mulher divorciada e profissional que tomou as rédeas de sua vida e que decide por não ser mãe biológica. Esses comportamentos e escolhas somente foram possíveis porque as mulheres que vieram antes dela contribuíram para que isso fosse possível.

Vemos que historicamente as mulheres sempre foram massacradas socialmente (e ainda são, vide números de feminicídios no Brasil, somente para ver a ponta deste iceberg), principalmente em uma sociedade machista como a nossa. Rodrigues (2018, p. 71) relata essa situação durante a ditadura militar no Brasil: “Quando as mulheres se colocam como personagens principais e tomam para si as rédeas de relações familiares inusitadas, (…) ou têm ações tidas como ‘anormais’, (…) elas mostram a força que podem ter para mudar a visão de uma sociedade conservadora.”

Finalizando, compreendemos a importância deste livro de Andréa del Fuego para além de sua expressão literária e artística, mas como um chamativo para que as mulheres unamse em coletivos e coloquem suas pautas no debate social. O livro traz personagens mulheres de vários tipos, mas a personagem principal acaba por ser a personificação da mulher empoderada que muitas meninas e jovens almejam ser, apesar de muitas atitudes politicamente incorretas de Cecília.


Referências

FUEGO, Andréa del. A pediatra. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

RODRIGUES, Walace. Cinema brasileiro e erotismo durante a ditadura militar. Revista Porto das Letras. Vol. 04, nº 03, Edição Especial, p. 61-71, 2018. Disponível em: https://sistemas.uft.edu.br/periodicos/index.php/portodasletras/article/view/5860/14531 Acesso em: 16 jan. 2022.


Resenhista

Walace Rodrigues – Pós-Doutor pela Universidade de Brasília – UnB/POSLIT. Doutor em Humanidades, mestre em Estudos Latino-Americanos e Ameríndios e mestre em História da Arte Moderna e Contemporânea pela Universiteit Leiden (Países Baixos). Pós-graduado (lato sensu) em Educação Infantil pelo Centro Universitário Barão de Mauá – SP. Licenciado Pleno em Educação Artística pela UERJ e com complementação pedagógica em Pedagogia. Professor Adjunto da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Docente do Programa de Pós-Graduação em Demandas Populares e Dinâmicas Regionais (PPGDire) e da Pós-Graduação em Ensino de Língua e Literatura (PPGL). Pesquisador no grupo de pesquisa Grupo de Estudos do Sentido – Tocantins – GESTO, da Universidade Federal do Tocantins – UFT. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

FUEGO, Andréa del. A pediatra. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. Resenha de: RODRIGUES, Walace. Apontamentos sobre o livro A pediatra, de Andréa del Fuego. Escritas. Araguaína, v. 14, n. 1,  p. 187 – 190, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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