Crescendo em silêncio: a incrível economia escravista de Minas Gerais no século XIX | Roberto Borges Martins

pois Minas Gerais é muitas.

São, pelo menos, várias Minas.

João Guimarães Rosa

A publicação em português da tese de doutorado em economia defendida por Roberto Borges Martins nos Estados Unidos, na Universidade de Vanderbilt, seria por si só motivo suficiente para comemoração.1 Mas a edição em português, publicação conjunta do Instituto Cultural Amílcar Martins (ICAM) e da Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica (ABPHE), é mais do que uma mera tradução. O prazer do leitor começa de imediato, nas páginas dedicadas aos agradecimentos do autor, ilustração da qualidade de sua prosa. A leitura flui gostosamente, alimentada por reminiscências familiares, de algumas amizades, de seus vínculos com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), de sua pós-graduação no exterior e das dificuldades defrontadas para a viabilização financeira dessa pós-graduação, de seus professores, da bibliotecária em Vanderbilt e outras lembranças interessantes com que o autor nos municia.

A tradução da tese corresponde a pouco menos de dois terços do volume. E a opção do autor foi por publicá-la, salvo pequenas alterações pontuais, na forma como escrita décadas atrás. O terço restante do livro suscita interesse semelhante, talvez ainda maior, para os interessados. Nele, Roberto Martins brinda-nos com uma segunda parte, à qual dá o nome de “Quarenta anos depois”, um longo pós-escrito de leitura igualmente saborosa.

O título da tese – Crescendo em silêncio – não poderia ter sido mais bem escolhido, e foi mantido também para denominar a Parte I do livro, mas na tradução o subtítulo veio acrescido de um adjetivo: “incrível”. Com esse acréscimo, talvez Martins pretendesse realçar a força revisionista dos achados apresentados. Ou quiçá procurasse reforçar uma natureza especial do “caso mineiro” retratado por seus resultados. Essa primeira parte divide-se em seis capítulos, três apêndices, bibliografia e referências, lista das tabelas e lista dos gráficos, estes três últimos itens específicos para a Parte I.

Para iniciar meus comentários acerca da tese faço uso de uma citação extraída das primeiras páginas do pós-escrito incluído pelo autor na presente edição do livro:

Em Growing in Silence propus uma clara ruptura com os paradigmas dos “ciclos de exportação” e da economia monocultora-primário-exportadora, desafiando-os numa época em que pouquíssima gente o fazia. Entre os economistas, ninguém, com certeza. Todos seguiam Simonsen e Celso Furtado como uma manada. Sem questionamentos e sem debates – na paz dos cemitérios. Formação Econômica do Brasil – que nada mais é que o patético modelo dos ciclos de Simonsen, requentado pelo patois cepalino de Furtado – era a única bibliografia dos cursos de História Econômica que, aliás, se chamavam (e ainda se chamam) Formação Econômica do Brasil (p. 406).

Palavras contundentes, duras mesmo! Duras demais. Não obstante, um discurso compreensível, decorrente, assim me parece, das grandes dificuldades de defender seus achados, conflitantes com as interpretações prevalecentes naqueles inícios do último quarto do século passado. Decerto, essa insubmissão ao pensamento dominante envolveu doses não desprezíveis de intrepidez, qualidade que não faltou ao autor.

Em 1980, ano da defesa da tese de Martins, eu cursava o segundo ano de graduação em Ciências Econômicas na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/USP). E, exatamente no segundo ano do curso, entre as disciplinas obrigatórias oferecidas constavam as de Formação Econômica e Social do Brasil I e II (FES I e FES II). Posso afirmar que o livro de Celso Furtado, mencionado por Martins, não era a única bibliografia daquelas disciplinas; todavia, Formação Econômica do Brasil estava entre as indicações mais relevantes e, sem dúvida, quase todo ele era ou deveria ser lido e estudado pelos alunos no decurso de dois semestres letivos.

Hoje, quatro décadas passadas, sou professor (e isso já há mais de trinta anos) naquela mesma FEA/USP. E, entre as disciplinas que leciono, as mais frequentes são exatamente FES I e FES II. Formação Econômica do Brasil permanece como leitura obrigatória, e a análise furtadiana ainda ocupa papel de destaque em meus cursos.

Essa presença ainda marcante do livro de Celso Furtado, é evidente, não significa inexistirem questionamentos passíveis de serem levantados sobre sua interpretação. Eles existem, são muitos e, sobretudo, são muito importantes. Dessa forma, por exemplo, ao serem discutidas as características da atividade mineradora, e em especial ao ser apresentado o entendimento de Furtado acerca da decadência da região das Minas Gerais após a etapa setecentista de maior extração aurífera, não há como não trazer para os alunos os resultados da contribuição de Roberto Borges Martins, acompanhados das contribuições de outros autores que com ele dialogaram, foram por ele estimulados, e eventualmente também criticaram em maior ou menor medida aquele esforço de pesquisa pioneiro presente em Crescendo em silêncio.

Teve lugar, de fato, nos últimos quatro decênios, todo um profícuo debate sobre as Minas Gerais no período colonial tardio e no decurso do Império. E os principais elementos formadores desse debate ocupam (ou deveriam ocupar), necessariamente, espaço no conteúdo das disciplinas de Formação Econômica e Social do Brasil. Tem-se aí um vigoroso fluxo de produção historiográfica, em larga medida tributário da tese traduzida na primeira parte do volume objeto desta resenha.

Valho-me de alguns poucos itens da bibliografia que integra esse debate, em especial de estudos trazidos à luz ainda no Novecentos, para subsidiar meus comentários. E, dadas as limitações inerentes a uma resenha, incorro em alguns riscos que vejo como inevitáveis, particularmente os de simplificar em demasia os argumentos aqui reproduzidos. Entendo, no entanto, serem riscos justificáveis, tomados com o intuito de ilustrar minimamente elementos da contribuição trazida pela tese, agora livro, de Martins e, também, esboçar algo do riquíssimo debate que ela suscitou.

Como sabido, Celso Furtado identificou a estagnação, se não mesmo a decadência, como característica marcante da evolução da economia brasileira no período que abrange o último quarto do século XVIII e a primeira metade do Oitocentos. Adicionalmente, no que diz respeito às Minas Gerais, Furtado sugeriu que a desorganização da economia mineradora teria produzido uma escravaria em alguma medida ociosa, a qual teria sido deslocada para as províncias vizinhas onde começava a ser gestada a economia cafeeira. Nas palavras de Furtado:

existia relativa abundância de mão de obra, em consequência da desagregação da economia mineira […]. Como em sua primeira etapa a economia cafeeira dispôs do estoque de mão de obra escrava subutilizada da região da antiga mineração, explica-se que seu desenvolvimento haja sido tão intenso, não obstante a tendência pouco favorável dos preços.2

Contra concepções como essas de Furtado levantam-se os dois vetores que pretendo salientar da primeira parte do livro de Roberto Martins. De um lado, contra a decadência oitocentista das Minas Gerais, contrapõe-se a ideia de um evolver assentado em uma agricultura de subsistência produzindo essencialmente para autoconsumo e comercializando seus excedentes no mercado interno, de âmbito local ou regional; uma economia vicinal, no dizer do autor, mas não obstante capaz, por outro lado, de garantir a manutenção de um relevante fluxo de entrada de escravos na região por intermédio do tráfico atlântico.

Para conveniência de exposição, faço uma segmentação artificial entre esses dois vetores, e começo pelo tema das aquisições de escravos novos por aquela região, marcada, segundo Furtado, por um processo de “involução econômica”. Ora, a evidência sobre a qual se voltou a atenção de Martins é sólida. Embora tenha havido diminuição na escravaria da capitania das Gerais entre 1780 e 1808, os dados deste último ano, comparados aos de 1819 e aos do Recenseamento Geral do Império, realizado na primeira metade da década de 1870, atestam um ritmo intenso de crescimento da dita escravaria ao longo do século XIX.

As estimativas dessa população cativa nas datas oitocentistas mencionadas são as seguintes: 148.772 (1808), 168.543 (1819) e 381.893 (1873). Se, em 1819, pouco mais de 15% dos escravos computados no Brasil estavam em Minas, esse porcentual aproximava-se dos 25% na década de 1870. Tais informes são utilizados por Martins para negar, veementemente, a sugestão de Furtado de ter sido Minas Gerais uma província exportadora líquida de escravos na primeira metade do século XIX.

Se essa evidência do crescimento da população escrava de Minas Gerais colocava-se como irrefutável, os termos do debate direcionaram-se para as distintas possibilidades de explicação desse crescimento. Wilson Cano e Francisco Vidal Luna, lançando mão de elementos da própria formulação de Martins, de sua caracterização de uma economia vicinal presente nas Gerais, questionaram as possibilidades de uma agricultura de subsistência com relativamente baixos níveis de mercantilização gerar os volumes de capital-dinheiro necessários para a aquisição de escravos pela via do tráfico. Alternativamente, sugeriram eles:

Na realidade, pensamos que, justamente no baixo grau de mercantilização reside a explicação do imenso plantel [de Minas Gerais]: a violenta diminuição da taxa de exploração e o “relaxamento dos costumes” (mestiçagem e “casamentos”) permitiram o crescimento demográfico.3

Aí, pois, a discussão que polarizou o debate no que respeita a esse vetor das contribuições de Martins. O aumento da escravaria em Minas Gerais decorreria da compra de cativos da África, como argumentado na tese de 1980, ou era resultado do crescimento natural da população cativa, como aventado por Cano e Luna?

A explicação pelo recurso ao tráfico atlântico durante a primeira metade do século XIX viu-se reforçada em texto publicado por Martins nos anos de 1990, intitulado Minas e o tráfico de escravos no século XIX, outra vez. Nesse estudo, o autor reconhece uma limitação de seus esforços anteriores: “a inexistência de dados confiáveis sobre a população de Minas no meado do século determinou que as estimativas se referissem ao intervalo 1819-1873, não possibilitando a separação dos fluxos ocorridos antes e depois da abolição efetiva do tráfico internacional para o Brasil”. Para evitar tal limitação, o autor acresce em seus cômputos uma estimativa detalhada da população mineira em 1855, embasada em farta documentação manuscrita levantada no Arquivo Público Mineiro (APM). A participação de Minas Gerais no tráfico negreiro e, por conseguinte, a crítica às sugestões de Celso Furtado ganham força:

É totalmente fora de cogitação que a província tenha contribuído com mão de obra cativa para o surgimento e a expansão da indústria cafeeira do Vale do Paraíba. Na verdade, é muito pouco provável que na primeira metade do século tenham ocorrido quaisquer transferências significativas de escravos entre as províncias brasileiras, sobretudo porque não havia razão para isso. Enquanto existiu o tráfico atlântico, o grande pool de trabalho abundante e barato, para o café, o açúcar, a mineração, ou qualquer outra atividade, foi a África […].4

Por sua vez, outros estudiosos trouxeram também embasamento empírico ao argumento do crescimento natural da escavaria de Minas sugerido por Cano & Luna. Menciono, por exemplo, a tese de Laird W. Bergad, publicada pela Cambridge University Press em 1999 e traduzida para o português em 2004. Para esse autor, no período em que houve decréscimo da escravaria mineira, entre 1780 e 1808, “a população escrava começou gradualmente a assumir um perfil demográfico que favorecia a reprodução. […] Em meados da década de 1790 havia em Minas Gerais mais escravos nascidos no Brasil do que nascidos na África”.5

No reforço desse argumento, destaque deve ser dado à tese de Clotilde Andrade Paiva, bem como aos artigos escritos por ela em coautoria com Herbert Klein e com Douglas Libby.6 Na mais recente dessas coautorias, sob o sugestivo título de “Caminhos alternativos”, os autores reconhecem ter sido inegável a participação de Minas Gerais no tráfico negreiro. Todavia, explicitam a seguinte questão, deveras pertinente: “as importações de africanos em grande escala e a reprodução natural teriam sido, necessariamente, mutuamente exclusivas?”.7 E, ao fim do texto, sugerem, eventualmente, na junção desses dois fatores, uma solução para essa controvérsia, na medida em que, em paralelo à contribuição irretorquível do tráfico, identificam em Minas, outrossim, o espaço para a reprodução natural da escravaria:

Argumentou-se que a natureza da economia mineira, especialmente devido a sua orientação para o mercado interno, favorecia o crescimento reprodutivo natural em contraste com as economias de sistemas escravistas dependentes da agroexportação.8

Volto-me agora para o outro vetor a nortear minhas considerações sobre as controvérsias suscitadas por Roberto Martins. O evolver da economia mineira oitocentista, na ótica de Martins, repito, foi capitaneado por uma agricultura de subsistência que comercializava os excedentes de sua produção em mercados locais e regionais. Uma economia vicinal, com níveis relativamente baixos de mercantilização, mas suficientes para gerar os recursos indispensáveis para a aquisição de escravos pela via do tráfico, num cenário em que a disponibilidade de terras tornava impeditiva a utilização de mão de obra que não fosse a compulsória. Às atividades voltadas à exportação, na província mineira, em especial a cafeicultura, Martins atribuiu limitada relevância:

O grosso da economia de Minas no século dezenove, onde a vasta maioria dos escravos estava empregada, não se compunha de plantations nem era orientado para exportações. Isolamento de mercados externos à província, diversificação e autossuficiência eram suas características principais. […] A grande lavoura exportadora permaneceu confinada a uma pequena área e o cerne da economia provincial consistia de unidades agrícolas diversificadas internamente – produzindo para seu próprio consumo e vendendo os excedentes eventuais em mercados locais e regionais.9

A discussão acerca das características da atividade econômica nas Minas oitocentistas, suscitada pela tese de Martins, foi tão profícua quanto a dedicada às formas de aumento da população escrava na província. Destaco dois aspectos dessa discussão. Primeiro, os reparos feitos em termos de uma indevida subestimação da relevância do setor exportador. Robert Wayne Slenes, por exemplo, conduz nessa direção sua crítica à análise de Martins, argumentando que o apego à escravidão em Minas Gerais era devido, ao fim e ao cabo, à dinâmica advinda de seu setor exportador, este entendido como abrangendo tanto a venda de mercadorias para fora do Império, como as transações destinadas para outras províncias brasileiras, ambas alternativas ilustradas na escolha do título de um de seus artigos: “Os múltiplos de porcos e diamantes”.10

O segundo aspecto a destacar, da discussão sobre a atividade econômica no século XIX em Minas Gerais, refere-se à pesquisa de Douglas Cole Libby. Se Slenes procurava resgatar a relevância do setor exportador naquela Minas Gerais não-exportadora de Martins, Libby evidenciou a necessidade de realçar a presença importante, ainda que não a mais relevante, de um elemento adicional a compor aquele cenário de diversidade, qual seja, o conjunto das atividades manufatureiras realizadas na província:

Ainda que predominasse essa agricultura mercantil de subsistência no que iremos chamar de “economia de acomodação”, para descrever a situação de Minas oitocentista havia outro setor importante, envolvendo uma variada gama de atividades de transformação. De fato, a paisagem mineira era repleta de lares voltados para a produção doméstica de fios e panos, de oficinas artesanais de todo tipo, de pequenas e médias manufaturas e até de verdadeiras fábricas de ouro e de tecidos.11

Como se percebe nesta última citação, Libby, adicionalmente, propõe uma fórmula certeira, a “economia da acomodação”, para substituir as expressões “estagnação” ou “decadência” derivadas da análise de Celso Furtado. Vale dizer, a furtadiana “involução econômica” nas Minas Gerais cede lugar para uma “acomodação evolutiva”, mais próxima da realidade, “uma reação secular específica da organização econômica e social escravista de Minas à crise que lhe tirou a razão de ser original”.12

Dessa forma, não obstante as discrepâncias entre os entendimentos desses autores aqui referidos, não há dúvida de que o trabalho pioneiro de Martins sinalizou à historiografia uma trajetória que se mostraria extremamente enriquecedora. Como observou acertadamente Robert Slenes,

Qualquer que seja a combinação em Minas de ligações com a economia de exportação, disponibilidade de terra e mercados locais, não se tem mais em vista uma economia estagnada e de pouca significância para o resto do Brasil. […] A agenda para futuras pesquisas é evidente: para conhecer a fundo a escravidão no Brasil e resolver as questões atualmente em debate, precisamos de mais estudos locais e de menos ênfase sobre a plantation. 13

Creio que a historiografia tem respondido de forma competente a esse chamamento de Slenes. O que me leva a um último comentário sobre a tese de Martins de 1980. Não há dúvida de que toda essa discussão sobre as Minas Gerais sedimentou o entendimento em torno do que poderia, em boa medida, ser chamado de um conjunto de peculiaridades próprias à economia mineira; ou, para usar o termo de Martins, próprias à incrível economia escravista de Minas Gerais; ou ainda, a Minas que é muitas, no dizer de Guimarães Rosa.

Porém, não é menos verdadeiro que a proliferação de estudos com “menos ênfase na plantation” tem mostrado que ao menos algo dessas características, num primeiro momento vistas como específicas de Minas, faziam-se presentes igualmente em outras partes do Brasil. Assim, por exemplo, Stuart B. Schwartz, em artigo intitulado “Camponeses e escravatura: alimentando o Brasil no fim do período colonial”,14 identifica a presença generalizada de uma economia camponesa, a qual, ao se valer também da mão de obra cativa, assumia crescentemente uma natureza escravista, dando fundamento à afirmação seguinte:

Por detrás da expansão da economia de exportação do Brasil em finais do período colonial encontra-se a complexa e menos conhecida história do crescimento de uma economia interna e, por via do desenvolvimento e da integração regionais, do arranque de um mercado nacional.15

Esse breve acompanhamento do debate sobre as Minas Gerais no século XIX procurou evidenciar a importância da tese defendida por Roberto Borges Martins em 1980, tese que, por assim dizer, deflagrou o referido debate. Mais do que isso, estes comentários têm também o objetivo de espicaçar a curiosidade do leitor com relação ao pós-escrito que integra a segunda parte do volume ora resenhado, intitulada “Quarenta anos depois”. Essa parte contém bibliografia e referências específicas, bem como uma lista própria de tabelas. Vale a pena transcrever os comentários do autor acerca desse texto, fornecidos na “Introdução geral” do volume:

Mas a disciplina da história em geral, o conhecimento acumulado sobre a escravidão e o tráfico no Brasil e no mundo, e sobre a história de Minas (em parte pelas provocações geradas pela própria tese) mudaram tanto nessas quatro décadas, que não posso deixar de registrar que tenho consciência dessas mudanças. Que não fiquei congelado em 1980.

Para isso resolvi incluir um post-scriptum, um longo comentário, que terminei agora, em 2018 […].

Esse comentário não é uma revisão da tese de 1980. São apenas notas soltas, sem um roteiro definido. Nelas corrijo alguns erros – talvez cometa outros –, reafirmo a maioria das minhas posições antigas, radicalizo algumas, e modifico outras tantas. Sugiro sua leitura, porque nessas notas relato revisões, para mim importantes, na minha visão da história de Minas, particularmente sobre a economia do século XVIII e a transição para o século XIX. Apresento principalmente a minha opinião atual sobre alguns temas que abordo na tese, e as críticas que faço a mim mesmo, quarenta anos depois (pp. 20-21).

Nesse alentado pós-escrito, tem-se a sensação da vivência do debate, a partir “de dentro”. Sua leitura torna possível acompanhar as reações do autor às críticas, a evolução de suas próprias pesquisas posteriores à tese, os eventuais recuos e as mais frequentes persistências em suas posições. Assim sendo, permito-me fechar esta resenha com dois exemplos dessas reações, mais diretamente relacionados aos dois vetores que nortearam meus comentários. No primeiro deles, é possível identificar um leve recuo na posição do autor no que respeita a uma autossuficiência de Minas Gerais:

Em 1980, no afã de ressaltar a singularidade do caso que estudava, usei expressões como economic island e vicinal economy para descrever a economia mineira do século XIX. Afirmei também que algumas áreas da província eram pouco mercantilizadas e até mesmo pouco monetizadas. […] Hoje eu seria mais cuidadoso e mais específico, e talvez não usasse esses termos – afinal não existe ilha econômica fora da história de Robinson Crusoé – mas não os repudio, mesmo reconhecendo neles um entusiasmo bem típico das teses e dos doutorandos (p. 435).

O segundo exemplo diz respeito aos fatores responsáveis pelo aumento da escravaria nas Minas Gerais, e evidencia a discordância de Martins com a possível solução dada pela consideração simultânea do tráfico e do crescimento natural. Sobre essa possibilidade, Martins faz questão de negar que tal solução seja algo consensual:

Desconheço esse consenso. Eu, com certeza não participo dele, mesmo reconhecendo que seria uma solução educada, que deixaria todo mundo feliz. Mas seria errada. Não creio que Clotilde Paiva, Douglas Libby, Márcia Grimaldi, Tarcísio Botelho, e outros colegas que defendem essa posição, tenham conseguido demonstrar o crescimento endógeno, nem mesmo nos contextos específicos, ou pontuais, que focalizaram, apesar do bom nível de suas análises (p. 427).

Em suma, pelo exposto, manifesto a expectativa de que possa ter aflorado, nos leitores que acompanharam esta resenha até aqui, a vontade de mergulhar incontinenti na leitura desse Crescendo em silêncio. De minha parte posso garantir que serão com certeza plenamente recompensados os que, assim se sentindo, derem vazão a esse desejo.


Notas

1 Roberto Borges Martins, “Growing in Silence: The Slave Economy of NineteenthCentury Minas Gerais, Brazil”, tese de Doutorado, Vanderbilt University, 1980.

2 Celso Furtado, Formação econômica do Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 180-81.

3 Wilson Cano e Francisco Vidal Luna, “Economia escravista em Minas Gerais”, Cadernos IFCH-UNICAMP 10, outubro 1983.

4 Roberto Borges Martins, Minas e o tráfico de escravos no século XIX, outra vez, Belo Horizonte: UFMG/CEDEPLAR, 1994. (Texto para discussão, n. 70).

5 Laird W. Bergad, Escravidão e história econômica: demografia de Minas Gerais, 1720-1888, Bauru, SP: EDUSC, 2004.

6 Clotilde Andrade Paiva, População e economia nas Minas Gerais do século XIX (Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 1996); Clotilde Andrade Paiva & Herbert S. Klein, “Escravos e livres nas Minas Gerais do século XIX: Campanha em 1831”, Estudos Econômicos, v. 22, n. 1 (1992), pp. 129-151; Clotilde Andrade Paiva e Douglas Cole Libby, “Caminhos alternativos: escravidão e reprodução em Minas Gerais no século XIX”, Estudos Econômicos, v. 25, n. 2 (1995), p. 202.

7 Paiva e Libby, “Caminhos alternativos”, p. 212.

8 Paiva e Libby, “Caminhos alternativos”, p. 227.

9 Roberto Borges Martins, “Minas Gerais, século XIX: tráfico e apego à escravidão numa economia não-exportadora”, Estudos Econômicos, v. 13, n. 1 (1983), p. 209.

10 Robert Wayne Slenes, “Os múltiplos de porcos e diamantes: a economia escrava de Minas Gerais no século XIX”, Estudos Econômicos, v. 18, n. 3 (1988), pp. 449-495.

11 Douglas Cole Libby, Transformação e trabalho em uma economia escravista: Minas Gerais no século XIX, São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 14.

12 Libby, Transformação e trabalho, p. 32.

13 Slenes, “Os múltiplos de porcos”, p. 468.

14 Stuart B. Schwartz, Da América portuguesa ao Brasil: estudos históricos, Algés, Portugal: DIFEL, 2003, cap 3.

15 Schwartz, Da América portuguesa ao Brasil, p. 103.


Resenhista

José Flávio Motta – Universidade de São Paulo. https://orcid.org/0000-0002-2577-7997


Referências desta Resenha

MARTINS, Roberto Borges. Crescendo em silêncio: a incrível economia escravista de Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: ICAM; ABPHE, 2018. Resenha de: MOTTA, José Flávio. As muitas Minas de Minas Gerais. Afro-Ásia, n. 61, p. 450-461, 2020. Acessar publicação original [DR/JF]

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