Escravos e senhores na terra do cacau: alforrias/compadrio e família escrava (São Jorge dos Ilhéos/1806-1888) | Victor Santos Gonçalves

Até pouco tempo atrás, escravos que trabalhavam fora das grandes lavouras de cana de açúcar e café, ou em regiões mineiras, mereciam pouca atenção dos historiadores. Ficou, então, possível negar a importância da mão de obra escrava em tais circunstâncias. Nos últimos vinte anos, a historiografia mudou e os pesquisadores começaram a prestar mais atenção às experiências dos cativos do que ao modo de produção e, com esta mudança, os escravizados em zonas de menor porte econômico, ou em lavouras menos conectadas à economia de exportação, começaram a atrair mais interesse. O livro aqui resenhado é uma das mais recentes e benvindas contribuições a esta nova historiografia.

Produto de uma dissertação de Mestrado em História, este livro abrangente estuda as estruturas econômicos e sociais da antiga paróquia da Invenção de Santa Cruz de São Jorge dos Ilhéus, agora município de Ilhéus, desde o ano anterior à abertura dos portos do Brasil até a abolição, em 1888. Baseado numa amostra de 240 inventários post-mortem dos mais de 400 de Ilhéus sob a guarda do Arquivo Público do Estado da Bahia, além dos livros de notas de Ilhéus depositados na mesma instituição e registros eclesiásticos do Arquivo da Cúria de Ilhéus e da Catedral de São Sebastião, na mesma cidade, o estudo nos traz uma detalhada visão dos proprietários e escravizados do município no processo de este virar grande produtor de cacau. Nem o assunto nem os documentos são inéditos, mas a publicação de um estudo tão extenso e detalhado, que coloca Ilhéus no interior da historiografia recente da escravidão brasileira, e a qualidade da obra são testemunho do alto nível do Programa de Pós-graduação em História da UFBA e do Curso de Graduação em História da Universidade Estadual de Santa Cruz, em Ilhéus.1

O primeiro capítulo examina o papel da escravidão no desenvolvimento socioeconômico da vila. Utilizando o software SPSS, o autor desenvolve um quadro quantitativo detalhado da propriedade, dos escravos e dos libertos. Divide o período entre três, de 1806 a 1850, 1851 a 1871 e 1872 a 1888, utilizando como marcas temporárias o ano do fim do tráfico transatlântico de africanos (1850), o ano da passagem da “Lei do ventre livre” (1871) e o ano da abolição (1888). Criou tabelas indicando os valores dos bens inventariados e dividiu os proprietários segundo o acesso (ou não) à mão de obra escrava e o valor dos bens inventariados. Mostra que durante o século XIX os proprietários de Ilhéus nunca conseguiram desenvolver propriedades com o valor das grandes do Recôncavo ou do Vale do Paraíba. Mostra que apenas 39% dos proprietários de Ilhéus desfrutavam de mão de obra cativa. (p. 81) A maioria desses proprietários possuíam poucos escravos: somente 0,4% dos proprietários de Ilhéus possuíam mais de 71 escravos e ninguém possuía mais que 120. A maioria dos donos de escravos possuóa menos de 10 pessoas. (p. 82)

É interessante que, no começo do período estudado, a posse de escravos era mais difundida do que seria nos últimos anos da escravidão, mas o autor sugere que os agora poucos escravistas controlavam mais cativos.

Em 1866, a vila produziu madeira, cana de açúcar, aguardente, farinha de mandioca, piaçava, café e cacau, este último já sendo o produto agrícola mais importante da vila. Todos os proprietários estavam cultivando algum cacau, incluindo roceiros, pequenos e médios produtores e donos de latifúndios. Gonçalves deixa claro, então, que enquanto a economia crescia, a desigualdade entre os proprietários da região também crescia.

Como outros historiadores antes dele, Gonçalves encontrou que a demografia escrava em Ilhéus, no século XIX, era bastante diferente daquela encontrada nas regiões da grande lavoura.2 Mulheres formavam um pouco mais que a metade da população cativa na segunda metade do século XIX. Assim foi, em parte, porque a população escrava era, na sua maioria, nascida no Brasil. Isto não quer dizer que não houvesse uma importante presença de africanos. Gonçalves observa que o tráfico era responsável por uma minoria significativa de africanos em Ilhéus, incluindo escravos e libertos chamados angola, congo, cabinda, nagô, haussás, mina ou africano sem outra identificação mais especifica. (p. 158, tabela)

O segundo e o terceiro capítulos do livro tratam de alforria, como os libertos e libertas a ganharam, a qualidade da liberdade e o papel da família escrava e do paternalismo senhorial no processo de conquista da liberdade. Seguindo Barickman, Gonçalves acha que muitos cativos em Ilhéus trabalharam ao lado de seus senhores devido ao pequeno tamanho das propriedades, e que esta relação de trabalho levaria a uma maior proximidade entre senhor e cativo do que nas grandes propriedades.3

A maioria dos escravos alforriados em Ilhéus nascera no Brasil, indicando que, como em outros lugares, nascimento brasileiro, cor da pele e conexões pessoais influenciaram as decisões dos donos em alforriá-los. Como em outras regiões do Brasil, esta liberdade era frágil, sujeita ao reconhecimento dos antigos senhores. Podia resultar em reescravização qualquer mudança desfavorável de atitude por parte do ex-senhor ou qualquer esforço do liberto de gozar plenamente de sua liberdade e sair do local do seu cativeiro para seguir sua vida,.

A pesquisa nas cartas de liberdade levantou informações sobre famílias escravas que levaram o autor a concordar com a nova historiografia a respeito da força dos laços de parentesco e compadrio entre os cativos do século XIX. As relações entre mães e filhos na propriedade de Egídio Luis de Sá Bittencourt Câmara, entre 1880 e 1883, mostram claramente que duas e três gerações de famílias escravizadas, como em outros lugares, existiam em Ilhéus. (pp. 270-1) Seguindo Robert Slenes e outros autores, Gonçalves conclui que os escravos nas grandes propriedades de Ilhéus gozavam de mais oportunidades para encontrar um parceiro ou parceira.4 O autor concluiu que família e compadrio criaram espaços de autonomia para os cativos numa situação em que eles tinham pouco controle de suas vidas.

O livro é uma contribuição ambiciosa e importante à historiografia sobre a região estudada. Mas o fato de ser tão ambicioso também cria problemas. Ao estudar a economia, as relações entre escravos e senhores e a família escrava em apenas três capítulos, ele termina deixando perguntas no ar.

A primeira pergunta seria: qual o papel do famoso engenho Santana, seus donos e seus escravos na história da região? A pesquisa e as análises são muito bem-feitas, e concordo que a pesquisa em inventários é uma maneira importante e valiosa de ver a história socioeconômica de uma região, mas este tipo de pesquisa só resgata, obviamente, a história de pessoas que morreram e deixaram bens a serem inventariados e repartidos. Em regiões como o Recôncavo, com muitas grandes propriedades e pouco acesso à terra por parte de lavradores pobres ou médios, estudar inventários proporciona uma visão clara da sociedade. Mas em Ilhéus, no período colonial e primeiras décadas do século XIX, houve um enorme engenho de açúcar — o Santana, com algo em torno a 280 escravos — e centenas de lavradores de pequeno e médio portes, alguns com escravos, outros não. Em 1834, os filhos do inconfidente mineiro José de Sá Bittencourt Câmara adquiriram o engenho e seus escravos, assim como outras propriedades locais. Juntando as terras e os escravos de todos os ramos desse clã na segunda parte do século XIX, observa-se que uma família controlava milhares de hectares de terras e, no mínimo, 300 escravos. Mas os inventários não revelam claramente este nível de poder local: aliás, uma leitura estrita baseada no valor da propriedade avaliada deixa Frederico Carlos de Sá, membro desta importante família, e dois africanos libertos, Tito Galião e sua mulher Arminda Cordier, na mesma categoria de lavradores. (pp. 108-12)

A segunda pergunta seria por que devemos estudar escravidão em Ilhéus se menos de 40% dos proprietários desfrutavam de acesso à mão de obra cativa. O livro não deixa claro a resposta, mas há duas razões importantes. Primeiro, precisamos entender que a demografia escrava era um dos fatores essenciais para a transformação desta região numa zona de monocultura cacaueira. Começando no século XVIII, observadores da economia do sul da Bahia sugeriram que os proprietários da região deviam plantar cacau porque seu cultivo demandava menos braços do que a cana de açúcar. Em 1836, Miguel Calmon du Pin e Almeida, e em 1852 Joaquim Rodriguez de Souza, informaram a Sociedade d’Agricultura da Bahia que investir em cacau permitia aos proprietários utilizar todos os seus escravos, incluindo crianças, mulheres, idosos e enfermos.5

Na segunda metade do século XIX, a economia local expandiu na base do cacau, e centenas de pequenos e médios produtores plantaram-no nessas décadas. Mas foram os donos de muitas terras, com acesso a mais de 50 escravos, que conseguiram plantar o maior número de cacaueiros. Em outras palavras, o acesso à mão de obra escravizada permitiu aos proprietários mais importantes de Ilhéus desenvolver suas terras mais rapidamente do que aqueles sem acesso a escravos. Já na década de 1870, três proprietários – Pedro Augusto Cerqueira Lima, Fernando Steiger e Fortunato Pereira Gallo – eram donos de entre 100 mil e 200 mil pés de cacau cada. Nessa mesma década a maioria dos proprietários colheram entre 250 e 10 mil cacaueiros.

Para concluir, lembro que este livro nasceu de uma dissertação de Mestrado excelente, e revela um historiador promissor. O livro é fruto de uma pesquisa séria e baseado numa leitura da extensa historiografia mais recente sobre a escravidão brasileira. Em cada capitulo Gonçalves faz questão de mostrar que seus dados e suas conclusões concordam com aquela historiografia. Compara a demografia, os preços, o processo de alforria e a família com dados equivalentes em estudos de outras partes do Brasil, mostrando que Ilhéus foi, talvez, um lugar com menos escravos que outras zonas agrícolas, mas onde os padrões escravistas e o comportamento dos proprietários eram semelhantes. Se levantei algumas questões, foi porque a qualidade do livro me provocou novas ideias e pensamentos. Vale a pena lê-lo.


Notas

1 Para outros estudos que tratam de escravidão e liberdade na vila de Ilhéus durante o século XIX, ver Stuart B. Schwartz, Slaves, Peasants and Rebels, Urbana, IL: University of Illinois Press, 1996, pp. 39-64; João José Reis e Eduardo Silva, Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista, São Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp. 123-7; Marcelo Loyola de Andrade, “Nos labirintos da liberdade: das alforrias na lavoura cacaueira (Ilhéus, Bahia, 1810- 1850) à discussão historiográfica acerca das manumissões no Brasil do século XIX”(Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, 2014); Ronaldo Lima da Cruz, “Conflitos e tensões: conquistas de escravizados e libertos no sul da Bahia, 1880-1900 (Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho,” 2012); Mary Ann Mahony, “Mulher, família e estatuto social no sul da Bahia: entre a escravidão e a liberdade (c.1850-c.1920)”, in Douglas Cole Libby, José Newton Coelho Meneses, Júnia Ferreira Furtado e Zephyr L. Frank (orgs.), Família e democracia em Minas Gerais, 1600-1920 (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015), pp. 295-329; idem, “Creativity Under Constraint: Enslaved Families in Brazil’s Cacao Area, 1870- 1890”, Journal of Social History, v. 41, n. 3 (2008), pp. 633-66; idem, “‘Instrumentos necessários’: escravidão e posse de escravos no sul da Bahia no século XIX”, Afro-Ásia, n. 25-26 (2001), pp. 95-139.

2 A mesma estrutura populacional se observa em Schwartz, Slaves, Peasants and Rebels, pp. 52-3; Andrade, “Nos labirintos da liberdade”, p. 55; Mahony, “Creativity under Constraint,” pp. 637-8.

3 B. J. Barickman, Um contraponto baiano, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, pp. 265-6.

4 Robert Slenes, Na senzala uma Flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

5 Miguel Calmon du Pin e Almeida, “Memoria sobre a cultura de cacau”. Jornal da Sociedade d’Agricultura, v. iv, 1846, in Gazeta de Ilhéus, 30 out. 1904; Joaquim Rodriguez de Souza, Memoria sobre a lavoura de cacau e suas vantagens principalmente na Bahia, Bahia: Typ de Carlos Poggetti, 1852, pp. 7, 20 e 35.


Resenhista

Mary Ann Mahony – Central Connecticut State University. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

GONÇALVES, Victor Santos. Escravos e senhores na terra do cacau: alforrias, compadrio e família escrava (São Jorge dos Ilhéos, 1806-1888). Ibicaraí, BA: Via Litterarum, 2017. Resenha de: MAHONY, Mary Ann. Escravidão na terra do cacau. Afro-Ásia, n. 58, p. 235-239, 2018. Acessar publicação original [DR/JF]

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