Eu vou piorar | Fernanda Bastos

Eu vou piorar é o segundo livro da poeta Fernanda Bastos. O primeiro foi Dessa cor (2018), ambos publicados pela Editora Figura de Linguagem. Escritora jovem, nascida em 1985, Bastos inscreve-se na escrita contemporânea de mulheres negras que acionam a criação literária a partir do diálogo interdisciplinar entre a história e a literatura. E que tem como principais temas o racismo, o machismo e questões de classe. Eu vou piorar é um livro de poemas objetivos no uso da linguagem e diretos nas referências histórico-sociais. É uma publicação exigente com a pessoa leitora, pois pressupõe uma abertura para entender a literatura nesse encontro com outras formas do saber e disposta à dinâmica de uma leitura como experiência de vida. A objetividade temática e a assertividade da linguagem direta são resultados de uma criação literária complexa, que se relaciona com um desejo da autora, mulher negra contemporânea, de escapar das opressões. Como disse Glória Anzaldúa, o conjunto de relações significativas que marcam o escrever de uma mulher negra são: experiências pessoais, visão de mundo segundo a realidade vivida, vida interior, “nossa história, nossa economia”.1 E esse conjunto de relações marcam o desejo que é, ainda seguindo Anzaldúa, a ânsia de não repetir a performance da opressão, movimento de criação literária utilizados pela poeta Fernanda Bastos.

Eu vou piorar trabalha o tema poesia e sociedade a partir das heranças do escravismo e suas repercussões na dinâmica do pensar a vida da mulher negra. Por que hoje a sociedade brasileira identifica o corpo da mulher negra como aquele que pode suportar mais? Por que associa uma mulher negra ao trabalho de faxina? À sujeira? Ao lixo? Esses são questionamentos que a poesia de Fernanda Bastos nos leva a fazer, ou antes, são reflexões, caminhos de leitura anteriores ao livro, e que este espelha. Lélia González, em 1984, escreveu sobre o mito da democracia racial no Brasil, sobre o racismo e sexismo presentes na dupla imagem da mulher negra (mulata e doméstica), uma “neurose cultural brasileira” e lógica da dominação. González disse: “temos sido falados, infantilizados (infans, é aquele que não tem fala própria, é a criança)”.2 Considerando Eu vou piorar a partir dessas referências, podemos dizer que esse é um livro de poemas-vozes. São gritos da colônia ecoando no tempo-agora. É um livro de poesia que fala.

A autora começa com o poema “Plataforma”, texto que funciona como um apontamento de mazelas que afligem o Brasil, no recorte raça, classe e gênero. Não à toa, cada verso desse poema começa com a “O problema…”, e são setenta e nove versos.

O problema da fome […]

O problema da rejeição à vacina […]

O problema da idealização do negro […]

O problema da solidão […]

O problema da cultura do estupro […]

O problema dos mendigos queimados […]

O problema de não conseguir likes […]

O problema dos ribeirinhos (p. 5-7).

Nesse poema, os versos se organizam na página como o próprio título anuncia: numa “Plataforma”, sem espaços, sem divisão de estrofes. É uma sequência em bloco que envolve de problemas da pauta social a questionamentos teóricos clássicos sobre a definição de arte: “O problema da arte engajada / O problema da arte pela arte / O problema da arte pelo consumo / O problema de não definir arte” (p. 7).

A poesia em Fernanda Bastos fascina pelo mundo subjetivo que pode acionar, mas, principalmente, pela exposição do cotidiano. Os poemas causam desconcerto, deslocam nossas percepções do que poderia ser um silenciamento da vida viciada pelas opressões e nos apresentam vozes que comunicam tensões. Cada poema é um observatório social. O poema provoca, em quem o lê, constrangimentos pelos temas que aborda, como pela estrutura lírica que se apresenta em cada página. A performance do eu-lírico parece um canto narrativo, tanto no formato dos versos quanto na desobediência dos padrões fixos do poetizar. A poesia em Fernanda Bastos não se apresenta como a exposição de um eu-particular, mas como “inteligência que poetiza, como operador da língua”, para fazer uso de uma expressão de Hugo Friedrich.3

Um exemplo das vozes que comunicam tensões, o poema “Imperadores” sustenta um campo semântico entre trabalho e carnaval. O eu-pessoal é referência de coletivo: “Havia tardes/ Vovô contava / samba-enredos / que criava / e ganhou o carnaval / – enquanto trabalhava / dia a dia / na portaria” (p.8). A voz melancólica do cotidiano miserável: “vovô não é mais samba / as palavras voam / e os joelhos crescem / assim que fica em pé / tampouco escreve / difícil conter o sono” (p. 8).

O poema “Só mais uma estatística” traz versos que dizem: “parabéns à polícia… menos um filho da égua a nos atormentar” (p. 12). O poema começa com estatísticas sobre os assassinatos de jovens negros pela polícia no Brasil. O poema assume uma voz de desbunde como se o matar jovens negros fosse, simplesmente, uma subtração matemática de números de CPFs. “Só mais uma estatística” é um poema irônico, figura de linguagem que é tom marcante nessa publicação.

A ironia e o sarcasmo dão o tom que intensifica os poemas em Eu vou piorar, o título se sustentando vivo em cada poema. Em “Lida”, o desejo de um outro Brasil. A poeta escreve brasil com inicial minúscula e diz: “o brasil nunca existiu / quem sabe um dia, filha” (p. 18). A poesia expõe sentimentos, observa o mundo, mas, ainda, deseja transformá-lo. E o poema pode ser uma linha de abertura para uma nova visão de questões sociais que já pareciam, antes da exposição no poema, acomodadas na rotina do dia a dia. Quem sabe um dia uma pessoa leitora desperte de um sono profundo na esquina de um verso. Essa segunda publicação de Fernanda Bastos parece ter essa esperança. A esperança de que a poesia possa questionar a nação. É como piorar para quiçá ser visto. Ou é como escreveu Lélia Gonzalez: “o lixo vai falar e numa boa”. As vozes desse livro estão exaustas, alteram formas e sentidos como um último exercício de sensibilizar aquele que ouve para aquilo que o poema anuncia.

O título do livro é um verso do poema “Melissa”, texto chave na compreensão da costura estética, poesia em diálogo com a sociedade, que a autora elabora por todo o livro.

A médica disse.

E sou uma mulher forte.

Volte se piorar.

Vou me curar

em casa

em silêncio.

Eu vou piorar. (p. 29).

Melissa, a folha de chá que melhora a digestão, que controla sintomas de ansiedade e combate a insônia é campo semântico acionado pela poeta para lermos esse poema na tensão da ironia, do sarcasmo, moduladores, nesses versos, da violência provocada pelo racismo. “Melissa” é uma representação simbólica da estrutura desse livro, não à toa o seu título é um verso desse poema. Se lidos a partir da estrutura do racismo no Brasil, pode-se interpretar: uma médica branca disse a uma mulher negra que como ela (a mulher negra) é mesmo mais forte, pode voltar para casa e esperar a dor piorar. A voz do poema confirma o voltar para casa, sustenta um ficar em silêncio e afirma “eu vou piorar”. Mas essa afirmação não é apenas subjetiva, mais que isso, ela expõe um campo de afirmação positiva sobre si que referencia um campo de luta coletiva. Ela retira a tensão da dúvida (“se piorar”) e estabelece a positividade da certeza (“eu vou piorar”). Sendo essa, não uma piora medicamentosa, mas uma reação a uma dor, a dor que o racismo provocou.

O mesmo livro que sugere liberdade a partir da construção de uma linguagem propõe uma saída da cegueira diária. O poema “Independência ou morte” despeja nos olhos de quem o lê a dependência às estruturas sociais: família, Estado, universidade, igreja, família. Numa sequência de versos que vão apresentando essas sujeições, conclui: “Não declare independência ou morte / A morte é uma corredora muito mais rápida / e acostumada ao pódio” (p. 37). Esses versos finais do poema são cortantes na perspectiva de revelar correntes que mobilizam o caminhar num ideário romântico de liberdade e que no poema não são viáveis, pois a opressão social é tanta que esse libertar-se é ilusório. Cada verso desse poema, então, alinha um desejo de voltar a ser dependente, do que dizem sobre o que se pode ser e não o que se deseja ser.

No poema “Faxina”, elementos da história social do país são apresentados como analogia do fazer ver, no cotidiano, os resquícios de estruturas coloniais:

o pó reaparece de tempo em tempo

esporeando odores, promessas,

dores nos rins

a morada vazia mal assombrada

de se ouvir vozes antigas em

plenos castigos, demônios

e Anastácia chamada pra

limpar as mesas e os

modos dos meninos

o cheiro do café passado

a me lembrar o como foi

que não se adestra

ali no atlântico

da memória (p. 39)

No poema, o pó reaparece esporeando, sacudindo com violência e não o que seria o convencional supor, empoeirando, cobrindo de poeira. Um dos papéis da linguagem do texto poético é esse: alterar a ordem cotidiana das expectativas sobre a junção sequencial de determinados termos. “Faxina” é um ápice nessas discussões sobre raça, classe e gênero, pois apresenta, nas três estrofes, termos que registram campos semânticos de cada um desses blocos teóricos entrecruzados de elementos simbólicos da história do Brasil.

O livro de Fernanda Bastos nos revela que é do nojo, da angústia de ver a história que surge a vida. É do asco, da repulsa à repetição da mesma violência cotidiana que se pode sobreviver. São caminhos desse livro reagir às cenas sociais em que se encenam as heranças do escravismo e, mesmo, reagir a cenas de um teatro social que exige de cada eu um lugar de heroísmo, tanto para salvaguardar uma suposta nação quanto reconstruir uma nação desejada. E mais: esses caminhos são apresentados na mesquinhez do aviltante passar de dias repletos das estatísticas sociais. Como melhor diz o poema “Fato real”:

Acordei engasgando

e o próprio asco me acalmou

que não era nada apenas eu

somente eu embaixo (p. 43)

O eu-lírico, mulher negra em luta contra o exaustivo encontro com a estatística do racismo, que a coloca na parte mais baixa da pirâmide social. Eu vou piorar expõe a mesquinhez e violências da sociedade brasileira, apontando os lugares de tensão deixados e/ou criados pelas feridas coloniais, por exemplo, o escravismo e os fardos deste sobre o corpo da mulher negra. Essa segunda publicação de Fernanda Bastos é um livro exemplar no que se cataloga como literatura brasileira contemporânea. Uma obra lírica, aberta a diálogos interdisciplinares, e que possibilita uma experiência inquietante de leitura de vidas. É um livro que acerta na escolha do título e na costura estética que o conceito social (o piorar como ato político) alinha por toda a obra. O livro apresenta um eu-lírico em performance de fala-social. O título é uma resposta: eu vou piorar. E de fato piora, age como intensificador da tensão, para melhor inscrever registros de seu tempo; para melhor sensibilizar sobre as temáticas levantadas; para melhor acalentar a dor vivida. É exemplar trabalho literário para que melhor se possa ouvir o mundo contemporâneo.


Notas

1 Glória Anzaldúa, “Falando em línguas: uma carta para mulheres escritoras do terceiro mundo”, Estudos Feministas, v. 8, n. 1 (2000), pp. 229-236.

2 Lélia Gonzalez, “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, Ciências Sociais Hoje (1984), pp. 223-244.

3 Hugo Friedrich, Estrutura da lírica moderna, trad. Marise Curioni, São Paulo: Duas Cidades, 1978.


Resenhista

Luciany Aparecida – Escritora. https://orcid.org/0000-0003-0373-0546


Referências desta Resenha

BASTOS, Fernanda. Eu vou piorar. Porto Alegre: Figura de Linguagem, 2020. Resenha de: APARECIDA, Luciany. Poesia e sociedade na literatura brasileira contemporânea. Afro-Ásia, n. 65, p. 839-844, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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