Fantina: cenas da escravidão | Francisco Coelho Duarte Badaró

Não é comum, no campo da História, que obras literárias sejam resenhadas em revistas acadêmicas. A reedição recente de Fantina: cenas da escravidão, romance lançado originalmente em 1881 por Duarte Badaró, merece figurar como uma exceção, tanto pela sua evidente relação com um dos campos mais desenvolvidos da historiografia brasileira quanto pelo significativo aparato crítico que o acompanha. Publicada pela Chão Editora, especializada na edição de fontes primárias de grande interesse, a obra em questão vem acompanhada de um alentado posfácio de autoria de Sidney Chalhoub – cuja produção historiográfica ajudou a iluminar, ao longo das últimas décadas, a experiência da escravidão brasileira, sobretudo no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX. Juntos, o romance e o posfácio compõem uma obra que se apresenta, ao mesmo tempo, como um testemunho atento sobre uma das dimensões mais trágicas da ideologia de domínio que sustentou no Brasil o regime escravocrata – a naturalização da violência senhorial contra as mulheres escravizadas – e como um minucioso exercício metodológico sobre a relação entre a produção literária do período e a história social.

O enredo do romance em questão, localizado no início da década de 1870, se desenvolve em uma fazenda do interior da província de Minas Gerais. Sua proprietária era uma certa D. Luzia, viúva de quarenta anos que, segundo o narrador, ainda “sentia no corpo rejuvenescido ímpetos de mocidade” (p. 16), o que a leva a planejar novo casamento com Frederico, um dissimulado e lascivo forasteiro que havia chegado recentemente à região para se hospedar na fazenda de um dos compadres da fazendeira. Em torno de d. Luzia são apresentados os trabalhadores escravizados que a serviam no espaço doméstico, como a própria Fantina – uma jovem e bonita mucama, namorada de um trabalhador escravizado de outra fazenda da região, sobre a qual o pretendente da fazendeira logo começaria a lançar olhares de cobiça. Apesar de nomear o romance, Fantina está longe de figurar como sua protagonista, pouco aparecendo nos capítulos iniciais da trama. Sua participação na história cresce quando Frederico consegue finalmente se casar com d. Luiza e se torna senhor da localidade, dando início a abusos e coerções que visavam quebrar a resistência da mucama a suas investidas sexuais. Ao final da história, já casado com a dona da fazenda, ele finalmente consegue atingir seu objetivo: ao chantagear Fantina, ameaçando de prisão seu namorado, ela acaba por ceder a suas investidas, e se submete à sanha sexual do novo senhor. Em um breve capítulo final situado dois anos após tais acontecimentos, Duarte Badaró aponta para as consequências deste estupro: castigada severamente pela fazendeira, ela acabou transformada em mendiga, vagando pelas ruas como “uma mulher de fisionomia asquerosa, coberta de andrajos lamacentos, bêbada”, terminando por falecer ao lado da filha que foi fruto da violência sexual à qual fora submetida (p. 114).

Ao tratar deste enredo em seu posfácio, Sidney Chalhoub explicita sua perspectiva de leitura: aquela que busca compreender o modo específico pelo qual o romance dialoga com as formas e lógicas das relações escravistas do período. Mais do que o simples registro das “usanças do tempo” (p. 121), como as descrições de festas e outros costumes dos negros escravizados, interessa a ele entender como o relato dialoga com a experiência dos homens e mulheres submetidos no período à violência escravocrata, de modo a tentar compreender o sentido de intervenção da obra na ambiência a partir da qual ela ganhou forma. Ao mesmo tempo, ele analisa o sentido da publicação do romance em seu presente, apontando para as redes de interlocução que norteiam sua concepção.

Para isso, Chalhoub começa localizando socialmente seu autor, Duarte Badaró. Nascido em 1860, ele crescera justamente em uma fazenda do interior de Minas Gerais, como aquela que aparece em seu romance. Embora esquecido pela posteridade, ele chegou a ser em 1890 um dos deputados eleitos para a Assembleia Constituinte republicana. No momento da publicação do romance, em 1881, ele ainda era, porém, um dos jovens estudantes da Academia de Direito de São Paulo, instituição que costumava acolher os filhos das elites cafeeiras do país. Para além do perfil social de seus alunos, tratava-se de um dos principais centros de pensamento abolicionista no Brasil. Sob a liderança de figuras do mundo jurídico como Luiz Gama e Antonio Bento, muitos dos jovens estudantes do período, como Raul Pompéia e Coelho Netto, costumavam então se engajar ativamente na campanha. Duarte Badaró não fugiria à regra. Ao acompanhar testemunhos posteriores que reforçavam sua postura abertamente favorável ao fim do cativeiro, Chalhoub evidencia o quanto o romance em questão tinha a proposta explícita de investir contra a ordem escravocrata, denunciando seus desmandos. Ao expor a violência que marcava as relações escravistas, com descrições que visavam sensibilizar suas leitoras e leitores para o caráter bárbaro da escravidão, Badaró se somava assim aos esforços daqueles que lutavam então pela abolição do trabalho escravo.

A análise proposta no posfácio não se encerra, porém, na simples reafirmação do tom de denúncia presente no romance. Atento à complexidade da relação entre produção literária e vida social, Chalhoub trata de enfrentar as formas pelas quais uma obra literária se liga aos debates e questões do tempo. Para isso, identifica já de início a dupla historicidade da obra – que, se trata das tensões e incertezas da ordem escravocrata no início da década de 1870, no momento da discussão daquela que ficaria conhecida como a Lei do Ventre Livre, o faz a partir da perspectiva que já era possível a um autor como Duarte Badaró em 1881, quando a força do movimento abolicionista começava a se afirmar de modo mais evidente. Ao fazer isso, Badaró se valia do distanciamento temporal que, naquele mesmo ano, permitiria que Machado de Assis expusesse de forma mais direta em seu Memórias Póstumas de Brás Cubas o arbítrio próprio das relações escravistas, em um contexto no qual as contradições daquela ordem já se mostravam mais claras para seus possíveis leitores. Chalhoub se preocupa assim em “situar a narrativa de Badaró nos debates políticos do tempo”, tanto o da escrita quanto aquele em que situa seu enredo (p. 139), relacionando as opiniões expressas pelas personagens do romance (em especial pela fazendeira) com os debates parlamentares que ela acompanhava pelos jornais, como o autor faz questão de deixar claro. Demonstra assim que, ao apontar para a forte resistência de figuras como d. Luzia à proposta de liberdade do ventre no início da década de 1870, Duarte Badaró estaria lançando seu sarcasmo sobre os escravocratas da década seguinte, que haviam passado a defender aquela Lei para evitar novos atos legislativos em favor da liberdade – em uma referência de fácil compreensão para os contemporâneos.

A força de um romance não se encerra, entretanto, nas intenções explícitas de seu autor. Para além dos diálogos e interlocuções explícitas que possa estabelecer com o mundo letrado, uma obra literária se apresenta como uma forma específica de testemunho, que deve obedecer a certos protocolos de escrita a partir dos quais se tenta afirmar seu suposto sentido artístico. No caso em questão, Chalhoub destaca a força, entre os escritores do período, do princípio da verossimilhança. No prefácio à obra de Duarte Badaró presente em sua edição original, Bernardo Guimarães, já consagrado pelo sucesso do seu romance A escrava Isaura, alertava o jovem escritor para os perigos de uma filiação exclusiva a uma das duas escolas literárias que se colocavam em oposição no período: o romantismo e o realismo. Ainda assim, insistia sobre o elemento que, a seu ver, caracterizaria uma verdadeira obra literária, para além destas filiações: “caracteres e descrições, lances e peripécias, tudo deve ter o cunho da verossimilhança e da naturalidade” (p. 10). Para além das diferenças estéticas entre as duas escolas, afirma com isso a busca pela verossimilhança como princípio comum aos verdadeiros romancistas.

Atento a tal questão, Chalhoub mostra como o romance de Duarte Badaró se esforça em enraizar seu enredo na experiência histórica da escravidão no Brasil do início da década de 1870. Por mais que seu diálogo principal fosse com os setores letrados, em sua maior parte mergulhados na lógica escravista, ele dava forma à sua obra a partir de uma deliberada tentativa de aproximá-la das experiências dos trabalhadores escravizados e de seus senhores no Brasil da segunda metade do século XIX. O fazia, é claro, dentro dos limites possíveis a alguém de sua classe e de sua cor, estando longe de conseguir compreender de todo as perspectivas e experiências dos próprios escravizados. Chalhoub demonstra, porém, como a forma através da qual apresenta o ponto central da trama – a violência senhorial contra as mulheres escravizadas – parte de uma minuciosa caracterização da lógica escravocrata do período. Ao evidenciar a proximidade entre o enredo do romance e vários casos de violência senhorial que aparecem em outros testemunhos contemporâneos, ele indica como seu autor partia de “situações tidas como recorrentes nas relações entre senhores e escravos” (p. 149), articulando sua trama às experiências sociais do tempo. O romance parte, desta forma, do esforço de representar literariamente tal experiência, garantindo assim a verossimilhança pretendida de seu enredo. Chalhoub evidencia, com isso, o quanto forma e conteúdo são inseparáveis em uma produção literária como esta, cujo testemunho é marcado por opções e protocolos de narração que ajudam a definir o sentido da própria obra.

Na mesma direção, no entanto, Chalhoub poderia investir em outro tipo de questão que, de forma direta ou indireta, ajuda também a definir a forma final do romance: a perspectiva branca, senhorial e masculina a partir da qual ele foi escrito – que o narrador assume ao falar da “paixão” que ele e seus leitores teriam “por uma mulher bonita e espirituosa” (p. 24), ao definir os escravizados como “míseros párias” (p. 79) ou ao tratar um escravizado como “um tipo africano dos mais repugnantes” (p. 100). Por mais que faça de seu enredo um assumido libelo antiescravista, o autor não deixava de expressar nele um olhar próprio de seu mundo social, branco portanto. Mantendo a perspectiva senhorial da narração própria a outras obras, Duarte Badaró não chega assim a voltar sua atenção para o universo das senzalas, a não ser em breves descrições de usos e costumes dos escravizados. Sua narração se apresenta, deste modo, a partir de uma perspectiva exterior, no qual os escravizados somente aparecem quando seus movimentos interferem na vida da casa grande.

Mais do que marcar o ponto de vista da narração, uma maior atenção sobre as peculiaridades de tal perspectiva naquele momento ajudaria a reforçar a análise feita por Chalhoub sobre o próprio sentido do romance. No início da década de 1880, o olhar letrado sobre os negros passava a incorporar, de forma cada vez mais intensa, as doutrinas científicas sobre as raças que começavam a se afirmar no Brasil. Em paralelo ao declínio da ideologia que sustentava até então a escravidão, as classes senhoriais e seus ideólogos trataram de adotar e adaptar, com frequência cada vez maior, as perspectivas discriminatórias próprias aos teóricos racialistas na Europa. Como resultado, é sob este prisma que se expressam as visões de sujeitos como Duarte Badaró a respeito da situação dos escravizados. Tal perspectiva se apresenta na própria caracterização de Fantina, a escrava doméstica que dava nome ao romance – descrita pelo narrador como um “produto do cruzamento de duas raças” (p. 109). Ao caracterizá-la como um fruto da mestiçagem, Duarte deliberadamente a definia como uma “mulatinha de dezoito anos inflamatórios, produto de duas raças viris” (p. 31) – insistindo, em vários outros momentos, em nomear a ela e a outras escravas da fazenda como “mulatas” ou “mulatinhas” (p. 38 e 53). Longe de ser simples detalhe, tal caracterização aproximava Fantina de supostos prejuízos então associados pelos teóricos da raça às mulheres mestiças, como a sensualidade exacerbada. É o que se nota, por exemplo, em uma cena na qual, “sentindo o sangue mestiço correr-lhe pelas veias” (p. 50), ela aparece se revirando de calores na cama em sonhos com um pretendente. Nesta perspectiva, o final do romance, no qual Fantina é retratada como “uma mulher de fisionomia asquerosa, coberta de andrajos lamacentos, bêbada”, a “gritar obscenidades porcas” aos transeuntes (p. 114), pode representar não apenas o fruto da violência de seu senhor, mas também o resultado de uma tendência à degeneração vista por homens brancos como Badaró como uma decorrência natural de sua formação racial mestiça.

Por mais que condene e combata a escravidão, o autor não parece assim guardar empatia pelos escravizados. Se fazia questão de se diferenciar de “uma escravocrata empedernida como d. Luzia” (p. 147), ele mostrava compartilhar com ela uma visão negativa e preconceituosa em relação aos homens e mulheres sujeitos ao trabalho compulsório – evidenciando quais eram, àquela altura, os dilemas e limites das perspectivas próprias ao mundo senhorial a respeito da presença afrodescendente no Brasil. Tais limites se expressam na distância que separa a abordagem sobre o tema da violência senhorial contra as mulheres escravizadas neste romance, tal como analisada por Chalhoub, daquele apresentado décadas depois por Coelho Netto, um autor de sua geração que havia também passado pelos bancos da Academia de Direito de São Paulo. No romance O Rei Negro, de 1914, Coelho Netto – que na década de 1880 compartilhara de perspectiva semelhante àquela de Badaró em relação aos escravizados – apresentava um enredo também centrado na violência senhorial contra as mulheres negras, contando o caso do filho de um senhor que assedia e estupra uma escrava até levá-la à morte. Àquela altura, no entanto, já conseguia fazê-lo de forma muito diferente daquela de Duarte Badaró, seja pela tentativa de construir sua história a partir da perspectiva dos próprios escravizados ou pela possibilidade de apresentar em tintas muito mais fortes o arbítrio e a violência que marcavam o mundo senhorial. Em 1881, no entanto, esta não parecia ainda uma possibilidade para jovens autores como Badaró. Se ele tentava com seu romance ampliar as formas e a força das representações sobre o horror da escravidão, o fazia por dentro da linguagem e dos limites dos debates sociais do seu tempo e de sua classe.

Ao desvendar tanto a perspectiva antiescravista que o autor pretendeu apresentar com seu romance quanto as condições, lógicas e formas a partir das quais conseguiu fazê-lo, Fantina se mostra um precioso meio de compreensão sobre os dilemas e contradições experimentados no período pelos representantes do mundo senhorial. Se, nas palavras com as quais Bernardo Guimarães apresenta a obra em seu prefácio, um romance deveria “visar um fim qualquer, que seja útil ao homem e à sociedade” (p. 10), Duarte Badaró parece ter alcançado bem este objetivo – pois, como escreve Chalhoub, sua “imaginação literária” ajudava a explicitar o horror de “um tipo de violência legitimada no universo jurídico” que seria “garantida pelas leis do país” (p. 173). A possibilidade de compreensão dos limites e formas do modo pelo qual o fazia se mostra, no entanto, tão importante quanto aquilo que o autor quis denunciar, em especial no caso da literatura – motivo pelo qual cabe celebrar a nova publicação do romance, em tão cuidadosa edição.


Resenhista

Leonardo Pereira – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. https://orcid.org/0000-0002-8563-850X


Referências desta Resenha

BADARÓ, Francisco Coelho Duarte. Fantina: cenas da escravidão. Posfácio e anotações de Sidney Chalhoub. São Paulo: Chão Editora, 2019. Resenha de: PEREIRA Leonardo. Literatura e experiência: cenas da escravidão. Afro-Ásia, n. 65, p. 749-756, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.