Lacan para historiadores | Danieli Machado Bezerra

Se buscássemos um tema constantemente presente na trajetória de pesquisa da historiadora Danieli Bezerra, certamente a psicanálise seria logo destacada. Sua tese de doutoramento, publicada pela editora Appris em 2018 com o título de Lacan para historiadores, aprofunda seu interesse debruçando-se nas teorias de Jacques Lacan (1901 – 1981), e nos leva a um diálogo interdisciplinar entre história e psicanálise2. Esta desafiadora obra vem enriquecer estudos de teoria da história, e será aqui apresentada ao leitor.

Trazer a psicanálise para o debate historiográfico é um exercício que parte por caminhos marcados por polêmicas, críticas e duras resistências. Por outro lado, de uma perspectiva freudiana, resistências são indicativos de questões das quais não queremos trazer luz, que são reveladoras, incomodam e nos fazem pensar sobre nós mesmos e nossas práticas, neste caso, os historiadores e seu oficio. Isto nos coloca diante das questões: se diversas ciências humanas vizinhas já demonstram as possibilidades abertas pela psicanálise, por que não a história? A deusa Clio é o próprio inconsciente humano. Como defender e levar a diante este diálogo?

O diálogo entre história e temas psicológicos remonta a tradição da Revista de Sinthese e também dos Annales iniciada por Marc Bloch e Lucien Febvre em 1929, com seus trabalhos sobre o homem da idade média e a reforma protestante, de modo interdisciplinar, se inscreveram na história social e na psicologia coletiva. Estes pontos de contato entre a história e psicologia, e posteriormente com a psicanálise, fazem parte de todo um movimento intensificado na segunda metade do século XX no qual a interdisciplinaridade marcou presença, especialmente nos temas que se dedicam ao plano das sensibilidades e de suas possibilidades históricas (BURKE, 1991).

Segundo Peter Gay (1985), o ponto de reflexão sobre o uso da psicanálise pela história, parte de uma constatação comum entre as duas disciplinas, ambas buscam aprofundar-se no passado (tanto individual como coletivo), tornando consciente determinados aspectos/fatos que, por algum motivo, nos recusamos a notar. Psicanálise e história se concentram em compreender o passado, tem compromisso com a verdade, fundamentadas na teoria e na escrupulosa busca de provas, trabalhando para “tornar legíveis as pistas ilegíveis, encontrar camadas ocultas e distorcidas, negadas pela realidade por serem indesejáveis” (BEZERRA, 2018: 11).

A obra de Bezerra em questão se divide em quatro capítulos que seguem, respectivamente, as preocupações desenvolvidas por Lacan em seus seminários: linguagem, suas articulações com o inconsciente, a formação de conceitos e, por último, a problematização do uso da palavra. Vejamos uma descrição panorâmica de cada um deles.

No capítulo intitulado Jacques Lacan e sua contribuição para uma leitura sobre a linguagem, Bezerra faz uma imersão na obra lacaniana, descreve o percurso do psicanalista, especialmente em seu movimento conhecido como “retorno a Freud”, no qual Lacan empreende uma releitura das obras freudianas visando alcançar novas perspectivas direcionadas pela linguística. Proposta, ao mesmo tempo, audaciosa e polêmica, que lhe conferiu “excomunhão” (como Lacan dizia), da Associação Internacional de Psicanálise (IPA), e lhe conferiu a fundação de sua própria escola.

Sigmund Freud (1856 – 1939) enfatizou em sua teoria os modos pelos quais os sujeitos humanos devem conformar suas pulsões às condições da cultura e da sociedade na qual está inserido, em um constante diálogo de demandas entre o chamado ‘princípio do prazer e o principio da realidade’. Nesse sentido, a cultura, na perspectiva freudiana, tem o objetivo ‘domesticar’ o homem para a vida em sociedade, contendo seus impulsos e desejos, gerando assim os costumes, a moral e as regras de convívio social. É a partir deste campo de análise que Freud estabeleceu sua clínica, estudando diferentes psicopatologias humanas, destacando (re)encontros com materiais que se mantinham no espaço inconsciente, e que se manifestam em diferentes momentos, sejam nas associações livres, nos sonhos, nos sintomas (psicopatologias) ou nos conhecidos atos falhos.

Lacan, por sua vez, dá um passo adiante nas considerações elaboradas por Freud, seu foco é o sujeito humano como produto e produtor de linguagens. Foi precisamente na linguagem que ocorreu a conexão epistemológica interdisciplinar e transdisciplinar entre a História e a Psicanálise, técnica da Psicologia, pois a narrativa é a própria subjetividade no discurso histórico e no analisando da Psicanálise.

A psicanálise convida a descobrir e revelar verdades no ato da fala: “não seria a história desenvolvida por um discurso que se configura na trama textual da fala que escreve?” (BEZERRA, 2018: 28). Desse modo, a autora desenvolve uma discussão em torno da composição dos argumentos de Lacan em sua construção sobre o que vem a ser a linguagem, percebendo a função poética dos textos, e a psicanálise como prática literária da linguagem. Para Lacan, a psicanálise pode ser considerada e utilizada como um método de leitura de textos, orais ou escritos (ŽIŽEK, 2010: 12).

No segundo capítulo, A importância do significante como articulação do inconsciente no ensino de Jacques Lacan, Bezerra parte das articulações que Lacan elabora em diálogos com a linguística de Fernand de Saussure, e com a filosofia de Martin Heidegger, ao afirmar que o homem habita o mundo, habitando anteriormente a linguagem. O inconsciente é estruturado como linguagem, e nela se manifesta.

O que nos leva a necessidade de compreender sucintamente alguns conceitos utilizados por Lacan que partem de sua relação com a linguística, especialmente signo e significante. Signo é a instância que representa algo para alguém, de modo a operar, necessariamente, relações com outros signos. Nesse sentido, a linguagem pode ser considerada como um sistema de signos. O significante, por sua vez, é a imagem acústica da palavra que estabelece relações que levarão a diferentes significados. Porém, o destaque da teoria lacaniana é que o significante se sobrepõe ao signo, dito de outra forma, o sujeito que fala não sabe exatamente o que está dizendo, esta é a função do analista.

Desse modo, fundamenta a emergência do significante, no qual somos levados a compreender a vida pela linguagem e nos movimentar para as questões em torno do inconsciente (BEZERRA, 2018: 33). O psicanalista desvenda o fenômeno que estrutura e revela a verdade subjacente ao diálogo do sujeito pela via do inconsciente. O recalque – aquilo que o sujeito manteve fora da consciência por diferentes motivos – leva o sujeito a realizar uma discordância entre o significado e o significante. O significante é desta forma uma práxis sem fantasia.

Na sequência, os conceitos de metáfora e metonímia são resultado da reorientação da visão freudiana da condensação e do deslocamento, processos psíquicos que objetivam transformar e construir ideias. Condensação é o processo pelo qual se fundem diversas ideias inconscientes para desembocar numa única imagem, que pode ser identificada no consciente, perceptível especialmente nos sonhos (ROUDINESCO, 1998: 125). Deslocamento, por sua vez, ocorre por meio de transposições associativas que transformam elementos primordiais de um conteúdo latente em detalhes secundários de um conteúdo manifesto (ROUDINESCO, 199: 148).

O terceiro capítulo, Uma reflexão lacaniana sobre o conceito, recupera outro teórico com quem a autora estabelece um diálogo em sua tese, Reinhart Koselleck (2016). Segundo este autor, o conceito é fundador de uma trama histórica que se constitui como representação da linguagem que se altera conforme mudanças históricas, sociais e políticas que se enredaram ao longo do tempo. Desse modo, o que seria o conceito para Lacan, tendo em vista o grau de importância que o psicanalista atribui à linguagem?

A resposta a esta questão vem por meio de uma estrutura explicativa conhecida como matema, que são signos matemáticos apropriados pelo psicanalista, que associam fórmulas e efeitos produtivos de conhecimento. Lacan insiste que a psicanálise é alicerçada no campo do mal entendido, não no da compreensão, e que se sustenta pela operação significante, que auxilia na construção de um novo saber (BEZERRA, 2018: 73).

Os matemas lacanianos são separados intencionalmente por uma barra que representa o recalque, um saber que não se sabe, expulso da consciência devido a divergências com o principio de realidade. Com efeito, o matema descreve o campo patológico que nos faz repetir indefinidamente sempre os mesmos sintomas patológicos.

O que é difícil de ser transmitido/encontrado é a resistência encoberta pelo recalque, “a resistência se fortalece nos nossos deslizes para que neles possamos mostrar o conteúdo latente presente na fala e nos gestos do sujeito. Freud encontra na falha aquilo que a ciência não dá importância” (BEZERRA, 2018: 79).

A expressão ‘discurso’ está relacionada a quatro lugares que são assim distribuídos: agente, verdade, outro e produção, definidos pelos quatro matemas. Os matemas possibilitam os quatro discursos fundamentais da psicanálise: discurso do mestre, discurso da histérica, discurso do universitário e discurso do analista. A história se escreve depois do fato, portanto, trata do passado do mesmo modo que a psicanálise cuida dele, e se refere a um saber que se constrói pela via da linguagem.

Com este quarto capítulo a autora encerra sua apresentação e discussão sobre a psicanálise de Jacques Lacan, e nos mostra uma conclusão final, enveredando na em sua aplicabilidade na teoria da história. Proposta também realizada pelo historiador Michel de Certeau, que foi aluno de Lacan em seus seminários, aplicando suas teorias em pesquisas sobre a era moderna. No caso de Lacan, conceito e palavra são refletidos com a operação de signo e significante e, conforme salienta Certeau (coloque uma data), o psicanalista está atento a poética presente em qualquer discurso.

No capítulo final, Considerações sobre o que é a palavra no ensino de Jacques Lacan, o enredo teórico é explorado pela estrutura clínica lacaniana, o nó de Borromeu3, entrelaçando três registros: o simbólico, o imaginário e o real. Para Lacan a palavra deve ser analisada em seus múltiplos sentidos e deve-se revelar diante do analista o último sentido da palavra utilizada pelo sujeito. A palavra remete a questão sobre o material do inconsciente e seu manejo. Freud não considerava o suporte material da palavra, embora ela ganhe importância a partir da ‘Interpretação dos sonhos’ (1900).

Nesse sentido, a psicanálise lacaniana autoriza os historiadores a fazer perguntas, permitindo que percebam certas nuances que provavelmente passariam despercebidas. A psicanalise é o legado do século XIX, que rompe com o conhecimento cartesiano e positivista, e leva em consideração o outro lado da razão. Freud fabricava ficções a partir de fatos históricos, contribuindo assim para reintroduzir no trabalho do historiador um modelo de inteligibilidade subjetiva que a história excluíra ao tornar-se positivista.

A psicanálise se aproxima da história por dois aspectos. Em primeiro lugar, por sua terapêutica, que é antes de tudo um método histórico, uma busca no passado das causas de complexos atuais, reconstituindo sua gênese. Em segundo lugar, liga-se a tradição de escrita da história que busca reencontrar a narrativa, desde estudos vinculados na escola dos Annales, na história das mentalidades e na história cultural (BURKE, 1992).

Somos pouco contemporâneos de nós mesmos e deixamos coabitar dentro de nós as ideias mais diferentes, tanto em nossos pensamentos como em nos nossos atos, e a escrita histórica segue a mesma trajetória. Seria o conceito o significante para um historiador que o reflete, que o investiga e que o produz? A psicanálise pode prestar uma ajuda monumental, pois não apenas analisa o que as pessoas escolhem para recordar, mas revela o que elas foram compelidas a esquecer.


Notas

2 Tese original: BEZERRA, Danieli Machado. Um contraponto lacaniano e a História dos Conceitos de Reinhart Koselleck: Uma análise comparativa. Rio de Janeiro, 2016. Tese (Doutorado em História Comparada) – Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2016.

3 Expressão que designa um brasão com três divisões nos quais se entrelaçam o simbólico, o imaginário e o real.


Referências

BEZERRA, Danieli Machado. Lacan para historiadores. Curitiba: Appris, 2018.

BURKE, Peter. A escola dos Annales, 1929 – 1989 A revolução francesa da historiografia. São Paulo: Editora UNESP, 1992.

CERTEAU, Michel. As escritas Freudianas. IN. CERTEAU, Michel. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

ROUDINESCO, Elisabeth & PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

ŽIŽEK, Slavoj. Como ler Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.


Resenhista

Raphael Cesar Lino – Doutorando em história, Linha de pesquisa: Cultura, Historiografia e Patrimônio, vinculado ao programa de pós-graduação em história da unesp, FCL de Assis, Bolsista CAPES.


Referências desta Resenha

BEZERRA, Danieli Machado. Lacan para historiadores. Curitiba: Appris, 2018. Resenha de: LINO, Raphael Cesar. Tempos Históricos, v. 23, n.2, p. 613-618, 2019.  Acessar publicação original [DR/JF]

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