“Não tá sopa”: sambas e sambistas no Rio de Janeiro de 1890 a 1930 | Maria Clementina Pereira da Cunha || Uma História do samba: as origens | Lira Neto

Na década de 1970, Flávio Silva desenvolveu uma pesquisa audaciosa. Mergulhando na profundidade dos acervos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ), ele transformou nosso entendimento da canção “Pelo telefone” e a própria história do samba.1 Registrado na BNRJ em novembro de 1916, “Pelo telefone” se tornou sucesso do carnaval em 1917 e até hoje é chamado, erroneamente, o primeiro samba; na verdade outras canções gravadas antes foram chamadas de sambas e o gênero musical que definiria a chamada Época de Ouro do samba não se consolidaria por mais uma década depois do lançamento daquela canção. Nos anos 1970, quando Silva fez sua pesquisa, nosso conhecimento de tudo isso era incompleto. Graças a ele sabemos, por exemplo, que embora “Pelo telefone” não fosse o primeiro samba, ele todavia representa uma transição importantíssima.

Durante o carnaval de 1916, o vocábulo “samba” apareceu na imprensa carioca apenas três vezes. Depois do sucesso da canção durante o Carnaval de 1917, seu uso explodiu. Em 1917, excluindo referências diretas a “Pelo telefone”, cresceu 22 vezes o número registros do termo, que subiu para 37 em 1918. Nos anos seguintes, a palavra se tornaria sinônimo de canção carnavalesca de sucesso.2 Isso trouxe melhor definição às origens do gênero musical que se tornaria símbolo de cultura nacional no Brasil, facilitando outras gerações de pesquisadores. Carlos Sandroni, por exemplo, referencia a pesquisa de Silva em Feitiço decente, livro que também transformou a historiografia, com observações e análises perspicazes sobre a criação do ritmo distinto criado no final da década de 1920 por moradores do bairro do Estácio, no Rio de Janeiro.3

Se Silva e Sandroni nos deram detalhes, análises e conclusões imprescindíveis sobre o samba, a palavra tanto quanto a música, as origens do samba continuam alvo de debate. Dois livros novos, publicados exatamente no centenário de “Pelo telefone,” exemplifica este ciclo. Em Uma História do samba: as origens, o jornalista e ganhador do Prêmio Jabuti Lira Neto abre sua trilogia sobre a história do gênero musical. Como se lê no subtítulo, neste primeiro volume o autor propõe estudar os primórdios do samba, estratégia rejeitada por Maria Clementina Pereira da Cunha, autora do segundo livro, “Não tá sopa”: sambas e sambistas no Rio de Janeiro de 1890 a 1930. Para Cunha, a mera ideia de origens é problemática. “Essa história,” ela escreve, “é bem mais complexa do que pode sugerir a interminável discussão sobre berços e origens” (p. 83).

As diferenças entre os dois livros se estendem à metodologia e as fontes utilizadas, campos em que o trabalho de Flávio Silva serve como referência. Silva chegou a conclusões e observações de pesquisa caracterizadas por paciência e cuidado. Ele leu um jornal após outro na BNRJ, procurando todas as referências à palavra “samba”, um processo quase inimaginável por muitos na atual era da digitalização, quando, do conforto de casa, se pode vasculhar pela internet o acervo inteiro de jornais na Hemeroteca Digital da mesma biblioteca, que tem o recurso de busca por palavra (OCR- Optical Character Recognition).

Os livros de Clementina Cunha e de Lira Neto também nos permitem considerar os benefícios e desafios de metodologias e tecnologias novas e velhas. Uma História chega às livrarias com bonita capa e dois cadernos de imagens interessantes, enquanto “Não tá sopa” tem o formato de e-book, sendo parte de uma nova coleção da Editora da Unicamp, Históri@ Ilustrada, que emprega novas possibilidades no universo dos textos eletrônicos. Os dois livros também representam uma oportunidade propícia para avaliar duas categorias de produção intelectual: por um lado, pesquisa e fontes, por outro, análise e interpretação. (Ao longo do texto, também discutirei contrastes de formato e apresentação.)

Pesquisa e fontes

Na mesma época em que Flávio Silva fez seu trabalho laborioso na BNRJ, jornalistas como Sérgio Cabral, o pai, faziam entrevistas com músicos idosos e escreveram sobre eles e sobre a cultura do samba, incorporando suas histórias numa narrativa de esquerda. O semanário O Pasquim, por exemplo, publicou reportagens não somente sobre sambistas, mas também sobre figuras como Madame Satã, o famoso malandro da Lapa.4 Por motivos óbvios, esta produção jornalística tinha maior repercussão do que a pesquisa acadêmica, mas as melhores histórias do samba produzidas nos anos seguintes aproveitaram o trabalho e a pesquisa desses dois eixos: por um lado, as entrevistas e histórias orais compiladas por Cabral, outros jornalistas e o Museu da Imagem e do Som, que gravou depoimentos de artistas e compositores, começando na década de 1960; por outro lado, o trabalho feito por pesquisadores como Silva, que garimparam os arquivos.

Uma História e “Não tá sopa” seguem nesta tradição, devendo muito às gerações anteriores, e aproveitando documentação em três categorias: documentos escritos, histórias e entrevistas orais e gravações musicais. Partindo deste ponto comum, os dois livros divergem em várias áreas, incluindo suas metodologias para debruçar sobre e analisar tais fontes. Não se tem muitas indicações sobre a metodologia de Lira Neto, mas supõe-se que ele aproveitou o acervo de jornais digitalizados da BNRJ, pois algumas das descobertas que fez (descritas adiante) são de jornais espalhados no tempo e no espaço — uns do Rio nos anos 1940, outros de Pernambuco dos anos 1830 etc. Se supõe que Clementina Cunha também utilizou o acervo digital da BNRJ, pelo menos para complementar a pesquisa mais densa em arquivos.5 Ela também lança mão de outras tecnologias. Além do formato e-book, parte da originalidade do livro vem de sua interação com projetos digitais do Cecult-Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, da Unicamp.6 Um dos frutos mais interessantes é o mapa interativo Lazer, cultura, sociabilidade: cotidiano de trabalhadores em Santana, R.J. – 1905, que fornece uma visão interativa da vida cotidiana de muitos dos personagens centrais à história do samba e da cultura popular.7

“Não tá sopa” e Uma História também trazem à luz documentação nova. Mas enquanto o primeiro livro é fruto de uma década de pesquisa, informada por uma carreira dedicada ao estudo da história da cultura popular, e é cheio de fontes diversas, uma grande quantidade delas anteriormente desconhecidas, o segundo foi concebido há poucos anos, quando Lira Neto terminava o último volume de uma trilogia sobre Getúlio Vargas (que chegou às livrarias em 2014), numa conversa com Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, e tem documentação bem mais rala e análises menos completas e coerentes.8

No seu site, a Companhia das Letras descreve Uma História como sendo livro “recheado de documentos inéditos”, ideia reproduzida em muitas reportagens jornalísticas, que enfatizam a documentação policial utilizada no texto.9 É verdade que o livro traz à luz alguns artigos de jornais pouco ou não citados na vasta historiografia do samba. Por exemplo, o livro começa com uma anedota, baseada em artigos de jornais dos anos 1940, sobre o Zé Espinguela, conhecido no ambiente afro-religioso como “Papai Alufá”, e o maestro Heitor Villa-Lobos, que o procurou para ajudá-lo a ressuscitar os antigos cordões carnavalescos (pp. 11-8). O livro também revela um artigo que deve ser a primeira referência escrita ao samba, publicado em Pernambuco em 1830, oito anos antes da referência considerada, até agora, a mais remota (pp. 52- 3). Estes exemplos são riquíssimos, e imagino que foram localizados com a ajuda da Hemeroteca Digital, representando as novas fronteiras de pesquisa abertas pela divulgação de documentos históricos na internet. Mas, mesmo assim, a pesquisa em acervos digitalizados guiada por palavras chaves não pode substituir o conhecimento que vem somente do tipo de mergulho profundo nas fontes de pesquisadores como Flávio Silva, Carlos Sandroni e a própria Clementina Cunha. É possível que os artigos utilizados em Uma História fossem descobertos por meios não digitais, mas a mera diferença em anos dedicados à produção dos dois livros produz um contraste grande — enquanto Uma História não vai muito além da superfície, “Não tá sopa” transita em vários mundos e capítulos da história, tratando todos de uma maneira sofisticada e convincente.

À exceção dos exemplos citados acima e mais alguns artigos de jornais anteriormente desconhecidos, o volume de pesquisa original em Uma História é pequeno, e dizer que o livro é “recheado de documentos inéditos” exagera o que o leitor ali encontrará. Um artigo da Folha de São Paulo explica que este livro é baseado em “pesquisa em documentos inéditos e na imprensa da época,” mas se a segunda parte da declaração é correta, a grande maioria de “documentos inéditos” se refere, de fato, a fontes já trabalhadas.10 Por exemplo, o Capítulo 7, que trata dos Oito Batutas e com foco em sua experiência na Argentina, é pouco mais do que uma reprodução do excelente trabalho de Luís Fernando Hering Coelho, que aparece em 33 das 44 notas do mesmo capítulo (pp. 289-92).11 Um capítulo sobre Cartola é exemplo apenas um pouco menos extremo, com 36 das 66 notas dedicadas ao livro Cartola: os tempos idos, de Marília T. Barboza da Silva e Arthur L. de Oliveira Filho (pp. 297-300).12 Mas, nestas páginas, pelo menos Uma História dá o crédito devido a estes autores. Em outros lugares o autor não é tão cuidadoso.

É notável que ambos os livros analisem documentos policiais, fonte raramente utilizada até a virada do século XXI, quando Clementina Cunha começou a pesquisar no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ) em busca de processos criminais pertinente à história do samba, e quando eu fiz o mesmo para minha tese doutoral.13 Antes disso, a ideia de que o samba fosse “caso de polícia” era história popular — uma narrativa importante e poderosa mas, como as próprias origens do samba antes dos trabalhos de Silva e Sandroni, cheia de mitos e perguntas com pouca pesquisa séria para desvendá-los. A velha ideia de que o samba era reprimido e proibido antes de tornar-se símbolo da cultura nacional representa o que eu chamo de “paradigma da repressão”.14 Este paradigma tem desempenhado papel importantíssimo em chamar atenção ao racismo e à desigualdade, e, como qualquer mito, não é completamente divorciado da verdade. Mas ele também distorce muito e esconde outras histórias. Voltaremos a discutir isto, mas primeiro retorno à questão das fontes e pesquisas.

Uma História utiliza alguns documentos policiais já analisados anteriormente, em geral insinuando que são inéditos. O Capítulo 2 apresenta um caso policial envolvendo Hilário Jovino Ferreira, figura principal dos primeiros ranchos carnavalescos do Rio de Janeiro. As primeiras cinco notas do capítulo cita o caso sem outra atribuição, e sem menção a Clementina Cunha, que analisou o documento pertinente num artigo que apareceu nas páginas desta mesma revista há quase uma década.15 Lira Neto finalmente cita Cunha, mas só para lhe dar crédito por outra pesquisa minuciosa que fez sobre a geografia do Rio e as relações entre Hilário e outras figuras, e só depois das primeiras cinco notas, assim dando a impressão de que tivesse sido ele quem descobriu o episódio (p. 273, notas 1 a 6). Isto é sintomático de outras partes do livro e é amplificado nas entrevistas que o autor deu à imprensa.

Um artigo na Folha de São Paulo explica que “Lira Neto conseguiu reconstruir os passos” de Hilário, utilizando “arquivos da Justiça”. Sem mencionar Cunha, Neto explica ao jornal que, devido à falta de documentação escrita sobre figuras poucas conhecidas como Hilário, os processos criminais devem ser considerados de alta importância. O fato de o samba “ter sido criminalizado”, ele sustenta, até ajuda o pesquisador.16 Além de distorcer a história, a entrevista exagera muito as contribuições de Uma História. No livro inteiro, eu encontrei apenas dois exemplos de documentos policiais não trabalhados anteriormente.17

Localizar documentos policiais relacionados à música é trabalho duro e frustrante, fato conhecido muito bem por Clementina Cunha, que começou sua pesquisa no início da década passada no ANRJ. Parte do desafio se deve ao fato de que, fora alguma legislação local e proibições temporárias contra certos instrumentos musicais em festas públicas, a maioria das quais despareceu no começo do século XX, a ideia de o samba “ter sido criminalizado” é enganosa. Faltando leis “contra o samba” o melhor jeito de achar traços históricos de sambistas nos arquivos policiais é procurar indivíduos por nome na base de dados do ANRJ. Mas isto também é tarefa complexa. Depois de decidir quais intérpretes e compositores, entre centenas, é necessário identificar seus nomes legais (em vez de apelidos) e outros dados biográficos, informação nem sempre fácil de localizar. O nome legal do “artista -malandro” Brancura, por exemplo, é Silvio Fernandes, mas saber isto é só o começo do jogo, pois existiram muitos réus chamados Silvio Fernandes. A variabilidade e escassez de dados biográficos de sambistas conhecidos, para não falar dos menos conhecidos, complica tudo ainda mais. Cunha enfrentou tais desafios ao longo de muitos anos, compilando uma coleção impressionante de fontes. Em contraste, o punhado de casos incluídos em Uma História representa um pedacinho dos documentos conhecidos. Por exemplo, o Capítulo 9 discute um processo criminal em que Ismael Silva foi acusado de vadiagem, embora, na verdade, ele fosse preso pelo menos sete vezes.18 A única indicação desta história mais ampla vem somente no segundo caderno de imagens, que inclui reproduções de capas de quatro processos que envolvem Ismael, mas sem comentá-los.

Em “Não tá sopa” se acham poucas lacunas parecidas. O livro não apenas utiliza processos contra figuras ligadas ao universo do samba, mas também outros documentos pertinentes, como um Código de Posturas analisado cuidadosamente no Capítulo 1. Além de processos individuais encontrados no ANRJ, a autora se baseia numa série de outros acervos, incluindo várias coleções do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ), Livros de Ocorrências Policiais localizados no Arquivo Edgard Leuenroth, da Unicamp, várias outras coleções no ANRJ, jornais da BNRJ, uma lista robusta de mapas, imagens e reminiscências escritas, histórias orais gravadas pelo MIS e uma seleção muita boa de gravações originais, que podem ser ouvidas através de recursos permitidos pelo e-book. Este conjunto de fontes ajuda Cunha a fazer contribuições originais não somente à história do samba, mas também a outras experiências e trajetórias de vida no ambiente carioca do começo do século.

Não tá sopa” converte essa rica coleção de documentos em uma mídia interessante: um e-book que apresenta histórias, pesquisas e análises sofisticadas, e mesmo brilhantes, num formato visual e sonoramente instigante, ilustrado luxuosamente com 181 fotos e 42 canções. As imagens são realmente espetaculares, e devem representar a melhor coleção de fotos de sambistas reunidas em um só livro. As ilustrações musicais também são muito boas e acessíveis com um simples click do mouse, ou do dedo. Uma crítica frequentemente lançada contra livros sobre música escritos por historiadores, jornalistas e outros que não são músicos, é a dificuldade de se “ouvir” a música descrita. O caso de “Não tá sopa”, é literalmente o contrário, pois ao longo do texto o leitor pode escutar gravações originais das canções analisadas. Tudo isso aumenta o valor do livro e enfatiza o contraste com Uma História, que lança mão de algumas, mas não todas as mesmas fontes, porém com menos atenção e cuidado do que se experimenta com a leitura (e audição) de “Não tá sopa”.

Análise

O contraste entre os dois livros se estende à interpretação das fontes e dos fatos. Mais do que uma história compreensível do samba, o livro de Lira Neto é contado por meio de episódios e anedotas biográficas, no estilo de cronistas pioneiros como Jota Efegê.19 A meu ver, este estilo é cheio de possibilidades, e um escritor talentoso como Lira Neto utiliza o gênero com perícia, criando uma narrativa realmente agradável. Mas o potencial do estilo repousa não só na explanação suave mas também na possibilidade de aprofundar o conhecimento sobre vidas e acontecimentos complexos, e neste sentido o livro tem menos êxito. A referência interessantíssima do termo samba em Pernambuco, em 1830, ganha pouca análise, e depois de bom começo o alufá Zé Espinguela sai de cena.20

Não é que a descoberta de documentos inéditos seja sempre necessária para a produção de uma história nova ou instigante. Ao contrário, “Não tá sopa”, além de inéditos, utiliza documentos conhecidos para fazer a diferença. O próprio título do livro, que vem da canção conhecidíssima de Noel Rosa, “Com que roupa?”, mostra como novas leituras de documentos antigos podem multiplicar pistas. A autora utiliza este famoso texto musical, primeiro para fazer uma observação simples: para muitos dos protagonistas da história do samba, “a vida não estava (nem era) sopa” (p. 13), ou seja, era difícil. Mais do que uma asserção, Cunha utiliza a ideia como

gancho interessante para iniciar uma incursão a este universo [de músicos] pela mão dos indivíduos que, de modos diferentes, participavam das muitas rodas que se espalhavam pela cidade (p. 13).

Assim, ela transforma uma canção muito conhecida em plataforma para lançar uma série de perguntas e argumentos ao longo do livro. É verdade que ao livro falta uma conclusão formal, que poderia sintetizar os achados e a análise. Mas, mesmo assim, “Não tá sopa” faz justiça aos protagonistas de uma maneira que poucos livros sobre samba o fizeram.

Não tá sopa” também cruza documentos diversos de maneira instigante. Por exemplo, no AGCRJ a autora encontrou referência a um tal Fabio de Lucia, “musicante italiano” que pediu à Câmara Municipal licença para tocar quatro instrumentos (harpa, rabeca, piston e harmônica) na rua. Como se isso não já fosse bastante interessante, a autora contextualiza a documentação, vinculando-a a descrições da época de “homens dos sete instrumentos”, assim mostrando que Lucia não era mero exotismo, mas parte de uma cultura musical mais ampla (pp. 144-6). Através desse tipo de diálogo entre fontes diversas, junto com dados demográficos, econômicos e outros, com análise perspicaz e um conhecimento sem paralelo da cultura popular do Rio de Janeiro no século XIX e começo do XX, Cunha cria uma história reveladora. Não conheço trabalho sobre samba mais encaixado na história da cidade.

Uma História não tenta contar a história do Rio do mesmo jeito que “Não tá sopa”, e por isso a escassez relativa de documentos pesquisados é natural. Mas ainda se nos concentrarmos no pequeno conjunto de fontes verdadeiramente inéditas que se acha nele, não vemos muita argumentação nova. Substituindo Donga e Pixinguinha por Zé Espinguela, a abertura do livro poderia facilmente ter tirado suas primeiras páginas de O mistério do samba, livro publicado duas décadas atrás por Hermano Vianna, que abre com outro encontro envolvendo Villa-Lobos e a “música negra”.21 Apesar de receber críticas fortes, o livro de Vianna abriu debates e lançou perguntas importantes. Ele começa com um encontro entre Villa-Lobos, Gilberto Freyre e outros intelectuais que queriam ouvir a música “autêntica” de Donga e outros músicos negros. Este encontro é a metáfora que Vianna apresenta como o mistério central do samba: como este se transformou de forma cultural marginalizada em símbolo nacional? Para muitos, o autor exagerou o papel da elite branca, apresentando uma visão por demais heroica e celebrativa de um processo complexo e cheio de racismo. Mas, apesar das críticas, quase todo mundo concorda com a importância da questão central do livro, que também ajudou a lançar outras perguntas e a procurar novas fontes de pesquisa.

Não tá sopa” representa uma espécie de ápice da onda de pesquisas que O mistério do samba ajudou a estimular. Clementina Cunha interage com o trabalho de Vianna e critica sua tendência a “enxergar” em encontros como aquele entre a turma de Donga e a turma de Villa-Lobos “ocasiões de ‘miscigenação’ cultural e apagamento de conflitos.” A perspectiva de Vianna, ela escreve, é “uma perspectiva influenciada pela visão freyreana” (p. 593, n. 10). Uma História tende a replicar esta visão, e também inclui algumas frases e descrições lamentáveis. É dito que Zé Espinguela dominava “saberes africanos” (p. 12), como se existisse um conjunto fixo e singular destes, e dois percussionistas “do morro” são descritos como “autênticos” (p. 212), como se a pobreza naturalmente instalasse ritmo em seus corpos. Ademais, toda a “comunidade negra” do Rio é tida como “invariavelmente pobre” (p. 28). Esta última asserção esconde a fluidez e diferenciações internas importantes. Pixinguinha, por exemplo, veio de uma família com muito mais recursos do que Ismael Silva. Não é dizer que raça e pobreza não estejam estreitamente ligados — não há dúvida que sim — só que generalizações como esta tendem à caricatura.

Clementina Cunha rejeita essas ideias fixas, mostrando, por exemplo, a multiplicidade musical dos afrodescendentes e criticando a “tradição historiográfica posterior”, que apontava a “existência de uma musicalidade negra ‘de raiz’, unívoca, derivada dos velhos batuques” (p. 106). A autora também desafia a longa tradição de trabalhos que apresentam “uma história canônica do samba na qual uma evolução linear dos acontecimentos faz desaparecer as contradições” (p. 18). Em alguns momentos, Uma História começa a enfrentar tais contradições, mas não conclui a tarefa, reproduzindo assim narrativas canônicas. Considere-se o parágrafo seguinte sobre uma turma de “malandros-músicos”:

Não à toa, viviam enrascados com a polícia. A maioria deles foi presa e respondeu a inquéritos em mais de uma oportunidade ao longo da vida. Em geral, faziam da valentia uma regra de conduta. Mais tarde, seriam romantizados na figura do malandro folgazão, um sujeito sempre simpático, sedutor incorrigível e anti-herói libertário, invariavelmente boa-praça. Mas, na vida de carne e osso, as adversidades da malandragem não ofereciam margens para apologias e idealizações idílicas. Vários terminaram seus dias precocemente, em trocas de navalhadas e sangrentas brigas de rua. Outros tiveram o organismo arruinado pela sífilis ou pela tuberculose, moléstias adquiridas nas infindáveis noitadas de arruaça e boemia (p. 183).

A estranha aproximação entre sífilis, doença venérea e tuberculose — esta última vinculada à falta de acesso ao saneamento e outros bens básicos mas inalcançáveis para tantos cariocas — contrasta com o tratamento de Cunha, que inclui documentos como um pedido apresentado ao prefeito Pereira Passos por moradores de uma residência coletiva ironicamente chamada de “Palacete.” Seus moradores apelavam ao famoso “Haussman Tropical” para ajudá-los a aliviar as más condições (e, vale dizer, propícias à tuberculose) que para eles não eram fruto de boemia ou malandragem e sim de uma realidade grave e séria (pp. 161-4).22

O parágrafo reproduzido acima também é bom exemplo de que, ainda quando questiona um estereótipo (neste caso, o malandro romantizado), Uma História acaba reproduzindo outro (o malandro brigão). Parte do problema vem da natureza incompleta da documentação utilizada. A turma de “malandros-músicos” inclui Brancura, mas, como no caso de Ismael Silva, o livro negligencia discutir pelo menos oito processos criminais que existem sobre ele.23 Em contraste com Uma História, onde Brancura parece pouco mais que uma caricatura sem cara e sem vida, em “Não tá sopa” a vida e as experiências dele saltam das páginas. Cunha analisa vários de seus processos criminais e também inclui uma rara foto do artista, tocando violão na Casa de Detenção, devidamente creditada a Humberto Franceschi, que reproduziu a imagem em Samba de sambar do Estácio. 24 Assim, e através de análise aguda, “Não tá sopa” dá vida a figuras anteriormente poucas conhecidas.

Uma História dá mais atenção a Ismael Silva do que a Brancura, mas como já vimos a discussão e documentação relativas a ele também é incompleta. No Capítulo 9 do livro, o autor transforma a experiência de Ismael em uma quase-tragédia hollywoodiana. Depois de passar semanas na Casa de Detenção por acusação de vadiagem, o compositor voltou à sociedade, evitando por pouco o cumprimento de uma sentença em Ilha Grande. Se tivesse ido para Ilha Grande, o autor nos diz, não teríamos o carnaval moderno. “Caso houvesse cumprido a pena,” Lira Neto escreve,

não teria presenciado o desfile inaugural do grupo carnavalesco que ajudara a fundar, seis meses antes, ao lado de uma turma de maiorais do Estácio: a quase mitológica Deixa Falar, considerada por muitos a primeira escola de samba da história (p. 180).

Para Cunha, as experiências de indivíduos “enrascados com a polícia” representam questão mais séria. Ela expõe e estuda as péssimas experiências dos indivíduos que passavam tempo sob custodia das autoridades, e ao mesmo tempo complica velhas ideias sobre repressão à música e aos músicos. Começando mais ou menos nos anos trinta, ela explica, os sambistas

já constituíam […] uma categoria social relevante. Deixavam de ser apenas um alvo privilegiado da arbitrariedade policial e, ao mesmo tempo, o termo livrava-se da conotação desqualificante que adquiria nas delegacias para justificar a detenção de vadios “da lira” que empunhavam pandeiros ou violões” (p. 72).25

Assim, Cunha questiona o paradigma da repressão, mostrando uma história muito mais contraditória e complexa do que lemos em Uma História. Isto não quer dizer que o paradigma seja completamente falso, ou que sua narrativa e mensagem não são importantes. A ideia de que samba era “caso de polícia”, Cunha mostra, abriu oportunidades para os músicos emitirem críticas à violência e ao racismo da polícia e da sociedade, ainda quando embrulhadas em música alegre, como, por exemplo, em duas canções de Pixinguinha, “Samba de nego” e “Festa de branco” (p. 74). Ademais, Cunha encontrou evidência irrefutável nos arquivos policiais de pessoas presas por tocar e cantar em via pública, como três detidos na rua Conselheiro João Cardoso por, na descrição do escrivão policial, “estarem em grupo com serenatas” (pp. 176-7).26 A historiadora achou este caso nos Livros de Ocorrências Policiais, mais um exemplo de pesquisa que pode ser difícil e frustrante.

Clementina Cunha mostra como algumas das velhas categorias na história do samba são construções que obscurecem outras realidades. Com base em um caso policial envolvendo o famoso flautista Benedito Lacerda, ela escreve: “as fronteiras entre sambistas, músicos, policiais e ‘malandros’ não eram assim tão claras no dia a dia desses personagens ‘da lira’” (p. 178). Nesta mesma linha de argumentação, mostra, especialmente no Capítulo 2, uma colaboração fecunda e ligações interessantes entre trabalhadores e músicos (ela ressalta também que muitas pessoas pertenciam a ambas as categorias) e entre sociedades laborais e recreativas. Em 1915, a polícia negou o funcionamento do Clube das Mangueiras — composto maiormente por trabalhadores do porto forçados pelas reformas de Pereira Passos a morar na Zona Norte — pela presença na agremiação de Caralampio Trilles, acusado de ser “agitador revolucionário perigoso” (p. 250). Aqui e em outros momentos “Não tá sopa” lança críticas diretas e convincentes a categorias e linhas de pensamento que têm sido parte da literatura sobre samba desde o começo, neste caso inserindo um agitador espanhol na história do samba.27

Lira Neto é mais experimental. Falando à Folha de São Paulo, ele explica:

Não quero parecer o desconstrutor de mitos. Valorizo a tradição oral. O samba é um processo de criação coletiva, a arte popular não tem começo e fim. Ele é um dos elementos da aventura da nossa mestiçagem.28

Clementina Cunha também valoriza a história oral, mas sem acreditar que a valorização e o olhar crítico sejam coisas mutuamente exclusivas. Ela admite, desde o começo, o papel complexo que memórias populares desempenham na construção de mitos históricos. Enquanto valoriza essa tradição, não hesita dizer que alguns mitos e ideias merecem ser questionados. Bom exemplo disso vem de uma passagem de Uma História, onde aprendemos que o grande sambista Sinhô “seduziu e raptou uma moça branca, portuguesa, Henriqueta Ferreira” (p. 60). A frase não qualifica nem questiona, simplesmente reproduz a misoginia da mesma malandragem mítica que o livro propõe rejeitar. Que pensaria Henriqueta dessa caracterização? É difícil saber, pois, como Brancura, ela desaparece do texto, foi neste introduzida apenas como acessória.

Para onde vai a historiografia do samba?

Ler estes dois livros juntos é entender como a historiografia, e não somente a história, corre em ciclos. Quando Flávio Silva se refugiou na BNRJ para escavar a história do samba, Sérgio Cabral andava nas ruas e morros da cidade conhecendo e entrevistando músicos. Se Clementina Cunha nos oferece nova escavação inovadora, falta-lhe o mesmo engajamento jornalístico de cronistas como Cabral que, apesar de falhas e imperfeições, se dedicaram a trazer à tona relatos realmente inéditos, e muitas vezes, pelo menos, escutar e ouvir as histórias de pessoas repetidamente marginalizadas e excluídas da grande história nacional.

Porque Uma História e “Não tá sopa” demonstram, incrivelmente, que, apesar de uma historiografia tão densa como a do samba, ainda existe mais documentação a ser trabalhada e analisada, vale a pena concluir com algumas perguntas e apontamentos, inspirados em ambos textos, que talvez pudessem gerar futuras pesquisas.

Primeiro, a rica coleção de fontes utilizadas por Cunha e o formato inovador da Coleção Históri@ Ilustrada sugerem pesquisas interdisciplinares sobre o samba e outras formas musicais. Pode-se imaginar a riqueza de um livro já tão importante como Feitiço decente, por exemplo, se acompanhado por gravações sonoras, acessíveis dentro do próprio texto, como em “Não tá sopa”. Também se pode imaginar as novas conclusões e análises que resultarão do aumento de colaborações e pesquisas entre pesquisadores de áreas distintas, a exemplo do recém-lançado Música e ciências sociais, organizado pelo sociólogo Dmitri Cerboncini Fernandes e o etnomusicólogo (e músico) Carlos Sandroni.29

Segundo, “Não tá sopa” também indica caminho futuro para as histórias de gênero e sexualidade. Cunha debruça sobre o tema da masculinidade um pouco, especialmente no Capítulo 4, mas com certeza caberia mais espaço por meio de pesquisa adicional, e vale a pena destacar que em ambos os livros as mulheres recebem parca atenção.30

Terceiro, no último capítulo do seu livro, Cunha aponta a necessidade de mais pesquisas sobre

religiões de origem centro-africana, bem como dos jongos, dos calangos e de outras modalidades musicais na formação do samba carioca, cuja importância ainda está por ser devidamente estudada (p. 619),

outra observação importante.31 Finalmente, e como sugere a referência instigante ao samba que Lira Neto achou em 1830 em Pernambuco, sempre há mais oportunidades para se estudar outras histórias do samba e outras músicas chamadas samba, especialmente fora do Rio.32

Através destes e de outros caminhos será interessante ver se as próximas levas de pesquisas acham um jeito de escapar do ciclo, que parece sem fim, já um século depois da criação de “Pelo telefone”, em que o samba continua a produzir duas vias intelectuais paralelas, uma que trilha novas pistas metodológicas e conceituais, engajando, honrando e também criticando os mitos, e outro preso a estes, por desejo de ressuscitá-los ou apesar de tentativas para deles escapar.


Notas

1 Flávio Silva, “Origenes de la Samba Urbain à Rio de Janeiro” (Tese de Doutorado, École Pratique des Hautes Études, 1975); idem, “Pelo telefone”, comunicação ao II Encontro de Pesquisadores de Música Popular Brasileira, Rio de Janeiro, 1976; idem, “Pelo telefone e a história do samba,” Cultura, v. 8, n. 28 (1978).

2 Silva, “Origenes”, p. 235; e Silva, “Pelo telefone e a história do samba,” pp. 71-2.

3 Carlos Sandroni, Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro 1917-1933, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

4 Sérgio Cabral, As escolas de samba: o quê, quem, como quando e por quê, Rio de Janeiro: Fontana, 1974; Paulo Francis, “Madame Satã”, in Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe, o Jaguar (org.), As grandes entrevistas do Pasquim (Rio de Janeiro: Codecri, 1975), pp. 149-60.

5 Em artigo recente, Lara Putnam advoga que os historiadores sejam mais francos quanto a suas metodologias, especialmente quando se utilizam de acervos digitais. Lara Putnam, “The Transnational and the Text-Searchable: Digitized Sources and the Shadows They Cast,” American Historical Review, v. 121, n. 2 (2016), pp. 377-402.

6 Para mais detalhes, ver o site do Cecult: www.cecult.ifch.unicamp.br/projetos .

7 www.ifch.unicamp.br/cecult/mapas/mapasgotto1905/introgotto1905.html

8 Lira Neto descreve a origem de seu livro em Murilo Roncolato, “Biografando o samba: livro conta as origens do gênero que está colado à imagem do Brasil”, Nexo, 17 de fevereiro de 2017. //www.nexojornal. com.br/entrevista/2017/02/17/Biografando-o-samba-livro-conta-as-origens-do-g%- C3%AAnero-que-est%C3%A1-colado-%-C3%A0-imagem-do-Brasil. Acessado em 14 de maio de 2017. Cf. Lira Neto, Getúlio, v. 3: Da volta pela consagração popular ao suicídio (1945-1954), São Paulo: Companhia das Letras, 2014. Entre as publicações anteriores de Cunha que informam seu livro, o primeiro de sua autoria e o segundo dela como organizadora, ver Ecos da folia: uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920, São Paulo: Companhia das Letras, 2001; idem (org.), Carnavais e outras f (r) estas: ensaios de história social da cultura, Campinas: Editora da Unicamp, 2002.

9 http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=13885 . Acessado em 16 de maio de 2017.

10 Maurício Meireles, “100 anos de samba, a história que a rua escreveu,” Folha de São Paulo, 26 de novembro, 2016. Caderno Ilustrada, C3. https://www.pressreader.com/brazil/folha-de-spaulo/20161126/textview. Acessado em 11 de maio de 2017.

11 Luís Fernando Hering Coelho, “Os músicos transeuntes: de palavras e coisas em torno de uns Batutas” (Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina, 2009).

12 Marília T. Barboza e Arthur L. de Oliveira Filho, Cartola: os tempos idos, Rio de Janeiro: Funarte, 1983.

13 Marc A. Hertzman, “Surveillance and Difference: The Making of Samba, Race, and Nation in Brazil (1880s-1970s)” (Tese de Doutorado, Universidade de Wisconsin, 2008). A tese é a base de meu livro, publicado há alguns anos: Marc A. Hertzman, Making Samba: A New History of Race and Music in Brazil, Durham e Londres: Duke University Press, 2013.

14 Para uma discussão completa, veja Herzman, Making Samba, especialmente cap. 2.

15 Maria Clementina Pereira Cunha, “‘Não me ponha no xadrez com esse malandrão’: conflitos e identidades entre sambistas no Rio de Janeiro do início do século XX,” Afro-Ásia, n. 38 (2008), p. 187.

16 Maurício Meireles, “Como um valentão criou uma nova forma de pular o Carnaval”, Folha de São Paulo, 25 de novembro, 2016. Acessado em 11 de maio de 2017.

17 Os documentos sobre Hilário foram usados por Cunha no artigo já mencionado e em “Não Tá Sopa”, e também na minha tese e livro. O primeiro documento original da polícia que aparece no livro de Lira Neto é outro caso relacionado a Hilário (p. 270, n. 9). O segundo é um par de documentos policiais, ampliados com pesquisa original nos jornais, sobre Buldogue da Praia, “dono de uma barcaça no mercado do peixe da praça Quinze, investido do cargo de presidente-tesoureiro da comissão do Carnaval” em 1932 (pp. 251-2, 270 n. 9, 305 n. 2).

18 Cunha, “Não Tá Sopa,” pp. 771-2, n. 53; e Hertzman, Making Samba, p. 165.

19 Ver, por exemplo, Jota Efegê, Figuras e coisas da música popular brasileira, Rio de Janeiro: Funarte, 1978.

20 Inclusive Hilário Jovino, figura referenciada por Lira Neto em várias entrevistas, ganha mais análise em “Não Tá Sopa,” onde ele é discutido vividamente no Capítulo 3, especialmente pp. 416-446, 448-53.

21 Hermano Vianna, O mistério do samba, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

22 Jaime L. Benchimol, Pereira Passos, um Hausmann tropical: a renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX, Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1992.

23 Hertzman, Making Samba, pp. 62-3.

24 Humberto M. Franceschi, Samba de sambar do Estácio: de 1928 a 1931, São Paulo: Instituto Moreira Sales, 2014.

25 Aqui minha análise repercute a de Cunha, mas eu também enfatizo uma aparente tendência contraintuitiva em que, para alguns músicos, inclusive Brancura e Ismael Silva, a “ascensão” da categoria de sambista foi acompanhada por um aumento de problemas com a polícia. Esta trajetória, em que várias formas de repressão parecem crescer nos anos 1920 e 1930, é mais uma indicação das distorções do paradigma da repressão, que sugere uma teleologia progressiva em que a marginalização desaparece com a legitimação do samba em uma nação supostamente mais moderna e democrática. Ver Hertzman, Making Samba, pp. 246-7.

26 Vale a pena mencionar que este exemplo, visto por Cunha como indicação de uma tendência generalizada, representa um contraste a uma observação que eu faço sobre os Livros de Ocorrências. (Além da referência citada acima, ver p. 217 e também nota 33 da p. 680.) Os que eu li não mostraram este tipo de repressão, mas minha amostra era menor do que a de outra documentação que utilizei, e considero as conclusões de Cunha como extremamente convincentes.

27 Outro exemplo representativo e interessante é a longa análise em “Não tá sopa” do “malandro-músico” Baiaco, quando aprendemos, entre outras coisas, sobre a relação surpreendente entre ele e o intendente municipal, uma “figura conhecida do jet-set carioca” (p. 508), Ataliba Correa Dutra, que em vários momentos atestou a juízes que o sambista trabalhava e tinha domicilio certo e não era criminoso (pp. 494-525).

28 Meireles, “100 anos”.

29 Dimitri Cerboncini Fernandes e Carlos Sandroni (orgs.), Música e ciências sociais: para além do descompasso entre arte e ciência. Curitiba: Prismas, 2017.

30 Faço tentativa de estudar masculinidade em Marc A. Hertzman, “Making Music and Masculinity in Vagrancy’s Shadow: Race, Wealth, and Malandragem in Post-Abolition Rio de Janeiro,” Hispanic American Historical Review, v. 90, n. 4 (2010), e me debruço sobre a ausência de mulheres na historiografia do samba em várias partes de Making Samba.

31 Vale a pena reproduzir aqui as duas referências dadas por Cunha, que são excelentes pontos de partida para mais pesquisa nesta área: Hebe Mattos e Martha Abreu, “Jongo, registros de uma história”, in Silvia Hunold Lara e Gustavo Pacheco (orgs.), Memória do jango (Rio de Janeiro; Campinas: Folha Seca; Cecult-Unicamp, 2007), pp. 69-106; e Martha Abreu, “Histórias musicais da Primeira República”, ArtCultura, v. 13, n. 22 (2011), pp. 71-83.

32 Bom modelo aqui é João José Reis, “Tambores e temores: a festa negra na Bahia na primeira metade do século XIX”, in Cunha (org.), Carnavais e outras f(r)estas, pp. 101-56, esp. pp. 130-1, onde cita documento de 1844 indicando haver dois tipos de samba na Bahia, o de crioulo (negro nascido no Brasil) e o de africano.


Resenhista

Marc A. Hertzman – University of Illinois at Urbana-Champaign. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

CUNHA, Maria Clementina Pereira da. “Não tá sopa”: sambas e sambistas no Rio de Janeiro de 1890 a 1930. Campinas: Editora da Unicamp, 2016. e-book. NETO, LIRA. Uma História do samba: as origens. São Paulo: Companhias das Letras, 2017. Resenha de: HERTZMAN, Marc A. Os ciclos do samba: inovação, fontes e mitos cem anos depois de “Pelo telefone”. Afro-Ásia, n. 55, p. 259-272, 2017. Acessar publicação original [DR/JF]

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