Clichês baratos: Sexo e humor na imprensa ilustrada carioca do início do século XX | Cristiana Schettini

Cristiana Schettini
Cristiana Schettini | Imagem: Café História

Como se dava a relação da sociedade carioca da Primeira República com as questões sexuais? Quais eram as possibilidades para o consumo do erótico em uma cidade recém-saída da escravidão, com um novo regime político cuja ideia de modernidade estava presente nos discursos de diferentes grupos sociais? E por fim, o que uma investigação das sociabilidades noturnas masculinas pode revelar sobre o modo pelo qual homens e mulheres negociavam hierarquias sociais e morais no Rio de Janeiro? O livro Clichês Baratos: Sexo e humor na imprensa ilustrada carioca do início do século XX, de Cristiana Schettini, busca justamente examinar as conexões entre o processo de mercantilização das diversões, a sociabilidade noturna, o humor e a sexualidade.

A maneira como as pessoas se divertiam já vem sendo interesse de pesquisas de história social desde as décadas de 1970 e 1980, quando se aproximaram os diálogos entre a Antropologia e a História. Trabalhos sobre o carnaval, as festividades religiosas, o teatro e outras formas de sociabilidade vêm trazendo para a historiografia novas contribuições para se entender as disputas políticas e sociais no país. Trabalhos como o de Cristiana Schettini têm sido fundamentais para a compreensão de quais fantasias e desejos sexuais ocupavam um lugar essencial na vida noturna do Rio de Janeiro do início do século XX. Leia Mais

A cidade que dança: clubes e bailes negros no Rio de Janeiro (1881-1933) | Leonardo Affonso de Miranda Pereira

O livro aqui resenhado é resultado de mais de uma década de pesquisa realizada por meio da lente cuidadosa da história social. O historiador Leonardo Pereira apresenta ao público leitor uma pesquisa sofisticada, com ampla utilização de fontes conhecidas e inéditas, orais e escritas. Combina questões caras ao público especializado que se interessa por cultura, política, trabalho e sociedade, ou seja, pela história complexa da sociedade no sentido atribuído por Eric Hobsbawn.1 É capaz de proporcionar para aquela leitora e aquele leitor que não são versados na ciência histórica elementos fundamentais para compreender como a dança e a música, no seu aspecto vivencial, transformado e recriado por gentes negras de origens populares, tão caras ainda hoje à cidade do Rio de Janeiro, têm uma trajetória que remonta ao fim do regime escravista e, sobretudo, às primeiras décadas da República. Leia Mais

Zoológicos humanos: gente em exibição na era do imperialismo | Sandra S. M. Koutsoukos

O livro aqui resenhado apresenta como protagonistas Eko, Iko, Hilda, Kurt, Elly, Stephan, Krao, Schlitzie, Peter, Bunny, Violetta, Mungo, William, Charles, Lavinia, George, Minnie, Sarah, Betty, Byrne, Ella, Lazzaro, Giovanni, Millie, Christine, Violet, Daisy, Chang, Eng, Maria, Rosalina, Liou-Seng, Liou-Tang, Joseph, Fanny, Quacke, “Manuel”, “Marie”, Abal, Nancy, Ota, Bomushubba, Shamba, Kondola, Lumbango, Latuna, Kalamma, Malengu, Lumo, Antonio, Ibag, Singwa, Johnny, entre outros tantos. Eles compõem um enorme grupo de seres humanos que foram desumanizados a partir da prática, consolidada no século XIX, de exibir seres humanos considerados exóticos, selvagens ou monstruosos em museus, teatros, circos, zoológicos, feiras e instituições científicas, tendo-se como base o discurso que se convencionou chamar “racismo científico” no mundo ocidental, um dos esteios fundamentais dos Estados imperialistas europeus. Leia Mais

Clichês baratos: sexo e humor na imprensa ilustrada carioca do início do século XX | Cristiana Schettini

SCHETTINI C
Cristiana Schettini | Foto: cafehistoria.com

SCHETTINI C Cliches baratosEm busca de diversão noturna, homens que viviam no Rio de Janeiro do início do século XX encontravam inúmeras opções de entretenimento no centro da cidade. Teatros, cinematógrafos, casas de chope e jardins são apenas alguns exemplos, dentre tantos outros locais de sociabilidade masculina. Não raro, nesses espaços, elementos relacionados ao sexo e ao humor eram mobilizados para atrair e satisfazer os anseios de uma ampla e diversificada clientela. “Estrangeiros no tempo”, leitoras e leitores de Clichês Baratos: sexo e humor na imprensa carioca do início do século XX, novo livro de Cristiana Schettini, iniciam seu percurso por esse mundo com um passeio que reproduz roteiros disponíveis a muitos consumidores desse lazer repleto de apelos eróticos. As perspectivas masculinas, porém, estão longe de serem as únicas, tampouco as mais enfatizadas pela historiadora.

Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), a autora fez uma tese sobre a prostituição carioca no início do período republicano. Esse trabalho foi premiado pelo Arquivo Nacional e deu origem ao livro “Que tenhas teu corpo”: uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas, publicado em 2006. Desde então, ela tem se dedicado a pesquisas sobre o tema e sobre imigração no Brasil e na Argentina, com ênfase na perspectiva de gênero. Publicou inúmeros artigos e organizou coletâneas, sendo a mais recente em parceria com Juan Suriano, intitulada Historias Cruzadas: diálogos historiográficos sobre el mundo del trabajo en Argentina y Brasil (2019). Atualmente, leciona no Instituto de Altos Estudios Sociales da Universidade Nacional de General San Martín (USAM) e é pesquisadora do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET). Leia Mais

Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro | Camillia Cowling

A edição brasileira do livro “Concebendo a Liberdade: mulheres de cor, gênero e abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro” da historiadora inglesa Camillia Cowling, professora de história da América Latina da Universidade de Warwick, foi lançada em 2018 pela editora da Universidade Estadual de Campinas, São Paulo. O livro é uma tradução do original intitulado Conceiving Freedom: Women of Color, Gender, and the Abolition of Slavery in Havana and Rio de Janeiro, lançado em 2013 pela University of North Carolina Press e, desde 2010, partes da obra já vinham sendo divulgadas em publicações internacionais pela autora.

Cowling trouxe para o centro desta narrativa as histórias de vida (ou pelo menos parte das histórias) de duas mulheres libertas: Ramona Oliva e Josepha Gonçalves de Moraes. Elas transcorrem por toda a obra, desde a introdução, quando a autora nos transporta para os respectivos dias em que estas mulheres, a primeira em Havana, a segunda no Rio de Janeiro, entraram com pedido de custódia de seus filhos nas instâncias judiciais máximas de cada uma destas cidades: Ramona no Gobierno General em Havana em busca de libertar seus quatro filhos María Fabiana, Agustina, Luis e María de las Nieves, e Josepha no tribunal local de primeira instância e depois no Tribunal de Relação no Rio de Janeiro, um tribunal de apelação, em busca de liberta sua filha Maria. Ramona teve que enfrentar “um dia escaldante do verão caribenho de 1883” e Josepha, diferentemente da cubana, “provavelmente sentiu arrepios de frio […] enquanto caminhava pelas ruas da cidade [do Rio de Janeiro]”, em agosto de 1884, quando é inverno na cidade. (COWLING, 2018, p. 23) Leia Mais

Épica II: Ovídio, Lucano e Estácio

Ao detectar a carência de materiais educativos voltados para o estudo das línguas e culturas clássicas na academia brasileira, Paulo Sérgio de Vasconcellos e Matheus Trevizam resolveram coordenar, junto à Editora da Unicamp, uma coleção intitulada Bibliotheca Latina. O intuito é reunir 19 títulos, voltados para diferentes gêneros literários praticados na Antiguidade. Em 2014, Vasconcellos lançou um trabalho sobre poesia épica, no qual estudou as epopeias de Ênio e Virgílio. Trevizam, no mesmo ano, publicou um livro sobre poesia didática (Virgílio, Ovídio e Lucrécio) e outro sobre prosa técnica (Catão, Varrão, Vitrúvio e Columela). No ano de 2016, Pedro Paulo Funari e Renata Senna Garraffoni escreveram sobre historiografia (Salústio, Tito Lívio e Tácito) e Leni Ribeiro Leite tratou da épica pós-virgiliana (Ovídio, Lucano e Estácio). Um texto sobre epigrama (Catulo e Marcial), de Robson Tadeu Cesila, saiu em 2017. Os outros 13 volumes ainda não foram publicados, mas os coordenadores anteciparam os gêneros que serão abordados: Elegia, Lírica, Comédia, Tragédia, Diálogo filosófico, Bucolismo, Romance, Epistolografia, Tratados gramaticais, Sátira, Fábula, Tratados de retórica e Eloquência. A presente resenha, como o título anuncia, tem por objeto o livro Épica II: Ovídio, Lucano e Estácio. Sua autora, Leni Ribeiro Leite, é professora de Língua e Literatura Latina na Universidade Federal do Espírito Santo. Leia Mais

Espaços da Recordação: formas e transformações da memória cultural | Aleida Assmann

Tópico

Esta resenha versa sobre o livro Espaços da Recordação: formas e transformações da memória cultural, de Aleida Assmann. Lançado em 2011 pela Editora Unicamp, o livro é resultado do trabalho de um grupo de tradutores liderados por Paul Soethe, da Universidade Federal do Paraná, da versão original alemã Erinnerungsräume: formen und wandlungen des Kulturellen Gedächtnisses, publicada em 2006 pela editora Verlag em Munique. A autora e seu companheiro, Jan Assmann, figuram entre os autores mais influentes das últimas décadas nos estudos da memória. Será de grande utilidade, contudo, para o leitor, perceber que o surgimento da memória cultural enquanto conceito está alinhado a uma crescente corrente de estudos transdisciplinares sobre a memória. Ainda que possam haver origens ainda mais remotas, como Aristóteles (SANTOS, 2013) e Platão (A. ASSMANN, 2011), Maurice Halbwachs e Aby Warburg são frequentemente referenciados para definir o momento em que a compreensão da memória humana incorpora o aspecto social e coletivo (J. ASSMANN, 1995). O termo memória cultural, entretanto, foi cunhado por Aleida Assmann e Jan Assmann para designar a memória que permanece viva em uma sociedade a longo prazo e distingue-se da memória comunicativa, que abrange um intervalo de três gerações, e da memória política, perpetuada por meio de instituições (J. ASSMANN, 2010). Leia Mais

Médicas-sacerdotisas: religiosidades ancestrais e contestação ao sul de Moçambique (c. 1927-1988) | Jacimara Souza Santana

As contestações anticoloniais das populações rurais africanas, por vezes categorizadas como “pré” ou “protonacionalistas”, foram postas numa relação de hierarquia evolutiva com aquelas protagonizadas por frentes e partidos políticos orientados por ideologias “modernas”. A oposição tradicional versus moderno, organizada como teleologia, que deduz a superação linear da modernidade sobre a tradição, tem sido felizmente repensada. Os próprios termos utilizados, oriundos de uma visão modernista, têm sido ressignificados, sugerindo uma dinâmica muito mais complexa entre continuidade e mudança. As contestações rurais, informadas por cosmologias próprias e, via de regra, associadas a uma linguagem religiosa, passaram a ser vistas, a partir de então, menos como fenômenos conservadores e mais em toda a sua complexidade criativa. Leia Mais

Concebendo a liberdade / Camillia Cowling

O livro de Camillia Cowling publicado nos Estados Unidos, em 2013, e recentemente traduzido para o português já se constitui uma leitura obrigatória para historiadoras, historiadores e demais pessoas interessadas em conhecer aspectos da luta de pessoas escravizadas na Diáspora. Em Concebendo a liberdade a autora apresentou uma pesquisa comparativa entre Havana (Cuba) e Rio de Janeiro (Brasil) na qual “mulheres de cor” apareciam na linha de frente da luta por liberdade legal para elas próprias e suas crianças nas décadas de 1870 e 1880.

Ao prefaciar a obra Sidney Chalhoub foi muito feliz ao lembrar a acolhida que o livro de Rebeca Scott a Emancipação Escrava em Cuba teve no Brasil, ainda na década de 1980, evidenciando o interesse do público brasileiro em saber mais sobre este processo em Cuba, colônia Espanhola que assim como o Brasil e Porto Rico foi um dos últimos redutos da escravidão nas Américas.

Mais de três décadas desde a tradução do livro de Scott, a pesquisa de Cowling chegou ao Brasil em um momento que embora já possamos contar com vários estudos de referência para o conhecimento a respeito da escravidão e da liberdade muitos lacunas ainda estão por serem preenchidas, a exemplo, das especificidades da experiência das mulheres – escravizadas, libertas e “livres cor”.

Felizmente, o alerta das feministas negras, especialmente a partir da década de 1980 de que as mulheres negras tinham um jeito específico de estar no mundo ganhou novo impulso nos últimos anos, notadamente, devido ao processo que resultou na Primeira Marcha Nacional de Mulheres Negras, ocorrida no Brasil, em 2015, cujos desdobramentos já podem ser percebidos na sociedade brasileira e tem inspirado pesquisadoras e pesquisadores no desafio de reconstituir esse passado.

Inserida no campo da história social e utilizando uma escala de tempo pequena para descortinar a agência feminina negra, Cowling esteve atenta também para questões mais amplas do período investigado como às conexões atlânticas entre Cuba e Brasil no contexto da “segunda escravidão”. Isso permite que a leitora e o leitor possam notar que embora tivessem optado por um processo de abolição gradual da escravidão ambos vivenciaram processos paralelos e distintos um do outro.

A obra foi dividida em três partes e subdividido em 8 capítulos. Neste texto destaco alguns aspectos, dentre vários outros, que chamaram minha atenção de maneira especial. Primeiramente, saliento que Cowling conseguiu remontar o itinerário de duas libertas tornado visíveis as marcas deixadas por elas tanto em Havana como no Rio de Janeiro, de modo que personagens tradicionalmente invisibilizadas pela documentação e, até mesmo, pela historiografia tiveram seu ponto de vista descortinado nas páginas de seu livro.

Os fragmentos da experiência de Romana Oliva e Josepha Gonçalves de Moraes remontados pela autora é a demonstração de um esforço investigativo de fôlego e bem sucedido. As questões levantadas e o exercício de imaginação histórica da pesquisadora tornaram possíveis que a partir do ponto de vista dessas mulheres possamos saber como pensavam várias outras de seu tempo e compreender os sentidos de suas escolhas, bem como daquelas feitas por seus familiares, escrivães, curadores e integrantes do movimento abolicionista.

A liberta Romana que comprara a própria liberdade um ano antes de migrar para Havana, em 1883, encaminhou uma petição dirigida ao governo-geral de Cuba reivindicando a liberdade de suas 4 crianças, María Fabiana, Agustina, Luis e María de las Nieves que estavam em poder de seu ex-senhor, Manuel Oliva. Quase um ano depois, foi a vez da liberta Josepha dar início a uma ação de liberdade na cidade do Rio de Janeiro com o objetivo de retirar sua filha, Maria, ingênua, com apenas 10 anos, do domínio de seus ex-senhores José Gonçalves de Pinho e sua esposa, Maria Amélia da Silva Pinho.

Assim como outras tantas pessoas, Romana e Josepha eram migrantes que a despeito das dificuldades das cidades, usaram a seu favor as possibilidades que as mesmas ofereciam na busca pela liberdade, além disso, como ressaltou a autora as chances de uma pessoa escravizada conseguir a liberdade morando nas áreas urbanas eram maiores do que aquelas que moravam nas áreas rurais.

De acordo com Cowling as duas libertas se apegaram as brechas da lei e fizeram omesmo tipo de alegação para contestar a legitimidade do domínio senhorial. EnquantoRomana declarou que sua filha era vítima de negligência e abuso sexual, Josepha alegou que suas crianças não estavam recebendo educação. Foi com base nessas denúncias que os senhores foram acusados de maus tratos, o que implicava na perda do domínio sobre as mencionadas crianças, conforme a legislação de Cuba e do Brasil respectivamente determinava.

No livro de Cowling, a leitora e o leitor interessado no tema pode verificar que as perguntas feitas a documentos como petições, ações judiciais, correspondências, jornais, obras literárias, imagens e legislação explicitam que as mulheres escravizadas, libertas e “livres de cor” sempre estiveram no centro da luta por liberdade legal. Isso porque as noções de gênero foram determinantes para o modo como elas vivenciaram a escravidão e consequentemente influenciaram em suas escolhas na luta pela conquista da manumissão. Além disso, especialmente nas décadas de 1870 e 1880, elas que sempre estiveram na linha de frente das disputas judiciais foram colocadas ainda mais no centro do processo da abolição gradual da escravidão.

As Romanas e as Josephas foram muitas nas duas cidades portuárias investigadas pela autora e com o objetivo de conseguir a própria liberdade e de suas crianças, elas se apegaram a argumentos legais tomando como base a legislação, como a Lei Moret de 1870 e a Lei do Patronato de 1880, em Cuba; e a Lei do Ventre Livre de 1871, no Brasil, mas também se apegaram a argumentos extralegais baseados em valores culturais como o“sagrado” direito a maternidade, apelando para piedade e a caridade das autoridadespara os quais levaram suas demandas de liberdade para serem julgadas.

Para Cowling, sobretudo, a retórica da maternidade era tão forte que era utilizada tanto por mulheres ao reivindicarem a liberdade de suas filhas e filhos como nos casos em que eram os filhos que buscavam libertar suas mães, e mesmo, nos casos em que os pais apareceram junto com as mães tentando libertar suas crianças, a opção era por colocar a maternidade no centro.

Não poderia deixar de trazer para este texto aquele que a meu ver é um dos pontos mais fortes da obra. Trata-se da opção da autora de enfrentar o tema da violência sexual contra “mulheres de cor”, aspecto da vida de muitas dessas personagens, ainda pouco explorado pela historiografia brasileira, seja devido ao sub-registro dessa violência na documentação disponível que era escrita em sua maioria por homens da elite e autoridades muitos dos quais também proprietários de cativas, seja devido à própria tradição de priorizar outros aspectos da experiência das pessoas.

Para a autora a tradição de violar o corpo de “mulheres de cor” era naturalizada entre os senhores e os homens da lei tanto que os primeiros não viam qualquer impedimento à prática de estuprá-las. Por isso mesmo, a falta de proteção extrapolava a condição de cativas e nem mesmo a liberdade legal era garantia de proteção ou reparação contra aqueles que as forçassem a ter relações sexuais com eles ou com outros (muitas escravizadas eram forçadas a prostituição por suas proprietárias e proprietários).

No entanto, se por um lado, ao se depararem com denúncias de violência sexual as autoridades geralmente posicionavam-se a favor dos agressores, inclusive responsabilizando as próprias “mulheres de cor”, prática que tinha a ver com a imagem que esses homens de maneira geral faziam desse grupo social considerado por eles como lascívias e corruptoras das famílias da elite. Por outro, ao procurar à justiça para denunciar a violência sexual elas explicitavam sua própria compreensão sobre si mesmas. Ao fazer isso Romana e várias outras estavam dizendo que acreditavam ter conquistado para si e para suas filhas o direito de poder dizer não para um homem com quem não quisessem fazer sexo.

Cheguei ao epílogo da obra convencida por Cowling de que embora Romana e Josepha tenham vivido em lugares diferentes e nem se quer se conhecessem, caso tivessem tido a oportunidade de se encontrar naqueles anos cruciais de suas vidas, elas teriam muito que conversar. Inevitavelmente suspeito ainda que várias mulheres negras do século XXI que tiverem acesso as minúcias do itinerário das personagens trazidas no trabalho terão a sensação de que também poderiam participar da conversa.

Por fim, acredito que as questões levantadas ao longo da obra sob vários aspectos servirão de inspiração para historiadoras e historiadores empenhados na reconstituição tanto quanto possível da vida de mulheres escravizadas, libertas e “livres de cor”, bem como de seus familiares e das pessoas com as quais elas se aliaram na construção de outros tantos processos coletivos de luta por liberdade legal.

Karine Teixeira Damasceno – Pós-Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura (PUC-Rio), Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).


COWLING, Camillia. Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e a abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro. Tradução: Patrícia Ramos Geremias e Clemente Penna. Campinas: UNICAMP, 2018. 440p.. Resenha de: DAMASCENO Karine Teixeira. “Mulheres de cor” no centro da luta por liberdade legal em Havana e no Rio de Janeiro. Canoa do Tempo, Manaus, v.11, n.2, p.294-297, out./dez., 2019. Acessar publicação original.

Da senzala ao palco: canção escrava e racismo nas Américas/1870-1930 | Martha Abreu

APRESENTAÇÃO: DIÁLOGOS EM DELAY

Tomo emprestada a expressão “diálogos em delay” das reflexões de Julio Groppa Aquino, que nos fala de diálogos que entrecruzam temporalidades e nos deslocam do tempo linear da cronologia: Leia Mais

Vila Rica em sátiras: produção e circulação de pasquins em Minas Gerais, 1732 – ROMEIRO (RBH)

O trabalho de interpretação documental é sempre um desafio para historiadores competentes, ainda mais quando envolve formas textuais e mídias peculiares. Adriana Romeiro está entre os mais talentosos pesquisadores dedicados à cultura política no Brasil da Época Moderna, com grande potencial de argumentação associado a uma bela escrita. Nesse livro que conta com a colaboração valorosa de Tiago C. P. dos Reis Miranda, a historiadora se lança ao estudo de peças de perfil satírico produzidas sobre o governo de Lourenço de Almeida na capitania de Minas Gerais, de 1721 a 1732. Leia Mais

Escritos de liberdade: literatos negros/racismo e cidadania no Brasil oitocentista | Ana Flávia Magalhães Pinto

Anualmente, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulga dados a respeito das desigualdades por cor no país. Em tempos de “pós-verdade”, de ataque às instituições de pesquisa, de fake news divulgadas por fontes duvidosas, de convicções rápidas e não fundamentadas, mas que recebem status de verdades absolutas, é sempre bom lembrar que a desinformação oculta a forma como as desigualdades de hoje se vinculam às de ontem. De acordo com os dados disponibilizados pelo IBGE em 2019, os negros (soma de pretos e pardos) tornaram-se 55,8% da população brasileira. Entretanto, as pessoas brancas permanecem recebendo os salários mais elevados, continuam sendo majoritárias entre o ocupantes dos cargos gerenciais e seguem tendo as taxas mais elevadas de frequência escolar em todas as idades.1 Leia Mais

Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação | Rebeca J. Scott, Jean M. Hébrard

Fruto de uma extensa pesquisa realizada ao longo de sete anos por Rebecca J. Scott e Jean M. Hébrard, Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação, traz a saga da família Vincent/Tinchant, apresentada ao longo de nove capítulos e um epílogo de tirar o fôlego. Desde já, saliento que não consigo ver de outro modo senão como excepcional o modo como estes experientes pesquisadores conseguiram seguir os rastros deixados por estes “sobreviventes do Atlântico”.

Logo no início do livro, os autores nos informam que não consideraram o itinerário dos Vincent/Tinchant como típico ou representativo, o que podemos constatar ao longo da leitura. O fio inicial para a investigação foi uma carta escrita por Édouard Tinchant, um fabricante de charutos residente da Bélgica, endereçada ao general Máximo Gómez, encontrada no Arquivo Nacional de Cuba, na qual ele solicita a autorização para pôr seu nome na marca de charutos que pretendia lançar e, para tanto, não se furtou em usar sua capacidade discursiva para relatar aspectos de sua vida familiar enfatizando uma conexão entre luta por direitos civis e igualdade racial no mundo atlântico do século XIX – a Guerra Civil e a Reconstrução dos Estados Unidos (1861-1877), a Revolução Francesa (1848) e a Revolução do Haiti (1791-1804). A trilha seguida por eles nos conduziu até o século XX abrindo uma janela para que pudéssemos ver os desdobramentos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) na vida de pessoas que tinham “cor”, como Marie-José Tinchant. Leia Mais

Da senzala ao palco: canções escravas e racismo nas Américas (1870-1930) | Martha Abreu

O livro Da senzala ao palco, ao investigar e comparar como os cantos e as danças dos negros escravizados nos Estados Unidos e no Brasil transitaram das senzalas para a indústria cultural, entrega informações importantes, faz reflexões interessantes e aponta caminhos instigantes. Em edição digital, o livro oferece aos leitores cerca de 200 ilustrações, fotos, capas de partituras, cartazes e jornais da época, além de 48 fonogramas e cinco vídeos com canções e danças. Ou seja, é uma obra que não só pode ser lida, mas também vista e — muito importante — escutada. Recorro à aguda observação de Shane e Graham White, citada por Martha Abreu logo no início de seu livro: “A cultura escrava foi feita para ser ouvida”. (cit. p. 83) Leia Mais

O intelectual feiticeiro: Edison Carneiro e o campo de estudos das relações raciais no Brasil – ROSSI (RBH)

ROSSI, Gustavo. O intelectual feiticeiro: Edison Carneiro e o campo de estudos das relações raciais no Brasil. Campinas: Ed. Unicamp, 2015. 280p. Resenha de: HERZMAN, Marc. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.37, n.76, set./dez. 2017.

Apesar da grande repercussão de sua obra e do fato de ter sido colega e amigo de figuras já muito tratadas na história e na historiografia do Brasil, Edison Carneiro ainda não recebeu a devida atenção do meio acadêmico. Jornalista, etnógrafo, historiador, folclorista e ativista, Carneiro deixou uma rica coleção de escritos que, como ele, são frequentemente citados, mas não estudados da maneira reservada aos de escritores brancos como Arthur Ramos e Gilberto Freyre. Carneiro e sua obra, poderíamos dizer, são partes da paisagem, mas aparecem fora de foco.

A ausência de trabalhos sobre Edison Carneiro é particularmente notável considerando o número de obras que escreveu, uma vastidão igualada à diversidade e à complexidade de sua vida e de sua carreira, que se estendeu de Salvador até o Rio e influenciou múltiplas gerações de intelectuais em distintas áreas, como da cultura e da política. Com tantos possíveis ângulos e linhas narrativas – e com tão pouco já escrito sobre ele -, as questões por onde começar e terminar não são óbvias ou fáceis. Gustavo Rossi começa seu excelente trabalho O intelectual feiticeiro: Edison Carneiro e o campo de estudos das relações raciais no Brasil não em 1912, quando Carneiro nasceu, mas na virada para o século XX, terminando não em 1972, quando morreu, mas em 1939, quando ele se deslocou de Salvador para o Rio. A escolha é indicativa do fato de que Rossi não empreende escrever uma biografia; de fato, o livro é muito mais que um estudo biográfico.

O texto divide-se em três épocas, cada uma correspondente a um capítulo. O primeiro é ambientado em Salvador na virada do século, com foco no pai de Edison, Antônio Joaquim de Souza Carneiro (1881-1942), professor na Escola Politécnica da Bahia e também ele um indivíduo extraordinário. Rossi localiza os Souza Carneiro no contexto político e cultural da Bahia, destacando os laços entre a família e J. J. Seabra, que controlou “a engrenagem política baiana” entre 1912 e 1924 (p.55). O capítulo também analisa a poesia escrita por Edison durante a juventude.

A despeito de rica produção intelectual de pai e filho, nem Antônio Joaquim nem Edison deixaram muitas indicações óbvias de como pensavam sobre si mesmos, especialmente no tocante à raça. Rossi enfrenta esse desafio com análise inovadora e uso criativo de fontes já bem conhecidas, como, por exemplo, o livro As elites de cor numa cidade brasileira, de Thales de Azevedo, e outras inéditas, que incluem documentos escavados em arquivos públicos e privados.

Munido de ricas fontes, Rossi confessa que o livro não traz “um retrato verossímil da forma como a raça e a negritude foram vivenciadas” (p.96) por Carneiro e sua família. Tal retrato, sem dúvida, seria impossível, de modo que a precaução de Rossi é bem justificada. O livro obriga o leitor, nesse sentido, a enfrentar perguntas cujas respostas ficarão, muitas vezes, em disputa. Inspirado por Olívia Maria Gomes da Cunha e outros/as antropólogos/as que interrogam a construção de arquivos e a relação entre etnografia e história, Rossi apresenta o livro não como estudo dos mundos de Edison, mas como um estudo em relação com esses mundos (p.245). Em outras palavras, Rossi entende sua própria produção intelectual em diálogo com um passado que nunca poderemos entender perfeitamente, mas que ainda influencia as perguntas e as categorias que utilizamos em nossos próprios trabalhos.

No primeiro capítulo essa postura abre perguntas que seguramente suscitarão debate. Rossi sugere que “pelo menos, na maior parte do tempo” os membros da família Souza Carneiro “não se viam e não foram vistos… como negros” (p.91). A observação baseia-se em situações instigantes, como, por exemplo, o atestado de óbito de Antônio Joaquim, que descreve o professor como “branco”. Rossi analisa o documento como signo do potencial limitado e frágil do escape em relação ao racismo. Rossi também descreve como a antropóloga norte-americana Ruth Landes surpreendeu-se quando viu Edison pela primeira vez. O tom da cor de sua pele “era significativo”, Landes escreveu, “porque as cartas de apresentação vinham de colegas brancos, que não haviam mencionado a sua raça ou cor” (p.76). Junto ao atestado de óbito, o exemplo reforça a asserção de que muitas vezes Edison e seu pai “não foram vistos como negros”.

Outros exemplos, contudo, põem a ideia em questão. Como Rossi explica, Antônio Joaquim era um dos únicos professores negros em Salvador, e é difícil imaginar que esse fato não afetasse, diariamente, a percepção de outros professores e alunos. O autor também se pergunta se a observação de Landes não revela mais sobre ela e suas experiências nos Estados Unidos do que sobre os colegas brancos, que em privado poderiam ter visto e definido Edison de uma maneira, e tê-lo descrito de outra na carta de apresentação.

Isso não representa crítica ao livro. Ao contrário, tais tensões enfatizam a utilidade da escolha de Rossi por trabalhar com a história e todos os seus espaços obscuros. Fechando o primeiro capítulo, Rossi escreve: “categorias de raça e negritude seriam, em diferentes momentos da vida de Carneiro, um significativo móvel de tensões e disputas de sentidos, não sem consequências para compreendermos suas práticas e tomadas de posição no campo intelectual” (p.93). Esse excerto parece capturar a questão melhor do que a sugestão, ainda se bem qualificada, de que os dois homens foram vistos “na maior parte do tempo” não como negros. Mas um dos muitos presentes desse livro é a maneira como ele admite a possibilidade de que ambos argumentos estejam corretos a um só tempo.

Se o primeiro capítulo revela perspectivas inéditas sobre Edison e sua família, o segundo apresenta mais contexto intelectual e cultural do que detalhes sobre o próprio Edison. O foco é a Academia dos Rebeldes, a turma literária formada por Edison, Jorge Amado e outros no final da década de 1920. Há menos ênfase aqui em questões de raça e identidade do que na trajetória da Academia, que funcionou como veículo de expressão política e resposta aos modernistas de São Paulo e do Rio.

A ascensão de Getúlio Vargas em 1930 e a chegada de Juracy Magalhães como interventor da Bahia no ano seguinte assinalaram uma transição (e decadência) para os Souza Carneiro e para o estado, cujos poderes oligárquicos se fragmentaram. No capítulo 3, Rossi agilmente vincula essa trajetória à formação de Edison como militante esquerdista, escavando detalhes interessantíssimos nos escritos de Carneiro da década de 1930. Dando ênfase à perspectiva marxista de Edison e sua correspondente visão materialista da história, Rossi lança argumentos e observações instigantes, como a sugestão de que foram as ideias de Carneiro – e não de Freyre e Ramos – que se combinavam mais claramente com as de Raymundo Nina Rodrigues. Apesar de rejeitar a hierarquia biológica racial adotada por Rodrigues, Carneiro acreditou, como o “mestre”, no poder da estrutura, nesse caso o das instituições que marginalizavam negros após a abolição. Essa crença, Rossi ressalta, aproxima Carneiro de Rodrigues, apesar de suas diferenças. Carneiro também antecipou por décadas a ênfase que Florestan Fernandes daria ao vínculo entre raça e classe, fato, Rossi observa, que aumenta nosso entendimento da riqueza e diversidade “de análise sobre o negro brasileiro” (p.206) dos anos 1930 e do papel importante que Carneiro teve na formulação de ideias muitas vezes atribuídas a Fernandes e outros.

Carneiro criticou Freyre, Ramos e outros estudiosos da cultura negra pela ausência de “capacidade de se porem na pele de um negro” (p.214). Carneiro também parecia advogar pela criação de um “‘Estado negro’ autônomo” (p.218-219), e é interessante pensar se essas expressões radicais refletem uma evolução de pensamento ou indicam uma disparidade entre as fontes. Nesse sentido, a coleção de documentos da primeira parte da sua vida – mais parca que a posterior – esconderia ideias e argumentos já existentes, que seriam expressados mais forte e claramente apenas nos anos 1930, quando é possível identificar um material mais abundante escrito por ele. Apesar de criticar Freyre e outros intelectuais, Carneiro também se considerava parte de seus círculos, muito mais próximo deles do que os homens e mulheres negros que estudavam. Ao mesmo tempo, figuras como Ramos possuíam privilégios que eles evidentemente não tinham – por exemplo, na posição de Ramos na Biblioteca de Divulgação Científica (p.228).

O último capítulo do livro conclui com uma consideração acerca da relação entre Carneiro e Landes, bem como da identidade complexa de Carneiro, visto agora pelas lentes da colega, amiga e amante que encontrou nele uma combinação de guia, “protetor” e tipo de assunto etnográfico (p.233, nota 150). Por meio de sua relação, vemos como “a ‘raça’ de Carneiro não era estável ou fixa, somente fazia sentido quando inserida em outros grupos naquele contexto, ou quando vista em relação a eles” (p.236). Rossi faz essa afirmação logo antes de terminar o último capítulo, nas vésperas da saída de Carneiro para o Rio. Supõe-se a possibilidade de aplicar a mesma caracterização ao restante de sua vida, que se estenderia por mais três décadas e que, graça a esse rico livro, começou finalmente a receber o tratamento cuidadoso e inteligente que merecia já há muito tempo.

Marc Herzman– Associate Professor, Department of History, University of Illinois at Urbana-Champaign. Urbana, IL, USA. E-mail: [email protected].

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O nascimento da demonologia na Europa medieval (1280-1330) | Alain Boureau

Conspirações, redes de heréticos ameaçando a cristandade, demônios dotados de poder e prontos a se fundir com os humanos. Esse é o pano de fundo no qual se desenrola a construção de uma ciência dos demônios, a demonologia, entre o fim do século XIII e início do XIV. O argumento é que essa construção ocorreu no âmbito escolástico. Em síntese é assim que se pode resumir o livro Satã Herético: O nascimento da demonologia na Europa medieval (1280-1330), de Alain Boureau.1 O livro foi publicado originalmente em 2004, na França, sob o título Satan héretique: Naissance de la démonologie dans l’Occident médiéval (1280-1330). A tradução, no entanto, é recente: em 2016, por Igor Salomão Teixeira2, na coleção Estudos Medievais, da Editora da UNICAMP. Esse é primeiro livro de Alain Boureau publicado no Brasil.

Partindo de pressupostos da história intelectual, na relação texto/contexto, Boureau desenvolve o argumento que o nascimento da demonologia ganhou força a partir do final do século XIII e nas primeiras décadas do século XIV junto aos debates escolásticos nas universidades. Demonologia essa que o autor defende ser “(…) a gênese da obsessão demoníaca (…) plenamente provida de procedimentos e de certezas por volta de 1430-1450 (…)” (BOUREAU, 2016: 19) que dá início à “caça às bruxas”. Ao longo dos sete capítulos do livro é discutido como o demônio emergiu fortalecido e capaz de ameaçar a Cristandade. O diabo, e seus poderes sobre os homens, estava cada vez mais presente nas discussões de teólogos e canonistas naquele período. Nessas considerações é possível perceber o que o autor chama de “antropologia escolástica”. A antropologia escolástica seria o entendimento de novas formas para se pensar os homens (sua natureza, sua origem) e que tem este nome de “escolástica” por ser marcadamente oriunda do âmbito universitário europeu entre 1150-1350. O “homem” teria passado a ser, segundo Boureau, o objeto privilegiado nos debates intelectuais universitários (TEIXEIRA, 2014: 3)3.

Essa “antropologia” atuou de forma decisiva na emergência de uma obsessão pelo demônio no cristianismo medieval, entre 1280 e 1330, ao se preocupar com a relação do humano com o sobrenatural e com o mundo natural. Influenciada por reflexões naturalistas e escolásticas, essa antropologia trouxe à tona um sujeito multifacetado mais propenso às ações do sobrenatural (tanto em relação às investidas de deus e suas criaturas benéficas quanto às dos demônios):

A antropologia escolástica, explorando os limites da ação e da consciência, tinha descrito as zonas de vazio e de fragilidade da personalidade humana. Ora, a sobrenatureza, longe de ter horror ao vazio humano, parecia encontrar acolhida exatamente aí. (BOUREAU, 2016: 201)

Na gênese dessa demonologia, estava presente o embate entre duas “antropologias” no âmbito escolástico. De um lado havia uma “antropologia tomista”, oriunda dos escritos de Tomás de Aquino, teólogo da Ordem dos Pregadores (OP). De outro, uma “antropologia neoagostiniana”, oriunda principalmente dos escritos de Pedro de João Olívio, teólogo da Ordem dos Frades Menores (OFM). Segundo Boureau, para Tomás de Aquino os poderes de Satã estavam confinados à manipulação do mundo natural e não tinham efeitos sobrenaturais em relação aos homens. Diferentemente, na concepção de Pedro de João Olívio, Satã era dotado de poderes sobrenaturais, sendo capaz de atuar sobre os homens.

Tomás de Aquino desenvolve sua “antropologia” na relação entre o humano e o sobrenatural em diversos tratados teológicos. O principal desses é De malo (“Sobre o mal”), redigido por volta de 1272, durante a segunda regência de Tomás em Paris. No De malo o teólogo discute a natureza dos demônios e as circunstâncias de sua queda. Além disso, Tomás se preocupa com as capacidades dos demônios após sua queda e os seus poderes sobre os homens. Nisso, os demônios são descritos como seres sem muita vivacidade, limitados na sua ação ao mundo natural. Sua incapacidade de atuar sobre os humanos de forma sobrenatural deve-se ao uso, por Tomás, de uma psicologia aristotélica. Nessa, é defendida a unidade do sujeito, com o humano composto de uma forma, dada pela alma intelectiva, e uma matéria, isto é um corpo. Portanto, para Boureau, na concepção tomista, a pessoa é vista como substância individualizada da natureza racional. Esta forma de “antropologia” é definida por Boreau como um “‘individualismo substancial’” (BOREAU, 2016: 223). O homem, então teria uma personalidade una, selada por Deus, fazendo com que possuísse uma forma substancial única. Por isso, a alienação de alguma faculdade diminui o poder espiritual e cognitivo do homem. Ou seja, a possessão anularia qualquer possibilidade de ação do sujeito.

Oposta a essa “antropologia tomista” há uma “antropologia neoagostiniana”. Nessa, Pedro de João Olívio apresenta em sua Suma sobre as Sentenças, de Pedro Lombardo, os demônios dotados de possibilidades de atuar sobrenaturalmente em relação aos homens. Neste texto Pedro Olívio ataca os pressupostos lançados por Tomás no De malo. Para o frade Menor o demônio possuía uma capacidade real de ameaçar o homem pelas suas capacidades sobrenaturais. A capacidade que o demônio tem de atuar sobre os humanos deve-se ao uso, pelo franciscano, de uma psicologia agostiniana. Essa é marcada por uma teoria pluralista na qual o sujeito possui uma estrutura federativa ou confederativa, sendo composto de diversos estratos. Além disso, a alma é concebida com certa autonomia sobre o corpo, tendo lugar no interior do indivíduo o confronto entre o divino e o mal. Nisso o homem possuiria, portanto, uma forma substancial múltipla na qual convivem diversas personalidades. O que gesta uma “antropologia” marcada pela ideia de “‘individualismo acidental’” (BOREAU, 2016: 223). Boureau complementa: Com o homem dotado de passividade e descontinuidade na sua pessoa é possível inferir que a sua alma coabitasse tanto com o divino quanto com os decaídos. O demônio, portanto, figura como uma extensão da personalidade de alguns homens. É esse limite cognitivo e espiritual que abre a possibilidade da possessão.

Segundo Boureau esses embates teológicos gestaram a demonologia no âmbito escolástico. Sendo que “(…) a oposição entre Tomás de Aquino e Pedro Olívio nos mostra os contornos da nova cartografia demonológica.” (BOREAU, 2016: 118). É, portanto, principalmente, a partir das considerações desses dois teólogos que se desenvolvem os argumentos de uma demonologia escolástica.

Para pensar como essas considerações, do final do século XIII, são recebidas nas duas primeiras décadas do século XIV, o autor parte das atas de processos de canonização para “(…) encontrar um eco das novas preocupações demonológicas que dominam o início do século XIV e (…) marcam a ação dos papas Clemente V e João XXII.” (BOREAU, 2016: 146). Nesses processos o autor identifica uma relação próxima entre o louco e o possesso. De um pontificado ao outro, casos semelhantes, que antes eram tratados como cura da loucura, passam a ser cada vez mais considerados como exorcismo de demônios.

Nos processos iniciados pelo pontífice Clemente V, como o de Tomás de Cantilupe (1307-1320) e de Luís de Anjou (1308-1317), Boureau identifica a presença de cura de casos de loucura. Porém, nenhum de possessão demoníaca. Essa situação muda durante o pontificado de João XXII com relatos de combate contra o demônio em inquéritos de canonização de santos como Tomás de Aquino (1319-1323). Outro caso, desse mesmo pontificado é o de Nicolau de Tolentino (1325-1446), com diversos casos de possessão e exorcismo, além de fraca presença de casos de loucura nas atas do inquérito, é descrita a luta do santo contra demônios.

Esse último caso, o de Nicolau, é interessante já que leva 121 anos para a finalização do processo. Boureau argumenta que isso se deve, principalmente, à prudência da cúria quanto às canonizações de santos muito envolvidos no combate aos demônios. Além disso, argumenta que, apesar das virtudes eclesiológicas de um santo, naquele período no qual ainda estava se consolidando uma demonologia, poderia levar os leigos a perigosos diálogos. Para o autor, essa mudança ocorrida entre os dois pontificados estava relacionada aos problemas que João XXII enfrentou nas décadas de 1310, 1320 e 1330:as contendas em relação ao espirituais franciscanos, defensores ferrenhos da pobreza evangélica de Cristo e grandes críticos do papado de Avignon. De ambos os lados, tanto dos frades quanto do papado, partem acusações de envolvimento com o Satã. João XXII era considerado o Anticristo místico, proposto no comentário de Pedro de João Olívio. Segundo o franciscano, o anticristo estaria disfarçado de papa e desvirtuaria a Igreja, preocupado apenas com enriquecimento desta. Uma vez que João XXII foi um dos papas que mais enriqueceu a Igreja, durante o século XIV4, os espirituais acusavam-no de ser a encarnação e Satã. Por outro lado, estes frades eram acusados de envolvimento com o demônio, por armarem conspirações e eram considerados hereges que voltavam junto ao diabo para assombrar os fiéis. Sobre os espirituais choveram condenações de heresia, sendo seis deles queimados em 1318, e ordenada a destruição da obra de Olivi em 1326.

Portanto, essa demonologia, desenvolvida no âmbito escolástico, esteve muito associada às tentativas de deslegitimar adversários políticos e ao ataque aos poderes estabelecidos. É isso o que discute Alain Boureau no capítulo um do livro, quando demonstra como o desenvolvimento teológico de uma demonologia durante as últimas décadas do século XIII foi utilizado para dar base à associação entre magia, demônio e heresia. Segundo o autor, é principalmente durante o pontificado de João XXII, no início do século XIV, que se tem “(…) um novo desenvolvimento judiciário (…)” (BOUREAU, 2016: 24).

Nesse período, o conteúdo doutrinal acerca do pacto com o diabo recebeu uma nova abordagem, na qual foi valorizada a ação universal dos demônios. Ou seja, o diabo perdia a limitação de seu poder ao mundo natural, para ganhar novos poderes, capaz de agir sobrenaturalmente, ameaçando a cristandade. Nesse desenvolvimento judiciário, Boureau demonstra a importância da bula Super illius specula e da comissão sobre a magia, reunida pelo papa João XXII, em Avignon, em 1320. A bula, promulgada entre 1326 e 1327, foi, para o autor, o texto fundador da obsessão demonológica e do interesse do papa pela magia. Nela, João XXII incrimina práticas mágicas, como o uso de imagens e utensílios, que derivavam da adoração aos demônios por meio da associação entre a invocação destes com as aquelas práticas, sendo ambos referidos como dogma. Porém, a grande novidade da Super está no desenvolvimento de um novo conceito relacionado a construção processual deste pontificado. É nessa bula que o papa traz a noção de “feito herético” (factum hereticale), a partir do qual a heresia deixava de ser apenas matéria de opinião, passando a estar relacionada também à ação. Apesar da originalidade da bula ser passível de discussão, a questão do fato herético já figurava na consulta de 1320 sobre a magia. Nessa, a noção de fato herético estava presente nas questões propostas à comissão. Na consulta o papa perguntou a teólogos e canonistas se era possível associar práticas como o batismo de imagens e outras práticas mágicas à heresia, que, poderia ser considerada crime de lesa-majestade divina, punida com o máximo de rigor pela purificação por meio das chamas. Apesar dessa associação encontrar resistência nas respostas da maior parte dos teólogos chamados para a consulta, resoluções, como a do franciscano Henrique de Carretto, deram crédito à tese do fato herético.

A essa tese estavam associadas outras práticas jurídicas de João XXII. O uso da fama para determinar a qualidade das ações dos que estavam sendo acusados de heresia, a utilização do processo sumário nos casos de julgamento relacionados à invocação de demônios e o recurso a tribunais especiais do papado, para cuidar destes casos. Segundo Boureau, essas práticas demonstram não só a desconfiança de João XXII quanto a Inquisição, mas também que frente a ameaça dos demônios era necessário uma ação rápida e eficaz. Assim, o autor propõe que a forma de agir do papa demonstrava que “(…) em matéria de sortilégios, antes de reprimir, importava (…) reunir opiniões em relatórios complexos unindo a magia, a invocação de demônios e a heresia.” (BOUREAU, 2016: 53).

O livro Satã Herético não é uma leitura simples, fazendo-se difícil para iniciantes que ainda não tiveram contato com tema das ordens mendicantes e sua relação com as universidades. Boureau traz como subentendido que seu leitor deve ter alguma noção sobre o contexto do papado de Avignon, do âmbito universitário dos séculos XIII e XIV e do método escolástico. Apesar desses pontos, que podem dificultar a leitura, a forma como autor relaciona as discussões escolásticas com o fazer político dos jogos de poder no período é interessante, e importante em termos metodológicos. Pois, permite ao historiador, que deseja se debruçar sobre as questões políticas do período, montar o contexto linguístico, do qual parte o conteúdo dos vestígios aos quais se dedica.

Notas

1. Alain Boreau atualmente é diretor do Groupe d’Anthropologie Scolastique (GAS) da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Também, atua como co-diretor das coleções Histoire e Bibliothèque scolastique da editora Les Belles-Lettres. Além de ser membro do comitê de redação da revista Penser/rever. Informações obtidas em: http://gas.ehess.fr/document.php?id=122

2. Igor Salomão Teixeira é professor de História Medieval no departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

3. TEIXEIRA, I. S. “Antropologia histórica e antropologia escolástica na obra de Alain Boureau”. In: Bulletin du Centre d’Études Médiévales d’Auxerre. Auxerre, França. Vol. 18, n. 1, 2014. pp. 1-13. Disponível em: http://hdl.handle.net/10183/103476 Último acesso em: 27 de abril de 2017.

4. Cf. LE GOFF, J.A Idade Média e o dinheiro: Ensaio de antropologia histórica. RJ: Civilização Brasileira, 2014. Para mais sobre o contexto do papado de João XXII e as disputas com os espirituais ver: AGAMBEN, G. Altíssima pobreza. SP: Boitempo, 2014; BÓRMIDA, J. (OFM Cap.). A não propriedade: uma proposta dos franciscanos do século XIV. Porto Alegre: Edições EST, 1997; BURR, D. “The Correctorium Controversy and the Origins of the Usus Pauper Controversy” In: Speculum. EUA: Medieval Academy of America, 1985, n. 60 (2). pp. 331-342; DE BONI, L. A. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na Idade Média. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003; FLOOD, D. (OFM). “Poverty as Virtue, Poverty as Warning, and Peter of John Olivi” In: BOUREAU, A. e PIRON, S. (dirs.). Pierre de Jean Olivi (1248-1298): Pensée scolastique, dissidence spirituelle et société. France: Librairie Philosophique J. VRIN, 1999. pp. 157-173; NOLD, P. Pope John XXII and his Franciscan Cardinal: Bertrand de la Tour and the Apostolic Poverty Controversy. Oxford: Oxford University Press, 2003; e TEIXEIRA, I. S. Como se constrói um santo: A canonização de Tomás de Aquino. 1. ed. Curitiba: Prismas, 2014.

Luiz Otávio Carneiro Fleck – Mestrando pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected]


BOUREAU, Alain. Satã Herético: O nascimento da demonologia na Europa medieval (1280-1330). Campinas: Editora da UNICAMP, 2016. Resenha de: FLECK, Luiz Otávio Carneiro. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.17, n.2, p. 171- 177, 2017. Acessar publicação original [DR]

“Não tá sopa”: sambas e sambistas no Rio de Janeiro de 1890 a 1930 | Maria Clementina Pereira da Cunha || Uma História do samba: as origens | Lira Neto

Na década de 1970, Flávio Silva desenvolveu uma pesquisa audaciosa. Mergulhando na profundidade dos acervos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ), ele transformou nosso entendimento da canção “Pelo telefone” e a própria história do samba.1 Registrado na BNRJ em novembro de 1916, “Pelo telefone” se tornou sucesso do carnaval em 1917 e até hoje é chamado, erroneamente, o primeiro samba; na verdade outras canções gravadas antes foram chamadas de sambas e o gênero musical que definiria a chamada Época de Ouro do samba não se consolidaria por mais uma década depois do lançamento daquela canção. Nos anos 1970, quando Silva fez sua pesquisa, nosso conhecimento de tudo isso era incompleto. Graças a ele sabemos, por exemplo, que embora “Pelo telefone” não fosse o primeiro samba, ele todavia representa uma transição importantíssima. Leia Mais

Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863) – SOUZA (RBH)

SOUZA, Robério S. Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863). Campinas: Ed. Unicamp, 2016. 272p. Resenha de: VITO, Christian G. de. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.37, n.74, jan./abr. 2017.  

Há muito tempo a história do trabalho é escrita exclusivamente sob as perspectivas do trabalho assalariado, da “proletarização” (ou mudança para o trabalho assalariado) e das organizações de trabalhadores assalariados. Enquanto esses aspectos têm sido confundidos com “modernidade” e com o surgimento e expansão do capitalismo, a escravidão e outras relações de trabalho forçado têm sido marginalizadas como “atrasadas” e não-capitalistas. Neste livro convincente e bem escrito, Robério S. Souza subverte essas abordagens tradicionais e mostra uma história do trabalho mais inclusiva, baseada em novas conceituações. O autor aborda a construção da ferrovia Bahia and San Francisco Railway no período de 1858 a 1863, mas em vez de vê-la como um símbolo da modernidade tecnológica, de investimentos estrangeiros “progressistas” e do trabalho livre, ele aponta para a compatibilidade do capitalismo com o trabalho forçado, indica múltiplas imbricações entre o capital britânico e os universos da escravidão, e destaca a presença de escravos na força de trabalho, contrariando os regulamentos da legislação imperial de 1852. Da mesma forma, o autor aborda os trabalhadores migrantes europeus – especialmente os “italianos” -, mas, em vez de corroborar a narrativa padrão de que eles seriam vetores de mão de obra livre qualificada, traz à baila a precariedade de sua liberdade e a compara com a dos “nacionais livres” e com as condições dos escravizados. Em termos mais gerais, Souza insiste na complexidade da composição da força de trabalho, em vez de buscar os trabalhadores assalaria­dos ideais típicos dentro dela: dessa perspectiva, ele consegue abordar as rela­ções concretas entre os trabalhadores permeando as condições legais e as relações de trabalho e apontando para as suas experiências e momentos de solidariedade compartilhados, bem como os conflitos que surgiram entre eles.

Esses argumentos fundamentais são brilhantemente apresentados na introdução, a estrutura do livro é bem projetada e o estilo mescla bem panoramas quantitativos precisos, momentos de reflexão e descrições detalhadas de eventos e biografias individuais. Os três primeiros capítulos informam o leitor sobre o mundo dos “senhores dos trilhos” e sua conexão com a economia escravista da província da Bahia (cap. 1), esboçam a “demografia social” da força de trabalho da ferrovia (cap. 2) e, em seguida, abordam a reconstrução da materialidade das tarefas, incluindo detalhes das obras em cada uma das cinco seções diferentes em que o canteiro de obras foi dividido (cap. 3). Os dois últimos capítulos focalizam, em detalhe, a agência e as experiências dos trabalhadores. O Capítulo 4 centra-se naqueles que migraram para o Brasil provenientes do Reino da Sardenha, descreve a greve que organizaram em 1859 e discute suas conexões mais amplas com as mobilizações de outros trabalhadores (incluindo os escravos) e as práticas de repressão e controle social implementadas pelas autoridades. O capítulo 5 examina de perto a multidão aparentemente desconexa e desordenada que compunha a força de trabalho e aborda as “lógicas internas que forjaram ou dificultaram a experiência e o processo de conformação de identidades” (p.34-35). Acompanhando o texto, um mapa histórico permite visualizar os territórios atravessados pela ferrovia (p.116), e 19 belas fotografias históricas – a maioria delas da Coleção Vignoles do Instituto de Engenheiros Civis de Londres – fazem que os trabalhadores, as localidades e as obras adquiram concretude para os leitores. De fato, em vez de serem apenas um suporte visual passivo, especialmente no capítulo 3, as fotografias são diretamente integradas e discutidas no texto. A maior parte das fontes primárias é extraída de várias seções do Arquivo Público do Estado da Bahia (Apeb) e inclui a correspondência entre várias autoridades, listas de passageiros que entraram no porto da Bahia e documentos produzidos pela polícia e pelas autoridades portuárias que se revelaram fundamentais para a compreensão tanto da dinâmica do controle social quanto da vida dos trabalhadores como indivíduos.

Como seu livro anterior sobre os emaranhados das relações de trabalho na Bahia no período imediatamente seguinte à abolição da escravidão, este trabalho mais recente de Souza está profundamente inserido na nova e revolucionária historiografia brasileira sobre o trabalho.1 O autor reconhece especialmente a sua dívida intelectual às obras de Sidney Chalhoub e Henrique Espada Lima (p.30). Ainda assim, precisamente por causa da qualidade deste livro, poder-se-ia esperar também um diálogo mais amplo do autor com as obras internacionais que abordam contextos comparáveis e questões relacionadas. Esse diálogo poderia ter fortalecido a sua interpretação em vários pontos e, simultaneamente, realçado o impacto deste volume para uma comunidade acadêmica maior. Por exemplo, os estudos sobre a força de trabalho igualmente complexa, mas montada de forma diferente, empregada na construção das ferrovias cubanas antes da abolição da escravidão na ilha caribenha (1880) poderiam ter fornecido referências comparativas úteis sobre a questão-chave da conexão entre liberdade e não-liberdade.2 Ao mesmo tempo, o livro de Souza é um complemento significativo às investigações recentes na História do Trabalho nos transportes, com as quais ele compartilha a crítica aos “binários padronizados entre coerção e liberdade” e para as quais contribui indiretamente expandindo o foco do “trabalho no transporte” para o trabalho que construiu as infraestruturas do transporte.3 A obra é também uma contribuição preciosa para a renovação da história da migração italiana do século XIX e início do século XX, para além das limitações dos estudos tradicionais que tendem a ver os trabalhadores italianos isolados do resto da força de trabalho e, particularmente, fora do trabalho forçado. Por sua vez, a nova abordagem acadêmica sobre a diáspora italiana, com a consciência da importância das conexões translocais e da pesquisa arquivística em múltiplos locais, poderia ter respaldado a sugestão de Souza sobre a relação entre as demandas dos trabalhadores sardos no Brasil e a turbulência política na Itália às vésperas da unificação nacional (p.188-190).4

Em um nível diferente, o argumento central do autor sobre a compatibilidade entre o capitalismo e o trabalho não-livre ecoa, entre outras, as descobertas do estudo pioneiro de Alex Lichtenstein sobre a economia política do trabalho de prisioneiros no período pós-emancipação do Sul dos Estados Unidos e as de um recente volume sobre trabalho forçado após a escravidão, organizado por Marcel van der Linden e Magaly Rodríguez García.5 De maneira mais geral, o argumento de Souza sobre as fronteiras fluidas entre liberdade e não-liberdade coincide com a questão-chave do longo debate sobre o trabalho livre e não-livre e também está alinhado com a reconceituação da classe operária proposta pelos estudiosos da História Global do trabalho, apontando para a necessidade de ir além do foco padrão sobre o trabalho assalariado, passando a estudar todos os tipos de relações trabalhistas que foram imbricadas no processo de mercantilização do trabalho.6 Finalmente, e de forma semelhante a outras obras brasileiras sobre a história do trabalho, os capítulos 4 e 5, em especial, mostram a importância do estudo simultâneo das relações de trabalho e da agência e organização dos trabalhadores – uma combinação que tem sido particularmente rara na História Global do trabalho até agora. De fato, a adoção do conceito de “experiência” – explicitamente tomado de empréstimo a E. P. Thompson – fornece a Souza uma ferramenta para adentrar a questão da formação contraditória da identidade de classe entre os trabalhadores que estavam “juntos, mas não misturados” (p.237) e, assim, frequentemente presos entre a unidade e a divisão em fronteiras nacionais, étnicas e legais.

Essas imbricações entre o trabalho de Souza e a historiografia do trabalho mais ampla ressaltam seu potencial para intervir em debates ainda maiores, beneficiando-se dela, ao mesmo tempo, em alguns pontos interpretativos. De modo algum essas observações críticas ofuscam os méritos deste livro. Na realidade, este volume é um daqueles preciosos estudos empíricos que podem inspirar e moldar pesquisas em outros locais e épocas, para além do seu tópico específico e do seu escopo cronológico. Por essa razão, traduções múltiplas deste livro são altamente desejáveis.

Referências

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Notas

1 SOUZA, 2011. Ver esp.: CHALHOUB, 1990LIMA, 2005CHALHOUB, 2012FORTES et al., 2013.

2Por exemplo: OOSTINDIE, 1984FADRAGAS, 1998.

3 BELLUCCI et al., 2014. Citação da Introdução dos editores, p.5.

4 GABACCIA; OTTANELLI, 2001.

5 LICHTENSTEIN, 1996LINDEN; RODRÍGUEZ GARCÍA, 2016.

6 BRASS; LINDEN, 1997LINDEN, 2010.

Christian G. de. Vito – Research Associate, University of Leicester; Lecturer, Utrecht University. Utrecht University, Department of History and Art History. Utrecht, The Netherlands. E-mail: [email protected].

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Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho – LINDEN (TES)

LINDEN, Marcel van der. Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Campinas: Editora da Unicamp, 2013, 520 p. Resenha de: TERRA, Paulo Cruz. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.14 n.3, Set./dez. 2016.

Como pensar/escrever uma História Global do trabalho? Essa é a questão que permeia o livro Trabalhadores do mundo: Ensaios para uma história global do trabalho, de Marcel van der Linden, publicado em 2013, pela Editora da Unicamp. Trata-se de uma tradução para o português de uma obra publicada originalmente em inglês, em 2008. O autor foi diretor de pesquisa do Instituto Internacional de História Social, situado em Amsterdã, e, assim como a instituição, se tornou uma referência em termos da história global do trabalho, cujas linhas gerais nos são apresentadas nesse volume.

A História Global do Trabalho consiste mais, segundo o autor, em uma “área de interesse” do que um bem-definido paradigma teórico. Linden propõe o estudo transcontinental, mais do que transnacional, dos movimentos sociais trabalhistas e das relações de trabalho. Por transcontinental entende-se colocar “todos os processos históricos num contexto mais amplo, por ‘menores’, em termos geográficos, que sejam esses processos” (Linden, 2008, p. 14), tecendo comparações entre diferentes países e/ou, principalmente, analisando as interações internacionais.

Ao enfocar as conexões globais, segundo Linden, a História Global do Trabalho se contrapõe ao nacionalismo metodológico e ao eurocentrismo presentes na história do trabalho produzida na Europa e na América do Norte. O eurocentrismo define-se como “o ordenamento mental do mundo a partir da perspectiva da região do Atlântico Norte”. Nesse sentido, a história da classe trabalhadora e dos movimentos trabalhistas dessa região foram vistas como acontecimentos separados, e quando era dada atenção a outros locais, “estes eram interpretados de acordo com os esquemas do ‘Atlântico Norte’” (Linden, 2008, p. 11). O nacionalismo metodológico, por sua vez, “funde sociedade e Estado”, naturalizando o Estado-nação.

A proposta de Linden para uma História Global do Trabalho aponta também para um conceito mais amplo de trabalhador. O autor dialoga diretamente com Marx, para quem o trabalho livre assalariado – no qual o trabalhador, enquanto indivíduo livre, dispõe de sua força de trabalho como uma mercadoria – era a forma de mercantilização do trabalho verdadeiramente capitalista. Contudo, os assalariados constituíam apenas uma entre as cinco classes ou semiclasses subalternas no capitalismo, que incluiria ainda os trabalhadores autônomos, “que são proprietários de sua força de trabalho e de seus meios de produção e vendem os produtos ou serviços resultantes de seu trabalho”; a pequena burguesia, “formada por pequenos produtores e distribuidores de bens que empregam um número reduzido de trabalhadores”; os escravos, “que não possuem nem sua força de trabalho nem suas ferramentas e são vendidas”; e o lumpemproletariado, “que é totalmente excluído do mercado de trabalho legalizado” (Linden, 2008, p. 30). Com exceção dos trabalhadores assalariados, os outros grupos foram considerados como historicamente menos significativos para Marx.

Linden ressalta que pesquisas empíricas em diversas partes do mundo apontaram, entretanto, que as proposições de Marx sobre a classe trabalhadora e a mercantilização do trabalho eram muito restritas. O autor argumentou que no capitalismo há “uma variedade quase infinita de tipos de produtores, e as formas intermediárias entre as diferentes categorias são definidas de formas mais fluidas do que nítidas” (Linden, 2008, p. 30). Ele indica, por exemplo, que os trabalhadores assalariados eram bem menos livres do que sugeria a visão clássica, e que existiam diversas maneiras de prender um empregado a seu emprego.

Considero a visão mais abrangente de classe trabalhadora como uma das principais contribuições do livro. Contudo, é preciso afirmar que outros historiadores, inclusive brasileiros, já chamavam a atenção para a ampliação do conceito de trabalhador, mesmo não estando ligados à História Global do Trabalho. Se, em 1998, Silvia Hunold Lara denunciava a exclusão dos escravos nas análises da história social do trabalho no Brasil (Lara, 1998, p. 26), o quadro tem sido alterado mais recentemente. Marcelo Badaró Mattos, por exemplo, afirmou que a experiência de convivência entre escravizados e livres foi fundamental no processo de formação da classe trabalhadora do Rio de Janeiro. Essa convivência teria ocorrido em diversos aspectos, como no mercado de trabalho, nas organizações criadas, além das ações coletivas. Segundo Mattos, os trabalhadores escravizados e livres conviviam tanto nas fábricas quanto na rua, além de partilharem outros espaços, como moradia, lazer, alimentação e transporte (Mattos, 2004, p. 62).

O Brasil, aliás, está presente em diversas partes do livro. O Grupo de Trabalho da Associação Nacional de História (Anpuh) “Mundos do Trabalho” é citado como exemplo de organizações surgidas no âmbito internacional, no período recente, que têm ampliado o estudo da história do trabalho. Além disso, o caso dos escravos ao ganho do Brasil é exposto como um tipo específico dentro da escravidão. Só que nesse caso há uma confusão causada pela tradução. Linden utiliza como referência um artigo de Maria Cecília Velasco e Cruz, que escolheu a expressão slaves-for-hire como tradução de “escravos ao ganho”. A versão brasileira do livro, por sua vez, traduziu a expressão em inglês como “escravos de aluguel”. Contudo, as expressões representam relações distintas: enquanto em uma os escravos são alugados pelos senhores, que recebem diretamente os proventos desse aluguel; na escravidão ao ganho, por sua vez, são os escravos que cobram pela execução de serviços e/ou venda de produtos e repassam os ganhos aos seus senhores, sendo permitido ao trabalhador cativo reter o que excedesse a quantia combinada previamente.

Além da discussão sobre o conceito de classe trabalhadora, presente na primeira parte do livro, a obra se debruça sobre a ação coletiva dos trabalhadores, entendida como “uma ação mais ou menos coordenada por parte de um grupo de trabalhadores (e, talvez, seus aliados), visando a atingir um objetivo específico, que eles seriam incapazes de alcançar individualmente, dentro do mesmo período de tempo e pelos meios a eles disponíveis” (Linden, 2008, p. 19). Assim, Linden aborda as variações do mutualismo, na segunda parte, e as formas de resistência, na terceira, que incluem as greves, os protestos de consumidores, os sindicatos e o internacionalismo operário. A quarta, e última parte, trata das contribuições das disciplinas adjacentes, como a teoria do sistema-mundo, de Wallerstein, ou o diálogo com estudos etnológicos, ao analisar especificamente os iatmul, um povo da Papua Nova-Guiné.

Ao longo do livro, somos apresentados a muitos exemplos de diferentes partes do mundo sobre os variados assuntos tratados. Aliás, chama a atenção a erudição de Linden, que domina uma vasta bibliografia, arrolada em impressionantes 81 páginas ao final da obra. A utilização dos exemplos mundiais é possível, segundo o autor, pois, apesar da diversidade e especificidades das experiências, “as formas de ação coletiva inventadas pelos trabalhadores subalternos de todo o mundo refletem uma lógica própria e bem definida, que é possível identificar e verificar” (p. 406). O autor apresenta justamente uma preocupação em buscar as frequências e tendências que podem ser agrupadas em alguns tipos básicos comuns.

Se os muitos exemplos das várias partes do mundo podem ser vistos como um dos pontos positivos do livro, eles também apresentam problemas. Para Leon Fink, as categorias altamente articuladas estabelecidas por Linden “tendem a ignorar grandes distinções entre Estado-nações e as suas políticas culturais”, bem como podem levar à perda do senso de “cronologia, periodização e turning points históricos” (Fink, 2010). Crítica semelhante foi feita por Fernando Teixeira da Silva, que indicou que a “justaposição de exemplos sacados de diferentes tempos e espaços tende a sacrificar a própria historicidade dos fenômenos analisados e a percepção da mudança histórica” (Teixeira, 2014, p. 360).

O livro de Linden é uma leitura instigante e propõe importantes reflexões para os interessados na história do trabalho. A História Global do Trabalho proposta por ele, por sinal, já tem dado importantes frutos pelo mundo. No Brasil, no entanto, ainda está engatinhando. De certo, um grande empecilho para o seu desenvolvimento é a falta de financiamento em nosso país para pesquisas que, nessa perspectiva, geralmente demandam amplos recursos para um trabalho em equipe. Infelizmente, tudo tende a piorar, já que o apoio ao desenvolvimento da ciência tem minguado cada vez mais.

Referências

FINK, Leon. Review of vand der Linden, Marcel. Workers of the World: Essays toward a Global Labor History. H-Net Reviews, julho 2010. Disponível em: <www.h-net.org/reviews/showrev.php?id=30764>. Acesso em: 15 de jul. 2016. [ Links ]

LARA, Silvia H. Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil. Projeto História, São Paulo, n. 16, 1998. [ Links ]

LINDEN, Marcel van der. Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Campinas: Editora Unicamp, 2013. [ Links ]

MATTOS, Marcelo B. Experiências comuns. Escravizados e livres na formação da classe trabalhadora carioca. Tese (apresentada ao Concurso para Professor Titular de História do Brasil) – Departamento de História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004. [ Links ]

SILVA, Fernando T. van der Linden, Marcel – Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 34, n. 67, p. 357-363, 2014. [ Links ]

Paulo Cruz Terra – Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Provas de Liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação – SCOTT; HÉBRARD (RETHH)

SCOTT, Rebecca J. & HÉBRARD, Jean M. Provas de Liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação. Tradução: Vera Joscelyne. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014. Resenha de: GESSER, Ana Carolina. Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação. Revista Expedições: Teoria da História e Historiografia, n. 2 – AGOSTO-DEZEMBRO de 2016.

A obra Provas de Liberdade: uma odisséia atlântica na era da emancipação, publicado em 2014 pela editora Unicamp, é o livro mais recente de Rebecca J. Scott, na qual divide a coautoria com Jean M. Hébrard. Através de 295 páginas, este livro compõe-se de um mapa de rotas atlânticas, uma genealogia esquemática da família Vincent/Tinchant, prólogo, nove capítulos, epílogo e um caderno de imagens.

Rebecca Scott é professora de História de Direito na Universidade de Michigan, na qual leciona o curso de direitos civis e fronteiras da cidadania sob uma perspectiva histórica. Suas discussões pautam-se em discutir a legislação diante da escravidão e da liberdade. Jean M. Hébrard é professor visitante na Universidade de Michigan, cujas aulas e seminários estão relacionadas a história social e cultural das sociedades escravistas e pós escravistas do mundo atlântico.

Os autores iniciam o prólogo de Provas de Liberdade, citando uma carta enviada por Edouard Tinchant, um comerciante de charutos de Antuérpia, no ano de 1899, ao general Gómez.

No conteúdo da carta, Edouard pedia ao general que o autorizasse a utilizar o nome de Gomez para a marca de seus artigos. A citação da carta foi proposital, pois esta fonte permitiu que os autores pudessem chamar a atenção para aspectos reveladores da política e da identidade de Tinchant: a alusão das origens haitianas de Edouard para convencer o general, ao estabelecimento de seus pais na Louisiana e a justificativa dos motivos pelos quais seus pais decidiram se mudar para a França, e a insinuação acerca de “leis abomináveis” e “preconceito ignorante” como motivadores dessa migração.

É inegável o especial interesse dos pesquisadores por esta carta, pois, ela retratava um mundo atlântico em que várias lutas sobre raça e direitos estavam entrelaçadas, e no quais idéias e conceitos eram intercambiados (SCOTT, HÉBRARD, 2014). Tantas ligações os levaram a questionar sobre a própria abrangência dela. O que poderia este documento apresentar em termos de uma coesão, como a personificação de uma conexão entre as três maiores lutas antirracistas do século XIX: a Revolução Haitiana, a Guerra Civil, a Reconstrução dos Estados Unidos e a Guerra Cubana pela independência? Para responder essa questão ambiciosa, os autores seguiram os rastros do itinerário da família de Edouard Tinchant, através de registros mantidos por padres tabeliães, oficiais e recenseadores oficiais de diversos lugares. A prática investigativa levou então, os pesquisadores a todos os lugares pela qual essa família passou: começou na Senegâmbia (Senegal), foi para Saint Domingue (Haiti) no final do século XVIII, continuou até Santiago de Cuba (Cuba), Nova Orleans (Estados Unidos), Porto Príncipe (Haiti), Pau (França), Paris (França), Antuérpia (Bélgica), Veracruz (México) e Mobile (Alabama, Estados Unidos).

A odisséia dessa família despertou um interesse especial nos autores. No cerne de sua pesquisa esteve a preocupação em perceber como a exigência por dignidade e respeito esteve atrelada a importância da produção de documentos e dos movimentos políticos gerados tanto pelas grandes revoluções da época quanto por embates locais de reivindicação de direitos. Ao optar pelo encalce da trajetória dos membros dessa família, Scott e Hébrard especificam sua orientação metodológica, caracterizando seu estudo como o de micro-história posta em movimento. Esse tipo de estudo, segundo os mesmos, se apoia na convicção de que os estudos de um local ou evento cuidadosamente escolhido, examinado bem de perto, pode revelar dinâmicas não visíveis através das lentes mais familiares de região e nação.

O essencial de suas análises é, portanto, a percepção de como as experiências pessoais nos diversos espaços do chamado mundo Atlântico do século XIX, esses movimentos contínuos de pessoas e de papéis através do Caribe e da travessia do oceano permitem interconectar eventos que desvelam problemas como o da liberdade, dos fenômenos de raça e antirracismo com movimentos políticos e revolucionários.

A busca pela trajetória de homens livres de cor revela o lugar social da qual provém esses historiadores quando se observa como se apropriam de grandes elementos basilares da historiografia a partir da segunda metade do século XX: a História Cultural e a Nova Esquerda Inglesa, a micro-história e a História Atlântica. Embora hoje a ênfase na história de homens livres de cor não constitua nenhuma novidade, movimentos historiográficos como a Nova Esquerda Inglesa foram essenciais para a emergência estudos que explorassem as experiências históricas de homens e mulheres que até então tiveram a existência ignorada ou abordada de forma passiva, e ao trazer novos sujeitos para a história – a chamada história vista de baixo -, trouxe também o problema das fontes (BURKE, 1992, p. 40).

O acesso à documentação de pessoas “comuns”, portanto, também trouxe consigo problemas de método, uma vez que o acesso ao testemunho direto a essas pessoas era muito escasso. Entretanto, a vasta documentação, dentre registros de batismo, carta de alforria, correspondências, certidões, de que se munem Scott e Hérbrard, permitem – através da metodologia da micro-história – que a prática de redução de escala de observação, análise microscópica e um estudo intensivo do material documental revele indícios de sujeitos até então marginalizados.

Por meio do prólogo, também podemos observar que o lugar social de qual falam Scott e Hérbrard está profundamente ligado a um movimento de historiadores que vem desde pelo menos a segunda metade do século XX, colocando uma perspectiva atlântica em suas análises. Não por acaso, o contexto da Guerra Fria, a emergência do terceiro Mundo e a procura por um legado cultural na América do Norte levou este grupo de pesquisadores da história colonial, imperial e da escravidão, a questionarem e romperem com as fronteiras regionais, nacionais e imperiais, uma vez que estas, ao delimitarem os horizontes de pesquisa e abordarem uma perspectiva eurocêntrica, colocavam a histórias como da África e da América Latina à margem. Dessa forma, a pretensão por uma história que estabeleça conexões, comparações, observando recorrências coerências em marcos globais e interimperiais estruturados tem ganhado atenção dos historiadores, que ao focar em questões de gênero, sexualidade, raça e etnicidade têm encontrado no Atlântico um terreno fértil. O reconhecimento da História Atlântica enquanto disciplina iniciou-se com o movimento de historiadores norte-americanos dispostos a abraçar os projetos Atlânticos, e a Universidade de Michigan, onde Scott leciona, é uma das instituições onde os estudantes podem especializar-se nesse tipo de História145.

No primeiro capítulo, Rosalie, mulher negra de nação Poulard, a carta remetida por Edouard ao capitão Máximo Gómez ganha atenção para análise dos autores. Ao reportar sua própria ascendência aos haitianos, intitulando a si mesmo como um “filho da África”, Eduard conectou sua história com a dos seus pais, que tinham sofrido com embate da Revolução Americana, Francesa e Haitiana, carregando consigo o estatuto de escravos. A partir disso, chegou-se à documentação de batismo e de cartas da mãe de Edouard, e também à origem de Rosalie, sua avó, identificada como de nação Poulard.

Neste capítulo, são abordados vários aspectos da provável vida de Rosalie: o significado político de pertencer à nação Poulard, seus costumes e políticas peculiares, as condições das viagens e dos navios em que eram trazidos os cativos da costa do Senegal para Saint-Domingue (Haiti).

Embora os autores não tenham informações precisas sobre a viagem de Rosalie, o resgate de peculiaridades do seu provável itinerário atlântico forneceu-os certos elementos característicos acerca dos conhecimentos que pessoas de nação Poulard trouxeram consigo e foram difundidos durante o tempo em que permaneceram sob o cativeiro no Caribe. Uma destas características era a familiaridade com a importância da escrita: sabendo ou não ler, pessoas como Rosalie tinham a consciência que o papel poderia mudar sua condição.

O segundo capítulo, Rosalie…minha escrava, relata o processo de escravização de Rosalie em Saint-Domingue (Haiti) e os fatores – como as revoltas, repressões e a Revolução Haitiana – que levaram-na a deixar a ilha e se mudar para Jérémie (Haiti). Ao situar a paulatina importância econômica que assumiu Jérémie (Haiti) depois que Rosalie se mudou, os autores reconstituem a história de pessoas de sua rede de relações. Dentre elas, Marthe Guillaume, a negra livre que constituiu fortuna com o comércio de compra e venda de escravos. Mostram como prosperou Marthe, a importância da sua rede de conexões e apadrinhamento e de onde provinha sua renda: do trabalho de escravos, na qual Rosalie era uma. Também expõem fatores que levaram a região a atrair outras pessoas, como Michel Vincent, cujas aventuras anteriores de colono não deram certo.

O capitulo continua tecendo relações entre o contexto em que vivia Rosalie com as condições da Revolução Francesa, conectando as pressões que homens livres de cor da colônia exerciam para tentar fazer cumprir as garantias de direitos iguais e a extensão da cidadania às pessoas deste estatuto. Dessa forma, observa como discussões mais amplas, como a questão da cidadania aos homens de cor, concedia no ano de 1792 pela Assembléia Legislativa Francesa, influenciou nos interesses locais, onde os homens brancos conservadores, ao verem seu poder ameaçado, entraram em confronto com poderes coloniais acabando por induzir Guillaume, a senhora de Rosalie, a vender esta última a um vizinho, um açougueiro que era livre e mulato.

Partindo novamente para um contexto macro, os autores abordam as tensões que envolviam homens livres de cor e brancos, as repressões sofridas pelos primeiros e as implicações negativas para os escravos com as alianças estabelecidas entre os brancos do poder local com a Grã- Bretanha. Da mesma forma, salientam as alianças estabelecidas entre homens livres e escravos, e as expectativas destes em face da possibilidade de alforria. Neste meio tempo, Rosalie havia voltado ao poder de sua antiga senhora. Com este acontecimento, os pesquisadores postulam sobre a relação entre Rosalie e Michel Vincent, que em 1795 tinham dois filhos registrados, embora não possuíssem um registro de união. Marthe Guillaume, nesse mesmo ano, expressou o desejo de conceder liberdade a Rosalie, mas as circunstâncias políticas estavam dificultando a concessão de qualquer alforria. Nesse tempo, sugerem os autores, é possível que Rosalie vivesse como uma pessoa livre, e com relativa comodidade com Michel Vincent, considerando que Guillaume não se propôs a fazer qualquer reivindicação legal sobre ela.

A questão que se coloca é que, embora Rosalie provavelmente vivesse como uma mulher livre, o seu estatuto era de uma pessoa “sem documentos”, pois não possuía qualquer titulo que estabelecesse a legitimidade de seu estatuto civil. O capítulo passa a versar então sobre como o status de Rosalie, agora grávida do terceiro filho, dificultaria a situação do casal que, diante da invasão das tropas de Napoleão e a possibilidade de reescravização em Jérémie (Haiti), viu na viagem para a França uma alternativa. O capítulo termina abordando as estratégias utilizadas por aqueles que estavam na mesma situação de Rosalie e sobre como os conhecimentos de tabelionato de Michel Vincent levaram-no a forjar uma carta de alforria aos moldes do Antigo Regime, uma forma mais segura que poderia definir o destino da agora, “liberta”.

O terceiro capítulo, intitulado A cidadã Rosalie inicia caracterizando as diferenças político-jurídicas entre Haiti e Cuba, um baluarte da escravidão e de colonização espanhola. Versa sobre quais estratégias as pessoas livres de cor refugiadas do Haiti utilizaram para não voltarem a serem reescravizadas em Cuba e sobre como, a partir da morte de Michel Vincent, Rosalie, que já havia homologado o testamento deste, tornou-se sua herdeira e conseguiu com que as autoridades de Santiago assinassem o documento de alforria forjado ainda em Jérémie. Porém, novamente os planos de Rosalie são mudados pela conjuntura política das relações conturbadas entre a França napoleônica e Espanha, e diante dessas circunstâncias, os autores expõem as peculiaridades que faziam da Lousiana o território vizinho mais atraente em uma época difícil para a população francesa que vivia em território espanhol. Por fim, o capitulo termina discorrendo sobre as possibilidades e aprendizados de Rosalie, como a importância dos documentos dentro de uma sociedade escravista, as implicações da sujeição à mudança de jurisdição e a relevância do estabelecimento de uma boa rede de conexões, pois, ao enviar sua terceira filha, Élisabeth com sua madrinha para New Orleans, viu a indispensabilidade de estar integrada a uma família diante das condições adversas em que se encontrava.

A travessia no Golfo é o título do quarto capítulo, que desloca o foco narrativo para as experiências de Élisabeth, filha de Rosalie, em Nova Orleans (Estados Unidos). Os autores atentam para os percalços pelos quais passaram os refugiados, como Élisabeth, ao entrar no território da Louisina (Estados Unidos), e sobre como o rótulo de homem livre de cor a eles atribuído gerou problemáticas mais amplas acerca da questão do estatuto, pois, definia direitos, posição social e sobrevivência.

Passando de considerações mais gerais sobre a condição dos refugiados nas novas terras, este capítulo passa a abordar as boas condições nas quais Élisabeth estabeleceu com seus padrinhos, e sua relação com Jacques Tinchant, com quem se casou em 1822. Observa-se então o que os autores chamaram de uma união emblemática de novas famílias americanas, pois Jacques e Élisabeth haviam crescido em casas atravessadas por uma linha de cor: seus pais não puderam contrair união civil por serem casais “inter-raciais”. A mudança do sobrenome de Elisabeth, que agregou o sobrenome do seu pai, Vincent, na certidão de batismo dos seus filhos, foi ressaltada como um fator que a distanciava de sua ascendência escrava, além de suas boas relações com o tabelião facilitarem essa mudança.

A despeito das boas condições materiais que pessoas livres de cor como a família de Jacques Tinchant gozava, eram as restrições impostas pelas leis que geravam um descontentamento na população de cor livre. Dessa forma, a principal questão deste capítulo é a de que a prosperidade econômica, a estabilidade material de pessoas de cor e suas boas relações sociais não eram suficientes para mitigar as limitações impostas a elas, pois não podiam contar com direitos pra si e nem para a educação de seus filhos. Os autores terminam então, discorrendo sobre como Jacques deixou seus negócios aos cuidados de seu meio-irmão e os motivos prováveis da decisão de viajar com sua família para a França, onde sua mãe adoecida o aguardava.

O quinto capítulo, com um título bastante sugestivo, A terra dos direitos dos homens mostra como as motivações pessoais de migração de Jacques estavam atreladas à promulgação do Código Civil Francês e a Carta Constitucional de 1814. Ao estabelecerem a igualdade legal a todos os cidadãos, estendendo a todos o gozo de direitos civis e políticos por homens de cor livres, essa mudança na legislação atraiu a família de Jacques e Elisabeth pela perspectiva de educação e respeito para os meninos e de direitos para eles próprios, assim como a possibilidade de se tornarem proprietários de terras.

O acesso a um bom acesso educacional permitidos pela França, na qual os filhos de Jacques foram inclusos, juntamente com a boa fase dos negócios do mesmo, ocupam as páginas deste capítulo, que relaciona a prosperidade política desta nação com o gozo dos direitos civis experimentados no liceu pelos filhos de Jacques e Élisabeth. O filho mais velho do casal, Joseph, ganha a atenção no final deste capitulo, pois seus interesses particulares pelas aulas sobre direito e filosofia desvelam, além das idéias e conteúdos que faziam parte da educação formal de alunos como ele, o que o legado da Revolução Francesa deixou para a formação das concepções que professores das universidades tinham acerca de raça, cor, direitos civis e políticos e os militantes das causas abolicionistas. Porém, este capítulo também termina mostrando como a volta da situação política conturbada na França, juntamente com as adversidades econômicas enfrentadas por seu pai levaram Joseph a manter a tradição familiar dos Vincent-Tinchant em considerar atravessar o atlântico para, ao lado de seu irmão mais velho Louis, que havia ficado em New Orleans (Estados Unidos) quando seus pais resolveram viajar para a França, trilhar novos rumos.

Diante da viagem de Joseph para New Orleans (Estados Unidos), o capítulo seis, Joseph e seus irmãos, inicia expondo as possibilidades e limitações que ali encontravam homens livres de cor, chamando novamente a atenção para a fronteira entre escravidão e liberdade. Joseph e Louis, diferentemente de seu pai, não possuíam o mesmo conhecimento de produção rural, mas encontraram na produção e comércio de charutos – uma prática comum entre homens livres de cor – uma saída para obter lucros. A herança deixada pela madrinha de Élisabeth, composta em parte pela propriedade de escravos, permitiu a investida neste novo negócio.

Recursos financeiros de Jacques advindos da venda de parte das terras que possuía na Lousiana (Estados Unidos) forneceram o capital para a expansão dos negócios e, depois de Scott e Hébrard ocuparem as páginas deste capítulo para contextualizar o comércio de tabaco entre os vários pontos do Atlântico, concluíram que a Bélgica pareceu ser a melhor opção para as investidas além-mar de Joseph, que passou a morar em Antuérpia (Bélgica) com o resto da família, enquanto Louis cuidava da parte de produção na Louisiana (Estados Unidos).

Porém, novamente mudam-se os planos dos Tinchant, e agora era o contexto propiciado pela guerra da Secessão – culminando com a separação da Lousiana da União em 1861 – que levou os irmãos Tinchant a migrarem novamente para os Estados Unidos diante da má situação dos negócios. Além dos problemas que Joseph teria que lidar nos negócios, seus pais resolveram enviar Édouard, seu irmão mais novo, para New Orleans, após este manchar a reputação da família em Antuérpia (Bélgica).

A narrativa dos autores chega, assim, a Édouard. Buscar entender como a vida anterior em Antuérpia (Bélgica), que permitira que tivesse acesso a níveis educacionais, acabou influenciando as opções políticas abolicionistas de Édouard foi o objetivo deste capítulo. Além da militância pela causa na imprensa, ele acabou envolvendo-se na luta com as tropas da União, mas sua posição em não lutar novamente e a decisão em permanecer na Louisiana (Estados Unidos) quando seus irmãos estavam migrando para o México foi a chave para entender os intempéries daqueles que como Édouard, lutavam pela igualdade de direitos e pelo fim da escravidão: o alto comando da União era cúmplice dos preconceitos de uma sociedade escravista.

O sétimo capítulo, que tem como título É preciso fazer com que o termo direitos públicos signifique alguma coisa, descola o foco de análise para a atuação política de Édouard na Louisiana (Estados Unidos). Para compreender o entendimento do que Édouard tinha acerca do conceito de cidadania, os autores retomam a bagagem intelectual trazida da França, que explica a definição do que ele entendia por direitos públicos, ao mesmo tempo em que observam a cautela que teve ao utilizar o termo igualdade de direitos nos Estados Unidos, dadas as particularidades segregacionistas deste país.

A posição ideológica de Édouard, atrelada ao seu apoio político à União é destrinchada ao longo do capítulo, que mostra principalmente como Édouard ganhou suporte político e participou ativamente da promulgação da Constituição da Louisiana. O reconhecimento à cidadania, independente de cor, foi uma conquista prevista nesta Constituição, que juntamente com outros debates visando direitos à população de cor levaram os pesquisadores a conjecturarem em que medida as limitações sociais impostas aos antepassados destes sujeitos podem ter colaborado para a intenção de debater esses ideais.

Embora nem todas as idéias de Édouard fossem acatadas no texto final, os autores versam sobre os direitos públicos que essa Carta permitiu as pessoas de cor, e sobre seus reflexos na arena legal, como a permissão para que pessoas provenientes de famílias humildes pudessem, por exemplo, entrar na justiça caso fossem barradas em lugares de comércio.

A despeito dessas conquistas, este capítulo mostra como os direitos às pessoas de cor previstos nessa Constituição, ao conflitar com os interesses da Suprema Corte, fizeram com que os artigos referentes a direitos públicos fossem removidos e com que Édouard e seus companheiros perdessem poder e consequentemente, o emprego com o aumento do segregacionismo, principalmente nas escolas. Edouard lecionava, e essa situação forçou-o, juntamente com a família que formou, a migrar. Por fim, o capítulo termina discutindo os motivos para Édouard escolher Mobile (Estados Unidos) como o lugar que teria que reconstruir sua vida.

Horizontes de comércio, o oitavo capítulo, desloca o foco para a história dos outros filhos de Jacques Tinchant e Elisabeth Vincent: Jules, Pierre e Joseph, para mostrar o que teria acontecido com eles após a abertura do comércio de charutos, quando cada um cuidou de uma parte do comércio. Resgatam as intempéries que Jules e Pierre passaram quando trabalham com o comércio no México sob a influência e ocupação francesa para mostrar como as guerras atrapalharam seus negócios e dos motivos da migração de Joseph para o México.

A forma como os quatro irmãos mais velhos da família Tinchant se estabeleceram com a produção e comércio de charutos é mostrada através dos vários percalços e intrigas que os acompanhavam. O grande acúmulo de dívidas foi apontando como a principal causa da migração de Joseph, que em busca de novos mercados, mudou com a família para Havana, onde fez boas relações e novamente a viagem para a Antuérpia (Bélgica), finalmente obtendo sucesso com a criação de uma companhia de charutos com o nome de Tinchant y Gonzales. Os autores observam então, como a conexão entre este nome com a América Latina, juntamente com a cidadania mexicana conseguida anteriormente por Joseph, reforçaram aos seus charutos um ar de qualidade, distanciando-o da identidade da ascendência de escravos que foram trazidos para a América. A invenção desta “tradição”, portanto, criou um status que permitiu o sucesso na produção e venda de charutos.

Passa-se então à analise da sina de Édouard. Estabelecendo a sua companhia de charutos em Mobile (Estados Unidos), dedicou-se aos afazeres de um homem de negócios e as responsabilidades de pai de família, principalmente porque era um mau momento para se envolver com política em Mobile, visto que o Alabama era um estado extremamente racista. Quando estava começando a se estabelecer, ele e sua família desaparecem de Mobile e se mudam repentinamente para Antuérpia (Bélgica). Os autores atribuem essa mudança a motivações por política, negócios e família, uma vez que Édouard fora trabalhar com Louis e chamou a nova política republicana na presidência de “leis abomináveis” e “preconceitos ignorantes”.

Enquanto Édouard nunca fez questão de relacionar seus charutos à Havana ou a Europa, e sempre relacionando o nascimento de seus pais as lugares que lembravam deles, Joseph e seus descendentes faziam referências a origens aristocratas espanholas e francesas que achavam estarem entre seus antepassados e, nessas atitudes, residem as diferenças entre os irmãos: a exclusão da menção de exílio, a luta pelo republicanismo e por igualdade de direitos foram excluídas dessa narrativa sobre a ascendência familiar por parte daqueles que obtiveram sucesso comercial cosmopolita, que não queriam ser associados a preconceitos de cor.

Após o capítulo anterior focar no sucesso econômico dos irmãos Tinchant, o nono e último capítulo, intitulado Cidadãos para o bem da nação, mostra como a questão da cidadania alcançada a nível nacional devido às múltiplas viagens atlânticas de Joseph e seus irmãos interferiram por um lado, na tentativa dos irmãos Joseph e Ernest, no ano de 1892, em buscar a grande naturalisation, que conferia direitos políticos e civis a um cidadão belga e por outro de Édouard de buscar a nacionalidade francesa.

Chama-se atenção aqui para as restrições da lei e o preconceito racial, embates que Rosalie e seus descendentes tiveram que lidar, desenvolvendo táticas engenhosas: ora fugiam de guerras, ora participavam, ora expressavam-se politicamente, ora calavam-se. A reivindicação da cidadania e de nacionalidade nos diversos lugares que estiveram, juntamente com todas as ações mobilizadas ao longo desta narrativa, permitiram perceber a magnitude de forças que foram necessárias para o alcance de seus direitos.

“Por um motivo racial” foi o título escolhido pelos autores para narrar a odisséia de Marie-José Tinchant. O relato da ousadia da neta de Joseph Tinchant na imprensa, nos tribunais e sua participação política na guerra como militante presa permitiram aos autores perceber como as questões raciais interferiram na construção de uma memória política sobre a mesma, pois, quando os descendentes de Marie-José entraram na justiça, alegando serem beneficiários de uma prisioneira política, a justiça belga atribuiu à razão de sua prisão pelos nazistas como sendo um motivo racial.

Quando a filha de Marie-José, em 2010 finalmente conseguiu, por parte das autoridades de Bruxelas, o reconhecimento da prisão de sua mãe como prisioneira política, já havia migrado para o México em busca de suas raízes familiares naquele país.

A partir da observação da escrita dos capítulos, percebemos como os autores de Provas de Liberdade evocam a trajetória de alguns indivíduos do passado através da sequência dos acontecimentos e das interações conscientes destes com um contexto maior, trabalhando sempre com um “jogo de escalas” para explicar como uma conjuntura de guerra, ou de luta política, por exemplo, influiu em suas atitudes. Assim, Scott e Hérbrard, ao tentar compreender as ações destes indivíduos, reproduzem no interior deste discurso desdobrado, a relação entre um lugar do saber e sua exterioridade. É essa distorção que nos permite então, perceber ocultos no texto, sobre o lugar de onde falam seus autores.

Concomitantemente, ao colocar em cena a trajetória destes sujeitos, a construção narrativa dos autores permite que a sociedade se situe em relação a um passado e abre espaço para o presente. Como observou Certeau, a escrita “faz mortos para que os vivos existam. Mais exatamente, ela recebe os mortos, feitos por uma mudança social, a fim de que seja marcado o espaço aberto por este passado e para que, no entanto, permaneça possível articular o que surge com o que desaparece.” (CERTEAU, 1982, p. 107). A família Tinchant e os indivíduos estão mortos e os percalços, intempéries, forças que eles tiveram que lidar morreram com eles, naquela sociedade que é diferente da nossa, como o livro de Scott permite observar. Ao mesmo tempo em os descendentes dos Tinchant se afastavam dos estigmas e estereótipos atribuídos à ascendência africana, não tendo que lidar com as mesmas situações que seus antepassados, constituíam uma memória familiar, e é essa memória que revela permanências e conecta o mundo dos vivos àquele “enterrado” pela escrita da história.

Referências

BURKE, Peter. A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora da UNESP, 1992.

CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1982.

GAMES, Alison. Atlantic history: definitions, challenges, and opportunities. In: The American Historical Review, vol. 111, nº 3, 2006.

SCOTT, Rebecca J. & HÉBRARD, Jean M. Provas de Liberdade: uma odisséia na era da emancipação. Tradução: Vera Joscelyne. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014.

Ana Carolina Gesser – Mestranda em História pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Bosista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES. E-mail: [email protected].

De Olinda a Holanda: o gabinete de curiosidades de Nassau

Registros concretos da interseção dos homens no mundo, a cultura material reivindica para além da sua aparência física um sem fim de conexões com os tempos, os espaços e os grupos nos quais se insere. Matéria híbrida e maleável, é passível de ser deslocada redefinindo nesta própria transição novos significados. Atenta às qualidades históricas da cultura material, Mariana de Campos Françozo faz dela sua base para explorar o capital simbólico dos objetos em seu livro De Olinda a Holanda: o gabinete de curiosidades de Nassau.

Fruto da sua tese de doutorado, as reflexões pontuadas neste livro dão sequência às pesquisas realizadas por Françozo em sua dissertação de mestrado na qual já pontua o papel dos objetos no êxito das relações entre os indígenas e os colonizadores europeus no contexto do Brasil colonial. Destacando o processo e as mudanças decorrentes deste convívio ao longo da dissertação que tem como mote a influência da literatura etnológica alemã na obra de Sérgio Buarque, Françozo balanceia o tema da mobilidade a partir dos contatos, mas também das distâncias imanentes a ele. Assim, aponta em dado momento uma fala do autor sobre sua ida à Berlim onde afirma que afastar-se de seu país era a medida da lente para enxergá-lo por completo. Aproximando a assertiva da fórmula antropológica, infere a autora que a chave estava em “tornar estranho o que é familiar, e familiar o que é estranho.”2. Leia Mais

Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação – SCOTT; HÉBRARD (RBH)

SCOTT, Rebecca J. Hébrard, Jean M. Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação. Campinas: Ed. Unicamp, 2014. 296p. Tradução de Vera Joscelyne. Resenha de: MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.36, no.72, MAI./AGO. 2016.  

Doze milhões de pessoas foram transportadas involuntariamente do continente africano para as Américas entre os séculos XV e XIX para serem vendidas como escravas. Em Provas de liberdade, Rebecca Scott e Jean Hébrard reconstituíram a trajetória de uma delas, Rosalie, de nação Poulard, e seguiram seus descendentes por cinco gerações historiando grandes temas da era contemporânea como a abolição da escravidão de africanos, a cidadania e as lutas contra o racismo.

Rebecca Scott, professora de História da América Latina e de Direito da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, é conhecida do público brasileiro por seu livro Emancipação escrava em Cuba, cuja abordagem da desintegração da escravidão na colônia espanhola deu poder explicativo para a mobilização de escravos e libertos e teve um impacto significativo na historiografia brasileira da escravidão. Jean Hébrard é um dos diretores do Centre de Recherches sur le Brésil Colonial et Contemporain da École des Hautes Études en Sciences Sociales, na França, e professor visitante de História da América Latina e Caribe na Universidade de Michigan. O livro, publicado em inglês em 2012, rendeu aos autores dois prêmios da American Historical Association concedidos a livros sobre a História das Américas e sobre História Atlântica, em 2012, e um da Sociedade Americana de Estudos Franceses e do Instituto Francês de Washington para livros sobre temas comuns à França e às Américas, em 2013. Como Papeles de libertad, foi publicado em Cuba pelas Ediciones Unión e na Colômbia pelo Instituto Colombiano de Antropologia e História (ICANH). A edição brasileira, da Editora da Unicamp, contou com tradução de Vera Joscelyne e revisão técnica por equipe coordenada pelos autores e incluiu ilustrações, um mapa e um índice apenas onomástico – quando a edição original tinha índice remissivo onomástico e temático.

Provas de liberdade, como todo bom livro, tem diferentes camadas de entendimento e apreciação. Historiadores de qualquer área vão reconhecer a extensão da pesquisa e a originalidade da proposta metodológica; os especialistas na área de escravidão vão observar as contribuições historiográficas, e o público não especialista terá uma leitura prazerosa, emocionante e surpreendente.

Como relatam os autores, a pesquisa começou com a descoberta de uma carta no Arquivo Nacional de Cuba enviada da Bélgica por Edouard Tinchant ao general cubano Máximo Gomez no fim do século XIX. Nela, Tinchant declarava simpatia pela causa da independência de Cuba e associava a sua trajetória e a de sua família às lutas por cidadania e contra o racismo. Scott e Hébrard partiram, então, a verificar e reconstituir a história dessas pessoas que “personifica[vam] uma conexão entre três das maiores lutas antirracistas do ‘longo século XIX’: a Revolução Haitiana, a Guerra Civil e a Reconstrução nos Estados Unidos, e a Guerra Cubana pela independência” (p.17). O método, que os autores batizaram de “micro-história em movimento”, consistiu em seguir o rastro documental da família de Edouard Tinchant, duas gerações para trás e duas para a frente, por meio de documentos públicos e privados de todo tipo, garimpados em arquivos de oito países em três continentes e, na falta deles, preencher os vazios com dados que se associavam às trajetórias seguidas tanto por proximidade quanto por probabilidade. Sabendo, por exemplo, pela certidão de nascimento da mãe de Edouard, Elisabeth, que a mãe dela era Marie Françoise, conhecida por Rosalie, negra de nação Poulard, Scott e Hébrard puderam situar seu local de origem, a colônia francesa do Senegal, e o período aproximado de sua venda para o tráfico atlântico entre a Senegâmbia e Santo Domingo, o final da década de 1780. A falta de registros pessoais da primeira fase da vida da mulher que mais tarde se chamaria Rosalie foi então contornada pelos autores com o recurso a relatos contemporâneos de europeus, a documentos sobre a escravidão na colônia francesa do Senegal e à literatura secundária sobre a África Ocidental, o Islã na África e o tráfico atlântico do final do século XVIII.

No início da década de 1980, quando a área de estudos de escravidão começava a ganhar contornos e os especialistas ainda cabiam em um auditório, esboçava-se uma transição entre abordagens: de um lado, a do sistema de organização do trabalho e exploração dos trabalhadores, que dialogava com as teorias econômicas, e de outro, a das relações entre sujeitos históricos com autodeterminação, que abria o leque de influências disciplinares para incluir a sociologia, a antropologia e a linguística. Nessa fase, os historiadores passaram a observar mais de perto os mecanismos de reprodução do sistema, seus “segredos internos”, e com isso o comportamento dos grupos sociais, seus interesses e conflitos. O reconhecimento do protagonismo dos sujeitos históricos das camadas subalternas abriu espaço para que se multiplicassem as pesquisas em que a escala de análise dos diversos temas – trabalho, família, resistência, identidade étnica, práticas mágicas e religiosidade, entre outros – fosse a do indivíduo.

Depois de três décadas de grande florescimento e efervescência, a abordagem centrada nas pessoas escravizadas se vê às voltas com críticas acerca da representatividade dos sujeitos escolhidos e também da relevância dos seus achados para o entendimento dos grandes processos da História. Por isso, Provas de liberdade é ao mesmo tempo um libelo em defesa do jogo de escalas e uma demonstração de como proceder para incorporar o protagonismo dos sujeitos em uma análise dos processos históricos.

Os autores não trataram seus personagens como típicos ou excepcionais. A cada momento, na geração de Rosalie, de sua filha Elisabeth, de seu neto Edouard Tichant ou dos sobrinhos e sobrinhos-netos dele, Scott e Hébrard buscaram retratar momentos difíceis de tomada de decisão, de escolhas entre diferentes caminhos possíveis. Cada capítulo acaba com alguém embarcando rumo a uma nova fase na vida, sempre sob pressão ou ameaça. Foi assim quando Rosalie, já liberta, mas sem documento oficializado de sua liberdade, teve que fugir de Saint Domingue para Cuba com a filha Elisabeth em 1803, ou ainda quando a africana embarcou Elisabeth com sua madrinha para New Orleans, na Louisiana, em 1809 e voltou para o Haiti, agora independente. Foi ainda o caso da escolha feita por Elisabeth e seu marido, Jacques Tinchant, ele também filho de emigrantes haitianos de origem africana, de partir com quatro filhos para a França, país onde teriam direitos civis que não eram reconhecidos às pessoas livres de cor na Louisiana escravista da década de 1840. Foi igualmente a escolha de Edouard, nascido na França em 1841, de se juntar a dois de seus irmãos que trabalhavam em manufaturas de charutos em New Orleans. Na Louisiana, Edouard se engajou num batalhão de pessoas de cor durante a Guerra Civil, do lado da União, e depois entrou para a política, sendo eleito deputado da Assembleia Constituinte da Louisiana durante a Reconstrução, quando defendeu a igualdade de direitos civis, políticos e públicos para todos os cidadãos. Em cada trajetória e em cada momento vemos sujeitos fazendo escolhas em condições adversas, reagindo às limitações impostas pela conjuntura, protagonizando eventos e processos históricos como as transformações da escravidão e sua abolição, o pós-emancipação, ou mesmo a resistência ao nazismo na Segunda Guerra Mundial, história que antes víamos apenas de longe.

O diferencial metodológico do livro está na aproximação com o campo do Direito. Em primeiro lugar, os autores lançaram um novo olhar para os registros individuais. Sob a lupa do historiador cuidadoso, os documentos revelaram histórias complexas da aquisição e exercício de direitos (à propriedade, à liberdade, à nacionalidade, à cidadania), desnaturalizando-os e inscrevendo-os num campo de disputas. Assim, o direito à propriedade sobre escravos pode vir de uma apropriação ilegítima, posteriormente formalizada, como a que aconteceu entre milhares de ex-escravos de Saint Domingue que migraram para Cuba e depois para a Louisiana, onde a escravidão persistia: acabaram reescravizados. Em segundo lugar, Scott e Hébrard convidam os leitores a perceber como os protagonistas conferiam importância aos documentos escritos, mesmo que às vezes não pudessem ler. Essa consciência levou Rosalie a fazer questão de uma carta de alforria mesmo já sendo emancipada, pois nos territórios para onde iria ainda havia escravidão e ela sabia que precisaria provar sua condição. Nisso, percebemos que o entendimento sobre o significado e mesmo o conteúdo dos documentos sempre esteve em disputa entre as diversas forças sociais (incluindo as autoridades), e que as pessoas frequentemente se moviam na incerteza; não havia garantia plena de que uma pessoa livre de cor não fosse reescravizada, pois a fronteira entre escravidão e liberdade era bem mais porosa e cinzenta do que antes imaginávamos. Por último, é preciso ressaltar novamente a importância da abordagem simultânea em diferentes escalas, pois, ao narrar a história pelo fio condutor dos embates dessa família pelo reconhecimento de direitos – à liberdade, à respeitabilidade, à dignidade e igualdade perante a lei – os autores fizeram uma história social centrada na luta por direitos, sobretudo direitos humanos, no período entre a Revolução Francesa e o fim da Segunda Guerra Mundial, quando o protagonismo dos negros, mulheres e povos submetidos à colonização forçou sua ressignificação e ampliação até serem reconhecidos como universais.

Em suma, Provas de liberdade é uma obra acadêmica rigorosa e inovadora que os leitores terão o prazer de ler como um romance.

MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. – Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, SC, Brasil. [email protected].

 

A Justiça do Trabalho e sua história – GOMES; SILVA (RBH)

GOMES, Ângela de Castro; SILVA, Fernando Teixeira da (Org.). A Justiça do Trabalho e sua história. Campinas: Ed. Unicamp, 2013. 528p. Resenha de: LIMONCIC, Flávio. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.34, n.68, jul./dez. 2014.

Nos últimos 70 anos, as vidas de milhões de mulheres e homens Brasil afora se cruzaram nas varas da Justiça do Trabalho. Nos próximos anos, outras tantas o farão. A Justiça do Trabalho é uma instituição central não apenas do aparato estatal que regula as relações de trabalho no Brasil, mas do próprio mundo do trabalho brasileiro. Por isso, causa estranheza o fato de que ela tenha sido tão pouco visitada pela historiografia e pela sociologia do trabalho no Brasil. A Justiça do Trabalho e sua história, volume organizado por Ângela de Castro Gomes e Fernando Teixeira da Silva, constitui importante contribuição para a superação de tal lacuna. E o faz segundo a melhor tradição historiográfica, com base em exaustiva pesquisa de fontes produzidas por esse ramo do Poder Judiciário ao longo de décadas e em diferentes cidades e regiões do Brasil, envolvendo tanto trabalhadores individuais quanto categorias profissionais.

O livro é estruturado em cinco partes, além de uma apresentação na qual os organizadores realizam um apanhado histórico da trajetória do tribunal. A começar pelos organizadores, os autores têm longa trajetória acadêmica ou profissional e larga produção na área de estudos do trabalho.

A primeira parte, com textos de Clarice Gontarski Speranza e Rinaldo José Varussa, trata da conciliação entre patrões e empregados em torno das condições de vida e trabalho. Speranza desenvolve suas reflexões a partir das relações entre mineiros de carvão e seus patrões no Rio Grande do Sul, entre 1946 e 1954, ao passo que Varussa o faz a partir dos trabalhadores de frigoríficos do Oeste do Paraná nas décadas de 1990 e 2000. A segunda parte discute a Justiça do Trabalho na arbitragem dos conflitos entre patrões e empregados. O texto de Antonio Luigi Negro e Edinaldo Antonio Oliveira Souza desenvolve uma reflexão sobre a Justiça do Trabalho na Bahia entre 1943 e 1948, ao passo que Benito Bisso Schmidt realiza sua análise a partir da ação de uma trabalhadora da indústria de sapatos em Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul, entre 1958 e 1961. Fernando Teixeira da Silva e Larissa Rosa Corrêa discutem a questão do poder normativo da Justiça do Trabalho na terceira parte, o primeiro em São Paulo às vésperas do golpe de 1964, a segunda tendo como tema a política salarial nos primeiros anos da ditadura civil-militar (1964-1968). A atuação da Justiça do Trabalho no mundo rural brasileiro é o tema da quarta parte. Antonio Torres Montenegro reflete sobre a ação de tal Justiça na ditadura civil-militar, ao passo que Frank Luce trata do estatuto do trabalhador rural na região do cacau. Por fim, na quinta e última parte se discute a Justiça do Trabalho diante das formas de contratação do trabalho oriundas de processos de flexibilização e precarização das relações de trabalho. Vinícius de Rezende concentra suas reflexões na indústria do calçado de Franca entre 1940 e 1980, Magda Barros Biavaschi reflete sobre a terceirização a partir de processos judiciais, e Ângela de Castro Gomes discute a Justiça do Trabalho diante do trabalho análogo à escravidão.

Muito embora historiadores que atuam em diversas universidades brasileiras componham a maioria dos trabalhos referidos – como, aliás, seria de se esperar em um livro que traz a História em seu nome –, Frank Luce é advogado trabalhista e professor de estudos do trabalho na York University, Toronto, e Magda Barros Biavaschi é desembargadora aposentada do Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul. A reflexões de ambos evidenciam a importância não só do diálogo com outras disciplinas – no caso da Justiça do Trabalho, o diálogo com a área de direito parece de evidente importância –, como, também, da incorporação de ângulos novos ao tema, como os estudos sobre o mundo rural.

Na Apresentação, os organizadores introduzem, ainda, uma questão fundamental, dessa vez relativa às fontes.

Ainda que a compreensão do que constitui fonte histórica tenha mudado desde que a disciplina histórica se constituiu como campo do saber, fontes continuam sendo imprescindíveis para o trabalho do historiador, e este volume anda de par em par com a literatura histórica e sociológica que, nas últimas décadas, tem utilizado fontes judiciais. No entanto, advertem os organizadores do volume, a documentação produzida pela Justiça do Trabalho tem sido sistematicamente eliminada graças à Lei 7627, de 10 de novembro de 1987 (coincidentemente, o 50º aniversário do Estado Novo). Somente no ano de 2005, quase 540 mil processos foram eliminados no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, localizado em São Paulo.

A Lei 7627 é apenas uma das ameaças às fontes judiciais brasileiras. Outras provêm de projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional e de Resoluções do Conselho Nacional de Justiça, às quais vem somar-se a rápida e constante inovação tecnológica que torna obsoletos e, portanto, potencialmente inacessíveis, diversos suportes imateriais, como arquivos eletrônicos. Nesse sentido, o presente livro constitui, também, um alerta para o tipo de reflexão que pode ser perdido caso as fontes judiciais brasileiras em geral, e as da Justiça do Trabalho em particular, sejam efetivamente descartadas.

Suscitar questões, mais do que chegar a conclusões, parece ser a medida de um bom trabalho. E este o faz, ao sugerir ao menos duas, que são tratadas de passagem na “Apresentação”. Da longa manus do Estado de inspiração fascista a elemento do que Ângela de Castro Gomes chama, em outro trabalho, de pacto trabalhista, seria de grande interesse que a Justiça do Trabalho fosse pensada de forma mais sistemática na arquitetura institucional do corporativismo brasileiro. Seria de igual interesse, também, que o papel do Estado na mediação do conflito entre patrões e empregados fosse estudado num enfoque internacional comparativo. De fato, no contexto dos anos 1930 e 1940, vários países criaram agências estatais para a regulação de diferentes mercados, inclusive o de trabalho.

Ao sugerir tais questões, assim como ao reunir reflexões de tal qualidade, A Justiça do trabalho e sua história constitui contribuição fundamental não só para a compreensão da atuação da Justiça do Trabalho, como também para um melhor entendimento de como esta se enraizou nos corações e mentes de gerações de trabalhadores brasileiros.

Flávio Limoncic – Departamento de História, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). E-mail: [email protected].

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Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho – MARCEL (RBH)

MARCEL, Linden Van Der. Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Campinas (SP): Ed. Unicamp, 2013. 520p. Resenha de: SILVA, Fernando Teixeira da. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.34, n.67, jan./jun. 2014.

No Congo belga do final do século XIX, em sua viagem pelo coração das trevas do “homem moderno”, Joseph Conrad encontrou bacongos mortos de tanto trabalhar no assentamento dos trilhos da ferrovia do rei Leopoldo, assim como assistiu à fuga dos que se recusavam a ser recrutados. Em pleno século XXI, na República Democrática do Congo, uma matéria do New York Times constata que 90% dos mineiros trabalham em condições análogas à de escravo, para extrair tungstênio e estanho usados em aparelhos eletrônicos consumidos em diferentes partes do globo. Lamentavelmente, eles não constituem exceção. Min Min, pseudônimo usado para evitar retaliações, foi recrutado aos 19 anos em sua terra natal, Miamar, para trabalhar em barcos pesqueiros na vizinha Tailândia, na esperança de encontrar dias melhores, conforme seu “agenciador” lhe havia prometido. Ao chegar às docas, ele lhe disse: “sou seu dono”. Min Min se viu forçado a trabalhar até 20 horas por dia, de domingo a domingo, sem receber qualquer remuneração. Ao tentar fugir, foi capturado e torturado com anzóis. A boa notícia é que, após 9 anos de pesadelos, Min Min conseguiu escapar e retornar para sua casa. “Eu me senti livre”, disse ele (Potenza, 2014). Não teve a mesma sorte a maioria dos cerca de 30 milhões de trabalhadores submetidos à “escravidão contemporânea” em mais de 160 países, segundo levantamento de um relatório sobre trabalho compulsório no mundo atual (Global Slavery Index, s.d., p.7).

Bem sabemos que, do Congo da época de Conrad aos barcos de pesca da Tailândia de nossos dias, a escravidão “moderna”, que vicejou das Grandes Navegações ao século XIX, tornou-se proibida por lei. Mais do que isso, qualquer trabalho que não seja considerado “livre” é moralmente censurável. Entretanto, a escravidão continua presente. É como se algo tivesse saído diferente do combinado, mas essa impressão logo se desfaz quando percebemos que a história do capitalismo, desde a expansão do mercado mundial no século XIV, foi sempre a história do trabalho compulsório, por compulsão tanto física quanto econômica. Tal constatação constitui a essência de Trabalhadores do mundo, livro que Marcel van der Linden publicou originalmente em inglês, em 2008, e que acaba de ser lançado em português pela Editora da Unicamp.

Dono de extraordinária erudição, diretor por vários anos do prestigioso Instituto Internacional de História Social (IIHS), de Amsterdã, e conhecedor de diversas línguas, o autor encontra-se muito bem posicionado para propor uma “história global do trabalho”, termo que, segundo ele, foi cunhado pelo próprio IIHS. Van der Linden logo alerta que não se trata de um novo paradigma, uma escola historiográfica ou outra Grande Teoria. Em termos concisos, tal história é uma “área de interesse”. Em primeiro lugar, está o interesse em produzir uma história transnacional e transcontinental, que seja capaz de romper as barreiras historiográficas confortavelmente fincadas nas fronteiras dos Estados-nação, muitas vezes naturalizadas. Em um contexto expandido de processos históricos, podem-se examinar combinações e fluxos materiais e simbólicos que atravessam diferentes dimensões geográficas, bem como elaborar comparações para testar hipóteses antes elaboradas no interior dos quadros nacionais.

Igualmente importante é o interesse em desafiar definições reducionistas de “classe trabalhadora”, tão ao gosto das perspectivas deterministas e evolucionistas de estudos empreendidos no chamado Atlântico Norte, para os quais os países periféricos acompanhariam os “estágios” de desenvolvimento do centro do capitalismo, onde teriam predominado os trabalhadores assalariados em estado “puro”. Um arraigado pensamento teleológico crê que a escravidão, a servidão por contrato, o trabalho autônomo, doméstico, infantil e de subsistência seriam formas residuais de exploração do trabalhador, não subordinadas à lógica da mercantilização capitalista e, portanto, fadadas ao desaparecimento. Se o campo de visão se amplia para uma escala global, pode-se observar que todas essas formas de trabalho são coexistentes e, muitas vezes, complementares. Para van der Linden, “a base de classe comum a todos os trabalhadores subalternos é a mercantilização coagida de sua força de trabalho” (p.41, grifo do autor). Por isso, importa inventariar os motivos que levam ao uso desta ou daquela modalidade de exploração da força de trabalho, ou o impedem. Seria o trabalho escravo menos eficiente porque “uma pessoa incapaz de adquirir propriedades não pode ter outro interesse que não comer o máximo possível e trabalhar o mínimo possível”, como pontificava Adam Smith (p.75)? São questões como esta que o autor busca deslindar, não apenas do ponto de vista dos cálculos econômicos, mas também a partir de considerações sobre normas comportamentais, legais, políticas e morais.

Essa síntese recobre a primeira e mais instigante parte do livro. Em seguida, pouco mais da metade do estudo é dedicado a analisar as expressões de ação coletiva dos “trabalhadores subalternos” contra a dominação do capital. Num verdadeiro tour de force, com exemplos extraídos sobretudo de vastíssima literatura secundária produzida nos cinco continentes, van der Linden apresenta, na segunda parte da obra, extensa taxonomia de organizações de trabalhadores (sociedades de auxílio mútuo e cooperativas) e, na terceira, formas de resistência, como greves e internacionalismo operário (os sindicatos curiosamente integram esta última parte, talvez reproduzindo teses que demarcam e hierarquizam as fronteiras entre mutualismo e sindicalismo, embora os limites entre ambos sejam muitas vezes fluidos e mal definidos). Por meio de descrições infatigáveis, o afã tipológico da obra ordena, categoriza e define fenômenos comuns, ao mesmo tempo em que estabelece semelhanças e diferenças entre eles. As mais de duas centenas de páginas que catalogam espécimes extraídos de distintos tempos e lugares buscam regularidades, tendências, frequências e comparações que colocam à prova e controlam generalizações tentadoras. O leitor pode se servir de diversas formas desse impulso classificatório, como ler os capítulos separadamente, conforme interesses específicos (como o próprio autor sugere na Introdução), e utilizar as informações de fôlego enciclopédico como referência para eventuais consultas.

A última parte é um apelo ao diálogo interdisciplinar, em particular com a economia, a sociologia e a antropologia. Merece destaque o capítulo sobre a teoria do sistema-mundo, em grande parte inspirado em Immanuel Wallerstein e nas reações às suas reflexões. Tal teoria considera que, desde o século XVI, o capitalismo expandiu-se mundialmente, configurando um sistema que se caracteriza “por uma única divisão internacional do trabalho e múltiplos territórios políticos (Estados) organizados numa totalidade interdependente formada por um centro de trocas desiguais no comércio internacional, e por uma semiperiferia economicamente situada a meio caminho entre o centro e a periferia” (p.320, grifos do autor). Van der Linden reconhece que o conceito apresenta limites, embora possa contribuir para a construção de uma história global do trabalho, o que o leva a retomar as questões centrais da primeira parte do livro. Reexamina agora os variados e, via de regra, simultâneos “modos de controle do trabalho”, assim como as estratégias de resistência das classes subalternas na medida em que o conflito capital-trabalho encontra-se no centro do desenvolvimento do sistema-mundo. De especial interesse são os capítulos 13 e 14, respectivamente dedicados ao estudo da interdependência entre trabalho de subsistência e de produção de mercadorias e ao impacto da incorporação de uma etnia de Papua-Nova Guiné, na Oceania, ao capitalismo e, em particular, ao trabalho assalariado.

Os grandes contornos que Marcel van der Linden oferece para a configuração de uma história global do trabalho revelam as muitas potencialidades dessa “área de interesse”, mas também convidam a refletir sobre seus riscos e desafios. Trabalhadores do mundo se encerra com uma observação de E. P Thompson: “cada acontecimento histórico é único. Mas muitos acontecimentos, separados entre si por vastas distâncias de tempo e espaço, revelam, quando colocados em relação mútua, regularidades de processos” (citado na p.413). A assertiva justifica muito do que van der Linden desenvolveu durante a maior parte do livro, mas também chama a atenção para a própria noção de processo que uma descrição tipológica pode colocar à deriva. A justaposição de exemplos sacados de diferentes tempos e espaços tende a sacrificar a própria historicidade dos fenômenos analisados e a percepção da mudança histórica. Riscos como esses são, felizmente, evitados no sugestivo capítulo sobre “internacionalismo operário”.

Assim como a ampliação do conceito de classe trabalhadora deve estar no cerne de qualquer história global do trabalho, parece fundamental alargar também o que se entende por formas de ação e organização coletivas dos trabalhadores. Elas, certamente, não se reduzem às instituições formais. Celebrações, rituais, lazer, esporte e “pequenas lutas” nos locais de trabalho são fenômenos que também podem ser examinados em escala global, pois constituem expressões culturais e políticas que, em diversos momentos, se interconectam em âmbito transnacional, o que obviamente van der Linden não ignora, embora tenha escolhido tratar, sobretudo, de um universo institucional mais conhecido e documentado.

Como “globalizar” a história do trabalho sem desconsiderar devidamente as características dos Estados-nação? Para lidar com essa questão, é elucidativo o estudo de Leon Fink sobre os marinheiros ingleses e norte-americanos dos séculos XIX e XX. Talvez não haja categoria de trabalhadores mais “propícia” a estudos transnacionais que os marítimos, envolvidos diretamente na “economia-mundo” e exercendo papel de relevo no transporte e no mercado global de mercadorias. Eles singram mares e oceanos que perpassam os mais diferentes territórios nacionais e trabalham em uma indústria altamente competitiva que desafia nações e impérios inteiros que queiram regular em escala internacional seus negócios e, principalmente, as relações de trabalho. Esforços regulatórios via de regra fracassaram, e os trabalhadores permaneceram por longo período submetidos a maus-tratos físicos e impedidos de abandonar o trabalho, sob o risco de condenação por deserção, motivo pelo qual foram frequentemente comparados a escravos. Fink acompanha os debates parlamentares, as disputas políticas, a legislação, os embates coletivos e os sindicatos empenhados, entre outros aspectos, em criar um mercado mundial de trabalho mais uniforme e, assim, capaz de equalizar salários e condições de trabalho assentadas em divisões étnicas e raciais. Para dar conta de uma história da luta pela regulamentação do trabalho dos marinheiros na “longa duração” e nos dois lados do Atlântico, o autor precisou contextualizar justamente a “cultura política” dos dois países nos mais diversos períodos abarcados pela obra, assim como as diferentes tradições políticas, institucionais e legais de ambos os Estados-nação (Fink, 2011). Em suma, descrições taxonômicas podem transformar as especificidades dos Estados nacionais em epifenômenos.

Por outro lado, a depender do problema, do objeto de estudo e da abordagem, principalmente quando o intento é analisar longos processos históricos, como o da regulação internacional do trabalho, o que se perde é a “experiência vivida” dos trabalhadores. Importa, então, perguntar se é da “natureza” da história global do trabalho, ocupada com teorias como a de “sistema-mundo”, enfatizar os aspectos “estruturais” em detrimento da história “vista de baixo”. Como van der Linden assinalou, não foram poucos os que viram aquela teoria como determinista, eurocêntrica, fechada e avessa a incorporar os trabalhadores, assim como muitos que a abraçaram defendem que as ações coletivas dos subalternos se interconectam em escala planetária em razão da divisão internacional do trabalho, cabendo aos trabalhadores o papel de protagonistas (capítulo 12).

Estamos diante do complexo problema dos “jogos de escala”. Seja como for, há bons exemplos que mostram a possibilidade de se articular as dimensões, por assim dizer, “macro e micro”, sem que se caia nas falsas dicotomias ainda em voga entre “totalização” e “fragmentação”, “estrutura” e “agência”, “poder” e “resistência”. Mais uma vez, histórias de marinheiros podem ser invocadas em nosso auxílio. Para Peter Linebaugh e Marcus Rediker, em estudo já consagrado (2008), os navios, nos séculos XVII e XVIII, foram tanto um espaço de dominação, tirania, insegurança e monotonia, quanto um meio de produção e ponto de convergência do radicalismo proletário do Atlântico Norte durante a formação do capitalismo. Náufragos, escravos, servos irlandeses, piratas, marinheiros, assalariados, quilombolas, ameríndios e plebeus de toda ordem interconectaram-se (para usar expressão cara a van der Linden) e fizeram circular experiências transcontinentais. Eles protagonizaram motins, revoltas e ondas revolucionárias, como foi o caso da revolução de São Domingos, cujo impacto, por razões que não cabem aqui elucidar, resultou na “nacionalização” dos grupos que formavam aquela “multidão” atlântica (“o que daí resultou foi nacional e parcial: a classe trabalhadora inglesa, os negros haitianos e a diáspora irlandesa“, p.300). Nessa obra merecidamente incensada, a abrangência do conceito de “classe trabalhadora” é ainda mais expandida, os processos transnacionais são historicamente contextualizados, a periodização acompanha grandes mudanças do capitalismo e do Estado marítimo britânico – tudo isso sem perder de vista a perspectiva dos “de baixo”.

Por fim, é preciso levar em conta que uma história global, sobretudo esta que se propõe a combater o eurocentrismo, requer também o desenvolvimento da internacionalização da história do trabalho em todos os quadrantes. Por um lado, muito já se tem feito nessa perspectiva, a começar pelos frequentes congressos internacionais para debater e publicar pesquisas afinadas com a proposta, tendo Marcel van der Linden e o IIHS como uns de seus principais animadores. Por outro, parafraseando o subtítulo de um texto influente de Carlo Ginzburg, as trocas são desiguais no mercado historiográfico. Nem sempre os protagonistas da história global conhecem o que está sendo realizado em todos os lugares. É evidente que se esforçam para isso, mas há limitações de ordem orçamentária, como as impostas até mesmo pelos Estados-nação do Atlântico Norte após a crise de 2008, os quais cortaram recursos para programas e instituições dos países do “capitalismo central” e limitaram ou mesmo inviabilizaram projetos em parceria entre Norte e Sul.

O mais importante, contudo, é ter em mente que, como bem observou van der Linden ao se referir ao idioma alemão, há línguas “ilegíveis”. Não seria o caso de reivindicar aqui pioneirismos nacionalistas nem listar com imodéstia as numerosas pesquisas – diversas em escala transnacional – que ampliaram o conceito de classe trabalhadora, rompendo, por exemplo, com as tradicionais narrativas da transição do trabalho escravo para o trabalho livre no Brasil. Pretendo apenas assinalar que é muito oportuna a publicação do livro em português, não apenas por suas propostas, mas igualmente pelo debate que pode provocar, de modo a levar os historiadores no Brasil a pensar sobre o quanto já foi feito e ainda pode ser percorrido na direção de uma história global do trabalho, mesmo que nem sempre com esse rótulo.

Referências

FINK, Leon. Sweatshops at Sea: Merchant Seamen in the World’s First Globalized Industry, from 1812 to the Present. Chapel Hill: The University of North Carolina, 2011.         [ Links ]

GLOBAL SLAVERY INDEX. Walk Free Fondation, p.7. Disponível em: www.globalslaveryindex.org/report/; Acesso em: 22 abr. 2014.         [ Links ]

LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Peter. A hidra de muitas cabeças. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.         [ Links ]

POTENZA, Alessandra. “21st Century Slavery”. The New York Times, Mar. 17, 2014 (“Upfront Magazine”, v.146, n.10, p.8-11).         [ Links ]

Fernando Teixeira da Silva – Departamento de História, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: [email protected].

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Guerra Santa: Formação da Ideia de Cruzada no Ocidente – FLORI (AN)

FLORI, Jean. Guerra Santa: Formação da Ideia de Cruzada no Ocidente. 1ª ed. Tradução de Ivone Benedetti. Campinas: Ed. Unicamp, 2013. Resenha de: ALMEIDA, Néri de Barros. Anos 90, Porto Alegre, v. 20, n. 38, p. 449-453, dez. 2013.

As cruzadas foram um acontecimento em seu próprio tempo. Seus testemunhos contam-se entre os mais vastos e diversificados do período. O interesse que despertaram ainda em plena Idade Média, o envolvimento dos grandes personagens de então entre os quais se contam imperadores, papas e príncipes regionais aliados ao reconhecimento pelos historiadores modernos de sua importância na dinâmica histórica lhe garantiram um lugar de destaque na memória coletiva. A esse conjunto provavelmente deve-se o fato de mais de novecentos anos após seu aparecimento, as cruzadas ainda integrarem dimensões da experiência como representação.

As cruzadas inspiraram as artes plásticas, a música e a literatura e atualmente continuam inspirando o cinema, a teledramaturgia, revistas de vulgarização científica, romances gráficos e formas diversas de entretenimento em que se contam simulações lúdicas e jogos virtuais. Ao lado das heresias e da inquisição, elas também constituem um dos pilares em que se apoia a autocrítica ocidental quando observa seu passado medieval. A palavra cruzada tem um lugar importante em nosso vocabulário ora aplicando-se à violência do fanatismo religioso, ora à firme reunião de forças benéficas em torno de uma causa nobre, geralmente ligada a um ideário de salvação.

Podemos assim falar em cruzada pela infância ou cruzada contra a fome. A ambivalência que a ideia de cruzada ainda comporta em suas evocações cotidianas expressa a própria complexidade do fenômeno. Mesmo os historiadores não se sentem capazes de produzir um juízo único e definitivo a respeito do que foram as cruzadas. Discutem se estas se definem por seu caráter de expedição militar ou de peregrinação, se os benefícios espirituais devem ser tomados entre seus dados fundamentais, se as expectativas escatológicas se contam entre suas motivações decisivas, se o componente popular foi significativo e qual a importância de Jerusalém em sua deflagração.

Não há conceito capaz de se impor isoladamente como verdadeiro. Nem mesmo os movimentos que devem ser identificados pelo termo cruzada são reconhecidos de forma unívoca. Estariam as expedições para o oriente no mesmo plano que as lutas contra os muçulmanos na Espanha durante a Reconquista ou aquelas contra os pagãos da Europa Oriental, os hereges albigenses e os imperadores rebeldes ao papado? Afinal, o que constitui o cerne comum das expedições ocorridas entre fins do século XI e fins do século XIII que a partir de meados do século XII vieram a ser conhecidas como cruzadas? Em Guerra Santa. Formação da ideia de cruzada no Ocidente cristão (Campinas: Editora da Unicamp, 2013), temos a oportunidade de acompanhar o percurso de Jean Flori em defesa de um conceito de cruzada. A pergunta da qual parte seu estudo é: como a comunidade cristã, em sua origem pacifista, desenvolveu um pensamento e uma prática em relação à violência bélica que lhe permitiu aderir de forma justificada e legítima a diversas empresas guerreiras a ponto de a Igreja vir a se tornar a deflagradora direta de um conflito com a extensão e repercussão das cruzadas? O propósito da obra consiste em demonstrar que essa mudança não foi repentina.

A tese que guia a obra é aquela de que a cruzada foi o desdobramento de uma ideia cristã antiga, surgida no longínquo século IV – momento em que são dados os passos decisivos para a institucionalização da Igreja – que advogava que certos conflitos militares deveriam ser entendidos como desejados por Deus e, portanto, realizados em seu nome e com sua aprovação. Tratar-se-ia de guerras que, em função de suas motivações e seus fins específicos, seriam sacralizadas, ou santas. Dessa forma, Flori entende a cruzada como uma modalidade de guerra santa. Aqui, é necessário um esclarecimento, uma vez que o autor não identifica a guerra santa ao jihad, esforçando-se por mostrar, ao tratar das relações complexas entre a cristandade e o islã medievais, as diferenças entre os dois tipos de combates sacralizados.

Parte dos estudos dedicados às cruzadas procuraram compreendê-las a partir da observação do evento já em curso ou de seus resultados. Basta lembrarmos das vertentes que viram nelas a resposta à crise de um feudalismo incapaz de reproduzir-se sem a conquista de novos territórios ou um primeiro movimento da mundialização que mais tarde seria completado pelas Grandes Navegações, responsável pela imposição do sistema de valores cristãos fora das fronteiras tradicionais da cristandade. Nesses dois casos, a compreensão do que foram as cruzadas se desloca e o fenômeno que propriamente constituem permanece incompreendido. Jean Flori procura apresentar cada um dos elementos que, de seu ponto de vista, integram a trama que tornou as cruzadas possíveis. Dessa forma, seu livro se estende do século IV a 1096, quando da pregação de Urbano II, feita durante o concílio de Clermont (1095), surge a primeira cruzada. Flori produz sua reconstituição atento tanto a ideias quanto a processos demorados e eventos pontuais. Da trama rica e densa proposta pelo autor, que envolvem considerações a respeito da evolução das relações entre cristãos e muçulmanos, o aparecimento e a consolidação de um forte movimento penitencial e peregrinatório a partir do século XI e a intensificação de expectativas de ordem escatológica no mesmo período, podemos destacar três questões que nos parecem maiores. Em primeiro lugar, a aproximação entre a Igreja e o Império que ainda na Antiguidade Tardia transformou a autoridade pública secular em protetora militar da comunidade de cristãos seja contra inimigos externos seja contra as próprias dissensões internas que ameaçavam sua ordem hierárquica e a paz social. Em segundo lugar, na Idade Média, o prosseguimento dessa política de busca de apoio nas lideranças laicas em ambientes em que a autoridade real ou imperial não se faziam presentes ou não se mostravam particularmente sensíveis a essa ordem de problema, momento em que podemos destacar a situação vulnerável da Sé romana e suas ações para atrair apoio que lhe garantisse proteção armada tanto contra potentados locais quanto contra invasores. Em terceiro lugar, a reforma da Igreja que, entre os séculos XI e XII, alterou de forma significativa o sistema de autoridade eclesiástico perpetrando uma separação mais nítida, inclusive no domínio material, entre o que era ou não consagrado, entre o que estava sob a autoridade eclesiástica e o que estava submetido ao arbítrio laico. Um dos resultados dessa reforma foi a reivindicação papal da liderança direta de Cristo sobre os conflitos de ordem militar de seu interesse. Como lembra o autor, com as cruzadas, o papa, investido da proteção já não apenas do patrimônio de São Pedro mas da própria herança de Cristo “[…] falava como comandante de todos os cristãos, em nome de Cristo”.

Os dez capítulos que constituem a obra conduzem o leitor pelo processo em que se integram ao longo dos séculos medievais até o ano de 1096 os diversos elementos que compõem a cruzada.

Assim, depois de um estudo introdutório a respeito da forma como o tema foi problematizado pela historiografia (Capítulo 1) o autor discute a herança que a tradição imperial de Constantino a Carlos Magno legou das relações entre violência guerreira e sagrado (Capítulo 2). Em seguida, um bloco importante de textos ocupa-se do período capital transcorrido entre os séculos X e XI. O autor trata aí de um problema importante: a Paz de Deus conduziu à cruzada como defendeu a tese lançada por Georges Duby? A resposta negativa dá ensejo a um interessante panorama do que foi a Paz de Deus e da tradição em evidência em sua discussão mobilizada em favor da construção da especificidade da cruzada. Isso se dá sem que seja negado um papel à Paz de Deus, sobretudo por meio da concessão de benefícios espirituais aos defensores de igrejas nela envolvidos (Capítulo 3). Em seguida é analisada a relação entre santidade e violência (Capítulo 4), sobretudo por meio dos santos guerreiros e a sua contribuição no processo de sacralização da violência (Capítulo 5).

Deslocando de forma mais incisiva seu olhar em direção à Santa Sé, Flori mostra a associação de signos militares à autoridade de São Pedro (Capítulo 6) e a forma como a violência militar integrava a ideia que Gregório IX fazia da defesa da liberdade da Igreja (Capítulo 7). O bloco seguinte trata da relação com o “outro”, o elemento externo à cristandade que, embora sempre presente no pensamento bélico cristão, se reveste de profunda materialidade com os destinos orientais (Capítulo 8) e ocidentais (Capítulo 9) da expansão muçulmana. Para encerrar, o autor reafirma seu pressuposto de que as cruzadas têm fundamentos de diferentes ordens (espirituais, teológicos, bélicos, políticos) e temporalidades (do século IV a 1096), mas que o campo fundamental em que a vemos se conformar é aquele do enriquecimento da ideia de guerra santa. É em relação a este conceito diante de suas alterações em 1095 que o autor tece sua definição de cruzada (Capítulo 10).

As opções do autor e seu resultado no campo conceitual, como é de se esperar de todo grande trabalho, certamente resultarão em perplexidade de alguns e em discordância frontal de outros. No entanto, a riqueza de seu percurso, sua coragem num campo antigo e proeminente em que ainda não se atingiu nenhuma unanimidade e, em particular, o fato de chamar nossa atenção para a importância da ideia de guerra santa na tradição política e teológica cristã, resultam em uma aventura pela erudição e pelo pensamento de grande valor para o estudioso de qualquer dos temas e sub temas abordados.

* Este texto faz parte, em sua quase integralidade, da “Apresentação” feita à resenhada.

Néri de Barros Almeida – Livre-docente. Professora junto ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/ UNICAMP). É coordenadora do núcleo UNICAMP do Laboratório de Estudos Medievais (LEME). E-mail:[email protected].

A reinvenção da classe trabalhadora (1953-1964) – LEAL (PH)

LEAL, Murilo. A reinvenção da classe trabalhadora (1953-1964). Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2011, 517 p. Resenha de SANTOS, Antonio Carlos dos. Vivendo no fim dos tempos de classe trabalhadora e o populismo. Projeto História, São Paulo, n. 48, Dez. 2013.

É público e notório que, diferentemente dos demais historiadores marxistas britânicos – como passaram a ser conhecidos os autores oriundos do Grupo de Historiadores do Partido Comunista da Grã-Bretanha (PCGB) –, Edward Palmer Thompson (1924-1993) foi o único capaz de desenvolver uma verdadeira “escola historiográfica”, ou seja, reunir um número extenso de admiradores e seguidores em todo o mundo, dedicados a aplicar em suas pesquisas os mesmos métodos e concepções presentes em A formação da classe operária inglesa (1963), Projeto História, São Paulo, n. 48, Dez. 2013   Senhores e caçadores (1975), Costumes em comum (1991) e nas demais obras thompsonianas.

No Brasil, como é de praxe em relação à circulação das ideias, o pensamento de Thompson chegou tardiamente, mais precisamente no final dos anos 1970 e início da década seguinte; no entanto, coincidiu de forma precisa com as greves operárias capitaneadas pelos metalúrgicos do ABC paulista, que marcaram o surgimento do chamado “novo sindicalismo”. Desde então sua influência na historiografia brasileira foi cada vez mais sentida nas várias linhas de pesquisa e, de modo especial, entre os historiadores sociais do trabalho.

Foram publicados em nosso país, nos últimos quase quarenta anos, inúmeros livros nitidamente inspirados em Thompson, sendo que a grande maioria deles apresentaram relevantes contribuições para uma melhor compreensão do mundo do trabalho no Brasil. Entre eles, podemos destacar os pioneiros Trabalho urbano e conflito industrial (1977), de Boris Fausto; História da indústria e do trabalho no Brasil (1982), de Francisco Foot Hardman e Victor Leonardi; e Cultura e identidade operária (1987), organizado por José Sergio Leite Lopes.

A reinvenção da classe trabalhadora de Murilo Leal é uma das mais recentes obras que trilham estes mesmos caminhos, após terem sofrido um breve refluxo no início dos anos 1990 e alcançarem plena recuperação a partir da segunda metade daquele decênio até os dias atuais; fenômeno este apontado por seu prefaciador Marcelo Badaró Mattos, um dos principais estudiosos dos meandros do pensamento thompsoniano e de sua influência no Brasil.

Murilo Leal Pereira Neto fez licenciatura, mestrado e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e é atualmente professor de História do Brasil na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Este é seu segundo livro, pois já havia publicado, em 2002, A Projeto História, São Paulo, n. 48, Dez. 2013   esquerda da esquerda: Trotskistas, comunistas e populistas no Brasil contemporâneo (1952-1966).

Em A reinvenção da classe trabalhadora, Murilo Leal analisa as lutas operárias ocorridas na cidade de São Paulo entre o segundo governo Vargas e o golpe militar de 1964, dando ênfase às grandes mobilizações daquele período – a Greve dos 300 Mil em 1953, a dos 400 Mil em 1957 e a dos 700 Mil em 1963 – e às mais importantes categorias profissionais da época: os trabalhadores metalúrgicos, que passavam pelo aumento do seu peso na economia brasileira, e os têxteis, que conheciam o declínio de um predomínio conquistado desde a eclosão da Primeira Guerra Mundial.

Entre os aspectos positivos presentes neste estudo está a superação de uma “lacuna” apontada por muitos na própria obra-prima de Thompson, A formação da classe operária inglesa, ou seja, a não abordagem de dados objetivos mais palpáveis da classe trabalhadora no contexto socioeconômico da Grã-Bretanha entre 1790 e 1830. Diferentemente disto, Murilo Leal nos oferece um quadro bem preciso das grandes transformações vivenciadas pela sociedade paulistana em meados do século XX, frutos de um novo ciclo de industrialização, marcado pela implantação de empresas multinacionais e a ocorrência de um novo fluxo migratório do Nordeste para o Sudeste brasileiro.

Outra observação digna de nota diz respeito à visão articulada entre a realidade das fábricas, enquanto espaços de produção, e os locais de moradia dos trabalhadores nos bairros periféricos da cidade, onde se dava a reprodução da força-de-trabalho. O autor consegue estabelecer um vínculo interessante entre as lutas sindicais – com destaque para a organização dos trabalhadores no interior da fábrica – por melhores condições de trabalho e aumentos salariais e as mobilizações populares em torno das reivindicações por moradia, transporte e contra a carestia. Projeto História, São Paulo, n. 48, Dez. 2013   Lançando mão das mais variadas e ricas fontes historiográficas, Murilo Leal parte da leitura atenta de uma vasta bibliografia e de jornais – tanto os de ampla circulação quanto os produzidos pela própria imprensa operária –, e se embrenha também na pesquisa de documentos oficiais da Câmara Municipal de São Paulo, de atas de reuniões e assembleias sindicais, de entrevistas com lideranças e militantes daquele período, e até mesmo de anotações dos agentes infiltrados do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS).

Mesmo tendo como referência privilegiada a aplicação de conceitos caros à concepção thompsoniana, tais como a valorização da “experiência” na construção da classe e da consciência de classe dos trabalhadores, ou mesmo da existência de uma “economia moral da plebe” motivando e orientando suas revoltas; Murilo Leal também recorre às contribuições de outros expoentes da chamada História Social Inglesa. É o caso de suas análises a respeito das comemorações do Primeiro de Maio, das realizações de piqueniques e concursos, da organização de campeonatos de futebol e de outras programações frequentes no “calendário operário” – Páscoa, Dia das Mães, festas juninas, dia da categoria etc. –; momentos em que se apoia nos estudos feitos por Eric Hobsbawm sobre as atividades culturais operárias. Utiliza-se também dos conhecimentos produzidos por George Rudé, acerca dos “motins da fome” nas sociedades pré-industriais europeias, para investigar os piquetes grevistas e demais revoltas populares contra os aumentos nos preços das passagens de ônibus, trens e de alimentos ocorridos nas décadas de 1950 e 1960 na capital paulista.

Outro exemplo digno de nota é a utilização das noções de “circularidade das culturas de classe”, “incorporação e repressão” e “estruturas de sentimento” de Raymond Williams; ou mesmo da interpretação dada por este pensador britânico ao termo “hegemonia” de Antonio Gramsci. Trata-se das reflexões de Murilo Leal sobre a “crise de Projeto História, São Paulo, n. 48, Dez. 2013   representação” que se abateu sobre a classe trabalhadora brasileira, em suas relações com o Estado, os comunistas e trabalhistas, o que, na opinião do nosso autor, determinaram a não fundação de um partido independente de trabalhadores naquela conjuntura política específica.

Talvez, uma das poucas críticas que se possa fazer a este livro é o fato de que, provavelmente diante de um imperativo de exposição didática, as três partes em que foi dividido – “Determinações”, “Práticas: lutas, reivindicações, organizações” e “Representações: cultura e política” – ficaram um tanto estanques, embora complementares. Tal observação poderia ser feita especialmente quanto à última parte, quando os conceitos de Thompson, Hobsbawm e Williams são mais efetivamente trabalhados e poderiam, a nosso ver, se relacionarem mais estreitamente no próprio momento em que as ricas informações constantes nas duas primeiras partes fossem formuladas.

O aspecto polêmico do trabalho está intimamente ligado à abordagem que o autor dá à questão do assim chamado “populismo”; tema complexo e controverso que dificilmente poderia ser ignorado por ele diante da época estudada. É sabido que muitos pensadores brasileiros intitulam de República Populista o período 1950-1964, e que a grande maioria dos políticos que nela atuaram – Getúlio Vargas, Jânio Quadros, Adhemar de Barros, Juscelino Kubitschek e João Goulart entre outros – foram classificados de populistas.

Nascido no interior dos debates de sociólogos em busca de um melhor entendimento dos fenômenos sociopolíticos que ocorriam em sociedades que viviam um franco processo de urbanização e industrialização antes, durante e após a Segunda Guerra Mundial – com destaque para Brasil, Argentina e México entre os demais países latino-americanos –, o conceito populismo se expandiu para as áreas das ciências políticas e dos estudos históricos, criando fortes raízes em todas elas. Em linhas gerais, se referia às práticas políticas de líderes que Projeto História, São Paulo, n. 48, Dez. 2013   manipulavam as classes populares, de modo especial os trabalhadores urbanos que haviam acabado de chegar do campo, pouco organizados e portadores de novas demandas, tais como os direitos trabalhistas e melhores condições de vida e de trabalho nas grandes cidades e nas fábricas. Desta forma, o populismo sofreu e ainda sofre ferrenhas críticas tanto da direita, que o acusa de mobilizar e utilizar as reivindicações populares para angariar mais poder político, quanto da esquerda, que o enxerga como uma forma de menosprezar a capacidade da classe trabalhadora em se auto-organizar e desenvolver uma consciência política própria.

É necessário, pois, contextualizar A reinvenção da classe trabalhadora em um debate mais amplo que se instaurou a partir do final da década de 1980, quando a questão do populismo transformou-se em uma das principais polêmicas da historiografia brasileira do trabalho, mais precisamente com a publicação de A invenção do trabalhismo (1988) por Angela de Castro Gomes. Muitos dos seguidores de Thompson no Brasil começaram a buscar um paralelo entre a noção de “paternalismo” utilizado por ele e o populismo; ou mesmo a tentar interpretar o que Thompson queria realmente dizer quando utilizou várias vezes, em A formação da classe operária inglesa, o termo populismo. Concluíram então que a perspectiva thompsoniana dos trabalhadores enquanto agentes históricos não era totalmente incompatível com o conceito de populismo.1  Neste sentido, a presente obra de Murilo Leal fornece uma valiosa contribuição a este debate, quer concordamos ou não com seus argumentos e conclusões. Em primeiro lugar, quando aponta os inúmeros erros cometidos pelos comunistas e trabalhistas brasileiros naquele momento, o que inviabilizou a organização independente da classe trabalhadora; assim como a impediu de se constituir enquanto direção política e social de um novo “bloco histórico” que implementasse um profundo processo de reformas com perspectivas socialistas, capaz inclusive de evitar o Golpe Militar de 1964. Em segundo lugar, quando, após estabelecer um diálogo crítico com a chamada Escola Sociológica Paulista – representada pelas reflexões de Florestãn Fernandes, Francisco Weffort e José Álvaro Moisés –, nos propõe uma interpretação do populismo enquanto uma aliança classista entre os trabalhadores e outros setores sociais; aliança esta com forte potencial para estabelecer um projeto sociopolítico contra-hegemônico; mas que, no período estudado, acabou contribuindo para a incorporação da classe trabalhadora ao projeto industrializante da burguesia brasileira.

Professor de História na rede municipal de ensino, mestre em História Social pela PUC-SP.

1 Para uma melhor compreensão deste debate, muito sumariamente descrito neste parágrafo, recomendo a leitura dos seguintes artigos: FORTES, Alexandre. Formação de classe e participação política: E. P. Thompson e o populismo. In: Anos 90. Porto Alegre, v. 17, n. 31, pp. 173-195, jul. 2010 [Disponível em: www.seer.ufrgs.br/index.php/anos90/article/view/18941/11035. Acesso em: 10 abr. 2014]; PESTANA, Marco M. A centralidade da obra de Thompson na rediscussão do populismo. In: Caminhos da História. Vassouras, v.7, edição especial, pp. 131-140, 2011 [Disponível em: www.uss.br/pages/revistas/ revistacaminhosdahistoria/v7EdicaoEsp2011/pdf/014_-_A_Centralidade_da_ Obra_de_Thompson.pdf. Acesso em: 13 abr. 2014].

Antonio Carlos dos Reis Santos – Professor de História na rede municipal de ensino, mestre em História Social pela PUC-SP.

O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo | Elcilene Azevedo

Elciene Azevedo na obra “O direito dos escravos” tem por objetivo compreender o processo que envolve a luta abolicionista em São Paulo durante as últimas décadas do século XIX, atentando não apenas para as rupturas no decorrer do processo, mas também para as continuidades e reelaborações.

A autora vai além de uma compreensão, por muito tempo cristalizada em nossa historiografia, sobretudo pela “Geração de 1930”, a qual entendia que o escravo devido a constância dos maus tratos a que era submetido se tornava alheio a sua própria vontade. Sob essa leitura eram então sujeitos amorfos que não resistiam à violência, quando não eram ainda interpretados como inertes à escravidão pela benevolência de seus senhores, necessitando de homens brancos e ilustrados, repletos de sentimentos humanitários capazes de tirar-lhes da escura escravidão. Leia Mais

J.-B. Debret, historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839) | Valéria A. E. Lima

Jean-Baptiste Debret (1768-1848), pintor afamado e membro correspondente da Academia Francesa, foi também historiador. Sua principal produção, a obra Voyage pittoresque et historique au Brésil, ou séjour d´un artiste française au Brésil, depuis 1816 jusqu´en en 1831 inclusivement, advoga que o Brasil é uma nação civilizada e encontra-se em processo de aperfeiçoamento. Esta é, ao menos, a tese central da obra J.-B. Debret, historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839) de Valéria Lima, publicada em 2007. Conhecido sobretudo por sua condição de pintor, Lima não hesita em caracterizar Debret também como historiador. O fundamento maior disso é a própria intenção do artista ao expressar seu desejo de produzir um livro historiográfico, seja adjetivando-o como histórico, seja manifestando esse anseio numa missiva enviada ao seu discípulo dileto Araújo Porto- Alegre, em 1837 (LIMA, 2007: 277).

A adjetivação da obra como histórica objetiva justamente atribuir legitimidade ao novo status adquirido pelo Brasil: o de nação civilizada (LIMA, 2007: 245). Ao propor uma interpretação histórica, Debret torna-se historiador. O escopo de Lima é justamente resgatar a intencionalidade do pintor-historiador:

Dar ênfase à biografia constitui, portanto, uma das estratégias fundamentais da abordagem que ora se propõe e que irá privilegiar as intenções que o levaram a publicar essa obra e que, ao mesmo tempo, lhe conferem sentido. Procurar entender essas intenções a partir da experiência pessoal e profissional do artista, considerando que o maior documento a seu respeito é, sem dúvida, sua própria obra (LIMA, 2007: 38, grifo meu).[2]

Ao longo de sua obra, contudo, a historiadora irá rever e matizar este intuito. No entanto, antes disso, a fim de alcançar o objetivo proposto, Lima lança mão da metodologia que define a partir de uma metáfora arqueológica. Nas suas palavras:

A escavação será efetuada, portanto, nos volumes da Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, em busca de indícios que possam esclarecer sua organização e as ideias que a presidiram. A coleta, por sua vez, será feita no contexto mais geral da época de sua elaboração, com o objetivo de recolher dados que contribuam para o entendimento da proposta de Debret (LIMA, 2007: 130).

Assim, é possível crer que a historiadora propõe uma análise verticalizada da obra, editada em três volumes ainda na primeira metade do século XIX, que perpassa sua estrutura e ordenação, além de revelar as ideias que a determinaram. Aliado a isso, a autora propõe buscar no contexto da sua produção elementos que expliquem a elucidação do projeto debretiano. Lima permanecerá, neste sentido, fiel a sua proposta. Na organização de sua própria obra, é exatamente isso que ela faz. Apresento-a, brevemente, pois.

O capítulo inicial, denominado Paris-Rio de Janeiro-Paris: a dupla travessia de um artista, é dedicado a explorar a biografia artística de Debret. Poderíamos perceber aqui, para fazer referência à metáfora utilizada, que se trata do primeiro momento de coleta do material. Lima parcela a vida produtiva do pintor em três grandes momentos, sendo o elemento central a própria travessia do artista ao Brasil. Assim, após descrever o período inicial da formação do pintor, sua inserção no ateliê do primo e famoso artista Jacques-Louis David e suas produções artísticas até o momento da viagem, a historiadora tenta entender os motivos que levaram os artistas franceses a participarem da travessia. Aqui há a contestação, por exemplo, de explicações limitadoras, como a de que os artistas teriam sido expulsos da França em virtude da instabilidade política. Entretanto, embora problematize a questão, Lima não propõe novas alternativas. A impossibilidade explicativa residirá justamente na subjetividade das intenções dos viajantes:

As condições gerais que podem ter favorecido a vinda dos artistas para o Brasil […] não podem, porém, justificar com exclusividade as opções de cada um dos integrantes do grupo, uma vez que não havia um caráter oficial nesse empreendimento. Os convites foram feitos, e os artistas, movidos por intenções nem sempre fáceis de identificar, mas certamente de cunho muito pessoal, decidiram pela travessia (LIMA, 2007: 98, grifo meu).

Desta forma, embora considere possível recuperar a intenção de Debret na realização de sua obra, a autora hesita na explanação das intenções da vinda dos artistas ao Brasil. Após o retorno à França, por fim, o pintor francês irá se dedicar à organização do material que será publicado. Para Lima, a obra seria uma forma de o artista cumprir o compromisso assumido como membro correspondente da Academia Francesa (LIMA, 2007: 104-105).

No segundo capítulo, intitulado Voyage pittoresque et historique au Brésil – considerações sobre uma obra, Lima se dedica, mais aprofundadamente, a tratar desse momento final e posterior à última travessia. Novamente estabelecido na França, Debret passa a organizar e editar sua obra. Aqui, o escopo é apontar como o pintor-historiador construiu seu projeto, revelando as escolhas e os processos que concorreram para sua constituição. Para isso, a historiadora parte do título atribuído por Debret a fim de propor sua análise inicial. Ele se constitui numa fonte de intenções. O método parece uma boa alternativa e, como constata Umberto Eco, a primeira chave de leitura de um livro reside em seu título (ECO, 1985: 8). Aqui, estamos no momento da escavação da obra; contudo, a análise é ainda mormente externa ao texto. Após debruçar-se sobre o título, Lima aponta a própria organização da obra debretiana – com os volumes apontando uma evolução progressiva da nação – como um indicativo do projeto intelectual do pintor, qual seja, a busca pela delimitação do processo de civilização do Brasil (LIMA, 2007: 131).

No capítulo terceiro, denominado A Voyage de Debret e a literatura de viagem, Lima concentra-se em cotejar a obra debretiana com o gênero largamente difundido dos relatos de viajantes. Como se percebe, trata-se de uma nova etapa da coleta. Para isso, a autora lista e comenta inúmeras produções desse gênero e aponta as aproximações e os distanciamentos com relação à obra debretiana. O intuito é menos afirmar o pertencimento do livro de Debret à literatura de viagens, do que entender as origens de sua produção e de sua composição (LIMA, 2007: 178). Dois aspectos que, de imediato, afastam-no do gênero são sua longa estada no Brasil e seu objetivo antes de informar a nação do que de informar-se. A conclusão, então, é que o livro não se ajusta às categorias dos relatos de viajantes. Novamente aqui, contudo, a historiadora assevera a dificuldade em resgatar a intenção debretiana:

As intenções de um artista e, no caso em questão do autor de uma obra cuja natureza se divide entre a literatura de viagem e os estudos históricos, não são objetos fáceis de identificar. Podemos levantar uma série de hipóteses, imaginar que ele tenha desejado cumprir um determinado programa, mas há um certo limite além do qual não nos é permitido avançar. As obras de arte, bem como a literatura, apontam para essa instância misteriosa e estabelecem limites bem claros a nossos esforços interpretativos. Lembremos, então, que Debret era, antes de tudo, um artista. Sendo assim, suas imagens, e não apenas seus textos, criarão fortes obstáculos ao nosso entendimento (LIMA, 2007: 175, grifos meus).

Assim, a historiadora revela a impossibilidade de expor as intenções do artista. Há limites para essa busca. Diante disso, Lima recorre à expressão “instância misteriosa” e volta a reafirmar a condição de artista de Debret – em detrimento de sua postura historiadora – para indicar a impossibilidade da realização da tarefa a que se propôs.

Por fim, o derradeiro capítulo é dedicado à análise interna da obra de Debret. Após coletar o material, o momento agora é de escavar a obra. Sob o título de A construção de uma obra histórica, Lima busca integrar texto e imagens debretianas para compreender como o pintor francês pensa e interpreta o Brasil. Para a historiadora, a obra deve ser inserida numa matriz de pensamento iluminista na qual a história deve ser pensada de forma progressiva com destino ao desenvolvimento e aprimoramento da civilização (LIMA, 2007: 264). Por isso, a autora estabelece um paralelo entre a obra de Debret e as estatísticas departamentais (no intuito de esquadrinhar a nação), com a Academia Céltica (no objetivo de recuperação do passado e dos monumentos antigos) e, por fim, com a produção de Jules Michelet. Em uma análise mais aprofundada a partir das imagens produzidas pelo artista, enfim, Lima então demonstra como toda a obra está orientada para a exaltação do processo civilizacional.

Entretanto, após coletar e escavar, a autora não conclui.[3] Creio que o mérito maior do livro J.-B. Debret, historiador e pintor reside no seu esforço de problematização da obra debretiana. A historiadora contesta versões anteriores, coteja a produção do pintor com gêneros literários do período, aproxima-a da obra de Michelet, mas, ao cabo, exime-se de fornecer um remate ao texto. Talvez o excesso de considerações paralelas tenha impedido a autora de delimitar uma conclusão. Refiro-me, aqui, à listagem de inúmeras obras da literatura de viagens que são apenas apresentadas ao leitor, mas não exercem nenhum auxílio na problemática proposta pela historiadora, pois não há aproximação ou distanciamento. Parece, além disso, que o intuito maior de buscar as intenções debretianas – que se revelou irrealizável – quedou por obstaculizar uma conclusão. A historiadora anuncia seu projeto; no entanto, não parece concretizá-lo.

Sublinho outra questão: Lima coteja a produção debretiana a fim de invalidar a inserção da obra na categoria literatura de viagens. No entanto, o mesmo procedimento não é realizado na caracterização da obra como histórica. A única confrontação neste sentido é com a produção de Michelet. Igualmente, uma aproximação com a obra de Flora Süssekind poderia revelar novos elementos na escolha de temáticas, na valorização da capacidade artística do indígena (destacada por Debret), no tratamento concedido ao escravo, entre outros. Ao apontar o contato e até a indeterminação de diferentes campos durante o século XIX, Süssekind demonstra, em O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem, como esse diálogo era importante. A literatura assumia preocupações históricas, consultava e criticava os relatos de viajantes e cronistas a fim de estabelecer um campo mais autônomo. Entretanto, Lima não trata em nenhum momento desta questão e também se descuida, com exceção do parecer emitido pelos membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, da recepção da obra debretiana no âmbito nacional.

Por fim, gostaria de destacar a dimensão da intencionalidade perseguida por Lima na obra debretiana. Como salientado, a autora não concretiza essa proposta. É curiosa, no entanto, a inclusão da obra de Michael Baxandall, Formes de l’intention. Sur l’explication historique des tableaux na referência bibliográfica. Embora conste na bibliografia, não há qualquer referência sua no texto. No entanto, creio que a proposta de Baxandall seria de grande valia para Lima, permitindo inclusive concretizar o escopo almejado pela historiadora. Isso porque o historiador britânico propôs pensar a intenção das obras artísticas de um modo inédito. Para ele, a intenção não se trata de algo específico e característico da mente do artista. De modo diverso, a intencionalidade aqui remeteria a uma produção racional, que pode ser delimitada a partir das relações entre o contexto cultural, o objeto produzido como resposta e a descrição da obra realizada pelo analista (BAXANDALL, 2006: 81).

Ora, independentemente da crítica ou elogio a esse esforço de recuperação da intenção do artista, Lima executa exatamente estas três dimensões. Como exposto, a historiadora preocupa-se em resgatar o contexto cultural, na medida em que explicita as características que definiam a produção de obras do gênero da literatura de viagens do período e acompanha o desenvolvimento das técnicas de produção – aquarela – e reprodução de imagens – litografia. Além disso, há uma caracterização da obra debretiana bastante aprofundada, pois a historiadora compara as aquarelas de Debret com a de outros artistas do período, identifica o destaque dado aos negros no conjunto da obra e percebe os temas neoclassicistas sendo retrabalhados pelo historiador-pintor. Por fim, mormente no capítulo derradeiro, mas de forma esparsa em todo o livro, Lima analisa as imagens debretianas de forma cuidadosa, ou seja, escava a produção do artista francês.

Creio que é possível constatar, por fim, que a intenção pareceu ser um conceito ou categoria inapropriada para a descrição de Lima. Proposta inicialmente, a historiadora reconheceu que era tarefa complicada resgatar a intenção de Debret. Entretanto isso também foi pouco relevante, pois a tese defendida, qual seja, de que Debret pensava o Brasil como uma nação civilizada permaneceu, a despeito da impossibilidade do resgate intencional. Assim, é possível concluir que a intenção antes obstaculizou do que auxiliou a historiadora na sua empresa.

Notas

2. Lima retoma essa posição no início do capítulo inicial de modo ainda mais incisivo: “Parto, portanto, do princípio de que Debret esteve, em todo momento, movido por intenções […]. As condições que determinam essas alternativas devem ser buscadas no contexto cultural da época, permitindo identificar as opções que se colocavam ao artista naquele momento específico” (LIMA, 2007: p. 67-68, grifo meu).

3. Devo esta constatação a Jurandir Malerba que, em crítica à obra, censura a ausência de uma conclusão (MALERBA, 2009: 373).

Referências

BAXANDALL, Michael. Padrões de intenção. A explicação histórica dos quadros. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

ECO, UMBERTO. Pós-escrito a O nome da Rosa. Rio de Janeiro: Nova Fonteira, 1985.

HARRISON, Marguerite Itamar. Resenha. In: Luso-Brazilian Review, 46:2, pp. 196-197.

LIMA, Valéria Alves Esteves. J.-B. Debret, historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007.

MALERBA, Jurandir. Resenha. In: Hispanic American Historical Review – HAHR, maio, 2009, pp. 373-374.

SQUEFF, Letícia. Resenha. In: Revista de História, 159 (2º semestre de 2008), pp. 265-270.

SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

Eduardo Wright Cardoso1 – Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto e bolsista Capes. Desenvolve pesquisa na área de história da historiografia do século XIX. Endereço eletrônico: [email protected]


LIMA, Valéria Alves Esteves. J.-B. Debret, historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007. Resenha de: CARDOSO, Eduardo Wright. Uma arqueologia da intencionalidade debretiana. Aedos. Porto Alegre, v.4, n.10, p.176-181, Jan./jul., 2012. Acessar publicação original [DR]

Inventar a heresia? discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição – NOGUEIRA; ZERNER (RBH)

NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo; ZERNER, Monique (Org.). Inventar a heresia? discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição. Campinas (SP): Ed. Unicamp, 2009. 304p. Resenha de: NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.31, n.62, dez. 2011.

Após mais de 30 anos de estudos sobre o aparecimento de seitas de ‘adoradores do Diabo’, que constituíram o tormento e a preocupação da Igreja ao longo do período medieval e que foram metodicamente mapeadas e perseguidas com rigor cada vez maior até culminarem na caça às bruxas da Europa moderna, uma questão foi se tornando cada vez mais clara: na construção dessas seitas existia uma combinação trágica, porém eficaz do ponto de vista repressivo, o amálgama da alteridade com uma enorme carga de erudição.

Daí, então, tornava-se cada vez mais óbvio para nós que, igualmente, não haveria um estranhamento, uma ‘estrangeirice’ nas seitas heréticas. Não eram crenças que migraram e se instalaram no seio da boa coletividade cristã, tampouco ‘sobrevivências de um paganismo’ há muito perdido e do qual restavam símbolos fragmentados e desenraizados ou vestígios de uma gestualidade claramente cristianizada. Tratava-se, sim, do produto dos intentos de uma ortodoxia de impor a outros a existência de outras interpretações do que era viver (espiritual e materialmente) a religião cristã.

O cristianismo nasce como uma religião que se propõe universal em um mundo de particularismos, em especial, particularismos religiosos. Para levar a Boa Nova a todos os homens, o cristianismo precisava se impor a partir do Outro.

Assim é construída a ecclesia, antes de tudo se apartando do judaísmo, o primeiro e mais incômodo ‘outro’, pela proximidade e pela responsabilidade de haver gestado a nova religiosidade.

Eliminados os ‘assassinos de Cristo’, os discordantes e opositores – em suma, os heterodoxos – são calados ou perseguidos, objetos de uma retomada erudita que mergulha na Antiguidade Clássica para buscar identidades, estabelecer ligações para garantir a credibilidade e legitimar a repressão.

Dessa maneira a ‘reação folclórica’, a sobrevivência pagã, criadora da heresia, muda de significado. O paganismo ganha o direito de existir por intermédio da ação de uma ortodoxia em busca de uma tradição que lhe permita estabelecer paralelismos e impor rótulos aos seus opositores.

Assim, é com grata surpresa que vemos aparecer no mercado editorial brasileiro o livro Inventar a heresia?, organizado por Monique Zerner.

Obra plural, mas com uma coesão interna bastante singular: a análise de tratados que constroem a heresia e ‘identificam’ o herege. Produto de investigações produzidas e discutidas em seminários, retoma, a nosso ver com grande acerto, os textos escritos antes da constituição dos Tribunais da Inquisição. Postura acertada, pois se o objetivo era confrontar os documentos com a ‘realidade’ das heresias, o período de ação inquisitorial traz enormes problemas, uma vez que a perseguição acaba consagrando a heresia ipso facto, tornando-a uma realidade irreversível, cuja punição traz aos olhos da comunidade a sua materialização objetiva e inquestionável. Realidade viciada que levou muitos historiadores a acreditarem na realidade das heresias, ou mesmo imaginá-la como outra religião, como no caso do Catarismo.

Inventar a heresia? percorre uma larga trajetória temporal, começando por santo Agostinho e o seu procedimento na polêmica contra o maniqueísmo que o havia desencantado, e se estende até um caso de não-heresia na Gasconha dos inícios do século XII.

E por que um intervalo de tempo tão alargado? A resposta está na perspectiva dos autores. Sabemos que no princípio do cristianismo a tônica é a persuasão. No entanto, no Contra Faustum Agostinho já prefigura a atitude que virá depois: se não persuadidos, os adversários serão por fim condenados.

De maniqueístas e exegetas gregos da Bíblia, a obra saltará para o século XI, o período de emergência das heresias, momento que Jacques Le Goff leu equivocadamente como um ressurgimento folclórico, o que justificava o aparecimento dos movimentos heréticos.

A obra que examinamos inverte a questão, buscando a ‘confecção’ dos hereges no interior dos embates de uma Igreja que tenta impor a sua hegemonia reformista. A heresia é esgrimida por Gerardo, no sínodo de Arras, como resposta à sua tentativa de manter sob controle um domínio que escapa por entre as suas mãos, pois remete a um sistema carolíngio antiquado, que não dá conta da nova ordem social.

Contudo, ainda com Pedro, o Venerável, e seu Contra Petrobrusianos, persiste a argumentação. No entanto é singular que esse abade de Cluny invista contra os hereges, contra os judeus e contra os sarracenos. O século XI, e fundamentalmente Cluny, preparam as armas para defender a Igreja. A argumentação ‘defensiva’ de nosso abade não resiste a uma política de hegemonia da religiosidade. Ao final do século XI, está aberto o caminho para a ausência de diálogo com a heresia, substituído pelo procedimento judiciário de fazer aqueles que a Igreja condena, confessarem a verdade.

E a ofensiva se intensifica. O front cada vez mais ampliado, o inimigo cada vez mais irredutível. A heresia com a incorporação do Direito Romano ao Direito canônico, tornada crime de lesa-majestade no século XIII, acaba necessariamente no apelo às armas contras os hereges, cujo exemplo emblemático foi a Cruzada Albigense.

“Mas quem são os hereges?”, pergunta-se Michel Lauwers, buscando os hereges nas tensões sociais (as contestações aos privilégios e às determinações eclesiásticas) e analisa como exemplo o tema “Os sufrágios dos vivos beneficiam os mortos?”, demonstrando como os polemistas passaram da recusa das práticas impostas pela instituição à doutrina, fazendo dela um instrumento de julgamento da recusa: a heresia.

“Albigenses: observações sobre uma denominação”, cujo título despretensioso oculta o seu verdadeiro teor, é de longe o ponto alto da coletânea. Nele Jean-Louis Biget identifica a origem e analisa a história do nome ‘albigenses’, protagonistas de uma história que começa em 1209, mas que bruscamente foram ‘esquecidos’ após 1960, sendo substituídos pelos ‘cátaros’. Para isso retoma o papel da ordem de Cister como construtora da heresia. Empenhada em consolidar a reforma da Igreja, traduz os conflitos internos e regionais que comprometem a tão almejada unidade, como as expressões de divergências doutrinárias. Ou seja: a invenção de um nome para batizar os desvios da verdadeira unidade até designar todos os dissidentes religiosos do Midi.

Como lembra Dominique Iogna-Prat, a escassez de análises de discursos anti-heréticos é marcante até nossos dias. Os trabalhos sobre heresia analisam os documentos como fontes que expressam a realidade herética e não como um discurso construído com base na ótica constitucional.

Assim, este livro nos ensina um princípio fundamental. Frente aos documentos que tratam da heresia deve-se, em primeiro lugar, duvidar da realidade dos fatos descritos pelos textos produzidos pelo meio eclesiástico ou por autores a ele vinculados. R. I. Moore em seu posfácio vai além: “nem mesmo de um movimento não enquadrado e relativamente inocente de entusiasmo pela vita apostolica entre rustici“. A acusação de heresia tornou-se a principal ferramenta de construção da unidade, revestindo de uma ‘aura sagrada’ a tarefa bem menos momentosa aos olhos da comunidade cristã de eliminar desvios e manter o rebanho cristão dentro da ortodoxia proclamada como religiosa, mas cuja real ameaça não está no plano do sagrado, mas nas divergências políticas e sociais que ameaçam a instituição eclesiástica.

Apenas um senão que não compromete fundamentalmente a qualidade da obra. A tradução dos capítulos, ainda que feita de maneira correta, ressente-se do fato de ter sido executada por diversos colaboradores, o que leva o texto a variar seu estilo, ora mais fluido ora mais ‘trancado’. Mas repetimos: isso afeta a estética, não o conteúdo dos capítulos.

Não poderíamos terminar sem tratar de um pequeno, mas não menos importante capítulo (altamente esclarecedor do caráter rigoroso dessa coletânea) que estabelece ao final da obra um precioso contraponto: “Um caso de não-heresia na Gasconha do ano de 1208”. Frente a uma ‘revolução’ dos leigos dependentes de Saint Sever, na Gasconha, o legado papal reinverte os papéis, ignora práticas e faz dos episódios uma leitura não-herética – extremamente necessária em razão da crise que se estabeleceu entre Inocêncio III e João I da Inglaterra, o qual detinha os domínios das terras insurgentes. Estamos diante de uma boa demonstração da exceção que confirma e elucida a regra!

Enfim, o livro reúne artigos instigantes, que abrem as portas à dúvida e ao questionamento da construção da heresia. O que nos leva a terminar esta resenha assumindo como nossas as palavras do autor Benoît Cursente, que resume a perspectiva de todos os demais: “E nessa circunstância, para que a heresia não existisse, era necessário e suficiente não nomeá-la”.

Carlos Roberto Figueiredo Nogueira – Professor Titular, Universidade de São Paulo. Av. Lineu Prestes, 338 – Cidade Universitária. 05508-000 São Paulo – SP – Brasil, E-mail: [email protected].

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Quatro visões iluministas sobre a educação matemática: Diderot, D’Alembert, Condillac e Condorcet – GOMES (Bo)

GOMES, M. L. M. Quatro visões iluministas sobre a educação matemática: Diderot, D’Alembert, Condillac e Condorcet. Campinas: Editora da Unicamp, 2008. Resenha de: ANDRADE, Mirian Maria. BOLEMA, Rio Claro, v.23, n. 36, p.809-817, ago., 2010.

O livro de Gomes originou-se de seu doutorado2 realizado na Universidade de Campinas, UNICAMP – SP, sob orientação de Antonio Miguel. A estrutura adotada na obra configura-se, grosso modo, em uma introdução seguida de seis capítulos aos quais seguem conclusões e referências bibliográficas.

Na introdução Gomes faz algumas considerações iniciais em relação ao trabalho como um todo, explicitando o que abordará em cada um dos capítulos seguintes. Neste momento esboça elementos para uma ideia sobre as contribuições, à educação matemática, dadas por quatro importantes pensadores das Luzes, a saber: Diderot, D’Alembert, Condillac e Condorcet.

Vinculadas a essas contribuições apontadas pela autora, é que se originaram os títulos dos capítulos, ou seja, cada um desses títulos, de certo modo, sublinha um aspecto considerado importante (talvez o aspecto mais marcante, segundo a leitura de Gomes) da obra de cada um desses “filósofos”3 em relação à Educação e à Educação Matemática4.

O capítulo 1, intitulado “Considerações sobre a educação matemática na França do século das Luzes”, é dedicado à apresentação de um quadro geral da educação na França do século XVIII, buscando fixar o solo em que radicam as contribuições dos quatro iluministas. A referência inicial é a carta 128 do conjunto das Cartas Persas de Montesquieu, cujo conteúdo expressa dois pontos fundamentais relacionados à educação matemática na França àquela época: O primeiro deles transparece no destaque conferido ao matemático, frequentemente denominado geômetra à época, bem como à sua maneira de ver o mundo – é o grande estágio de desenvolvimento atingido pelas ciências e pela matemática, já no início do Setecentos. […] o segundo ponto […] na ordem pedagógica setecentista, o estudo das letras prevalece sobre o das ciências, e a matemática tem pouco espaço. (GOMES, 2008, p. 26-27) A autora refere-se ao expressivo número de publicações na segunda metade dos setecentos, na França, carregadas de reflexão pedagógica que produziram uma diversidade de ideias. Dentre elas, Gomes destaca duas que se configuram como fundamentais à compreensão das concepções (em relação à educação matemática) dos quatro filósofos em questão: “[…] a necessidade de estatizar a educação escolar, é particularmente marcante, como veremos em Diderot e Condorcet” (GOMES, 2008, p. 30) e “[…] a necessidade premente de reformar o conteúdo da educação escolar, com a abertura de um espaço importante para a matemática, está explícita nos escritos dos quatro autores abordados neste trabalho” (GOMES, 2008, p. 30). Ainda, nesse momento, nos são apresentados aspectos gerais da instrução primária e secundária antes da Revolução Francesa. Na França do século XVIII, a educação primária era a escola do povo, enquanto a educação secundária atendia apenas a uma minoria composta pela nobreza e pela elite burguesa.

Dentre os quatro iluministas, Diderot e Condorcet se sobressaem por defenderem uma educação para todos, uma formação na qual a educação matemática possuiria especial importância.

Encerrando este capítulo inicial, a autora discute em linhas gerais o ensino jesuíta e a educação matemática na França. De acordo com Gomes, a Companhia de Jesus investia efetivamente no ensino secundário, dado que o ensino primário não lhe era conveniente – citando Compayre, “tudo se subordina a fé, e a fé do povo não tem melhor salvaguarda do que a ignorância” – e o ensino superior, dito “a alta ciência”, vive de liberdade, o que os jesuítas não poderiam admitir. Maria Laura Magalhães Gomes apresenta, então, um esboço de como eram gerenciadas as questões relativas ao estudo nos colégios da Companhia de Jesus, apontando que, dos quatro iluministas aos quais o foco do livro se volta, apenas D’Alembert não estudou em instituição jesuíta.

Com isso, ficam ressaltadas, de certo modo, algumas das influências educacionais originárias – tanto desses pensadores quanto de uma significativa parcela da sociedade da época – que seriam, no correr da história, questionadas e reformuladas pelos iluministas.

O capítulo segundo, “Diderot e o sentido político da educação matemática”, é dedicado ao estudo da obra de Denis Diderot (1713 – 1784).

Para esse pensador – como já ressaltado no próprio título do capítulo – a educação é um fato primordial para a vida individual e social do indivíduo, direito de todos, de acordo com os méritos e as capacidades de cada indivíduo: para Diderot, portanto, a educação (e veremos que também a educação matemática) é elemento de uma agenda política.

Diderot é considerado o principal editor da Enciclopédia (obra emblemática do iluminismo francês) ainda que usualmente, nas citações, ele apareça como companheiro de D’Alembert. Em 1775 Diderot responde à solicitação da imperatriz da Rússia, Catarina II, enviando-lhe o projeto para a constituição de uma universidade no qual é visível o lugar privilegiado dado à educação matemática.

Um exame da Explicação detalhada do sistema de conhecimentos humanos – texto da Enciclopédia cuidadosamente analisado por Gomes – mostra a proposta de Diderot e D’Alembert quanto à localização da matemática na divisão geral dos conhecimentos humanos, sendo portanto esse exame um ingrediente fundamental para compreendermos a posição de Diderot em relação à matemática. Para ele “o objeto da matemática é a quantidade, um abstrato que os sentidos exteriores percebem; a partir dessa percepção, o Entendimento produz o conhecimento pela reflexão” (GOMES, 2008, p. 53).

Na organização dos estudos proposta por Diderot no Plano de uma Universidade, o enciclopedista exercita suas crenças sobre a educação matemática, que defendiam o conhecimento matemático como instrumental e formativo. A importância do aspecto formativo é notada no texto das Primeiras noções sobre as matemáticas para uso das crianças, obra inacabada que atenderia à execução do Plano. Essa potencialidade da matemática é evidenciada quando Diderot refere-se à geometria que, segundo ele, é a mais simples das lógicas. Para Diderot, o estudo das matemáticas, junto à alfabetização, deveria necessariamente ser acessível a todos, do primeiro ministro ao camponês: todos deveriam saber ler, escrever e contar.

Em relação ao aspecto prático/instrumental, percebe-se que a prioridade da educação matemática é justificada no projeto de Diderot pelo bom funcionamento da sociedade. A autora interpreta o papel desses dois aspectos matemáticos (formativo e instrumental) como constituintes essenciais de seu projeto pedagógico. Apoiada em Dolle, Gomes afirma que, para Diderot, a essência da organização política é a educação.

Duas passagens, segundo a autora, ilustram de modo claro as principais ideias de Diderot em relação à aprendizagem matemática, a saber: “Como quer que seja, segue-se que as matemáticas puras entram em nossa alma por todos os sentidos, e, portanto, que as noções abstratas nos deveriam ser bem familiares” (GOMES, 2008, p.79), um excerto das Adições à Carta sobre os surdos e mudos, e “Saber geometria ou ser geômetra são duas coisas muito diversas. É dado a poucos homens serem geômetras; é dado a todos aprender a aritmética e a geometria”. (GOMES, 2008, p. 79), excerto do Plano de uma Universidade. Finalizando o segundo capítulo, a autora discute as indicações metodológicas de Diderot em relação ao ensino de matemática.

O terceiro capítulo, cujo título é “D’Alembert e a epistemologia da matemática como base da educação matemática”, é dedicado ao estudo do iluminista Jean Le Ronde D’Alembert (1717 – 1783). Para Gomes, fontes ricas para conhecermos o pensamento desse iluminista em relação à educação matemática são os verbetes da Enciclopédia e o Ensaio sobre os elementos da Filosofia. Estudando esses textos, a autora afirma que é possível constatar dois componentes fundamentais das reflexões desse filósofo: D’Alembert situa Bolema, Rio Claro (SP), v. 23, nº 36, p. 809 a 817, agosto 2010 813 a fonte de todo conhecimento na experiência (concordando com Locke) e acredita que existe uma ligação entre todos os objetos de nosso conhecimento, e pensa a geometria como sinônimo da matemática, ainda que não deixe de, em seus escritos, atribuir importância à álgebra.

Duas questões são tomadas como centrais para a compreensão das idéias de D’Alembert: sua posição de, tendo como base o pensamento de Locke, defender a matemática como um conhecimento tributário da experiência; e sua concepção sobre o conhecimento matemático ser e funcionar como uma cadeia de verdades (no que D’Alembert reflete harmonia com concepções cartesianas).

Nas linhas desse capítulo, Gomes nos deixa perceber que a matemática participava – de modo essencial e com destaque – do quadro de conhecimentos de D’Alembert: para ele, deveria ser facultado a todas as pessoas o acesso ao conhecimento elementar da matemática. Sobre as indicações para a educação matemática, a autora nos mostra que, em D’Alembert, o principal instrumento para a instrução científica (particularmente a educação matemática) é o livro-texto.

O ponto básico da proposta de educação matemática de D’Alembert reside na elaboração de livros didáticos que exponham esses conteúdos de acordo com as diretrizes que ele propõe. Essa tarefa não é simples: D’Alembert revela-se muito insatisfeito em relação aos textos de matemática de sua época e critica fortemente seus autores por não considerá-los à altura do empreendimento que realizam. […] para D’Alembert, não é o professor quem entregará ao educando o conhecimento pronto: os textos devem fornecer muito material a ser pensado, pois só existe aprendizagem pelo esforço da própria mente. (GOMES, 2008, p. 153).

No quarto capítulo do livro, “Condillac e o prisma cognitivo da educação matemática”, por sua vez, seguem as discussões em torno do filósofo Étienne Bonnot Condillac (1714 – 1780). Segundo Gomes, o objeto essencial dos trabalhos de Condillac é o conhecimento humano, o método por excelência é o analítico, e os fundamentos centrais de sua obra provêm dos trabalhos de Newton e de Locke. Duas parecem ser as principais diferenças entre Locke e Condillac: a primeira delas é que, no filósofo francês, há uma radicalização do sensacionismo; a segunda refere-se ao papel desempenhado pelos signos nas operações mentais (para Locke a linguagem é instrumento, enquanto que para Condillac o papel dos signos está na própria formação do pensamento refletido).

Para tecer relações entre a obra de Condillac e a Educação Matemática, Gomes abre três frentes: na primeira, aborda as concepções desse iluminista em relação à aritmética, expondo a importância dada por ele aos signos e seus usos; na segunda, traz à tona a visão de Condillac em relação à álgebra – quando Gomes afirma que tudo o que Condillac valoriza na matemática é exatamente o que Diderot frequentemente rejeita –; e, por fim, na terceira das frentes, Gomes apresenta as concepções do filósofo francês em relação aos conhecimentos geométricos.

A apresentação e discussão de algumas considerações epistemológicas e pedagógicas de Condillac, relativas à educação matemática, encerra o capítulo: como D’Alembert e Diderot, Condillac também valoriza a matemática como um conhecimento essencial à formação humana.

O último dos quatro iluministas a ser estudado por Gomes é Jean- Antoine-Nicolas Caritat, o Marquês de Condorcet (1743 – 1794), a quem a autora dedica o quinto capítulo de seu livro. Em “Condorcet e a educação matemática na instrução pública”, sabemos que foi ele, dentre os quatro filósofos abordados, o único que viveu para conhecer a Revolução Francesa. Gomes refere-se a Condorcet como uma figura ilustre na matemática, na filosofia e na educação, além de brilhante político e intelectual do século das Luzes. Por alguns é chamado de “o último dos iluministas”, por outros, como um dos principais – se não o principal – divulgadores da Enciclopédia ao século XIX. Baseada em trabalhos de historiadores da Matemática, Gomes destaca o pioneirismo de Condorcet em um campo denominado por ele mesmo como “matemática social”. Na história da Filosofia, esse pensador é destacado pelo Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano que, segundo a autora, é seu testamento filosófico, uma síntese histórica dos progressos da humanidade. Em Condorcet, é possível notar a influência de Voltaire principalmente no que tange ao combate à Igreja e à luta em favor da tolerância.

Na sequência do capítulo – que, como os demais, é riquíssimo em informações e precioso nas interpretações – Gomes tece considerações quanto à visão de Condorcet sobre a educação matemática. Para tanto, ela focaliza as concepções e propostas desse pensador elaboradas, antes da Revolução Francesa, em seu plano de instrução pública, e o seu manual de aritmética (Meios de aprender a contar com segurança e facilidade) composto visando o mesmo Plano e, portanto, faz parte das diretrizes de um projeto para a França Revolucionária. Para esse filósofo, o conhecimento matemático está entre os que mais podem contribuir para a formação humana, e o que é mais necessário ao cidadão. Condorcet, assim como Diderot, crê que toda criança precisa saber contar e medir. Para ele, as ciências abstratas adequadas para uma criança são a aritmética, a geometria e a álgebra e sua proposta é favorável a fazer recomendações aos professores sobre a aprendizagem, ao invés de meramente oferecer livros às crianças.

Gomes apresenta e discute também o “informe” de Arbogast – um antecedente do manual de aritmética de Condorcet –, as doze lições de aritmética, os conteúdos do manual, bem como as dimensões didáticas, metodológicas e psicológicas desses materiais. Para finalizar tal capítulo, a autora expõe uma síntese da educação matemática na concepção desse iluminista iniciada com um paralelo em relação às concepções dos demais pensadores por ela tratados.

Diderot, defensor incansável da instrução pública, laica, gratuita e para todos os filhos de uma nação, afirmou a necessidade de começar o ensino pela matemática no Plano de uma universidade. D’Alembert, no Discurso preliminar da Enciclopédia, iniciou pela matemática a abordagem dos conhecimentos humanos, e insistiu na necessidade de que os livros elementares fossem escritos pelos cientistas mais eminentes. Condillac sublinhou em seus trabalhos o valor cognitivo da matemática, propôs reformas terminológicas sobre os nomes dos números de modo a evidenciar a analogia, fez o elogio da linguagem matemática, praticamente confundiu a álgebra com o método filosófico da análise.

Condorcet, o último representante da filosofia iluminista francesa, pertenceu a um tempo que lhe possibilitou, como matemático e político, empreender ações concretas no sentido da realização dos ideais científicos e pedagógicos de seus antecessores (GOMES, 2008, p. 297).

Gomes aponta outras similaridades entre as ações e intenções desses iluministas e encerra este capítulo afirmando que “Condorcet teve a oportunidade de ir além do trabalho de doutrinação no sentido de atribuir à educação matemática um lugar privilegiado no combate em favor da autonomia, da igualdade e do aperfeiçoamento do homem” (GOMES, 2008, p. 300- 301). A autora interpreta a obra de Condorcet – morto em 1794, quando fugia da perseguição sanguinária do regime do terror, num momento em que seu Plano para a instrução pública, posteriormente substituído por outras propostas, nem mesmo havia sido votado em assembleia – como uma das derradeiras expressões da filosofia iluminista da França do século XVIII.

O capítulo sexto do livro de Gomes é dedicado a considerar a educação matemática na França pós-iluminista. Resultado das contribuições desses quatro filósofos das Luzes, a Matemática torna-se, ainda que por pouco tempo, uma das principais disciplinas escolares. A partir da apresentação e da discussão dos Ensaios sobre a história do ensino de matemática, particularmente na França e na Prússia, um trabalho do pesquisador alemão Gert Schubring, a autora faz apontamentos sucintos em relação à situação da educação matemática em diversos períodos da história da França, como o da Convenção Nacional (1792 – 1795), o do Diretório (1795 – 1799), do Consulado (1799 – 1804), do Império napoleônico (1804 – 1814) e o da Restauração (1814 – 1848).

Ao concluir seu livro, Gomes afirma que, em síntese, os quatro iluministas por ela tematizados, apesar de divergirem em vários aspectos, sempre tiveram como ponto comum e princípio a luta pela prioridade da educação matemática na instrução. Salienta um aspecto fundamental que, dentre eles, diferencia Diderot: a defesa do método analítico, que fundamenta a defesa da mesma abordagem em D’Alembert, Condillac e Condorcet. Ressalta a crença de Diderot, Condillac e Condorcet na possibilidade de que toda criança pode – e deveria – ter acesso aos conhecimentos matemáticos e recorda a defesa de D’Alembert, Diderot e Condorcet quanto à responsabilidade dos professores que trabalham com a educação matemática e a importância dos livros elementares, cujos autores deveriam ser intelectuais eminentes.

Gomes afirma que não parece adequado concluir seu trabalho sem se referir, mesmo que rapidamente, ao pensamento de Rousseau, manifestado principalmente no Emílio ou Da educação, obra relevante e de grande repercussão no pensamento pedagógico após o século XVIII. Os quatro iluministas e Rousseau – nos assegura a autora – partilham das concepções sobre aprendizagem por meio da experiência dos sentidos mas, no entanto, a visão de Rousseau diverge demasiadamente da dos demais quanto às concepções metodológicas e psicológicas sobre a educação matemática que amparam suas propostas.

Gomes, por fim, considera a complexidade de seu tema de estudo e afirma que não teve a intenção de esgotá-lo: espera ter apresentado, em seu livro, uma contribuição à história da educação matemática e, especialmente, à história da educação matemática brasileira.

Nas páginas anteriores tentei sintetizar – a partir de minha leitura específica – o trabalho de Gomes. Uma angústia constante acompanha, entretanto, meu esforço de resenhista: a impressão de sempre estar deixando algo para trás, de sistematicamente estar negligenciando aspectos importantes, de não comunicar minimamente a riqueza que a autora expressa em seu livro.

Os capítulos são maciços de informações e interpretações extremamente relevantes e bem tecidas, o que torna complexa a intenção de resumir e transmitir ao leitor uma idéia de tudo o que Gomes aborda. Aos interessados na história da educação matemática e suas cercanias, recomendo fortemente a leitura da íntegra do trabalho. Trata-se de um texto de leitura agradável e de um notável exercício de análise e interpretação.

Notas

2 Disponível em: <http://libdigi.unicamp.br/document/?code=vtls000297451>.

3 “O termo philosophes” – afirma Gomes – “com que se auto-intitularam os intelectuais da Ilustração na França, caracteriza não um filósofo no sentido tradicional – um metafísico – , mas antes um pensador engajado, progressista, que luta contra o fanatismo e a intolerância, que defende a razão e as luzes, que mobiliza seu espírito crítico especialmente contra a Igreja católica e a monarquia absoluta” (GOMES, 2008, p. 105) .

4 “Embora na atualidade a expressão ´educação matemática´seja usada com diversos significados, entre os quais se sobressai o de um campo de investigação científica, utilizo-a no contexto histórico a que este trabalho se refere, a França do século XVIII, para designar o ensino de matemática em uma perspectiva mais ampla, isto é, como algo indissociável de seus múltiplos aspectos: epistemológicos, políticos, éticos, pedagógicos, históricos, filosóficos, metodológicos, psicológicos, sociais, culturais, teleológicos, axiológicos etc.” (GOMES, 2008, p. 21)  

Mirian Maria Andrade – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da Universidade Estadual Paulista – UNESP/Rio Claro. E-mail: [email protected]

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Introdução à teoria da predicação em Aristóteles – ANGIONI (FU)

ANGIONI, L. Introdução à teoria da predicação em Aristóteles. Campinas, Editora da Unicamp, 2006. Resenha de: FERREIRA, Mateus R.F. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.11, n.2, p.196-199, mai./ago., 2010.

Introdução à teoria da predicação em Aristóteles consiste em um resultado mais acabado do trabalho que Lucas Angioni iniciou com uma publicação interna ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP sob o título de Ontologia e predicação em Aristóteles. Em termos editoriais, o livro não se constitui predominantemente de um texto em corpo único. Ao contrário, ele é composto por um estudo introdutório acrescido de tradução e comentários de textos de Aristóteles, selecionados por Angioni com vistas ao tema principal desse seu trabalho: a teoria aristotélica da predicação. Não obstante ocupar uma pequena parte do livro, o estudo introdutório consegue cumprir muito bem o propósito que lhe reservou o autor, o de sistematizar alguns aspectos centrais da teoria aristotélica da predicação (p. 9). Nesse estudo, Angioni se atém aos aspectos filosóficos principais de suas teses, deixando para a seção de tradução a apresentação dos textos em que se baseia e para a seção de comentários a análise filológica e argumentativa mais minuciosa, bem como a avaliação da bibliografia secundária pertinente.

Esse formato adotado pelo autor se mostra muito útil na análise de escritos como os de Aristóteles, nos quais os elementos para se reconstruir o pensamento do filósofo geralmente precisam ser recolhidos em fontes esparsas. Aliado a um estilo claro de escrita e domínio do tema, tal formato também confere ao livro utilidade a um público bastante diverso. Ele fornece subsídios para pesquisadores e professores experientes, uma vez que, além de analisar com detalhes os textos selecionados e seus argumentos, também apresenta e avalia competentemente a literatura especializada. Não deixa de ser, todavia, um precioso material didático para iniciantes e alunos de graduação. Não é uma tarefa pouco árdua se familiarizar com textos tão elípticos e terminologicamente não unificados como os de Aristóteles. O livro tem a vantagem de facilitar a consulta e manuseio deles, reunindo em língua portuguesa os mais relevantes ao tema proposto.

Visando a delimitar a estrutura de uma predicação, Angioni ressalta que Aristóteles tem especial interesse em um tipo de enunciado: as declarações. Todo enunciado ou frase possui um significado, mas apenas as declarações possuem uma pretensão de verdade, isto é, apenas esse tipo de enunciado tem a pretensão de que o mundo se comporte como ele o descreve. Aristóteles deixa de lado enunciados com função de exprimir desejos, preces, ordens, etc., e se atém apenas às declarações porque somente elas são capazes de carregar informações e conhecimento de como as coisas são (Angioni, 2006, p.93, 180). Nessa direção, Angioni defende que, apesar de existirem na língua grega ordinária estruturas gramaticais mais comuns, Aristóteles concebe a estrutura predicativa “S é P” (ou “S não é P”) como a forma lógica da declaração (Angioni, 2006, p.18-19). Essa forma estabelece uma relação entre dois itens. Se tem a pretensão de que eles estejam unidos no mundo, a declaração é uma afirmação. Estando de fato unidos, a afirmação é verdadeira; estando, ao contrário, separados, a afirmação é falsa. Se tem a pretensão de que eles estejam separados no mundo, a declaração é uma negação. Estando de fato separados, a negação é verdadeira; estando, ao contrário, unidos, a negação é falsa.

A análise que Angioni desenvolve tem como seu ponto forte o fato de ele distinguir, a partir dos textos de Aristóteles, dois aspectos de uma predicação. Em primeiro lugar, uma predicação pode ser classificada através de critérios, por assim dizer, lógicos (Angioni, 2006, p.25, 27). Tais critérios envolvem basicamente relações extensionais e definicionais (ou de essência) entre o predicado e seu sujeito. Dada uma sentença “S é P”, (i) “se x é S, então x é P” e (ii) “se x é P, então x é S” são critérios que delimitam a relação entre a extensão de S e a extensão de P; além disso, P pode ou não estar contido na essência de S. Essa análise lógica resulta em uma lista de tipos de predicados (Angioni, 2006, p.28, 38) ou, em outros termos, uma lista de predicáveis (p. 144). Estes são alguns exemplos. Um gênero é um predicado que satisfaz (i), mas não (ii), e está contido na definição do sujeito (e.g. homem é animal). Certos atributos necessários também satisfazem (i) e não satisfazem (ii), mas se diferenciam do gênero pelo fato de não compor a definição do sujeito (e.g. homem é mortal). O segundo tipo de atributo per se enunciado em Seg. An. I 4 – atributo cujo sujeito faz parte de sua essência – satisfaz (ii), mas não (i), e não está contido na definição do sujeito (e.g. número é par). As definições e os atributos próprios satisfazem (i) e (ii), de sorte que S e P são coextensivos, mas um atributo próprio (e.g. homem é capaz de aprender a ler) não expressa a essência de S, diferentemente de uma definição (e.g. homem é animal bípede racional). Por sua vez, um atributo contingente não satisfaz nem (i) nem (ii), nem compõe a essência do sujeito a que pertence (e.g. homem é branco).

Observando a lista de predicáveis do autor, cumpre ressaltar uma escolha sua de tradução. Por motivos deveras procedentes, ele abandona a opção tradicional que verte o termo “συμβεβηκὸς” por “acidente”. De fato, dos predicáveis que Aristóteles designa por συμβεβηκότα nem todos são propriamente acidentais. O predicável acima chamado contingente o é, mas há alguns que, ao contrário, são necessários, ou pelo menos concebidos como tais. Para verificar isso, basta considerar os atributos formados a partir da disjunção de atributos per se (e.g. número é par ou ímpar, animal é macho ou fêmeo) ou aqueles que Aristóteles chama de concomitantes per se (καθ’αυτὰ συμβεβηκότα) (e.g. o triângulo possui a soma de seus ângulos internos igual à soma de dois ângulos retos). Na verdade, tanto esses dois predicáveis como o contingente não são denominados συμβεβηκότα por serem acidentais ou contingentes, mas, dentre outros motivos, por não fazerem parte da essência do sujeito a que pertencem. É claro que encontrar uma tradução que dê conta disso e que seja perfeitamente equivalente ao termo grego pode ser considerada uma tarefa inexequível, e talvez “concomitante” não seja a melhor escolha. Entretanto, é certo que termos como “acidente” e “acidental”, apesar da tradição, são por demais enganadores para serem aceitáveis.

Angioni ainda apresenta outra ordem de critérios para classificar os termos de uma predicação quando tomados em si mesmos, independentemente de suas relações com outro termo (Angioni, 2006, p.146). O autor defende que tais critérios fundamentam a tradicional classificação das categorias e que, sendo semânticos e ontológicos, de modo algum se reduzem aos critérios lógicos acima mencionados (Angioni, 2006, p.34-35). Os entes designados por um termo possuem uma de duas características. Alguns deles são tais que suas propriedades são homogêneas entre si e podem todas ser reduzidas, em última instância, a algo único; outros são tais que pelo menos algumas de suas propriedades são heterogêneas em relação às demais, de modo que elas não formam, em conjunto, algo único. Os entes do primeiro tipo, Aristóteles os denomina substâncias (οὐσίαι); os do segundo tipo – os quais podem ser qualidades, quantidades, relações ou outras categorias –, Aristóteles os agrupa sob o título de concomitantes (συμβεβηκότα). Ele assim procede porque os concomitantes apresentam algo em comum: aquilo a que eles pertencem precisa também ser algo diverso, isto é, precisa ser essencialmente uma outra coisa que o próprio concomitante (Angioni, 2006, p.33-34). Por exemplo: um x que é branco é sempre algo branco ou um objeto branco. “Algo” ou “um objeto” denota uma lacuna a ser preenchida por uma entidade que, ao contrário do próprio branco, existe sem depender de uma outra essencialmente especificada por propriedades diversas das suas. Essa dependência faz de um concomitante uma entidade deficitária cujo contraponto está na entidade à qual pertencem suas propriedades heterogêneas: a substância.

Essa relação de dependência ontológica se articula com uma dependência semântica: o concomitante também não é definido sem referência à categoria da substância (Met. VII 1, 1028a 34-36). A brancura, por exemplo, é definida como uma qualidade (“uma cor de tal e tal tipo”); e toda qualidade é uma qualidade de uma substância. É verdade que essa última não está delimitada. O branco não é uma qualidade exclusivamente de um homem ou dos homens, ou de um cavalo ou dos cavalos, e assim por diante. Há, entretanto, uma lacuna na sua definição a qual pode ser preenchida apenas por uma substância. Se for um homem, branco será uma qualidade sua; se for um cavalo, uma qualidade sua. Essa é a razão pela qual a referência de um termo que denota um concomitante pressupõe algo de natureza extrínseca. Quando “branco” é capaz de denotar um objeto, este já está previamente identificado por um conjunto mínimo de propriedades diversas das especificadas na definição de branco. Essas propriedades pertencem à substância que nessa ocasião preenche a lacuna da definição desse concomitante. Uma substância, por outro lado, não possui tal lacuna, por isso o termo que a designa é capaz de desempenhar um papel que o termo que designa aquele concomitante não é, qual seja, referir-se por si só a um objeto no mundo.

Angioni interessantemente observa que essa natureza do concomitante explica o desinteresse de Aristóteles em fornecer listas exaustivas das categorias (p. 31-32, 34). A despeito de quantas sejam as classes de concomitantes, todas envolvem entes deficitários que pressupõem a existência de uma substância. Assim, qualquer uma das listas de categorias que o filósofo apresenta pode ser reagrupada primordialmente em apenas dois conjuntos: a categoria da substância e as demais categorias.

A discriminação dos critérios semântico-ontológicos relatados tem interesse filosófico, mas sobretudo interpretativo, porque confere a Angioni a capacidade de unificar de modo efetivamente convincente os textos coligidos. Seja qual for o interesse preciso de Aristóteles em cada um deles, a distinção entre dois grupos de categorias exerce em todos um papel fundamental. Pois essa distinção exibe a natureza de uma predicação. Em última instância, sujeitos lógicos (e não meramente gramaticais) são entidades capazes de denotar um objeto por si só. São, portanto, substâncias. Predicados lógicos, por sua vez, são entidades que formam com o sujeito uma composição, decorrendo daí as características peculiares a uma declaração relatadas acima. Nessa composição, ou o predicado não acrescenta ao sujeito nada diferente do que este já é em si mesmo ou lhe acrescenta algo diverso. Nesse último caso, o predicado constitui algo extrínseco ao sujeito e dele dependente; ele é, portanto, um concomitante (Angioni, 2006, p.30). Pois bem: essas características explicam por que Aristóteles considera uma sentença como “(o) branco é musical (i.e. é capaz de produzir música)” pragmaticamente eficaz, mas não uma predicação no sentido estrito do termo. Angioni mostra que essa sentença precisa ser decomposta em duas predicações: há um mesmo item (e.g. um homem) que recebe os atributos “branco” e “musical” e ao qual eles são extrínsecos (Angioni, 2006, p.120). Esse item, por sua vez, não pode se comportar do mesmo modo em relação a outro, sob pena de a predicação retroceder ao infinito e nunca se enunciar aquilo ao qual os dois atributos são, em última instância, extrínsecos. Por isso, tal item deve ser, em si próprio, uma substância. Também se explica, por exemplo, por que para Aristóteles compostos de concomitantes ou mesmo de uma substância e um concomitante não são dotados de unidade interna (Angioni, 2006, p.99, 181). A sentença pragmaticamente eficaz acima, por exemplo, expressa, de uma mesma substância, dois atributos independentes entre si; sinal disso é que ela não constitui uma única pretensão de verdade nem duas pretensões de verdade vinculadas uma à outra. Por sua vez, uma determinada sentença que possui uma única pretensão de verdade, mas não se limita a descrever o sentido de um termo, é uma composição gerada pela união de uma substância e de um concomitante. Isso significa que algo extrínseco – o concomitante – já foi acrescentado a uma unidade prévia e independentemente constituída – a substância.

A análise semântico-ontológica de Angioni tem ainda o mérito de captar precisamente as preocupações filosóficas de Aristóteles quando este propõe, como forma lógica de uma proposição, a estrutura “S é P”, em vez de, por exemplo, algo similar à estrutura corrente na literatura filosófica “P(a)”. Nesta, a é um indivíduo que permite tornar o predicado – uma expressão insaturada “P(x)” – uma sentença com valor de verdade determinado. Essa capacidade só é dada aos indivíduos, os verdadeiros sujeitos lógicos, e nenhuma expressão insaturada pode ocupar esse papel. Sem dúvida, também na estrutura “S é P” S deve ser substituído por um indivíduo, como Sócrates, para que ela apresente um valor de verdade determinado, mas não é aí que reside, aos olhos de Aristóteles, a diferença fundamental entre S e P. Embora “homem” seja universal, ele não é um atributo de Sócrates tal qual “branco” ou “musical”; estes são-lhe atribuídos extrinsecamente, mas não aquele (Angioni, 2006, p.122-123). Pois ser homem é a condição pela qual Sócrates é identificado como um legítimo sujeito de predicação. Em suma, o interesse primordial de Aristóteles com a estrutura “S é P”, pelo menos na maior parte de seus textos, não está em contrapor particulares e universais, mas antes em contrapor entes similarmente designados por termos universais, porém, de naturezas distintas.

É por todos esses motivos que, com Introdução à teoria da predicação em Aristóteles, Angioni dá importante contribuição aos estudos aristotélicos atuais e deixa à disposição dos estudantes de filosofia um excelente material.

Referências

ROSS, D. 1924. Aristotle’s Metaphysics. Vol. II. Oxford, Clarendon Press, 528 p.

Mateus R.F. Ferreira – Doutorando da Universidade Estadual de Campinas. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas, SP, Brasil. E-mail: [email protected]

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Poeta do Lápis. Sátira e política na trajetória de Angelo Agostini no Brasil Imperial (1864-1888) | Marcelo BAlaban

Em 2010 completaram-se cem anos da morte do artista italiano Angelo Agostini, o caricaturista responsável por ilustrações em importantes periódicos que circularam no Brasil do século XIX, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Na primeira cidade, seus desenhos foram veiculados em dois jornais, Diabo Coxo (1864-1865) e Cabrião (1865-1867).

Já na capital do Império, logo após sua chegada, em 1867, contribuiu em O Arlequim, transformado em A Vida Fluminense. Neste periódico se manteve até 1871, quando seus desenhos passaram a surgir em O Mosquito, do qual somente se retirou em 1875, para fundar, no ano seguinte, a Revista Illustrada considerada por muitos autores como o principal periódico ilustrado do Brasil no século XIX. Possivelmente até mesmo os pesquisadores que não têm interesse por jornais de ilustração já devem ter lido, em algum momento de suas pesquisas, a frase de Monteiro Lobato (1956, p.16) sobre a Revista: “Quadro típico de cor local era o do fazendeiro que chegava cansado da roça, apeava, entregava o cavalo a um negro, entrava, sentava-se na rede, pedia café à mulatinha e abria a Revista”. Leia Mais

Inventar a Heresia? Discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição | Monique Zerner

Desde a publicação de Montaillou de Emmanuel Le Roy Ladurie2, em 1975, consolidou-se um campo de investigação para a heresia. Com sua obra, os cátaros ganharam o olhar dos estudiosos da chamada Idade Média Central e foram alvos de investigação de homens preocupados com o descortinar do processo inquisitorial. Tais comunidades heréticas do século XIII eram opositoras à Igreja e sua recusa podia ser verificada na doutrina que sustentavam, de cunho dualista, anticlerical e antiprocriacional, que os ligava a gnósticos e maniqueus dos séculos iniciais da era cristã. Essa imagem do herege dominaria a historiografia e caminharia ao lado de uma linha de interpretação historiográfica também iniciada nas décadas de 60 e 70 do século XX. Ali, a heresia era tida como foco de resistência, não só à estrutura clerical, mas à cultura que se pretendia homogênea e dominante. Ligados ao campo da Nova História Cultural, trabalhos como os de Jacques Le Goff3 situaram a heresia em uma dinâmica sócio-cultural que deslocava o conflito social entre dominantes e dominados para a esfera cultural. A heresia, juntamente com as superstições4, passava a ser parte da manifestação da cultura popular, da expressão religiosa dos camponeses e estava atrelada, de maneira inequívoca, ao conflito cultura erudita/cultura popular, ou “folclórica”. Leia Mais

Rio-Durham (NC)-Berlim: um diário de idéias – DURÃO (A-EN)

DURÃO, Fábrio Akcelrud. Rio-Durham (NC)-Berlim: um diário de idéias. Campinas: Editora da UNICAMP/IEL/Setor de Publicações, 2008. Resenha de: LOSSO, Eduardo Guerreiro Brito. Teoria e ascese cotidiana. Alea, Rio de Janeiro, v.11 n.2, dec., 2009.

O livro do professor do Departamento de Teoria Literária da Unicamp, Fábio Durão, é um acontecimento único na produção editorial da teoria no Brasil. Trata-se de um “diário de idéias” feito de fragmentos aforismáticos que discorre de maneira muito pessoal sobre a situação da teoria nos três países – Brasil, EUA e Alemanha – que fizeram parte da formação do autor; por outro lado, aborda de maneira muito teórica experiências pessoais e cotidianas. É na duplicidade constitutiva da proposta que vamos nos adentrar.

Os fragmentos focam diferentes insights da relação de um personagem teórico com dois ambientes aparentemente estranhos: a universidade e o cotidiano. O desafio é, precisamente, pensar um com os olhos do outro, de modo que, recolhendo o melhor da teoria (a virulência crítica) e do cotidiano (a delimitação prática), haja de certo modo uma correção mútua do pior e potencialização mútua do melhor. Na teoria, o problema está na pletora de objetos mapeados e fabricação de modos de interpretação infinitos que neutralizam um trabalho do pensamento feito de irrupções, elaboração e pausas – momentos de silêncio. Essa questão aparece no interior de teorias atuais (desconstrução, estudos culturais), bem como na dimensão da prática universitária: excesso competitivo de estudo, iconização do nome dos filósofos, economia das citações, classificação de teorias como modos de leitura da realidade, métodos de ensino da literatura (p. 14, 21, 41). No cotidiano, a dificuldade está em lidar com a estrutura perversa do sistema de nos levar a vivências já preparadas, um consumo de modos de viver prévios. São analisados vários exemplos: os 100 sabores da loja de sorvete (p. 24, fragmento 19), as janelas dos apartamentos americanos (p. 25, fragmento 20), a visita e foto turística obsessiva por todos os lugares (p. 26-27, fragmento 22), o trabalho da audição nas salas de concertos (p. 24, fragmento 18) etc. A reflexão do cotidiano se desdobra em tornar o olhar estrangeiro uma forma metodológica de crítica de diferentes culturas, cotejando entre si EUA, Brasil e Alemanha, algo que poderíamos chamar de crítica da cultura comparada.

Por outro lado, o olhar desconfiado frente ao cotidiano não poupa o próprio cotidiano da universidade: pensa-se o quanto a vida intelectual está aprisionada em práticas estandardizadas e o quanto a reflexão sobre o seu cotidiano ataca diretamente a reificação do conteúdo produzido. Em ambos os casos, o personagem teórico dos fragmentos elenca os modos de reprodução da vida falsificada no mundo administrado em tempos pós-modernos e se coloca em questão, em primeira pessoa, na prática mais pessoal e inalienável (em pleno conflito com a inoculação íntima da alienação), sobre como agir e reagir, como avaliar e apreciar o que advém da imediaticidade do cotidiano.

Contra as diversas formas de ascese obsessiva que o sistema impõe (criando modelos de conduta, verdadeiros personagens típicos da cultura, como o do playboy brasileiro) (p. 45-46, fragmento 49), o ousado e modesto teórico não deixa de, ao procurar surpreender teoricamente um campo de problemas do cotidiano feito para se conservar impensado, praticar uma outra ascese. Trata-se de uma ascese da resistência (ou na expressão do esclarecedor prefácio de Marcus Siscar, “postura de resistência”) (p. 8) contra vivências imediatas impostas pelo sistema de conduta do estado falso, contra a aniquilação da experiência feita pelo controle disciplinar do espaço-tempo de trabalho e lazer; trata-se, enfim, de suspender o fluxo de imposições imediatas com a mediação de uma teorização do cotidiano. Isto é, nada mais ascético, mesmo que tal suspensão seja, em certos aspectos, anti-laboral, feita na mesa de bar, contrária à abundância de referências, ferramentas, possibilidades infinitas. A ascese moderna da teorização do cotidiano é contra, no fundo, pseudo-asceses que obedecem a modelos midiáticos e institucionais disciplinares, mesmo quando tais modelos se reproduzem no lugar que mais deveria questioná-los: na universidade pós-moderna, no próprio modo de vida dos críticos da reificação.

Daí a relevância, aqui, de nossa resenha dever abrir um parêntese para a diferença entre ascese e disciplina. A disciplina é imposta por educadores e instituições para a obtenção de êxitos em avaliações (provas, concursos), a ascese é construída por um sujeito singular para realização de um desejo absoluto (principalmente no caso da mística) por meio da renúncia a prazeres mundanos. A ascese tradicional de monges foi feita com base numa instituição que fomenta lugares de recolhimento, como o mosteiro, a disciplina tradicional se dá sempre no interior de uma instituição que controla o espaço-tempo do indivíduo – escola, hospital, prisão. Contudo, podemos pensar que, atualmente, com a informalização das atividades trabalhistas, o controle vigilante ao ar livre de cada movimento dos cidadãos, a passividade forçada da televisão e a atividade falsa dos jogos e da navegação virtual, entre outros fenômenos, o regime disciplinar se torna onipresente. A ascese, hoje, é em grande parte uma radicalização da disciplina: a anorexia das patricinhas, os workaholics, o planejamento sufocante dos turistas com seu roteiro, tudo isso é uma forma de, por meio de sacrifício dos prazeres do ócio, obter as virtudes do sistema: beleza, dinheiro, sucesso, signos de poder. Logo, a prática ascética é, nesses casos, nada mais do que o desdobramento exagerado da disciplina atual, em harmonia com o conceito de ascese protestante dos primeiros capitalistas de Weber, sendo dela a perfeita herdeira. Quando Fabio Durão pensa, nos EUA, o quanto o gordo se tornou proletário e o jovem marombeiro frequentador de academia, o burguês atual (p. 20, fragmento 13), está se referindo, a nosso ver, a uma das metamorfoses recentes da ascese burguesa.

Contudo, se o mundo é cada vez mais disciplinar e suscita asceses heterônomas, é necessário um grande esforço – ascético – para resistir não só à reprodução prática da disciplina imposta pela falsificação da existência, mas principalmente aos valores dessa falsificação. Isso só pode ser feito com a ascese singular do teórico crítico, que insere mediações do exercício crítico de pensar, suspensões, pausas, sedimentações. É uma ascese estética, hedonista, por um lado, para abrir espaço ao potencial crítico do ócio (que só é ócio do ponto de vista do mero cálculo das horas de trabalho, porém na verdade é outro tipo de trabalho ininterrupto, como provam as especulações do nosso personagem teórico pensando no vendedor turco na Alemanha) (p. 56-57, fragmento 64); e ainda mais trabalhosa, por outro, por demandar um esforço de recusa monstruoso diante da facilidade imediata.

Por isso, consideramos esse um livro genuinamente ascético. Ele nos apresenta uma estimável ascese teórica, e nos convida, sem dúvida, a praticar uma outra, contribui decisivamente para a ascese singular de cada um, pois asceses explícitas na escrita teórica servem para entrarem em diálogo, dialética. Nesse sentido, o livro abre uma perspectiva riquíssima – pouco percebida em outros livros que procuraram uma reflexão parecida, como Minima moralia de Adorno, Cool memories de Baudrillard, Rua de mão única de Benjamin –: tornar a teoria menos reprodutora de si mesma, por mais que ela deva se distanciar da prática, e mais prática, por mais que sua imanência seja insolúvel. Mas em que sentido a teoria deveria tornar-se mais prática, se justamente ela deve lutar contra a resistência à teoria das visões utilitaristas? No fato de que, justamente, ela pensou pouco um tipo de prática que a literatura pensou muito: a cotidiana, em forma de diário, na primeira pessoa; encarar a pobreza e a riqueza da experiência individual. É uma forma de a teoria ser mais literária, ainda que o livro sabiamente evite narrativas pessoais, não fale de amores nem de família, selecionando, no limite, apenas pequenos momentos de conversas com amigos para decolar o vôo de reflexões ao rés do chão. O objeto da teorização do cotidiano impele ao enfoque pessoal, mas na medida certa, de modo a focar fenômenos culturais gerais, que, entretanto, atingem intimamente a vida do dia a dia de todos.

A forma do diário, enfim, aproxima-se menos da autobiografia, demasiadamente individual, do que de textos ascéticos tradicionais, que observam o cotidiano com vistas a criticá-lo e transformá-lo com o olhar pessoal e exercícios específicos; mas é claro que a semelhança para por aí, pois o pensamento é laico e o objetivo não é religioso. Ainda assim, quando recusamos a semelhança superficial, insistimos na semelhança profunda (vinda da mais extrema diferença histórica) de uma resistência mediante certas renúncias: na ascese tradicional, aos prazeres mundanos, na ascese teórica, aos gozos da vida falsificada. Assim como para o asceta tradicional o mundo é pecado, para o teórico crítico, o mundo é regido pelo estado falso, e uma experiência que possa sair daí, na medida do possível, só se dá no deserto solitário da teoria sem concessões ao pecado capital de entregar a vida aos ditames da maioria. O conceito de prática aqui, portanto, não é privilegiadamente político, mas ligado ao âmbito da experiência individual, não é só a micro-política, é a micro-existência de viver a minúcia profana. É aí, a nosso ver, que a teoria pode e deve tornar-se mais prática: em pensar e experimentar uma prática impensada e mal praticada, precisamente, pela teoria e mesmo pela vida universitária.

Com isso, o teórico não se furta aos prazeres da indústria cultural, não é tão chato assim, mas vai surpreender a lidar com a imediaticidade precisamente lá onde ela mais está nos invadindo, conquistando, assim, territórios que os papers e a codificação da forma nas revistas acadêmicas insistem em não tocar (para uma análise de uma das formas de codificação do artigo científico, “Sobre o conceito de X em Y”, ver p. 42, fragmento 45). Quando a teoria se torna mais prática, intrometendo-se na dimensão da objetividade mais intransitável e impensada pela filosofia (ainda que Montaigne, pré-românticos alemães e muitos outros desmintam o muro estabelecido pelos sistemas filosóficos e sejam sempre mal aproveitados), a teoria se mostra mais digna de seu nome. Se a forma ensaística foi parcialmente codificada pelo artigo universitário, mesmo assim os fragmentos do livro expõem o grau de distância que o artigo acadêmico se encontra de uma crítica que atinja hábitos tornados regra de conduta na concretude da vivência diária.

Por isso e muito mais, o livro de Fábio Durão dá um sopro renovador na teoria literária brasileira. Lembro que o Brasil produz trabalho de qualidade na área de teoria geralmente quando aborda objetos de estudo nacionais, restringindo o alcance da teorização ao seu território, daí o fato de a sociologia da literatura ter dados frutos mais rentáveis. Contudo, falta uma simultânea ousadia e consistência para pensar também simultaneamente o aqui e o ali e refletir sobre a teoria, hoje globalizada, sem cair em classificações escolares, métodos fixos de interpretação ou mera reprodução de escolas importadas. Durão realiza essa difícil tarefa da forma (no duplo sentido) mais modesta. Em primeira pessoa, trata até mesmo o Brasil como , enquanto está na Alemanha e nos EUA, mas justamente nesse momento a tradição não só de pensar o Brasil como do exercício autônomo de pensar dos brasileiros, feito precisamente sob a pressão do deslocamento do exílio, está dando seu mais novo salto.

Eduardo Guerreiro Brito Losso – UFRRJ

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Berlim: um diário de idéias – DURÃO (AF)

DURÃO, F. Rio-Durham (NC). Berlim: um diário de idéias. Campinas: Publicações IEL/ UNICAMP (Coleção Work in progress), 2009. Resenha de: JÚNIOR, Douglas Garcia Alves. Experiências do pensamento diante da face das coisas. Artefilosofia, Ouro Preto, n.7, out., 2009.

Fábio Durão apresenta um empreendimento incomum em nossos dias: um “diário de idéias”, composto de 85 fragmentos. Projeto ousado já na forma, que remete a Nietzsche e Adorno, filósofos que fizeram da forma de exposição em aforismos um elemento central de suas obras. Ousado, além disso, na amplitude e dificuldade dos temas tratados, que vão da dialética aos Estudos Culturais, da diferença entre as formas brasileira e norte-americana de sociabilidade ao capitalismo, da hermenêutica literária ao silêncio na música, da questão do lugar histórico das idéias à utopia do conhecimento. Reconhece-se, tanto na forma, como nos temas, o diálogo com Adorno, o que o torna ainda mais ousado: pretende- ria o autor reescrever as Minima Moralia em chave contemporânea e brasileira? No que se segue, reúno algumas indicações a respeito do teor das experiências de pensamento que Durão propõe. Trata-se de um breve comentário de quatro núcleos temáticos do livro de Durão, os quais, a meu ver, representam melhor o teor do seu trabalho como um todo. São eles: a reificação na prática acadêmica contemporânea; as dificuldades na lida hermenêutica com a alteridade da arte; as relações humanas como esfera de resistência à dominação capitalista; a utopia de uma teoria alegre. A reificação da academia Durão fala do contexto americano, alemão e brasileiro, mas é neste primeiro que ele mais se detém, tomando a sério o anúncio de Max Weber: “permitam-me que os conduza aos Estados Unidos da América, pois que lá se pode observar certo número de realidades em sua feição original e mais contundente” 1. O núcleo das suas anotações a respeito, retiradas de sua experiência pessoal naquele país, refere-se, em primeiro lugar, ao produtivismo e à competitividade, de feições abertamente capitalistas, que se observam em tudo o que é relaciona- do à universidade. Por outro lado, e intimamente relacionado a este primeiro aspecto, ele nota a contradição entre uma busca obstinada pela heterogeneidade, multiplicidade e pelo novo, por parte da crítica literária, da “Teoria” e dos Estudos Culturais, e o encerramento desses discursos em uma concepção anistórica e abstrata do “outro”, que termina por perdê-lo.

As várias faces do primeiro aspecto, Durão as encontra na prática americana das citações 2, na designação de “star” aplicada aos professores que detém um “grande nome” capaz de atrair muitas matrículas 3, n a especialização de cada departamento de universidade em um determinado tipo de “mercadorias culturais” 4, na polivalência de intelectuais que acompanham as demandas cambiantes de um trabalho flexibilizado 5, na transformação da prática intelectual em uma “máquina hermenêutica”, a recobrir de sentido (e perder) o movimento contraditório da realidade social capitalista 6. Quanto ao segundo aspecto apontado, a compulsão abstrata pelo “outro”, Durão a entende a partir de sua posição histórica e social, e da divisão social do trabalho. Cito: Muito se fala nos Estados Unidos do outro. Em inúmeras publicações, congressos, cursos etc encontra-se esse desejo pela diferença, por aquilo que não se repete, que anuncia o novo. A busca pelo diferente pode assumir as mais diversas formas: o entusiasmo pelos novos media, o deslumbre pelas possibilidades de sexualidades alternativas, a fixação pelo indefinível do corpo, a promessa de riqueza na mistura de culturas de imigrantes num mundo globalizado, a disseminação infinita do sentido no infinito da linguagem… Todas essas versões de alteridade têm seu contrário na realidade repetitiva da rotina do trabalho, na homogeneização dos hábitos por todo o globo, na Mcdonaldização do mundo. 7 Essa denúncia seria unilateral se não viesse acompanhada de um reconhecimento do que há de crítico nessa busca do “outro”. A “nebulosa da Teoria” porta consigo um teor de verdade: a indicação de que a aspiração ao novo não pode ser realizada nos quadros de um todo social que reprime a irrupção do heterogêneo sob a máscara da hiper-produção de sentido e do consumo de bens culturais. Escreve Durão: “entregar-se completamente à teoria da diferença, de fato, leva à auto-satisfação da classe média, mas ignorá-la por completo, reprimi-la, só faz com que ela volte, como uma vingança, para assombrar o discurso revolucionário dono da verdade” 8.

Durão sugere que a recuperação do momento de verdade da hermenêutica americana do “outro” passa por uma operação reflexiva, pelo dever de pensar as formas de produção de sentido sob o capitalismo contemporâneo, ao mesmo tempo em que se põe a pensar os problemas de uma leitura respeitosa e, ao mesmo tempo, desafiante, viva, das obras de arte. Torna-se impositivo resistir ao fluxo homogeneizador dos discursos da diferença, e abrir um “tempo lógico” para a teoria em sentido forte, isto é, para a contemplação da conexão inteligível imanente que se apreende das próprias coisas. Talvez a problemática da hermenêutica da obra de arte sob o capitalismo seja o locus privilegiado para pensar estas questões.

A (difícil) alteridade da arte

A incômoda experiência de fazer parte da massa de turistas diante da Mona Lisa, no Louvre, é senha para Durão pensar a questão da posição do receptor diante da obra de arte, do que esta tem de único e irredutível. Trata-se, naquele caso, de uma experiência em que está ausente o silêncio, em que não há tempo para que se desdobre um outro tipo de experiência, negativa (face ao excesso de sentido proposto): a de abrir-se à obra para que ela “perguntasse algo àquele que [a] via” 9. A renúncia à intenção subjetiva, assim, torna-se mediação incontornável para o contato com a alteridade. A leitura do mundo, das coisas, exige uma disciplina do sujeito. Não sua dissolução completa, em prol de um “objetivismo” ingênuo, mas participação no movimento constitutivo da obra. Ela exige, na verdade um trabalho do sujeito, no sentido de reconstituir as mediações históricas impressas na estrutura e no tecido da obra, e, além disso, de uma atenção ao que escapa a esse movimento, à sua não-identidade material irredutível. Durão torna clara a sua posição a esse respeito, ao comentar a prática acadêmica do close reading: Para a lírica, busca-se ambigüidades e padrões imagísticos recorrentes, assim como recursos sonoros organicamente li- gados ao sentido; para a prosa, investiga-se a profundeza e a verossimilhança psicológica dos personagens, a estruturação e o desenvolvimento do enredo. Subjacente a essa forma de ensino da literatura reside uma bela idéia de imediatidade e comunicabilidade da experiência humana (daí a identificação com personagens desempenhar um papel tão importante) seu aspecto negativo, no entanto, apresenta-se no apagamento da diferença, da estranheza que artefatos do passado geram quando parecem se fechar para nossas perguntas a eles 10. Como romper a reificação dos instrumentos hermenêuticos, dos métodos de análise estética? Como restituir ao objeto o que é do objeto, a sua alteridade mais secreta? Durão amplia o foco dessas questões a partir da consideração do oposto da obra de arte, do “lixo” da indústria cultural. Este, surpreendentemente, adquire um estatuto revelador para o crítico cultural interessado na não-identidade da arte. Por dois motivos. Em primeiro lugar, segundo Durão, é possível mostrar que o “puro ruim não existe”, que mesmo o mais reificado produto da indústria cultual contém, latente, um momento de utopia, anuncia uma promessa de satis- fação e liberdade 11 (ainda que não as sustente de modo radical). Além disso, mais fundamentalmente, trata-se de ter consciência de que, se o “lixo” da indústria cultural impõe uma cunha hermenêutica a seus receptores, impedindo-os de desenvolver uma leitura diferenciada do mundo, em franca contraposição, trata-se, para a crítica, de apontar estes entraves, para restituir o potencial obstruído de leitura do mundo 12. Enfim, é possível pensar a prática crítica e a leitura forte da obra de arte como um tipo de amizade, de uma relação em que atividade e passividade se complementam, para articular um campo de forças em que as tensões possam se exprimir, ao mesmo tempo em que a dominação e a violência, desse modo, possam ser substituídas pela coexistência vivificadora e autônoma. Talvez seja por isso que Durão enxergue nas relações interpessoais um potencial utópico não-desprezível.

A fragilidade e a resistência das relações humanas

Um dos mais interessantes fragmentos de Durão é o de número 41, sobre o universo social da praia de Copacabana. Enquanto a opção mais fácil para o intelectual crítico brasileiro seria a de apontar para o engodo da intimidade entre os socialmente desiguais, na esteira da crítica (justificada, diga-se) de Sérgio Buarque de Holanda à “cordialidade” brasileira, ele toma um outro rumo. Sem negar a injustiça impressa na realidade, ele chama a atenção para o teor de verdade da sociabilidade afetiva e próxima do carioca. O “esforço de se ligar a um outro” e o “ser amigável como ponte” portam algo de verdadeiro, na medida em que manifestam, de algum modo, um confronto com a realidade social que faz dos indivíduos “mônadas sociais irreconciliáveis”. O criminoso, que também circula por lá, lembra Durão, é aquele que nega essa proximidade, que expõe sua insuficiência 13.

Esse limite da proximidade carioca é posto em questão, nova- mente, por outra via, a do comentário da relação amorosa. Se o vocábulo “relação” chama para si a atenção para o aspecto desregulamenta- do e espontâneo do amor, é preciso apontar, lembra Durão, para aquilo que a “relação” exclui: a abertura para o mundo além das subjetividades envolvidas 14. O conteúdo utópico das relações interpessoais tem seu funda- mento na simples conversa, relação em que os interlocutores não se engajam primariamente em um objetivo instrumental, a qual Durão confere dignidade, ao comentar o texto de Jakobson, “Lingüística e Poética”. Ele ressalta o elemento de contato da linguagem, a “função fática”, e afirma que a conversa “define um tipo de troca onde o tópico ou o tema é flutuante, onde aquilo que me liga ao meu interlocutor é, simples e unicamente, o prazer de tê-lo à minha frente” 15. A dignidade do individual, do ôntico, em sua finitude e alteridade, é estabelecida, assim, na faculdade da linguagem, capaz de estabelecer e manter pontes com o outro, concreto e único. Não se deve esquecer, além disso, o elemento de prazer envolvido no exercício dessa faculdade. Esse elemento de prazer tem a ver com a experiência do reconhecimento da semelhança do “outro” – indivíduo, obra de arte, animal, coisa – com o sujeito. Essa dimensão mimética da experiência, desse modo, se faz notar como elemento fundamental tanto da ética quanto da estética. Durão, nesse sentido, em ressonância com Lévinas, chama a atenção para o elemento utópico da experiência da face, do rosto. Cito: Nossa capacidade de identificar caras, um ímpeto não-intencional e não-consciente, é talvez a prova maior da possibilidade concreta da utopia. O rosto faz humano (…) Desde Auschwitz, seu inimigo maior é o número. A felicidade reside no contrário, no aprendizado da leitura da face. O que é o amor senão a multiplicação dos rostos do ser amado? Quem ama está sempre vendo novas faces no outro, faces que no fundo quebram as amarras do indivíduo: de quem contempla, que se perde no rosto amado, e de quem é contemplado, cada vez com uma outra cara 16. Essa “possibilidade concreta da utopia” é o que cabe desdobrar como conceito a uma teoria atenta tanto ao particular individual e material quanto ao universal, à dinâmica social que lhe dá a lei e o insere numa ordem. A experiência do pensamento como alegria utópica

A referência a uma “teoria da alegria” 17, que me autorizo a interpretar como uma teoria alegre, faz eco aos dois autores que mencionei no início, Nietzsche e Adorno. Se, para o primeiro, a noção de uma “gaia ciência” 18 recebia o sentido de uma crítica da construção de mundos inteligíveis e da separação filosófica tradicional entre corpo e espírito (que desvalorizava o primeiro para melhor assegurar a dominação do último), em Adorno, a teoria, sobretudo a teoria moral, é tida como uma “triste ciência” 19, na medida em que “não há vida correta na falsa” 20, e que tanto pensamento quanto ação se vêm enredados na perpetuação da dominação social da natureza externa e interna. No entanto, para o autor da dialética negativa, resta ao pensamento a tarefa de determinar as condições de efetivação de uma “humanidade como utopia” 21.

Em Adorno, a “vida correta”, a arte autêntica e o pensamento forte se medem pela sua negatividade com relação ao estado de coisas existente, de super-exploração do trabalho e degradação da natureza, no capitalismo tardio. Durão recolhe a lição de Adorno, e sua escolha pelo fragmento é sinal disso: a “teoria da alegria” que persegue deve surgir do contato com os objetos, com a configuração de cultura e da sociabilidade no atual estádio histórico. O fragmento permite certa “lógica de sedimentação”, pois “os fragmentos devem dar boas vindas à insistência daquilo que, apesar de si próprios, se faz repetir” 22. O fragmento, recusando a lógica do sistema dedutivo, de premissa e conclusão, dá lugar à experiência do confronto do pensamento com o pensado, permitindo desenhar a figura de uma “utopia do saber”, afim à noção adorniana de “constelação”, que Durão descreve da seguinte maneira: Um bom conceito se deixa isolar apenas relutantemente, sob a pena de se oferecer como vítima. Aquilo que quer ter de único, de singular, aconteceria da sedimentação de seus contextos de ocorrência, que necessariamente deixam restos, parte de seu sentido para a qual permanecemos na maioria das vezes cegos 23.

Esse elemento fugidio do conceito, Durão o aborda por meio do que se poderia chamar de primazia da idéia em relação ao sujeito, à qual alude diversas vezes, ao dizer que “as idéias nos pensam” 24, que “as idéias nos possuem 25 ”, que, ao “caçador de idéias” intelectual, vale lembrar que “uma idéia não gostaria de ser caçada; ao invés, disso, preferia ser paparicada, cortejada, até mesmo às vezes esquecida para ser depois revisitada” 26. Mais adiante, ele aponta para a fragilidade do pensamento, ao se dar conta de que “é necessário acolhermos os pensamentos, pegá-los no colo e sermos doces com eles, ao invés de tentarmos ser mais fortes que eles” 27. Todas essas formulações sugerem a noção de uma necessidade de uma contínua auto-reflexão do pensamento a respeito de seus próprios pressupostos – mais uma afinidade com Nietzsche e Adorno, que denunciaram o caráter arbitrário e violento do sistema, mais afeito ao aumento da dominação sobre as coisas do que a uma relação verdadeira com sua não-identidade. Esse acolhimento da diferença do pensado em relação ao pensamento, Durão várias vezes o relaciona à idéia da necessidade de um corte no fluxo discursivo geral, num momento de silêncio da teoria. Uma fórmula resume essa concepção: “em silêncio, dar tempo para as coisas falarem” 28. Não se trata, porém, da busca do místico, que motivou um Wittgenstein, por exemplo. Trata-se de um difícil trabalho do sujeito, de encontrar e valorizar na experiência os “brancos” do discurso e da sobrecarga de sentido. Momentos tais como os sonhos diurnos, as conversas e os devaneios 29 – cujo potencial utópico foi valorizado por Ernst Bloch. Nesses blocos de experiência em que “para além de qualquer intenção individual ou consciência subjetiva” se expressa o anseio pelo inteiramente outro, o sujeito deve tentar encontrar a pulsão que ancore o pensamento, para além de todo sentido socialmente instaurado de felicidade, justiça e liberdade. Espero ter podido indicar, ao cabo, que há uma unidade que atravessa todos esses núcleos temáticos, e que tem a ver com algo extremamente difícil que o autor logra realizar, a meu ver: a articulação de uma tipologia contemporânea das dificuldades de se aceder a uma relação dialética (vale dizer, reflexiva e, ao mesmo tempo, interna, colada aos fenômenos) com o universo hiper-regulamentado da vida contemporânea, nos seus aspectos culturais, cognitivos e sociais. Ao fazer isso, penso que ele contribui para desfazer o equívoco, por um lado, de ver na teoria crítica da sociedade um mero exercício de pessimismo cultural, e, por outro, o engano daquelas “coleiras mentais” que, mais afeitas à administração da produção acadêmica do que à coisa mesma, ao exercício do pensamento, insistem em diferenciar entre autores e temas “sérios” daqueles pretensamente “não-filosóficos”. A estes, e a todos nós, o livro de Fábio Durão faz pensar e dá alento.

Notas

1 WEBER, Max. A ciência como vocação. In: Ciência e política: duas vocações. Trad. de Leonidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 1973, p. 43.

2 DURÃO, Fábio. Rio-Durham (NC)-Berlim: um diário de idéias. Campinas: Publicações IEL/UNICAMP (Coleção Work in progress), 2009, p. 16.

3 Idem, p. 32.

4 Idem, p; 34.

5 Idem, p. 46s.

6 Idem, p. 58s.

7 Durão, op. cit., p. 58.

8 Idem, p. 70.

9 Durão, op. cit., p. 27.

10 Idem, p. 45.

11 Durão, op. cit, p. 65.

12 Idem, p. 56.

13 Idem, p. 39s.

14 Durão, op. cit., p. 31s.

15 Idem, p. 69.

16 Idem, p. 34.

17 Durão, op. cit, p. 76.

18 NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Cf. especialmente o aforismo 1, p. 52s, sobre a valorização do ôntico, e o aforismo 324, p. 215, que fala da vida como experiência de alegria e conhecimento.

19 ADORNO, Theodor W. Minima Moralia: reflexões a partir da vida danificada. Trad. de Luiz Bicca e revisão de Guido de Almeida. São Paulo: Ática, 1992, p. 7.

20 Idem, p. 33.

21 Idem, p.67.

22 Durão, op. cit., p. 33.

23 Idem, p. 42.

24 Idem, p. 44, 74.

25 Idem, p. 76.

26 Idem, p. 47.

27 Idem, p. 54.

28 Idem, p. 65

29 Idem, p. 62

Douglas Garcia Alves Júnior-Professor do Departamento de Filosofia da UFOP.

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O desvendar do grande livro da natureza: um estudo da obra do mineralogista José Vieira Couto, 1798-1805 | Clarete Paranhos da Silva

O livro de Clarete Paranhos dá uma importante contribuição à história das ciências no Brasil. Ele é resultado das investigações realizadas durante o curso de mestrado da autora no Programa de Geociências Aplicadas ao Ensino, no âmbito do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O trabalho apresenta-se estruturado da seguinte forma: uma introdução; três capítulos, cada um deles subdividido, o que torna a leitura mais fácil e agradável; e a parte conclusiva. Logo na introdução, a autora apresenta a sua tese essencial, em consonância com a postura renovada da historiografia das ciências na América Latina, que vê a ciência como uma prática inserida em um tempo e espaço concretos, segundo a qual o mineralogista José Vieira Couto em suas Memórias, resultado das pesquisas na capitania de Minas Gerais, contribuiu para o processo de institucionalização das práticas geocientíficas no contexto colonial, em contraposição à historiografia corrente que afirmava que o Brasil nesse período era um imenso vazio científico. Leia Mais

E. P. Thompson. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos – NEGRO; SILVA (RBH)

NEGRO, A. L.;  SILVA, S. (orgs.) E. P. Thompson. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Editora da Unicamp, 2001. Resenha de: SECRETO, María Verónica. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.23, n.46, 2003.

“Mentes que anseiam por um platonismo asseado logo se tornam impacientes com a história real.”

E.P. Thompson.

Peculiaridades dos ingleses é mais do que uma tradução. Na epígrafe, Christopher Hill diz sobre E. P. Thompson: “sua influência mundial sobre os estudantes de história tem sido incalculável“. Nenhuma frase ilustraria melhor o significado deste livro. Uma versão “doméstica” da Unicamp circulava faz alguns anos por iniciativa dos tradutores, quando realizavam o mestrado em história da Unicamp. Tratava-se de um texto para fins didáticos e de estrita circulação interna. Naquela versão antecipou-se a realização de um artigo de Alexandre Fortes e Antonio Luigi Negro sobre Thompson. Este viu-se concretizado no artigo que integra a parte introdutória da coletânea em questão, sendo intitulado “As peculiaridades de E. P. Thompson,” (e que também traz a autoria de Paulo Fontes). Previa-se a tradução de “Folclore, antropologia e história social,” igualmente incluído junto com “Nota sobre ‘As peculiaridades dos ingleses,'” “A história vista de baixo,” “Modos de dominação e revolução na Inglaterra” e “Algumas observações sobre classe e ‘falsa consciência.'”

O artigo de Sérgio Silva “Thompson, Marx, os marxistas e os outros,” e o de Hobsbawm, “E. P. Thompson” (este último escrito por ocasião de sua morte) complementam essa parte introdutória.

Historiador, socialista, poeta, ativista, orador, escritor, marcado pela sua origem, pela tradição e pelo critério de lealdade, são algumas das adjetivações que Eric Hobsbawm dedica a Thompson.

Entre os adjetivos adjudicados por Hobsbawm talvez tenha esquecido o de empirista. “Peculiaridades de E.P. Thompson” inicia com uma epígrafe do próprio Thompson, fortemente marcado por sua negação das filosofias da história ou das visões teleológicas. Supondo que a história seja um túnel por onde corre um trem expresso rumo a uma planície ensolarada, e no qual vivem gerações de passageiros que nascem e morrem sem ver a luz, o interesse do historiador deverá centrar-se na qualidade de vida, no sofrimento e satisfações daqueles que vivem e morrem nesse tempo não redimido; escreveu…

Poderíamos resumir as peculiaridades inglesas com uma frase do autor: “aconteceu de um jeito na França e de outro na Inglaterra”. A comparação surge no contexto do debate em que é produzido o artigo que denomina a coletânea “As peculiaridades dos ingleses.” Três artigos representantes da nova corrente da New Left Review (dentro da tendência iniciada na década de 1960) são o marco da construção de Thompson: “Origins of the present crisis” de Perry Anderson; “The British political elite” e “The anatomy of the Labour Party,” de Tom Nairn. Quando observada a partir da perspectiva francesa, a história inglesa apresentaria três importantes falhas: 1 – caráter prematuro e incompleto da revolução do século XVII. Conseqüentemente, a burguesia industrial não conseguiu obter a hegemonia mantendo uma relação simbiótica com a aristocracia terra-tenente; 2 – esta revolução do XVII foi impura porque impregnada de questões religiosas. A burguesia satisfez-se com a “ideologia do empirismo,” pela qual o legado intelectual da revolução teria sido quase nulo. Por último, uma revolução burguesa prematura deu lugar a um, outrossim, prematuro movimento da classe trabalhadora. O marxismo chegou tarde para esses trabalhadores, enquanto em Outros Países o marxismo arrebatou a classe trabalhadora.

Para responder a estes argumentos, Thompson entra num tema mais do que clássico: as origens e a natureza do capitalismo inglês.

Analisando essas origens, Anderson e Nairn não podem aceitar a noção de uma classe agrária rentier ou empresarial como uma verdadeira burguesia. Thompson recorre para resolver esta questão ao próprio Marx, que trata largamente do capitalismo agrário e do farmer como um capitalista industrial. O que houve no século XVIII, diz Thompson, foi uma redefinição capitalista do estatuto básico da propriedade, bem como da racionalidade da produção e das relações produtivas. Com um tom irônico, Thompson diz que é impossível compreender as origens do capitalismo inglês se esquadrinhamos as “províncias atrasadas” com olhos parisienses.

Em meados do século XVIII, Thompson localiza um momento chave da transição quando cada vez mais integrantes da gentry deixaram de se ver como beneficiários de rendas e benefícios estáveis, e passaram para um papel mais agressivo em busca de lucro, seguindo a lógica de receitas crescentes. Detalhe relevante, o autor não deixa de reparar que a revogação da economia moral não foi obra da burguesia industrial, mas dos interesses agrários.

Podemos voltar àquela frase “aconteceu de um jeito na França e de outro jeito na Inglaterra” porque Thompson nos lembra que a mistura capitalista-agrária inglesa foi excepcional, e se não há lugar para esta no modelo, o que deve ser mudado é o modelo. Segundo o autor, o que incomoda Anderson e Nairn é a passagem do capitalismo agrário e mercantil do XVIII para o capitalismo industrial do século XIX.

A Revolução Francesa não foi típica. Thompson se opõe ao modelo que concentra a atenção sobre um episódio dramático, “A” revolução, que se constitui em tipo ideal.

CIÊNCIAS NATURAIS, ECONOMIA POLÍTICA E LINGUAGEM EMPÍRICA

Como tínhamos adiantado, uma das caracerísticas da via inglesa, segundo Anderson e Nairn, foi o “empirismo cego”. A burguesia inglesa não teria transmitido impulsos de libertação à classe trabalhadora, nem valores revolucionários, só teria transmitido germes mortais do utilitarismo.

Conseqüência do que “realmente aconteceu” — o diferencial thompsoniano — a Revolução Inglesa foi disputada em termos religiosos porque a religião importava. Anderson e Nairn, diz Thompson, prefeririam que a Revolução tivesse ocorrido não em torno da religião, mas contra qualquer religião, desprezando o fato de que o protestantismo permitiu a expansão do racionalismo. Outro fato: não existia um enclave intelectual independente, mas uma multiplicação de enclaves intelectuais. Na Inglaterra de final do século XVIII e no XIX havia uma forte tradição de dissidência. Esta tradição não seria capaz de gerar um Marx, mas sem ela Marx não teria escrito O Capital. Esta tradição ainda foi capaz de gerar um Darwin. Podemos lembrar que quando o capitão Fitz Roy contatou Darwin para o acompanhar na expedição científica, o fez com o intuito de que o jovem cientista demonstrasse a existência do dilúvio e sua universalidade. As provas lhe ditaram o contrário. Darwin é, segundo Thompson, o resultado de três séculos de cientistas naturais britânicos e, em questão de décadas, foram postos à disposição do público conhecimentos que até então estiveram vedados. O conhecimento que “deveria” ter sido arrancado das mãos do padres e os enunciados de Darwin “deveriam” ter gerado uma grande crise, mas não aconteceu assim, entre outras coisas porque Darwin lançou sua teoria da evolução ante um público protestante e pós-baconiano.

Outras duas heranças ideológicas da revolução são salientadas por Thompson para contrapor àquela do utilitarismo denunciado por Nairn e Anderson: a tradição democrático-burguesa e a economia político-capitalista, esta última decorrente das limitações que a teoria mercantilista impunha a agricultores e manufatureiros. “Bacon expeliu Deus das Ciências Naturais. Adam Smith expeliu-O da teoria econômica.”(127) Foi esta contribuição que fez com que a burguesia industrial não se interessasse por teoria política: esta não importava. Thompson pergunta-se: Como ignorar este dado quando Marx dedicou a obra de sua vida para derrubar essa teoria de Smith?

Por todos os argumentos anteriores, Thompson nega a existência de uma ideologia empírica, embora não negue a importância do idioma empírico que tem sustentado o realismo do romance inglês e tem servido às Ciências Naturais.

MODELOS, METÁFORA E MOVIMENTO ECONÔMICO

Sobre os modelos como metáfora do processo histórico, diz que a história não se torna história até que não haja um modelo, já que “tudo o que aconteceu” não pode ser apreendido. Porém o modelo não deve condicionar a seleção das evidências. O problema para Thompson não está em adotar um modelo, mas na metáfora escolhida pelo marxismo para exprimir a relação entre ser social e consciência social: a metáfora base—superestrutura leva ao esquematismo e ao reducionismo. O desafio é encontrar um modelo que abarque a dialética humana, no qual a história não apareça de maneira voluntariosa nem fortuita, nem determinada.

Apresenta-se o problema de como entender o movimento econômico. Evidentemente que descarta a possibilidade de causação última. Thompson re-significa o termo econômico, afastando-o da representação usual, mas não a única, de econômico como forças produtivas e relações produtivas e indica o caminho hoje percorrido por sociólogos e antropólogos de entrelaçamentos das relações econômicas e não-econômicas das sociedades; pelo que é perigoso pensarmos num movimento econômico como oposto a um movimento cultural e moral. Caracterizando William Morris como exemplo, quando este escreveu sobre a “baixeza moral inata” do sistema capitalista o fez pensando no capitalismo como relações fundadas em formas de exploração que eram simultaneamente econômicas, morais e culturais. Por um momento se permite pensar que “base” não seja uma metáfora inadequada, mas, ainda assim, teríamos que entendê-la como não apenas econômica; mas cultural, historicamente constituída (embora este fato possa ser descrito em linhas gerais como econômico).

Composta com “os outros artigos”, a segunda parte da coletânea apresenta:

1) “A história Vista de Baixo”: trata-se de um estado da questão sobre a história social britânica; sempre nos termos das “peculiaridades do arquipélago”, diferente dos países com tradições revolucionárias ou populistas (nos quais a retórica da democracia teria saturado suas historiografias).

2) “Modos de dominação e revoluções na Inglaterra.” Novamente o termo de comparação é a França. Trata-se de uma crítica ao modelo de evolução histórica cujo motor é constituído por rupturas ou crises, partindo da idéia de que n’O Capital Marx se baseou no caso da Revolução Industrial inglesa, mas nos aspectos políticos guiou-se pela experiência francesa. Este último modelo apresenta uma série de crises com modelo de imposição hegemônica, enquanto o modelo inglês é de dominação contínua de uma burguesia fundiária.

3) “Folclore, Antropologia e História Social.” Das mais esperadas traduções, neste artigo Thompson apresenta algumas questões da relação da história com a antropologia e o folclore, questões levantadas a partir de sua experiência de pesquisa. Afirma ter sido levado a um diálogo com a antropologia, não nos termos de construção de modelos, mas na identificação de problemas. A busca de fontes sobre costumes levou-o a se aproximar dos folcloristas. Discorre sobre noções e conceitos como rituais, normas, teatro, tabus, terror, mediações sociais.
Volta a tratar da inadequação da metáfora base—superestrutura, sem questionar a centralidade do modo de produção, mas sim a idéia de descrever um modo de produção em termos unicamente econômicos sem considerar as normas, a cultura e os conceitos sobre os que se organiza um modo de produção.

4) “Algumas observações sobre classe e ‘falsa consciência.'” Este derradeiro texto aborda o tema de forma sintética através de oito pontos: 1-a necessidade de considerar classe como categoria histórica; 2-a constatação de que uma grande parte do discurso sobre a classe ocorre no nível teórico; 3-em muitas abordagens predomina a visão estática de classe; 4-classe é uma categoria histórica ainda para o próprio Marx d’O capital; 5-recuperar a classe como categoria histórica permitirá aos historiadores realizar observações empíricas além de utilizá-la como categoria heurística; 6-heuristicamente classe é inseparável de “luta de classes”. Este último conceito é prioritário, já que traz embutida a idéia de processo, é um conceito histórico que indica movimento. “Classe e consciência de classe são sempre o último e não o primeiro degrau de um processo histórico real;” 7-a classe configura-se segundo o modo em que os homens vivem as relações de produção, segundo suas experiências no conjunto das relações sociais; 8-sobre a “falsa consciência”, é uma construção absurda dos partidários das elites. A consciência designa uma cultura global desprendida da formação da classe, que não pode ser nem verdadeira nem falsa.

A publicação brasileira de “As peculiaridades dos ingleses e outros artigos” responde a uma necessidade acadêmica e política, duas instâncias que não se separam. Compõem esta coletânea textos de grande densidade conceitual que nos alertam sobre os perigos das simplificações. A mais atacada delas: a metáfora base—superestrutura. Mas outra leitura também é possível, sobretudo sabendo do convencimento que a respeito desta última afirmação têm os leitores thompsonianos: a economia não pode ser abolida. Ela está presente em todas as construções e explicações dos artigos, na forma de economia cultural e socialmente construída.

Em 1933, por motivos semelhantes aos de Thompson, Caio Prado tentava explicar a evolução política do Brasil e escrevia sobre o instante do nascimento da nação brasileira:

Erradamente entenderam alguns, que nossas condições fossem idênticas ou mesmo semelhantes às daquelas nações. Basta lembrar que as idéias do sistema político adotado por nossos legisladores constitucionais exprimem na Europa as reivindicações do Terceiro Estado, especialmente da burguesia comercial e industrial, contra a nobreza feudal, a classe dos proprietários. Até certo ponto, é o contrário que se dá no Brasil. São aqui os proprietários rurais que as adotam contra a burguesia mercantil daqui ou do reino.1

Talvez seja esta uma “peculiaridade brasileira” bem próxima da inglesa, no que diz respeito às origens agrárias do capitalismo, e que evidentemente tampouco se “encaixa” no modelo francês.

Aconteceu de um jeito na Inglaterra e de outro no Brasil. Na ilha, disseram Anderson e Nairn, um capitalismo prematuro deu origem a uma burguesia apática æ serva da arcaica tradição aristocrática æ, e a burguesia então deu origem a um proletariado subordinado, sem vocação hegemônica. No Brasil, se diz que um tardio capitalismo se viu construído por um Estado forte, que tomou o lugar da burguesia, porque que esta “falhou” em ser revolucionária. Como resultado, predominou a arcaica tradição oligárquica e o Estado subjugou a classe trabalhadora. Se a mistura capitalista-agrária brasileira não foi única, mas certamente excepcional, e se não há lugar para ela no modelo, o que deve ser mudado é o modelo.

Nota

1 PRADO, Caio, Evolução política do Brasil: Colônia e Império. São Paulo: Editorial Brasiliense, 1999, p. 54.

María Verónica Secreto – Departamento de História-UFC.

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Natureza em Boiões: medicinas e boticários no Brasil setecentista | Vera Regina Beltrão Marques

O universo dos saberes e das práticas medicinais no período colonial vem sendo tema de importantes trabalhos. Somando-se à recente pesquisa de Márcia Moisés Ribeiro – que resultou no livro A ciência dos trópicos: a arte médica no Brasil do século XVIII –, Natureza em Boiões: medicinas e boticários no Brasil setecentista, de Vera Regina Beltrão Marques, oferece-nos uma contribuição original ao estudo do problema.

Natureza em Boiões apresenta uma questão fundamental: a diversidade das raízes culturais das populações aqui residentes, mais do que a falta de médicos, teria sido crucial para a persistência de práticas de curas plurais nos trópicos. Em última instância, parte dos medicamentos receitados pelos doutos coimbrãos seria constituída por fórmulas resultantes da aproximação das culturas presentes no Brasil. Mesmo vulgarizados, muitos desses saberes provinham da intuição e do uso secular daqueles curandeiros e pajés conhecedores das matas, em caminhos nunca dantes palmilhados pelos colonizadores. Saberes muitas vezes relegados no plano do discurso por parte dos colonizadores, na prática, teriam sido fundamentais para a constituição da ciência farmacêutica moderna do Ocidente. Leia Mais

Em defesa da honra: moralidade/ modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940) | Sueann Caulfield

Os leitores que já conheciam os artigos de Sueann Caulfield editados no Brasil certamente aguardavam com ansiedade a publicação completa do seu estudo, elaborado originalmente como uma tese de doutorado na New York University. No livro Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940), mais uma vez temos a expressão da sensibilidade da autora — que em antropologia poderíamos arriscar chamar de etnográfica — para tratar de temas como a honra e também de sua grande capacidade de articular inúmeras fontes e referências bibliográficas. Vale mencionar que o tipo de abordagem empreendido aproxima esse estudo de uma série de outros que nos últimos anos têm se caracterizado por privilegiar uma relação profícua entre história e antropologia. A natureza das questões propostas e a perspicácia na análise dos dados tornam a leitura do livro obrigatória não apenas para aqueles que se interessam pela história a partir da perspectiva das relações de gênero, mas para todos que querem compreender com mais profundidade o Brasil da primeira metade do século XX.

O estudo trata da honra sexual a partir do grande interesse que esse tema provocava na primeira metade do século XX no Brasil. Esse interesse aparecia expresso em diversos debates públicos e também, de uma forma mais particular, nas queixas que chegavam ao sistema jurídico-policial envolvendo vários tipos de delitos que contrariavam a moral sexual vigente. Para se ter uma idéia da magnitude do fenômeno, Caulfield revela que durante as décadas de 1920 e 1930, anualmente, cerca de quinhentas famílias procuravam a polícia da cidade do Rio de Janeiro para denunciar o defloramento de suas filhas e tentar algum tipo de reparação do mal. Os casos, sobretudo aqueles mais violentos, atraíam a atenção não apenas dos juristas, policiais, advogados, mas também da opinião pública em geral. E, se a importância da honra sexual parecia inquestionável, as concepções sobre o que ela de fato representava variavam bastante. Leia Mais

The Paraguayan War (1864-1870) | Leslie Bethell || História do Cone Sul | Amado Luiz Cervo e Mário Raport || A guerra contra o Paraguai | Júlio J. Chiavenato || A espada de Dâmocles: O exército/ a guerra do Paraguai e a crise do Império | Wilma Peres Costa || A Guerra do Paraguai | Francisco Doratioto || Guerra do Paraguai: como construímos o conflito | Alfredo da Mota Menezes

Até onde as relações entre os Estados processam-se em virtude do confronto dos interesses independentes de cada um deles? Em que medida a História de um povo ou de um conflito pode ser pensada como um contexto autônomo frente ao contato com outras nações? As respostas para estas perguntas são múltiplas, mas, divergentes ou não, há algo que as torna semelhantes: a cada forma de contar a História das relações internacionais corresponde um projeto – pessoal ou mais comumente coletivo –, de manter ou de transformar a situação atual da convivência entre os povos. Em outras palavras, o conhecimento produzido sobre o mundo não costuma estar desvinculado de um conjunto específico de interesses.

O tema da Guerra do Paraguai é perfeito para explicitar essas questões. Realmente, diversas pesquisas têm sido realizadas recentemente sobre o assunto e isso não é por acaso, já que aquele conflito representa um divisor de águas na história do Cone Sul. Numa época em que a globalização e o Mercosul dão o tom dos debates políticos e acadêmicos envolvendo o relacionamento dos países sul-americanos, discutir as origens da guerra e o real peso de influências externas ao sub-continente nas mesmas torna-se um exercício fundamental. Leia Mais

Terras devolutas e latifúndio | Lígia Osório Silva

Resenhista

Barsanufo Gomides Borges – Professor Titular do Departamento de História da Universidade Federal de Goiás.

Referências desta Resenha

SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996. Resenha de: BORGES, Barsanufo Gomides. História Revista. Goiânia, v.2, n.2, p.177-182, jul./dez.1997. Acesso apenas pelo link original [DR]

Antiguidade Clássica: a história e a cultura a partir dos documentos – FUNARI (HE)

FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Antiguidade Clássica: a história e a cultura a partir dos documentos. Campinas: Edunicamp, 1995. 150p. Resenha de: CAINELLI, Marlene Rosa. História & Ensino, Londrina, n. 2: 139-140, 1996.

O Prof. Pedro Paulo Abreu Funari enuncia que o livro Antiguidade clássica; a história e a cultura a partir dos documentos é indicado para alunos de graduação e também para professores de 1 ° e 2° graus, assim como o público em geral.

No 1° capítulo Funari analisa a utilização de documentos por historiadores, desde os documentos tradicionais até o uso da “narrativa para compreensão do discurso histórico”. A especificidade do estudo da antigüidade clássica, a diversidade dos documentos e uma discussão sobre periodização são temas abordados pelo autor no segundo capítulo.

O autor apresenta documentos textuais, materiais, epigráficos e arqueológicos, utilizando-se de diversas abordagens: “textos filosóficos, poesias, documentos oficiais, leis.” Vários documentos são traduzidos pelo autor, portanto inéditos em língua portuguesa.Os documentos aparecem no texto divididos em temáticas: memória, práticas, sentimentos, reflexões, expressões, poderes, espaços e experimentos. É importante destacar que as divisões temáticas utilizadas pelo autor são originais fugindo a forma tradicional de apresentação usadas na maioria dos livros didáticos, paradidáticos e coleção de documentos existentes no mercado.

Os documentos são comentados pelo autor que elucida uma série de relações desconhecidas pelo leitor, facilitando assim o entendimento do texto, que sem as explicações do autor, ficaria prejudicado. Além dos comentários Pedro Paulo Abreu Funari preocupa-se em indicar atividades para o trabalho com os documentos, dividindo as tarefas em atividades encaminhadas e propostas.

Nas atividades propostas o autor sugere de maneira exaustiva que o leitor reflita sobre diversos temas e também remeta-se para outras bibliografias que auxiliem o entendimento dos documentos.

É certo que Antigüidade clássica… é indicado para alunos de graduação, porém para professores de 10 e 2° graus, o texto mostra-se dificil. O ensino de história antiga nas escolas, talvez seja o mais sofrivel no que tange aos conteúdos trabalhados. As dificuldades apresentadas pelos professores impede-os, por exemplo, de seguir sugestões de atividades sugeridas pelo autor como a atividade proposta na pág. 36: “elencar as principais coleções bilingües (originais grego ou latino e tradução para o idioma moderno) e observar o papel do aparato critico nestas séries.”

Como em outros livros didáticos ou paradidáticos indicados para professores de 10 e 2° graus, o autor elabora questões e as responde, talvez com medo que o leitor não consiga responde-Ias de acordo com as suas expectativas.

Um problema apresentado pelo texto que dificulta a leitura e o possível uso do livro por professores de 10 e graus é que os documentos aparecem no texto divididos por temas sem uma ordem cronológica que facilite a procura por determinado documento para uso em sala de aula, de acordo com o periodo estudado.

O livro tem a qualidade de apresentar para o leitor uma série de documentos inéditos, interessantes e instigantes, mas demonstra o quanto é necessário entender do periodo, das discussões bibliográficas para compreender o texto, demonstra também o que todos sabemos, o documento preCisa de um leitor atento e instruído, não é dado a ele o poder da fala.

Marlene Rosa Cainelli – Professora do Departamento de História -Universidade Estadual de Londrina -Londrina-PR.

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Antiguidade Clássica. A história e a cultura a partir dos documentos | Pedro Paulo A. Funari

FUNARI, Pedro Paulo A. Antiguidade Clássica. A história e a cultura a partir dos documentos. Campinas: Editora da UNICAMP, 1995. Resenha de: MARTIN, Gabriela. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.16, n.1, p. 175-176, jan./dez. 1996.

Acesso apenas pelo link original [DR]

A medicalização da raça: médicos, educadores e discurso eugênico | Vera Regina Beltrão Marques || Higiene mental e eugenia: o projeto de “regeneração nacional” da Liga Brasileira de Higiene Mental (1920-30) | José Roberto Franco Reis

Quando Foucault organiza seu quadro conceituai, ele tem em mente uma dimensão analítica do objeto a ser estudado. O que lhe interessa é saber de que maneira engendraram-se os dispositivos e as disciplinas. Para atingir este objetivo, ele recorre sistematicamente à arqueologia — dos saberes, dos poderes, dos prazeres —, buscando identificar, nos discursos, as táticas e estratégias desenvolvidas ao longo de diferentes processos históricos.

Como método historiográfico, Foucault utiliza-se dos discursos produzidos durante o período estudado, privilegiando os discursos científicos e tomando-os como o principal lugar de articulação dos dispositivos e das disciplinas. Leia Mais