O dia em que Charles Bossangwa chegou à América | João Melo

Lançado em fevereiro de 2020, em Lisboa, O dia em que Charles Bossangwa chegou à América é o sétimo livro de contos de João Melo. Logo ao abrirmos essa edição, a lista de títulos registrados na página 3 leva- -nos, sem dúvida, à presença de um autor experiente: são doze volumes de poemas e sete de contos, ou seja, dezenove livros e 35 anos de envolvimento direto com a escrita literária. Com mais atenção, podemos também perceber, ao lado do empenho, uma certa contenção expressa na distância temporal entre as edições, fato que nos sugere um perfil cuidadoso, resistente às pressões do mercado, que tantas vezes quer fazer da literatura um produto como outro qualquer. No ritmo adotado por João Melo parece se projetar a morosidade afeita a uma concepção de escrita que recusa o pacto com a voracidade do presente que nos cerca.

Como um volume de contos, O dia em que Charles Bossangwa chegou à América está, obviamente, dispensado da unidade e o autor circula por temas variados, em textos que, mais uma vez, nos trazem a temperatura de uma Angola em movimento. Tal diversidade, todavia, reveste-se de uma boa dose de coerência que lhe confere o exercício de uma linguagem temperada pela ironia, cultivada com insistência pelo autor e por muitos de seus pares angolanos. O humor, identificado com um modo de estar de quem respira os ares da periferia, traduz um certo à vontade na tarefa, sinal também do desejo de se contrapor a “tempos ambíguos em que pequenos gestos e autopermissões são raivosamente criminalizados”, expressão utilizada pelo narrador para atacar o que ele chama de “atuais inquisições politicamente corretas que nos vigiam a partir de todas as perspectivas, sejam elas pós-modernas, pós-coloniais, pós-socialistas, pós-humanistas ou pós-qualquer-outra-porra” (pp. 20-21). A forma desabrida com que os contos tentam desnudar e até corroer certas dominantes da nossa contemporaneidade diz-nos da ousadia de quem não teme polêmicas, optando às vezes por ir atrás delas.

As seis primeiras narrativas ressaltam o cotidiano de uma sociedade que, no confronto com as imposições da vida diária, vai encontrando maneiras de encarar a precariedade e outros perigos como os que vêm dos podres poderes que definem as regras de cada jogo. Essa capacidade de não sucumbir é característica de personagens como a dona Filismina, que em “O perigo amarelo” cumpre a sua saga e, em sua luta, leva o narrador a dobrar-se à energia de quem ali está e precisa se desenrascar. Impondo-se ao movimento das narrativas, o humor não quer suavizar os embates. A ele mistura-se uma certa impiedade que está nos olhos que observam o mundo à volta e, sobretudo, se faz presente no constante exercício de contemplar o terreno da literatura – na realidade um dos elementos mobilizadores do projeto de João Melo. Assim, em muitos momentos, percebemos uma espécie de acerto de contas com o mundo da escrita, que ele procura atingir por vários lados. Com a autonomia de quem tem direito à voz, o narrador investe na demarcação de práticas adotadas por outros companheiros de profissão e assinala:

Sim, por uma questão de benchmarking literário, eu deveria suprimir este ponto de exclamação, como o faria qualquer um dos frios, translúcidos e andróginos escritores atuais, que escrevem sobre realidades vagas e inidentificáveis e inventam personagens insossas, aparentemente para todos os gostos, tipo pronto-a-vestir […] (p. 62)

O confronto não se esgota na acidez que dirige a supostos colegas. Ainda que em tom mais irônico, o narrador volta-se, sem cerimônia, para críticos e professores colocando também em causa a autoridade que, não raro, é por eles assumida. O cultivo de uma certa insolência em quase todos os contos vai além do chiste e se faz traço de um comportamento que acaba por chamar a atenção para problemas que são determinados pela experiência interna, isto é, por quem parece condenado a ser visto como o “outro”, situação com fortes reflexos nas questões que envolvem o tratamento dado à língua portuguesa. Distanciando-se da obediência às normas lusitanas, as narrativas ilustram a diferença entre língua e expressão, fazendo-nos pensar mesmo na dificuldade que alguns dos primeiros estudiosos das literaturas africanas sentiam em admitir a independência dos processos literários. A acreditarmos no narrador de “O perigo amarelo” (p. 56), tal resistência terá deixado herança e é preciso remarcá-la: “Por essas e outras é que uma reputada (sem trocadilhos) professora portuguesa acusou os escritores angolanos de não saberem escrever. Ainda bem que não sou escritor” (p. 56).

Na interlocução, muitas vezes bastante direta, com o leitor, seja ele especializado ou não, projeta-se também uma das ideias mais insinuantes na coletânea: a relação dialética entre a asfixia do real e a teimosia da arte que coloca o escritor em confronto com uma realidade cada vez mais hostil à capacidade de imaginar exigida pela literatura. E tal embate não se restringe a Angola, onde as dificuldades da vida diária parecem mais incisivas do que em outros países. Ultrapassando as fronteiras, há uma abertura para a aspereza que tem tomado conta do planeta, assolando outras terras, impondo limitações às diferentes formas de mediação que nos facultam o direito ao sonho. Na posição de defesa em que se coloca o autor, procurando resguardar a autonomia literária que vê ameaçada, a decisão de criar parece impositiva. É o próprio narrador que, em “O angolano que não gostava do verbo malhar”, alerta-nos para alguns dos dilemas a enfrentar:

Ser escritor em tempos assim, quando os campos se misturam de tal maneira que se torna árduo identificá-los, implica estar à mercê de flechas envenenadas provenientes de todas as direções. Acontece que é precisamente nesses tempos que urge fazer da literatura uma espécie de tambor. (p. 108)

A imagem do tambor, bastante significativa no universo cultural africano e muito presente no contexto literário, desdobra-se nos contos, como uma resposta ao veneno desse presente inibidor. Na evocação de uma referência cultural africana, que figurou tão fortemente no paradigmático poema do moçambicano José Craveirinha, pode-se depreender um aceno à tradição que, todavia, marca distância do culto aos essencialismos que por vezes rondam a compreensão do continente, sequestrando a sua capacidade de movimento. Conjugando a reiteração com a renovação de algumas matrizes, a opção de João Melo é dinamizar o diálogo entre a tradição e a modernidade, seguindo a linha de seus melhores companheiros de estrada. Nota-se essa proposta de inserir-se e avançar, por exemplo, no tratamento dado à cidade de Luanda, aqui presente e renovada.

Central na história da literatura angolana, a cidade que deu nome a um de seus maiores escritores, com tudo o que isso implica, afirma-se, de fato, mais que um cenário, constituindo-se como uma energia geradora de sentidos, a partir da qual se define uma linhagem a que, além do emblemático Luandino Vieira, estão filiados António Cardoso, Arnaldo Santos, o benguelense Pepetela e Manuel Rui, o capitão-mor do Huambo. Desse grupo, a que mais tarde integrou-se Ondjaki, João Melo faz parte e, depois da Luanda, marginalizada e subversiva de Luandino, Antonio Cardoso e Arnaldo Santos, da Luanda desconfiada e reapropriada de O cão e os calus e Quem me dera ser onda, encontramos a cidade inquieta e maliciosa que se indicia nos passos de suas personagens. Caluanda por natureza e definição, ele se inscreve como um cantor desse reino e tem, desde Imitação de Sartre e Simone de Beauvoir, o primeiro livro de contos, nos oferecido imagens de uma cidade em constante ebulição, com novas configurações em narrativas que naturalizam o que surpreende, e muito, quem habita outras paragens…

Nas seis das sete estórias que compõem o livro, percebemos um mapa que se abre e, sem deixar de envolver os musseques – território por excelência da literatura anticolonial –, contempla os novos espaços do poder e aqueles que lhe estão próximos, destacando uma certa promiscuidade que coloca governo, oposição e “independentes” em situação de vizinhança, como vemos no primeiro conto, cujo título, “O país está desgovernado”, funciona como uma espécie de senha não só para o casal que está no centro da trama. O suposto desgoverno do país coloca o leitor em estado de alerta para o que as outras estórias vão trazer, apontando na verdade para o desgoverno do mundo. O que se passa nessa Luanda buliçosa, povoada por angolanos de diferentes estratos sociais, não deixa de refletir a ordem/desordem das cidades que se espalham pelo planeta, acenando para a ruptura do tecido da exotização que cerca o continente africano. Em vários momentos, podemos perceber o autor a nos lembrar que, tanto quanto um pedaço de Angola, Luanda é uma cidade do mundo; nela transcorrem fatos que, embora com diferentes formatos, podem ocorrer em muitas sociedades em que as diferenças sociais, a precariedade das relações humanas, o oportunismo e os interesses mesquinhos estejam na ordem do dia. E, em níveis diferentes, assim são quase todas, vale recordar.

A tentativa de escapar à capa exotizante que, via de regra, se cola ao continente africano, com repercussão na sua literatura, pode ser percebida na construção do ponto de vista narrativo. Relativizando tanto quanto possível o lugar do narrador, temos um jogo que insiste em roubar ao leitor a possibilidade de evasão que um texto bem-comportado poderia assegurar. Aliás, bom comportamento é o que raramente encontramos nessas estórias em que os procedimentos regulares parecem banidos do itinerário das personagens, mas principalmente da atitude do narrador diante do que vê e converte em linguagem.

Muito embora coloque em dúvida sua onisciência, o narrador desses contos investe-se de um poder maior, que lhe garante o direito de entrar e quase sair do que narra, demonstrando o seu domínio não só sobre o espaço como também sobre o tempo. E temos aqui uma instigante particularidade, pois sem deixar de especular um lugar, os contos em seu conjunto ultrapassam previsíveis fronteiras e desembarcam no território do presente, situando-se com sutileza no tempo que faz de Angola um bairro do mundo. Como referimos acima, o que acontece em Angola, com o mundo que está ali representado, se integra (ou desintegra) em uma ordem maior. Esse gesto faz estremecer a noção de gueto que contagia o olhar sobre o continente africano e coloca em causa o selo de universalidade que o Ocidente costuma ostentar como um privilégio seu. Somos, assim, alertados para a própria ideia do ocidente como apenas um bairro do planeta, como defende o camaronês Achille Mbembe.

O narrador intrometido, se por um lado assume-se como contador de histórias, sugerindo as matrizes da oralidade do patrimônio cultural africano, por outro lado, impede com o seu comportamento o jogo ilusionista que a atmosfera associada ao contador tradicional evoca. Os sucessivos cortes, as interrupções irreverentes, a indelicadeza de certos comentários colocam-nos de frente para uma espécie de volubilidade que, não sendo de classe, como apontou Roberto Schwarz nos narradores machadianos, parece-nos reflexo do caráter rugoso, ríspido do nosso tempo. Ferido o senso de totalidade que vicejava na ambiência tradicional, fica uma certa rudeza que frequentemente recorre à ironia, mas outras vezes não camufla uma grande dose de impaciência diante do que vê como incoerências de sociedades que se mostram mais empenhadas na luta contra o acessório, permanecendo, porém, cegas a questões vitais para a sobrevivência de nossa humanidade.

No último conto, o que dá título ao livro, contudo, o tom se transforma. A trama, situada na África, mas evidentemente fora de Angola, traz-nos a saga que integra os noticiários de todo dia. O sonho de uma vida possível para Charlie Bossangwa confunde-se com a sua instalação na América e o percurso tem que ser aquele que, tentado por tantos africanos, resulta em fracasso, em uma rota que envolve sacrifício, violência, humilhação e compõe o cardápio comum da imigração ilegal. Ou ilegal seria o código que impõe deveres e rouba direitos? Construindo-se aos poucos, o sentimento de derrota atinge o texto e o narrador, despido da petulância exercitada nas outras narrativas, orienta-se aqui por um olhar sinceramente devotado em compreender cada etapa desse inaceitável roteiro. Do “desconhecido musseque de uma remota cidade africana, indigna, talvez, de qualquer menção literária” (p. 123) até o aeroporto JFK, em Nova York, estende-se uma imprevisível rota a demonstrar que o deserto a ser cruzado vai além daquela paisagem entre o Niger e a Líbia. Mesmo se com alguma parcimônia, ali o narrador aproxima-se dos personagens. Num conto que não incorpora nenhum diálogo, sem voz no texto – como na vida que lhes coube viver – Charles e Ayana chegam a ter o seu encontro tocado por algum lirismo. Na descrição da mulher, o esmero na composição das imagens procura dar ao leitor a dimensão do impacto que sua figura teria causado no futuro parceiro. Nenhuma provocação se apresenta. Ao contrário, sente-se uma empatia que tem sua melhor expressão na sutil referência a Fanon: “Os condenados da Terra já nascem negociadores, pois disso depende a sua sobrevivência, mas a verdade é que desconhecem a palavra drama” (p, 130).

Ao tratar dessas existências que são “uma tragédia permanente” (p.130), o conto também nos traz indicações que costumam ser apagadas pelo discurso dominante, revelando-nos, por exemplo, a força do movimento migratório no próprio continente. Nenhum continente foi e é tão atravessado por migrações internas e por invasões externas, pois ali, à insídia da escravatura, segue-se a fuga de tantas outras mazelas. Nessas páginas, sem fantasia, temos o registro das arbitrariedades que superam as diferenças raciais, étnicas e/ou nacionais, colocando no centro o problema da exclusão de caráter socioeconômico que reifica as pessoas e desumaniza as relações sociais. Desmesurada, a violência percorre a vida dessa gente e, diante dela, o narrador recolhe a sua virulência, acompanhando de perto um itinerário trágico até mesmo na sua previsibilidade. Os parágrafos longos que caracterizam esse conto, ao final convertem-se em curtíssimos, em frases breves que dão conta do que podemos adivinhar e, portanto, dispensam maiores dados ou observações. Charles Bossangwa chega ao final de sua saga na solidão em que a viveu. “Ele e Ayana”. Apenas. Como está registrado na página 142.

O projeto que o livro de João Melo procura materializar é denso e necessário. No mergulho que propõe em águas pouco serenas, o autor faz emergir um mundo no qual se mesclam os pequenos e os grandes delitos de personagens que nos conduzem pelo dia a dia de uma cidade que é também a metonímia de uma nação. Nesse universo em que se delineiam os roteiros do arrivismo político e desenham-se os abismos de uma ordem social pautada pelas várias formas de corrupção, a confusão entre o público e o privado, derivando ou não da desigualdade, não cessa de alimentá-la. Retratando-a e refratando-a ao mesmo tempo, a insolência desse narrador, interveniente e irrequieto, nos impede de repousar na serenidade de uma África envolta nas sombras da nostalgia. Utilizando o conto, essa modalidade literária que nas palavras de Cortázar deve pescar “momentos singulares”, o autor escolhe uma dimensão mais alargada para reafirmar seu propósito de fazer da escrita um lugar de inquietação, potenciando um exercício de reflexão sobre o tempo que lhe coube viver, dentro e fora do espaço a que nunca renuncia. Na agudeza de suas provocações, a obra veta ao leitor o refúgio de uma leitura plácida e o coloca diante dos desafios de uma proposta literária que também o convoca a avaliar o alcance de suas próprias estratégias.


Resenhista

Rita Chaves – Universidade de São Paulo. https://orcid.org/0000-0002-1584-8659


Referências desta Resenha

MELO, João. O dia em que Charles Bossangwa chegou à América. Lisboa: Caminho; Leya, 2020. Resenha de: CHAVES, Rita. As flechas envenenadas do presente e os tambores de João Melo. Afro-Ásia, n. 64, p. 726-733, 2021. Acessar publicação original [DR/JF]

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