Mulheres empilhadas | Patrícia Melo

Patricia Melo Imagem Agenda BH
Patrícia Melo | Imagem: Agenda BH

A imaginação como dinamismo criador é a rejeição da tirania da forma fixa que parece se oferecer à percepção. As imagens dinâmicas não só formam, mas, sobretudo, deformam, transformam, ampliam e aprofundam a chamada realidade. É a imaginação, poder maior da natureza humana, que não só inventa coisas, mas, principalmente, inventa caminhos novos.

(Norma Telles, 2010, p. 2) Há exatamente 15 anos, no mês de agosto de 2006, foi sancionada a lei responsável por prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher no Brasil. Fruto da luta contra as violências experienciadas por mulheres e com o apoio de órgãos internacionais, o gênero foi reconhecido como um marcador fundamental de opressões sistematizadas e invisibilizadas pelo Estado, que se ausentava diante da necessidade de medidas legais, ações efetivas e reconhecimento dos agressores.1 A resistência se deu através de vozes e atuações femininas que, organizadas em coletivos feministas, centros de advocacia e assessoria jurídica, possibilitaram a aprovação da lei e continuam zelando por ela. Inspirado nesse contexto real, o romance ficcional Mulheres Empilhadas da premiada autora brasileira Patrícia Melo, nasce em 2019 como um alerta da importância de estarmos atentas ao crime que continua nos tirando a vida. Leia Mais

O pacto entre Hollywood e o nazismo: como o cinema americano colaborou com a Alemanha de Hitler | Ben Urwand

É bem conhecida a produção de filmes antinazistas pelos estúdios de Hollywood no período da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Marc Ferro identifica que enquanto no cinema da França ainda não havia um inimigo definido, se era o nazismo ou o comunismo, nos Estados Unidos a escolha já havia sido feita pelo combate ao nazismo antes mesmo de 1939, sendo este fenômeno mais claro no cinema do que no mundo da palavra escrita, no jornalismo ou na pesquisa.1 Assim, construiu-se uma memória da “resistência” do cinema norte-americano contra o totalitarismo, amplamente aceita e difundida ao longo do tempo.

Indo em uma direção contrária, o livro O pacto entre Hollywood e o nazismo: como o cinema americano colaborou com a Alemanha de Hitler, de Ben Urwand, originalmente de 2013, procura desmistificar a memória da “resistência” de Hollywood na chamada “Era de Ouro” do cinema, contra o nazismo. Urwand é doutor em História dos Estados Unidos pela Universidade da Califórnia, mestre em Cinema e Estudos de Comunicação pela Universidade de Chicago e junior fellow2 da Society of Fellows, da Universidade de Harvard. A ideia para o livro foi a partir de um comentário do roteirista e romancista Budd Schulberg sobre Louis B. Mayer, o chefe da MGM, de que este, na década de 1930, projetava filmes para o cônsul alemão em Los Angeles e cortava tudo aquilo que o cônsul objetasse. (p. 14). Leia Mais

O dia em que Charles Bossangwa chegou à América | João Melo

Lançado em fevereiro de 2020, em Lisboa, O dia em que Charles Bossangwa chegou à América é o sétimo livro de contos de João Melo. Logo ao abrirmos essa edição, a lista de títulos registrados na página 3 leva- -nos, sem dúvida, à presença de um autor experiente: são doze volumes de poemas e sete de contos, ou seja, dezenove livros e 35 anos de envolvimento direto com a escrita literária. Com mais atenção, podemos também perceber, ao lado do empenho, uma certa contenção expressa na distância temporal entre as edições, fato que nos sugere um perfil cuidadoso, resistente às pressões do mercado, que tantas vezes quer fazer da literatura um produto como outro qualquer. No ritmo adotado por João Melo parece se projetar a morosidade afeita a uma concepção de escrita que recusa o pacto com a voracidade do presente que nos cerca. Leia Mais

A elite do atraso: da escravidão à lava jato | Jessé Souza

Jessé de Souza constrói seu livro: A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato, da Editora Leya, como resposta crítica ao clássico de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, publicado em 1936. Não obstante, analisa vários outros autores, como Roberto DaMatta, Gilberto Freyre, dentre outros, para formar sua convicção e justificar sua teoria. Leia Mais

Esse cabelo: a tragicomédia de um cabelo crespo que cruza fronteiras | Djaimilia Pereira de Almeida

Esse cabelo: a tragicomédia de um cabelo crespo que cruza fronteiras. Rio de Janeiro: Leya, 2017. 144 p. A minha mãe cortou-me o cabelo pela primeira vez aos seis meses. O cabelo, que segundo vários testemunhos e escassas fotografias era liso, renasceu crespo e seco. Não sei se isto resume a minha vida, ainda curta. […] Nasce daquele primeiro corte a biografia do meu cabelo. […] A verdade é que a história do meu cabelo crespo cruza a história de pelo menos dois países e, panoramicamente, a história indireta da relação entre vários continentes: uma geopolítica. (p. 9) Leia Mais

A tolice da inteligência brasileira / Jessé Souza

Jésse de Souza é um dos principais cientistas sociais brasileiros da atualidade. Graduado em direito, mestre em sociologia pela UNB e doutor pela Universidade de Heidelberg. Possui pós-doutorado em psicanálise e filosofia na New School for Social Reasearch em Nova Iorque e uma trajetória acadêmica de pesquisas sobre classes e desigualdades sociais no Brasil. É professor titular de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF) e foi presidente do Instituto de Pesquisa Aplicada (IPEA).

Em 2015 publicou A tolice da inteligência brasileira – ou como os países se deixam manipular pela elite, pela editora LeYa de São Paulo. Este livro polêmico pode ser considerado uma espécie de análise de conjuntura do que iria se concretizar em 2016. A obra de Jessé de Souza, quando lançada, não apresentava o impeachment como foco central de análise, mas uma tentativa de interpretação das chamadas “Jornadas de Junho” de 2013. Com intuito de articular o fenômeno das jornadas com a suposta (re) organização do pensamento conservador brasileiro, Souza dividiu sua obra em quatro partes constituintes, perfazendo a discussão clássica da teoria política e sociológica, para entender a estrutura do embasamento ideológico das elites.

A primeira parte do livro de Jessé de Souza foi dividida em seis capítulos. Abre com um debate clássico no primeiro capítulo: A falsa ciência no qual o autor argumenta de como a teoria de Max Weber foi apropriada no Brasil no início do século XX para compor a lógica de um “racismo científico” na criação do sujeito moderno.

No segundo capítulo: Um teatro de espelhos do patrimonialismo brasileiro o autor revela a existência de um racismo inserido no culturalismo científico nacional. Este racismo pode ser percebido no pensamento de Gilberto Freyre a partir das relações patrimonialistas de favor e proteção, que demarcam uma hierarquização social e racial da sociedade. Por conseguinte, a celebração do encontro e miscigenação de raças, advogada por Freyre, criou a valoração positiva da brasilidade. Para Souza essa singularidade miscigenatória foi trabalhada por Freyre e Sérgio Buarque de Holanda ao balizarem o ideal de uma sociedade pré-moderna dominada pela emotividade e impessoalidade.

A afetividade e o cordialismo foram patenteados, dessa forma, como uma peculiaridade nacional que regem as relações políticas e sociais. Tudo para os amigos e nada para os inimigos. Assim, se forjou a naturalização do clientelismo como estratégia de poder dentro de um estado patrimonialista formado por uma elite corrupta. Esse legado “maldito” foi eternizado no pensamento social brasileiro, de um lado, um estado parasitário, clientelista, e de outro, um mercado virtuoso vítima das consequências da corrupção estatal.

No terceiro capítulo: Cordial e colonizado até o osso Souza reitera que se Freyre criou a versão mais convincente do mito nacional, ou seja, da democracia racial, coube a Sergio Buarque de Holanda sistematizar o estoque de ideias e de representações sociais que deram o poder de convencimento ao culturalismo liberal e conservador do Brasil. Buarque confrontou as duas abstrações: a de homem cordial e do protestante ascético. E fundou a tradição de uma ideologia colonizada até o osso, patenteada no legado português das raízes nacionais, herdamos os vícios dos nossos colonizadores.

Souza insere Bourdieu nesse debate para discutir a violência simbólica e ideológica que se legitimou a partir de Freyre e Buarque, a construção de uma identidade desigual fática. Se o pensamento conservador partiu da meritocracia do protestante ascético, racional e democrático para a negação do homem cordial e irracional, o racismo culturalista legitimou as explicações hierárquicas a partir dos estoques culturais como causas da desigualdade entre indivíduos e nações. Uma visão teleológica foi incorporada ao pensamento conservador, como conduta de ação: você deve merecer o que ganha, e nesse caso, os pobres, obviamente, não se esforçam para fazer jus ao sucesso econômico e social que a classe média geralmente conquista com esforço.

O racismo culturalista seria a base do pensamento liberal conservador, com seus cinco pressupostos difundidos no pensamento social brasileiro: 1) idealização dos Estados Unidos como “paraíso na terra”, justiça social e igualdade de oportunidades; 2) o homem cordial brasileiro, emotivo, prisioneiro das paixões do corpo e moralmente inferior, um ser genérico; 3) a criação de um amálgama institucional do “homem cordial” na noção de “patrimonialismo”; 4) a criação de um caminho alternativo e universalizável para a nação: um antiestatismo sob a condução dos interesses de mercado; 5) a construção de uma ideologia antipopular, concebida como crítica ao populismo, equivalente a um “racismo de classe” que perpassa por todas as camadas sociais.

No quarto capítulo: Donos do poder Souza problematiza Raimundo Faoro e suas análises desenvolvimentistas do mercado como base para o capitalismo e a democracia. O debate sobre o estamento burocrático e as situações de instabilidade problematiza a dialética do constante desaparecimento/aparecimento da realidade estamental na estrutura de classes da sociedade brasileira. O que fazer quando o estado é o maior dilapidador dos cofres públicos? E quando o estado é o tributário de uma elite parasitária incrustada historicamente nas suas entranhas?

Para trabalhar respostas possíveis a essas questões, no quinto capítulo: O jeitinho brasileiro – Souza problematiza as banalidades teóricas desse culturalismo conservador, a partir de Roberto DaMatta. O autor considera cultura como uma apreensão ingênua de um processo inconsciente de intencionalidade individual a partir de um culturalismo personalista, de práticas e ritos cotidianos por meio de autoimagens projetadas de como o brasileiro supostamente se vê.

Souza classifica o método damattiano como estrutural com duas categorias de análise: 1) indivíduo; b) pessoa. Uma formação dualista e constitutiva do indivíduo pelo seu contrário, a pessoa, que para Damatta se definiria pela questão relacional de parentesco, compadrio, amizades que marcariam trocas de interesses e favores dentro da sociedade. Já o indivíduo está inserido numa contiguidade de leis em macroprocessos econômicos e políticos. No cotidiano, segundo esta teoria, se forjam os usos e costumes da tradição familiarística da domesticidade. Damatta trabalha numa gramática para superar esse dualismo entre os espaços da casa e da rua, do espaço privado e público.

No capítulo sexto: O patrimonialismo mostra a que veio – Souza denuncia como o liberalismo e o racismo, se apresentam no trabalho de Bolívar Lamounier e Amaury de Souza. Patrocinada pela Confederação das Indústrias, esta pesquisa, resultou na publicação “A classe Média Brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade”. Souza questiona esta obra, quando insere o tema da sustentabilidade para construir argumentos sobre o surgimento da nova classe média. Os autores discutem a corrupção do estado sem refletir sobre o protagonismo do mercado como corruptor. A tese do patrimonialismo é novamente revisitada. Segundo os autores, a corrupção e os mecanismos de controle são debatidos pela classe média emergente, porque o eleitor de Lula seria um indivíduo menos interessado e desatento aos problemas do país.

O livro inicia sua segunda parte com o primeiro capítulo: Nada além do bolso – no qual Souza apresenta um casamento conflituoso entre liberalismo e o marxismo economicista. A partir de George Simmel traça um debate sobre o pressuposto de cientificidade e o economicismo, com suas bases quantificáveis. Refaz a provocação inicial desenvolvida na primeira parte do livro sobre o culturalismo e o liberalismo conservador, como a perspectiva de trabalhar a cultura enquanto estoque cultural, com reservatórios de confiança e accountability.

No segundo capítulo: O economicismo como “cegueira” da dimensão simbólica do capitalismo Souza mencionou a “Formação do Brasil” (1942), de Caio Prado Junior e comparou as influências da Comissão para América Latina e Caribe (Cepal) na década de 1950 e a obra de Celso Furtado para a formação do pensamento social brasileiro. O debate de Souza com esses autores perpassa por uma análise das relações de subordinação e dependência do capital internacional no Brasil. Estabelece, enfim, um debate crítico com Florestan Fernandes e Francisco de Oliveira. Observa que Florestan produziu um trabalho clássico sobre capitalismo, luta de classes e desenvolvimento. Por conseguinte, Oliveira promoveu críticas à razão dualística, como um acerto de contas com a Cepal, na lógica do capitalismo transitório e subdesenvolvido. Essas duas visões, para um contexto internacional seriam pressupostos ingênuos para Souza. Porque a industrialização não se limita a um modelo de excedente. O economicismo cego não percebe a dimensão simbólica dos pressupostos jurídicos, políticos, morais e emocionais nas teorias desenvolvimentistas. E o marxismo possui limitações de abordagem, por isso, está muito próximo do liberalismo conservador.

No terceiro capítulo: Da Ralé a Revolução Burguesa – Souza discorre sobre as análises de Florestan Fernandes, o sociólogo que de fato saiu da sociologia espontânea para uma análise científica. De acordo com Souza, sua obra clássica “A Revolução Burguesa no Brasil” rompeu, definidamente, com a sociologia do senso comum.

Dessa forma, para Florestan, a constituição de um estado nacional quebrou o pacto colonial com a estruturação e implantação do capitalismo no Brasil. O rompimento do estatuto do pacto colonial, como o envio das riquezas para a metrópole e o não desenvolvimento de um mercado interno, fez com que o liberalismo passasse a funcionar como uma espécie de visão de mundo galvanizadora. Para ele, a garantia de uma gramática mínima para o estado moderno funcionar, fez com que os fazendeiros paulistas se tornassem os herdeiros do bandeirismo. Os pioneiros, desbravadores, os verdadeiros agentes modernizadores do País. No entanto, Souza adverte que Florestan, adentrou na lógica do patrimonialismo, não na versão culturalista de sociedade, mas na economicista. Em “A integração do negro na sociedade de classes” o sociólogo demonstra a transição da ordem escravocrata para a ordem competitiva do mercado “livre” e os antagonismos desse processo.

Na terceira parte do livro, no primeiro capítulo: Contribuição à inteligência brasileira, Souza debate a teoria crítica na atualidade. Para isso, denunciou os mecanismos de legitimação científica de dominação, desse “planeta verde amarelo”. O culturalismo conservador necessita de mitos nacionais para sobreviver, por meio das hierarquias valorativas e mecanismos classificatórios disseminados na sociedade. Uma violência simbólica estrutura uma hierarquia meritocrática e coloca os pobres de um lado e os ricos de outro. Periferia e centro são novamente aqui evocados. Souza refaz a análise do culturalismo conservador e problematiza que a interpretação damattiana do Brasil é a mesma de Niklas Luhmann na Alemanha, ou seja, racismo disfarçado de culturalismo. Assim, a existência de redes de relacionamento individuais põe a corrupção como um caso de endemia e os deslizes individuais como inevitáveis. A superioridade racial é maior em sociedades avançadas, porque, sociedades corruptas formam povos corruptos. A corrupção é enfim, abordada como um legado cultural.

No segundo capítulo: A miséria deles e a nossa Souza propõe repensar a questão simbólica do capitalismo com Bourdieu, a partir da teoria dos capitais. A noção de capital humano, cultural e simbólico é utilizada pela classe média para naturalizar a desigualdade social, justificada pela meritocracia. Nesta lógica, o capital social interfere diretamente nas relações pessoais para o desenvolvimento ou não do sucesso individual. O processo social de apropriação dos capitais impessoais cria à opacidade teórica de invisibilizar a desigualdade. No Brasil é aceitável uma cruzada judicial contra a corrupção, a exemplo, da Operação Lava Jato. Porém, uma política pública de combate à pobreza e desigualdade social encontra animosidades. Além de Bourdieu, Souza debate com Norbert Elias a instrumentalização do superego como aprendizado moral, pois, a dimensão moral torna-se pedagógica para encobrir ou disseminar determinados assuntos e a competição social torna-se instrumento de competição pacífica.

No terceiro capítulo: Tão longe, tão perto – Souza aproxima o que há de comum entre as sociedades periféricas e avançadas. Se o mundo social legitimou a dimensão simbólica da racionalidade, esta estará em disputa com os valores subjetivos e emocionais periféricos. Existe uma ilusão objetiva da consciência moderna, que segundo o sociólogo Georg Simmel, perpassa pela “economia do dinheiro”. Desta forma, as quantidades e quantificações sobrepõem-se as qualidades sociais.

No quarto capítulo: Existe algo de comum na reprodução simbólica das sociedades modernas? – Souza coloca uma interrogação para o leitor, que ele próprio pretende responder no desenvolvimento de sua teoria sobre a formação do pensamento conservador brasileiro. O autor recorre a Charles Taylor e Axel Honnet para trabalhar a ideia de uma teoria de reconhecimento social. Segundo Souza, há no Brasil uma relação hierárquica valorativa de definição dos iguais e dos diferentes como uma espécie de signos sociais opacos.

Um subjetivismo ético de valoração moral, podem ser definidas em três passos inter-relacionados: 1) reconstrução histórica e institucional por meio de fontes morais; 2) Realidade concreta e empírica sofismável; 3) Existência de uma fronteira entre a dignidade humana e a tese da distinção quantitativa. A noção de self pontual nas relações humanas. Todos passam a definir atividades superiores e importantes, há um potencial equalizador e igualitário, um princípio de dignidade cidadã. Suportes sociais e desvios, singularidades e direitos subjetivos, em vez de honra pré-moderna, distinção e privilégio. A moralidade coloca-se como voz interna para a distinção social.

Souza reitera a partir de Foucault, que há uma disposição de reproduzir e sustentar uma visão de mundo constituída de corpos dóceis e produtivos. E que a opacidade é produzida pela microfísica do poder difuso. Uma rede tensa de relações e jogos de disposições que transforma a fragilidade em um mecanismo de submissão. Uma coerção externa, heteronômica e uma teatralização do poder atuante nesse mecanismo. Saber e poder agem na produção de uma sujeição voluntária. Destarte, o poder disciplinar e a reprodução do Estado e do mercado, operam numa espécie de dominação sutil como processos disciplinadores que promovem a impessoalidade, universalidade, apropriação violenta e custosa dos corpos.

A disciplina organiza o espaço analítico da política e da força de trabalho. A entronização do poder disciplinar interfere na noção de cidadania. A articulação da economia emocional de Pierre Bourdieu, com à hierarquia valorativa de Taylor, e a microfísica de poder de Foucault inferem sobre o problema da dignidade humana. Contudo, a questão central para Souza é de como as estruturas sociais se introjetaram nos sujeitos, dentro e fora do habitus. Com Bourdieu, Souza reflete o habitus como esquema de conduta e comportamento que gera práticas individuais e coletivas. O habitus naturalizado produz e reproduz a desigualdade social. Assim, a corporação ou incorporação dos sentidos, significados e esquemas avaliativos são reservatórios de valores. O corpo para Bourdieu é um campo de forças de uma hierarquia não expressa, na linha invisível da dignidade. O discurso do excluído serve para aquele que não incorporou a disciplina e o autocontrole como economia moral de dignidade. Naturalizamos a sociedade disciplinar, assim como, tornou-se natural, a ralé, os desclassificados que formam a base da pirâmide social.

E para ilustrar essa questão, Jessé cita o caso emblemático da criança que fita o quadro negro e não consegue aprender. Por uma série de fatores, fome, problemas familiares, inúmeras questões atingem a pobre criança cotidianamente. Isso são as marcas do abandono social. Da ralé aos batalhadores surgiu uma nova classe média. Um conceito relacional e meritocrático da ascensão social, como um neopentecostalismo brasileiro, percebido nessa emergência de classe. Aqueles que batalharam para chegar aonde chegaram, reforça a ideia do conservadorismo das elites. Os trabalhos sujos e pesados são para fracassados. Uma hierarquia simbólica que divide e separa quem é digno de quem não é. Um complexo vira-lata que nos torna colonizados até os ossos.

Na quarta parte do livro Conclusões para entender a crise atual abre com o primeiro capítulo: A cegueira do debate brasileiro sobre as classes sociais e a pobreza no debate político – Souza cita trabalhos de Márcio Pochmann e Marcelo Neri, no qual os economistas demostram que na última década houve uma expansão do trabalho formal. Uma perspectiva concreta de 2 milhões de postos de trabalho abertos e uma diminuição da desigualdade social no Brasil com a implantação de programas sociais como o Bolsa Família. Isso, definitivamente, não se traduz na lógica da meritocracia do conservadorismo liberal. Além dos resultados que a pesquisa de Néri e Pochmann traz, Souza adverte, é preciso ir além do economicismo de investigação quantitativa. É preciso um estudo mais amplo de quem é essa ralé e os batalhadores do Brasil, e ir além do “especialista sem espírito” e do “hedonista sem coração” de Weber, para entender o estigma da indignidade. Não existe classe condenada para sempre.

No segundo capítulo: As manifestações de junho e a cegueira política das classes, Souza analisa as “Jornadas de junho” de 2013, manifestações anunciadas pela imprensa brasileira e internacional como a “primavera brasileira”. A classe média redescobre as ruas e a lógica do estado corrupto que atravanca o mercado virtuoso volta a fazer parte da agenda e das manifestações. Segundo Souza, a eleição de 2014 colocou novamente dois programas opostos em disputa e polarização. E em 2013 houve uma guinada ao conservadorismo político e uma cegueira coletiva, que condenou milhares de pessoas a viverem a sua indignidade “merecida” por uma elite amesquinhada que quer voltar ao poder.

No terceiro capítulo: O golpismo de ontem e de hoje: considerações sobre o momento atual – Souza evidenciou que a arquitetura do golpe iniciou antes de 2015, com as acusações do mensalão contra o Partido dos Trabalhadores. Novamente o discurso do estado corrupto contra um mercado virtuoso tornou-se pauta na imprensa. Souza, alerta que a classe média foi usada em todas as tentativas de golpe de estado, desde Vargas, Jango e Dilma. O jogo da pseudodemocracia estava arquitetado e o golpismo branco se avinhava desde 2015 com os órgãos de controle, judiciário e as elites apoiando a ideia do justicialismo, um “direito” moderno e neutro. Para Souza, 99% da população foram manipulados, em favor de um golpe que só beneficia 1% dos mais ricos.

Jessé de Souza nesse livro ligou uma metralhadora giratória e atirou contra diversas análises teóricas do pensamento sociológico brasileiro. Com algumas razões e outras inapropriações, sua obra reflete a formação conservadora da elite. Porém, destaca-se como análise de conjuntura, quando apresenta uma leitura das disputas do poder entre as elites conservadoras do País que se reflete no parlamento com suas bancadas dos três bs: do boi, da bala e da bíblia. Souza observou de dentro do governo, a conjuntura que se forjava e como a oposição organizou desde a eleição presidencial, um coro dissonante com ameaças reiteradas contra a Presidenta da República. Dilma não iria cumprir seu mandato até o final.

A “inspiração” que levou Jessé de Souza a publicar sua obra com um título provocativo e uma constatação sociológica trágica é a mesma que o faz rever e desler os clássicos citados e problematizados no seu texto. O que move teoricamente o pensamento da elite brasileira? Para Souza, ainda é a lógica do mercado virtuoso versus estado demonizado. O alimento do pensamento conservador promoveu o golpe antes e depois da eleição de 2014. A história, efetivamente não possui coincidências. Como weberiano, o autor possui legitimidade para apontar criticamente as apropriações do pensamento social político brasileiro sob a ótica das elites. O dia 17 de abril de 2016 ficará nas memórias da história da democracia como um golpe arquitetado pelas elites conservadoras no Brasil, como ontem e hoje.

Giane Maria de Souza – Historiadora, mestre em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Especialista em República, Movimentos Sociais e Democracia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutoranda em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Integra a Linha de Pesquisa Sociedade, Política e Cultura no Mundo Contemporâneo do PPGH/UFSC. E-mail: [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4500562741589471.


SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira – ou como os países se deixam manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015. Resenha de: SOUZA, Giane Maria de. AS aproxiamações ideológicas entre as origens do pensamento conservador elitista e o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Em Perspectiva. Fortaleza, v.2, n.1, p.220-228, 2016. Acessar publicação original [IF].

A tolice da inteligência brasileira – ou como os países se deixam manipular pela elite | Jessé de Souza

Jésse de Souza é um dos principais cientistas sociais brasileiros da atualidade. Graduado em direito, mestre em sociologia pela UNB e doutor pela Universidade de Heidelberg. Possui pós-doutorado em psicanálise e filosofia na New School for Social Reasearch em Nova Iorque e uma trajetória acadêmica de pesquisas sobre classes e desigualdades sociais no Brasil. É professor titular de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF) e foi presidente do Instituto de Pesquisa Aplicada (IPEA).

Em 2015 publicou A tolice da inteligência brasileira – ou como os países se deixam manipular pela elite, pela editora LeYa de São Paulo. Este livro polêmico pode ser considerado uma espécie de análise de conjuntura do que iria se concretizar em 2016. A obra de Jessé de Souza, quando lançada, não apresentava o impeachment como foco central de análise, mas uma tentativa de interpretação das chamadas “Jornadas de Junho” de 2013. Com intuito de articular o fenômeno das jornadas com a suposta (re) organização do pensamento conservador brasileiro, Souza dividiu sua obra em quatro partes constituintes, perfazendo a discussão clássica da teoria política e sociológica, para entender a estrutura do embasamento ideológico das elites. Leia Mais

Guerras santas: como quatro patriarcas, três rainhas e dois imperadores decidiram em que os cristãos acreditariam pelos próximos mil e quinhentos anos – JENKINS (S-RH)

JENKINS, Philip. Guerras santas: como quatro patriarcas, três rainhas e dois imperadores decidiram em que os cristãos acreditariam pelos próximos mil e quinhentos anos. Tradução de Carlos Szlak. Rio de Janeiro: LeYa, 2013, 352 p. Resenha de: CRUZ, Alfredo Bronzato da Costa. Cinzas que queimam. sÆculum Revista de História, João Pessoa, v.30, jan./jun. 2014.

Philip Jenkins nasceu no País de Gales em 1952 e estudou no Clare College da Universidade de Cambridge, onde se formou como historiador especialista em estudos anglo-saxões, nórdicos e célticos. Ele realizou seu doutorado nesta mesma instituição, sob a orientação de John Plumb, pesquisador da história social das elites políticas inglesas do fim do século XVII e início do século XVIII. No período de 1977 a 1980, Jenkins trabalhou como auxiliar de pesquisa de Leon Radzionowicz, que foi o pioneiro dos estudos de Criminologia em Cambridge. Em 1980, foi admitido como Professor Assistente de Direito Penal na Universidade Estadual da Pensilvânia, nos EUA, e durante algum tempo dedicou-se aos estudos da história sociopolítica deste país. No avançar da década de 1980, contudo, seus interesses de investigação inclinaram-se cada vez mais para os estudos sobre a trajetória histórica do cristianismo. Jenkins tornou-se Professor (1993) e Catedrático (1997) de História e Estudos da Religião na mesma Universidade Estadual da Pensilvânia, e começou a produzir uma série de trabalhos nesta área.

Em 2002, Jenkins envolveu-se pessoalmente no campo da controvérsia religiosa quando anunciou sua conversão à Igreja Episcopal desde o catolicismo, e proferiu uma crítica aberta ao celibato normativo do clero católico romano.

Em 2007, ele tornou-se Livre Docente do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Estadual da Pensilvânia, e recebeu em 2011 a Emerência desta mesma instituição. Atualmente Jenkins é Professor do Departamento de História e Codiretor do Programa de Estudos Históricos da Religião do Instituto para Estudos da Religião da Universidade de Baylor – uma instituição confessional de ensino e pesquisa vinculada à Igreja Batista, que, estabelecida em 1845, foi a primeira universidade norte-americana fundada a oeste do Rio Mississipi e a mais antiga em funcionamento contínuo no Estado do Texas. Também é um dos editores do The American Conservative, escreve uma coluna mensal para o The Christian Century e artigos regulares para pelo menos outros três periódicos de grande público nos EUA.

Em 2013, a Editora LeYa publicou, sob o título de Guerras Santas, a tradução de Carlos Szlak para o Jesus Wars, dado a público por Jenkins três anos antes.

A transcrição de um comentário feito em Christianity Today sobre o Jesus Wars na orelha da capa frontal da edição brasileira pode ser bastante instrutiva para esclarecer a questão de porque uma empresa com tal perfil e público alvo investiu na publicação deste volume: “[…] Você gosta de contos incríveis de intrigas religiosas, cheios de conspirações, casos bizantinos, assassinatos e confusão? Ou prefere um relato acurado, sólido e informativo sobre o surgimento do cristianismo ortodoxo? Se a sua resposta foi ‘sim’ para ambas as perguntas, este livro é para você”. De um ponto de vista do mercado editorial, portanto, parece que o Guerras santas foi recebido como uma espécie de Código da Vinci baseado em fatos reais, ou como um guia politicamente incorreto da antiguidade cristã. O texto de Jenkins de fato, se presta parcialmente a isto: o modelo narrativo de sua prosa empolgante parece ter sido o irônico Declínio e queda do Império Romano de Edward Gibbon, citado já na introdução do volume, autor que, com Voltaire e Hume, é um dos pais de toda discussão politicamente incorreta travada no mundo contemporâneo a respeito dos primeiros séculos de existência do movimento cristão. Tal apropriação, contudo, tende a diminuir, ou mesmo ofuscar, a relevância deste volume para uma área tão carente de bons trabalhos entre nós como é a dos estudos sobre o cristianismo de tradição não ocidental.

De um modo geral, Jesus War é um desenvolvimento lógico do interesse de Jenkins pelas mudanças que marcaram o mundo cristão no século XX. Em trabalhos anteriores, este autor tratou da emergência de um cristianismo latinoamericano, asiático e africano que contrasta tanto com as formas majoritárias de cristianismo existentes há um século atrás que é como se estivéssemos lidando com uma religião completamente nova. Jenkins argumenta, entretanto, que o cristianismo que floresce nestas regiões que são periferias do sistema sociopolítico e econômico global não só não é uma adesão ingênua a uma ideologia imperialista, imposta de cima para baixo, mas está bastante próximo do horizonte mental do mundo bíblico e das antigas igrejas cristãs que outrora prosperaram (com exceção da América Latina) nestas mesmas regiões. O cristianismo não é um enxerto exótico na África e na Ásia, como parecem assumir tanto o senso comum ocidental quanto o islamismo militante, mas, no século XX, com a expansão missionária, começou a fazer um certo caminho de volta para casa.

Em termos culturais e demográficos, a compreensão de que a Europa é desde sempre e por excelência a terra dos cristãos é um equívoco politicamente orientado, já que mesmo no auge da civilização cristã medieval possivelmente havia mais fiéis cristãos no continente asiático do que no mundo europeu, e ainda subsistiam comunidades cristãs populosas no continente africano, grupos que foram simplesmente esquecidos pelos analistas ocidentais. Tal equívoco ocasiona tanto uma miopia na descrição da trajetória histórica do cristianismo quanto uma exasperação indevida nas análises de sua atual conjuntura. O avanço simultâneo do islamismo e do secularismo anticristão na Europa ocidental não significa um recuo geral do movimento cristão; não apenas porque ele continua em processo de expansão e reinvenção em outras regiões do globo, mas porque ele nunca foi exatamente coextensivo ao mundo europeu, mas sempre algo maior e diverso dele.

De fato, não parece adequada a ênfase na suposta natureza euroamericana do cristianismo quanto se procura ver este movimento no contexto mais amplo de sua de sua história bimilenar. A forma particular de cristianismo com que o ocidente se acostumou no último meio milênio, e que a maior parte dos interessados ocidentais e ocidentalizados, cristãos ou anticristãos, passou a considerar como o estado natural deste movimento religioso é um desenvolvimento relativamente acidental.

Durante a maior parte de sua história, o cristianismo foi uma religião tricontinental, com forte presença na Ásia, na África e na Europa – e isso foi válido para o tempo dos Carolíngios tanto quanto para as vésperas da expansão ibérica. “[…] Feitas as contas”, escreveu Jenkins, “na época da Magna Carta ou das Cruzadas, se quisermos imaginar um cristão típico, ainda deveremos pensar não num artesão francês, mas num camponês sírio ou num morador urbano da Mesopotâmia”2.

O cristianismo tornou-se predominantemente europeu nos quinhentos e poucos anos mais recentes de nossa história, não por causa de alguma afinidade óbvia entre este continente e a fé, mas pelo fato de que as igrejas europeias conseguiram escapar da pressão do Islã militante de uma forma que não foi possível às antigas igrejas apostólicas asiáticas e africanas, outrora culturalmente dinâmicas e muito numerosas. Foi pouco depois de o cristianismo africano e asiático passar a enfrentar novos e mortíferos desafios políticos, dos quais não viria a se recuperar, e de o movimento cristão entrar em colapso na China (décadas de 1360-1370) e na Núbia (década de 1450), que, “por volta de 1500, podemos ter o primeiro vislumbre doo padrão de expansão cristã que ficou conhecido nos estereótipos populares, ou seja, uma religião transportada por navios de guerra e mosquetes europeus para os nativos vulneráveis da África ou da América do Sul”3.

Fundamentando tanto a vulnerabilidade de tão vastas comunidades cristãs ao avanço de um poder político religiosamente diverso, quanto o afastamento e o esquecimento destas pelos ocidentais, encontra-se uma querela teológica que eclodiu com especial violência em meados do século V. Neste período, o mundo cristão se partiu em três blocos que definiam de diferentes formas a natureza de Jesus Cristo, selando com a divergência religiosa as poderosas forças centrífugas da disputa política e da diferença cultural. Os cristianismos asiático, africano e europeu enveredaram por trajetórias históricas gradativamente mais distintas e distantes umas das outras, enquanto aquilo que era o centro político do ecúmeno cristão – o Império Romano do Oriente, sediado em Constantinopla – oscilava entre uma e outra posição teológica. O que acabou por fim consagrado como a ortodoxia cristã, cunhada por oposição aos monofisitas africanos e aos nestorianos asiáticos – classificações que não são apenas nomes, mas rótulos prenhes de juízos de valor negativo, cunhados por seus inimigos no complicado combate publicitário que marcou o tabuleiro político-teológico do Mediterrâneo oriental do primeiro milênio de nossa era – foi o resultado de um processo gradativo, lento e, não raro, sangrento.

Na origem destas categorias e atuando como seu lastro, encontram-se lutas, golpes e guerras abertas ao longo dos séculos, confrontos cujo resultado, de forma alguma já estava dado a priori. Isto bem considerado se pode imaginar um desenvolvimento histórico alternativo, no qual os agora chamados ortodoxos tivessem sido desdenhados como heréticos; um universo contrafatual em que o cisma entre Roma e o Oriente ocorreu no século V, e não no século XI, nunca se recuperando o papado da sujeição a sucessivas ondas de ocupantes bárbaros, e em que um Império Romano Monofisita, fundado num âmbito oriental unido fielmente, que se estendia do Egito ao Cáucaso, da Síria aos Balcãs, teria lutado com unhas e dentes contra os recém-chegados muçulmanos e, de modo concebível, mantido as fronteiras do tempo de Justiniano. Nesta realidade paralela, os estudiosos posteriores do cristianismo se dedicariam a estudar preferencialmente o grego, o copta e o siríaco, e apenas os pesquisadores mais ousados, dispostos a investigar uma língua marginal de alfabeto enigmático, se lembrariam de figuras como Agostinho de Hipona, Patrício da Irlanda e Leão de Roma4.

Jenkins argumenta que o fato de que outros caminhos, de incomensuráveis consequências, poderiam ter sido facilmente tomados pelo cristianismo dá boas razões para que se eleja o meado do século V como o período mais formativo de toda a história do movimento cristão. Outros autores têm enfatizado o período imediatamente circunvizinho ao Concílio de Niceia como este ponto de cristalização, de mudança fundamental entre as definições e práticas do cristianismo primitivo e medieval, mas eles não têm considerado de forma adequada como a luta para definir as crenças básicas do movimento cristão se arrastou para além dos primeiros séculos de sua existência e assumiu formas institucionalizadas bastante coerentes.

Alguns ainda têm retratado a história da Igreja como um movimento firme rumo a uma clarificação crescente da fé em sentido ortodoxo, seja para elogiá-lo (o desenvolvimento do dogma faz a Igreja ser mais consciente e mais fiel ao que já acreditava desde o princípio) ou para criticá-lo (o movimento espiritualmente igualitário de Jesus atrofiou-se até dar origem à estrutura burocrática e repressiva do cristianismo bizantino e medieval). Dada a evidente origem teológica destas posições, elas devem ser postas entre parênteses pelo historiador, que tem o dever de chamar a atenção para o quanto, em diversos momentos, a própria definição do que é a fé cristã poderia ter sido radicalmente modificada. As lutas do século V a respeito do significado da ortodoxia cristã deram-se no quadro de uma guerra de domínio entre as Sés de Alexandria, Antioquia, Constantinopla e Roma, e essa disputa teve como claras vencedoras as duas últimos, enquanto as duas primeiras tiveram de se haver com os crescentes problemas políticos associados à perda global de prestígio no âmbito do cristianismo mediterrânico. O fato destas se encontrarem desde cedo em território muçulmano, e hoje manterem minorias cristãs fisicamente ameaçadas de extinção em meio a populações majoritariamente islâmicas em número e tradição, é significativo para apreendermos o quanto todas as cartas foram postas na mesa no conflito do século V, e quais foram as consequências deste para o cristianismo ter vindo a adquirir o seu desenho atual.

Tudo isto posto, o objetivo de Guerras Santas é reconstituir a disputa política e teológica entre as diversas facções cristãs do século V, extraindo-lhe as consequências históricas e os aportes que este enredo pode ter para se compreender a atual conjuntura do cristianismo como religião mundial. Na introdução do volume (Quem vocês dizem que Eu Sou?), Jenkins levanta a questão básica, de origem bíblica, que levou às disputas cristológicas do primeiro milênio, ressaltando que as Escrituras Sagradas dos cristãos não são nada claras a respeito de um assunto tão hermético quanto a discussão sobre a natureza de Jesus Cristo, e que pelos padrões rigorosos dos primeiros concílios eclesiásticos, a maioria dos não especialistas modernos – incluindo numerosos clérigos – não saberiam explicar a fé que professam, ou seriam condenados como professando algum tipo de heresia. A compreensão da maioria das igrejas atualmente subsistentes sobre a identidade de Cristo é que ele é simultaneamente Deus e homem, sem divisão e sem separação, compreensão fundada nas posições tornadas canônicas pelo Concílio de Calcedônia (451). A resposta dada por esta assembleia de eclesiásticos a tal questão, contudo, não era a única solução possível – nem a solução obvia, ou, talvez, a mais lógica. As disputas que acompanharam esta definição e a tentativa dos imperadores ortodoxos de impô-la às antigas e recalcitrantes igrejas africanas e asiáticas enfraqueceram e dividiram a Igreja e o Império, e, no longo prazo, levaram diretamente ao colapso do poder romano no Mediterrâneo oriental, à ascensão política do islamismo e ao eclipse do cristianismo no mundo não europeu. Para Jenkins, de fato, o conflito a respeito de qual seria a definição hegemônica a respeito da natureza de Jesus Cristo resolveu-se por uma questão objetiva: as igrejas que aceitaram a definição calcedônica livraram-se da pressão islâmica por um milênio pelo acaso geográfico e sucesso militar, e tornaram-se certas basicamente porque sobreviveram mais viçosas e tiveram a oportunidade de contar a história cristã a seu próprio modo.

No primeiro capítulo (O xis da questão), Jenkins parte do violento caso do assassinato do Patriarca Flaviano de Constantinopla para cartografar algumas das semelhanças e diferenças existentes entre o universo sociocultural do mundo dos primeiros concílios que definiram a fé cristã e o nosso. Se ainda na década de 1980 a imagem de um Jesus casado e com uma família presente no filme A última tentação de Cristo incitou clamores mundiais de blasfêmia, a questão sobre quem era Jesus Cristo suscitava ainda maiores paixões nos séculos IV a VI. De um modo geral, as diversas respostas a esta questão se dispunham no espectro de duas tendências conflitantes. De um lado, havia aquelas “forças muito poderosas que atraíam Cristo na direção de Deus e do céu”, imaginando-o como “um juiz celestial temível ou um soberano cósmico, o pantokrator (…) que lançava um olhar furioso da cúpula de uma basílica imensa, e cujo status humano era difícil de aceitar”. Do outro, aqueles que “lutaram para preservar a face humana de Jesus, estabelecendo-o firmemente em solo terreno e na sociedade”, “uma figura que compartilha nossa experiência e pode ouvir nossas preces”, “que sofreu agonia física, que conheceu a dúvida e a tentação, que foi o irmão e o modelo dos homens em sofrimento”5.

Durante a história bimilenar do movimento cristão, estas tendências estiveram em interação, na maior parte das vezes conflituosa, mas em nenhum momento o debate foi tão aceso e visceral do que durante o século V. Então, por algumas décadas, pareceu que o consenso dos fiéis abandonaria a crença na natureza humana de Cristo, passando em definitivo a descrevê-lo apenas como um ser divino – o que, afinal, oficialmente não ocorreu. Subjacentes a estes intrincados debates teológicos agitavam-se as rivalidades profundas entre os grandes núcleos eclesiásticos do cristianismo do primeiro milênio: Antioquia enfatizava a natureza humana de Cristo; Alexandria combatia de forma veemente toda fórmula teológica que separasse o elemento humano do divino em Jesus Cristo; e Constantinopla, sede do Império Romano Cristão, servia como campo de batalha para as facções destes elementos poderosos, do Primeiro Concílio de Éfeso ao Concílio de Calcedônia (ou seja, de 431-451), cristalizou-se o ensinamento de que nenhuma declaração a respeito de Jesus Cristo poderia omitir os aspectos divino ou humano de sua pessoa. Esta posição, que encontrou oposição ferrenha em três quartos dos antigos centros da fé cristã, estabelecendo-se firmemente nas igrejas reunidas em torno das sés de Constantinopla e de Roma, veio a ser a base da teologia cristã ocidental, hoje hegemônica.

Jenkins observa que a batalha a respeito das naturezas de Jesus Cristo colocou em choque visões de mundo muito diferentes, surgidas de ênfases interpretativas diversas aplicadas a um mesmo substrato bíblico. Estavam em jogo noções acerca do significado do nascimento e da morte de Cristo, do papel de sua mãe, da bondade ou maldade relativa da materialidade e da visualidade, do papel do ser humano na redenção do mundo, e da atuação política das comunidades cristãs. O autor ressalta que, neste debate, punham-se de forma dramática os recorrentes – na verdade, estruturais – dilemas do conflito e da cooperação interdenominacional, dilemas que remontam, literalmente, à fundação do movimento cristão, e que o seu desenrolar revela muito acerca de como o cristianismo se desenvolveu ao longo do tempo, de como “a Igreja engendra sua própria mente humana”6. Ele pondera que, se, para o público moderno, “acostumado a séculos de diversidade e tolerância religiosa”, o investimento de criar e manter a todo custo um consenso teológico parece desnecessário para quaisquer indivíduos mentalmente saudáveis – pois “parece óbvio que, quando lados opostos estão completamente apartados, devem concordar com uma separação amigável” – para os diversos partidos cristãos da Antiguidade Tardia, contudo, “essa opção não estava disponível, e não porque os cristãos de então eram, em algum sentido moralmente inferiores em relação aos seus descendentes”. O caso é que o pensamento cristão – fosse católico, monofisita ou nestoriano – não podia então prescindir do conceito da Igreja como corpo unificado de Cristo concretizado em uma unidade institucional. “Se o corpo não era unido, então era deformado, mutilado e imperfeito, e esses termos, sem dúvida, não podiam ser aplicados ao corpo de Cristo”7. A necessidade psicológica, pastoral e – a partir do século IV – política de estabelecer uma unidade institucional marcada pela conformidade teológica diante uma grande diversidade de formas de se compreender, celebrar e viver a fé cristã, somada ao fato de que nenhum indivíduo ou grupo tinha real autoridade para impor sua versão do cristianismo aos demais de maneira simples e direta, de que os debates teológicos tornaram-se rapidamente questões de Estado para as autoridades romanas, e de que havia a convicção de que os conflitos deveriam ser solucionados por declarações gerais de todo o corpo eclesial na forma de concílios, fez abrir uma verdadeira Caixa de Pandora.

“Ao estudar os concílios eclesiásticos daquela era”, registra Jenkins, “certos temas vêm à mente, incluindo a caridade cristã, a contenção, a decência humana comum, a disposição de perdoar ofensas antigas, de dar a outra face. Nenhum deles se apresentou em qualquer um dos debates principais. Em vez disso, os concílios foram marcados por xingamentos e traições (tanto figurativas quanto literais), por conspirações implacáveis e intrigas secretas, e por ameaças generalizadas de intimidação”. Para este autor, de fato, os concílios, palcos de ardentes embates intelectuais, atravessados por rivalidades e redes de influência que ligavam as diferentes sedes eclesiásticas não apenas à sala do trono dos herdeiros dos Césares, mas também aos aposentos das imperatrizes e princesas, aos quartéis das legiões e aos covis das torcidas do grande hipódromo constantinopolitano, raramente se assemelhavam a reuniões de santos empenhados em definir a fé. O debate teológico era atravessado por questões que hoje consideraríamos como absolutamente extrínsecas ao campo religioso, mas se deve ter em mente que a forma específica assumida pela disputa política era, então, de ordem teológica. Daí o fato de todas as grandes controvérsias cristológicas terem implicado em sérias consequências políticas; tratava-se tanto de batalhas a respeito do futuro do Império, como um todo e em cada uma de suas partes, quanto de tentativas de estabelecer definições inequívocas da verdade eterna8.

Deve-se considerar, mais ainda que, enquanto os bispos debatiam questões teológicas em meio a ícones dourados e nuvens de incenso, as decisões tomadas nestas assembleias tinham um real impacto real nas vidas das pessoas comuns, convencidas como estas estavam de que o núcleo essencial da crença cristã estava em risco. Jenkins faz uma análise bastante sensível de como as sutilezas teológicas angustiavam as pessoas dos campos, vilas e cidades, até o ponto de elas se disporem a espancar, torturar ou assassinar seus vizinhos por uma palavra ou expressão proferida de maneira reconhecida como incorreta. Em primeiro lugar, o autor destaca que não faz sentido distinguir as motivações religiosas das não religiosas em tais explosões de violência popular. Isso seria violentar a sua especificidade histórica com um anacronismo inoportuno, atribuindo-lhe um fanatismo ou cinismo que só são possíveis a partir de uma situação em que se pode distinguir, de forma mais ou menos clara, uma esfera temporal de uma esfera espiritual; e tal distinção é um fenômeno relativamente recente e, em larga medida, restrita ao ocidente moderno. Em segundo, a maioria das pessoas da Antiguidade Tardia, ignorantes e letradas, parece ter acreditado firmemente em visões de mundo providencialistas, dentro das quais as práticas religiosas e as formulações teológicas possuem implicações sociais e cosmológicas – a dissidência e a heresia enraiveceriam a Deus, maculando a realidade, propiciando males como distúrbios civis, perda das colheitas, terremotos, invasões de bárbaros, golpes de estado, peste, infertilidade na família imperial, sinais nos céus, entre muitos outros.

Era o senso comum que “[…] A menos que os malfeitores ou crentes equivocados fossem suprimidos, a sociedade poderia perecer por completo”9. Em terceiro, a violência pôde ocorrer porque o Estado não tinha nem a vontade, nem a capacidade de reprimir o uso da força por grupos privados muito motivados; menos porque as instituições públicas estavam em situação de fraqueza extrema ou à beira de um colapso, e mais porque as autoridades constituídas decidiram favorecer e se aliar a alguns destes grupos contra outros, que consideravam danosos. Em quarto, entrava em jogo o fundamental conceito de honra, o grande “elemento subestimado do conflito religioso, e não só no cristianismo”; honra que clérigos, monges e simples fiéis transferiram de seus círculos familiares e das relações de clientelismo tão características das sociedades mediterrânicas para suas circunscrições e facções eclesiásticas, e que, em certas circunstâncias, precisava ser defendida pela força; honra que deveria ser protegida a todo custo de desafios reais e imaginários, além de reforçada pela consequente humilhação dos rivais. Para Jenkins, tudo isto precisa ser levado em consideração, pois, de fato, “[…] Quase não conseguimos compreender a malignidade espantosa que marcou a longa batalha entre as grandes Igrejas de Antioquia e Alexandria, a menos se entendermos que estamos lidando nesse caso com uma disputa sanguinária literal, que se estendeu por um século ou mais”10.

Findo o primeiro capítulo do livro, que é dos seus mais interessantes, começa a primeira parte do volume (Deus e César), onde Jenkins monta o cenário e apresenta os atores do drama que se dispôs a contar. No segundo capítulo (A guerra das duas naturezas), explora os elementos propriamente teológicos do grande conflito que precede e segue o Concílio de Calcedônia, apresentando as grandes correntes da interpretação cristológica da antiguidade cristã e demonstrando de que forma as ênfases da teologia antioquena e da teologia alexandrina tornaram-se cada vez mais divergentes. Também reconstitui como as lacunas existentes entre a alta especulação teológica e as compreensões populares do cristianismo não impediram que o debate se alastrasse pelos espaços públicos e assumisse em certos momentos a intensidade explosiva de um confronto civil, incendiado pela oratória sacra de clérigos carismáticos, pelas lealdades regionais dos contentores e por um sistema de classificação e atribuição de culpa por associação que se assemelhava a um autômato publicitário.

No terceiro capítulo (Quatro cavaleiros: os patriarcas da Igreja), descreve as trincheiras, alianças, traições, compromissos e ressentimentos que regiam as relações mútuas das mais altas instâncias de prestígio eclesiástico da antiguidade cristã – os patriarcados de Alexandria e Antioquia, de Constantinopla e de Roma (e também os ambiciosos, mas menos poderosos, bispados de Éfeso e de Jerusalém) – e como a disputa por prestígio e elementos que hoje consideraríamos ainda mais mundanos influíram, ou, melhor, foram partes constitutivas das batalhas para definir que era a ortodoxia e que era a heresia nos primeiros séculos do movimento cristão. Esses patriarcados foram governados por verdadeiras linhagens de prelados, unidos não por laços de parentesco, mas por relações de mestre e discípulo muito firmes, e eles eram ciosos daquilo que os tornava diversos de seus concorrentes eclesiásticos, “não apenas devido à sucessão apostólica, mas também à busca de autoridade real”11. Uma posição que nos parece particularmente curiosa é a do Patriarcado de Roma, pois, embora saibamos, em retrospecto, que ele seria o grande sobrevivente das guerras teológicas do primeiro milênio, a ponto de sua história – e as histórias dele derivadas – serem constituídos no teleos de toda a história do movimento cristão pela maior parte dos historiadores eclesiásticos, então, tratava-se ele de uma a natureza de Jesus, vulnerável por razões que eram a um só tempo políticas, culturais e linguísticas.

No quarto capítulo (Rainhas, generais e imperadores), expõe-se até que ponto, nos grandes debates teológicos da Antiguidade Tardia, as autoridades do império cristão, investidos de um poder que não era de forma alguma puramente secular, atuaram “como uma força no interior da Igreja, mais intensa do que a de um honesto inspetor tentando impor o jogo limpo entre as partes contentoras”12. No processo de constituição da ortodoxia cristã, intervieram não apenas o cálculo político de membros das famílias imperiais, mas suas devoções, expectativas, simpatias e ressentimentos particulares, sua abertura ou rejeição de determinado lobby eclesiástico, suas próprias ideias teológicas. Deste jogo, que não estava de forma alguma restrito às igrejas e à sala do trono, participava também um dinâmico e complexo, bizantino, universo formado pela corte, pela burocracia, pelos administradores regionais, pelos mosteiros constantinopolitanos, pelos generais e pelos senhores da guerra quase independentes que, nominalmente empenhados na defesa das fronteiras do império, naturalmente, mantinham uma agenda de interesses próprios. Aos olhos de um espectador moderno, causa algum escândalo o fato de, de forma tão ampla, as igrejas pensarem e atuarem como império e o império pensar e atuar como uma igreja, mas Jenkins recorda-nos que essas eram as regras que então eram normativas dos processos político-teológicos do ecúmeno cristão. Em função disto, da mesma forma que as intrigas cortesãs ajudaram a dar sua forma específica ao debate teológico, esse foi alçado ao nível de problema de interesse e de segurança pública. Uma nova, radical intolerância religiosa voltouse contra as minorias religiosas na medida em que penosamente se definia uma ortodoxia de Estado. Tratou-se de uma crucial mudança nas disputas dogmáticas, “em escalada rumo ao centro da questão, no sentido de que a força total do governo e da lei se voltaria contra o lado perdedor. A discussão teológica tornou-se um jogo de soma zero, com implicações de longo alcance no mundo material”13.

Na segunda parte do volume (Concílios do Caos), Jenkins narra o drama que é o cerne de seu livro, abrangendo aquele período do século V e do início do século VI no qual o conflito entre Alexandria e Antioquia chegou a um clímax especialmente violento e no qual as ideias teológicas longamente cultivadas nestas regiões cristãs assumiram formas tais que foram consideradas heréticas pelo eixo formado por Constantinopla e por Roma, ensejando uma fissura cataclísmica no seio do império romano cristão. No quinto capítulo (Não é a mãe de Deus?), trata-se da figura de Nestório, que ficou associada a episódios impressionantes da história cristã e que, ainda hoje, é lembrado por alguns fiéis como um arqui-herege e por outros como um brilhante pensador e um líder santo que sofreu uma injustiça da parte dos imperadores bizantinos. Jenkins busca apresentar uma imagem equilibrada deste personagem, reinserindo-o no contexto onde se desdobrou o drama passional de que fez parte, reiterando que, neste, ele “marcou presença como um líder ora maior e ora menor do que a lenda proclama”14. Além de Nestório, traça-se um perfil de dois de seus principais opositores – a princesa Pulquéria e o patriarca Cirilo de Alexandria – e investiga-se a importância e o funcionamento das redes de influência alexandrina e antioquena na capital imperial, dos ressentimentos eclesiásticos, das facções monásticas e da devoção popular à Virgem Maria, incidental, mas crucialmente engolfada no debate sobre a natureza de seu filho.

Findo o drama de Nestório, o capítulo sexto (A morte de Deus) trata da tragédia de Flaviano de Constantinopla, ferido de morte no Segundo Concílio de Éfeso (449), que foi um dos cumes da influência do Patriarcado de Alexandria, rejeitado pela Igreja de Roma e, posteriormente, pela de Constantinopla, como um Sínodo dos Ladrões, um Concílio que Nunca Houve, ou, mais popularmente, como o Latrocínio de Éfeso. No sinuoso caminho para esta controversa assembleia, encontram-se a ruína do limes imperial diante do assédio germânico e persa; o desaparecimento formal do Império Romano do Ocidente; a ameaça dos hunos; as ideias teológicas e os dotes de orador do monge Eutiques de Constantinopla; a influência de seu apadrinhado, o eunuco Crisáfio, que veio a se tornar uma figura importante na corte bizantina; as formulações dos teólogos de Alexandria, Antioquia e Edessa; a violenta ofensiva dos partidários da Natureza Única de Jesus Cristo contra aqueles que defendiam que Ele subsistia em Duas Naturezas; e o intolerante e intolerável zelo de Dióscoro de Alexandria. A definição de ortodoxia cristã então respaldada pela autoridade imperial, encabeçada por Teodósio II, inclinou-se para uma fórmula mais favorável à teologia egípcia; enquanto Roma, sujeita às falhas estruturais que marcavam já de mais de um século os elos de comunicação subsistentes entre os cristãos de língua grega e os de língua latina, colocava-se ainda mais à margem da principal disputa teológica do momento ao condenar abertamente as ideias de Eutiques e assumir os altos riscos de afirmar que Jesus Cristo era a um só tempo Um e Dois, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Retrospectivamente, sabemos que esta viria a ser a definição cristológica majoritária no cristianismo europeu, latino e bizantino, mas, então, tal possibilidade sequer parecia se assomar no horizonte de expectativas.

O seguimento do Segundo Concílio de Éfeso foi marcado por uma ofensiva ainda maior dos partidários da Natureza Única contra seus rivais, na Síria, na Palestina e em Edessa; por uma série de intervenções imperiais nos bispados do Mediterrâneo oriental; pela fuga de teólogos de formação antioquena rumo aos domínios do Xá da Pérsia, para além do braço daquilo que consideravam um governo herético; pela emergência de um furor inquisitorial e de um espírito de caça às bruxas, no escopo do qual todos os defeitos morais imagináveis, incluindo o conluio consciente com o Diabo, passaram a ser atribuídos aos que se considerava hereges, aos seus alunos, discípulos ou mesmo simpatizantes. Para um analista que vivesse este momento histórico, não era absurdo imaginar Roma como o último refúgio de uma minoria herética em um mundo cristão em que os monofisitas se tornaram a maioria e a ortodoxia cristã. Nesta conjuntura, o centro de poder no interior da Igreja teria se deslocado em definitivo para Alexandria, e pouco poderia ser feito para deter o estabelecimento de uma hierarquia fiel à Natureza Única nas refratárias regiões da Itália ou da Síria enquanto o imperador comandasse o território e esta facção predominasse em sua corte15.

Então, contudo, interveio o acaso, o hálito do inferno ou a providência divina: em 28 de julho de 450, Teodósio II morreu em consequência de uma queda de cavalo e, com isso, o cenário político-teológico se modificou bruscamente. No sétimo capítulo (Calcedônia), Jenkins relata como esta mudança aturdiu o mundo cristão e possibilitou que a formulação do verdadeiro Deus e verdadeiro homem suplantasse a da Natureza Única e se tornasse de modo duradouro – e, no último meio milênio de nossa história, decisivamente hegemônico – a definição cristológica formal daquilo que se reconhece a ortodoxia cristã institucionalizada. A pressão dos hunos sobre as fronteiras imperiais faz parecer incrível que, ao invés de organizar algum tipo de iniciativa militar mais consistente, o imperador Marciano, sucessor de Teodósio II, estivesse disposto a dedicar tanto tempo a uma tal reorientação da política religiosa bizantina, “mas, de fato, essa era sua prioridade”. Prioridade em parte prática, já que cidades indóceis e tumultuosas em função de querelas teológicas generalizadas “eram muito mais difíceis de defender e impossíveis de se mobilizar em termos de homens e impostos”; mas que se devia mais à “sensação de que o império só sobreviveria com a ajuda divina, por ser o reino cristão ortodoxo, e que as recentes derrotas e desastres demonstraram, fora de qualquer dúvida, que a relação divina estava sob grave estresse” e que “[…] Somente a restauração da ortodoxia poderia salvar o mundo cristão”16. Foi por essa porta estreita que a corte imperial voltou-se para as concepções cristológicas da Sé Romana, condensadas no Tomo de Leão I, e do falecido patriarca Flaviano, cujos restos mortais, antes execrados como se os de um herege, foram levados para Constantinopla e sepultados com honras de mártir – isso ao mesmo tempo em que Crisáfio encontrou uma morte violenta e Eutiques seguiu Nestório no exílio. Embora não houvesse espaço para dúvidas quanto à nova coloração religiosa da ortodoxia, a lógica e o costume demandava uma declaração oficial de crença atestada por um novo concílio. Este, inicialmente convocado para Niceia, local prenhe de simbolismo por ter sediado o primeiro dos concílios ecumênicos, foi deslocado para Calcedônia, próxima aos subúrbios de Constantinopla, devido ao temor de um ataque bárbaro ou da irrupção de hordas de monges contrários à política religiosa de Marciano – eventos que possivelmente teriam um desenrolar igualmente violento.

O Concílio teve como seus objetivos revogar as decisões do Segundo Concílio de Éfeso, revertendo seus efeitos na política eclesiástica, e rejeitar de modo decisivo as versões menos transigentes da doutrina da Natureza Única (pregada por Eutiques) e das Duas Naturezas (atribuída a Nestório). Dióscoro de Alexandria foi considerado o grande culpado pelas violências intestinas que atingiram as igrejas do Mediterrâneo oriental na década anterior, e a grande Sé egípcia foi decisivamente desprestigiada. Alguns de seus seguidores conseguiram se adequar no devido tempo à nova ordem – como o bispo Juvenal de Jerusalém que, depois de vinte anos conspirando com os alexandrinos, decidiu que não mais mantinha a teologia que havia reconhecido antes como ortodoxa e conseguiu manter o estatuto patriarcal de sua Sé. O concílio também elevou o status e os privilégios de Constantinopla, que, por ser a capital subsistente do Império Romano, foi alçada à paridade com a velha – e então materialmente arruinada – Roma. A Sé constantinopolitana foi declarada como o segundo dos patriarcados em autoridade – de jurisdição superior às igrejas mais antigas de Alexandria e Antioquia –, tribunal de recurso dos sínodos provinciais do Oriente e superiora imediata das metrópoles eclesiásticas do Ponto, da Ásia, da Trácia e daquelas dioceses que estavam entre os bárbaros – expressão ambígua, mas que anunciava glórias vindouras naquele momento em que havia um notável incremento do esforço missionário na Europa oriental e na Ásia ocidental.

Evidentemente, o Patriarcado de Roma não se dispôs a aceitar de bom grado esta diminuição relativa de sua autoridade, e uma nova linha de trincheiras, vertical, não mais horizontal, começou a ser escavada no centro do Mediterrâneo cristão.

Depois de Calcedônia, Marciano foi saudado como sendo o segundo Constantino, mas, naquele momento, a assembleia não pareceu o fim, mas um estágio de um processo. A corte imperial ainda estava dividida em suas lealdades e regiões cruciais do império estavam firmemente comprometidas com opiniões consideradas heréticas pelos padres conciliares reunidos em Calcedônia.

Protestos furiosos e verdadeiras insurreições se alastraram por todo o crescente de territórios que vai do Alto Egito à Mesopotâmia, passando por Jerusalém e pelo sul da Anatólia. Os crentes da Natureza Única ficaram muito decepcionados, pois pouquíssimo tempo antes da reunião convocada por Marciano, “tiveram todos os motivos para acreditar que dominavam absolutamente a Igreja e o império”17.

Muitos consideravam o Concílio de Calcedônia tão repugnante quanto os romanos e bizantinos passaram a considerar o Segundo Concílio de Éfeso, e no Egito e em boa parte do Oriente Próximo os termos calcedônico e nestoriano começaram a ser utilizados como sinônimos. Jenkins observa que “[…] O grau de reação pode parecer estranho quando consideramos o quão expressivamente o concílio se inspirou no pensamento de Cirilo, mas aquele era um mundo mental em que mesmo a menor concessão ao erro em questões tão essenciais era uma traição contra a substância total da verdade cristã” 18. Nesta senda, Alexandria mergulhou na desordem política e religiosa, e a história de seu patriarcado foi durante uma centena de anos uma conturbada história de deposições e insurgências, exílios e restaurações. Os habitantes de mosteiros e eremitérios comprometidos com a posição teológica da Natureza Única constituíram-se em centros de formidável resistência à autoridade bizantina, seus carismáticos pregadores, aos quais se atribuíam costumeiramente dons taumatúrgicos, encabeçando verdadeiros levantes populares contra os representantes do governo constantinopolitano. O prolongado desgaste associado a este atrito haveria de cobrar seu preço em não muito tempo.

Na terceira parte do volume (Um mundo a perder), Jenkins faz um balanço do impacto global do Concílio de Calcedônia na história do movimento cristão.

No oitavo capítulo (Como a Igreja perdeu metade do mundo), ele narra como a condução da crise teológica catalisada por Calcedônia teve um encaminhamento dramático. Dois séculos depois do fim deste Concílio as facções beligerantes de de Constantinopla buscavam de forma cada vez mais desesperada algum tipo de entendimento que reconciliasse os partidários de Calcedônia com os diversos matizes de defensores da Natureza Única e das Duas Naturezas. Na década de 630, essa necessidade era tão premente que ensejou de forma serena a violência imperial contra o Patriarcado de Roma, que não se dispunha a aceitar de maneira dócil a definição, então apoiada por Constantinopla, de que importava em Jesus Cristo menos o fato de ele possuir uma natureza ou duas do que o de Ele atuar com uma vontade única19. De meados do século V ao final do século VII, houve períodos em que a ortodoxia calcedônia reinou na corte bizantina, períodos em que os regimes toleravam os partidários da Natureza Única, e períodos em que os imperadores simpatizavam com eles e buscavam uma conciliação de maneira ativa. Mesmo depois do credo calcedônico alcançar uma vitória política formal, as mesmas questões voltavam à pauta, irrompendo em novas formas. Os cismas entre jurisdições eclesiásticas importantes tornaram-se corriqueiros, mesmo entre Roma e Constantinopla, e partes rivais chegaram a estabelecer igrejas paralelas alternativas nas mesmas regiões. As deposições e os expurgos foram incorporados à vida eclesiástica corrente, enquanto tumultos dividiam cidades e províncias por divergências teológicas20.

Ainda que as autoridades imperiais nunca admitissem a divergência formal da ortodoxia que sustentavam, no começo do século VI, o mundo cristão estava, de fato, cindido em diversas igrejas transnacionais, cada uma com suas reivindicações de verdade absoluta e, progressivamente, mais e mais afastadas em suas formas de espiritualidade, disciplina eclesiástica, teologia e liturgia. O exemplo do estabelecimento de hierarquias pró-bizantinas (melquitas) no Delta do Nilo e no Oriente Próximo, estrutura que gradativamente constituiu uma espécie de enxerto de experiências eclesiais similares àquelas diretamente dependentes de Constantinopla nessas regiões mais antigas do cristianismo, promovendo uma releitura do patrimônio religioso da antiguidade cristã à luz da ortodoxia calcedônica, é o mais conhecido no ocidente, mas não o único. Uma importante facção da Igreja do Oriente manteve sua lealdade a Nestório e a partir primeiro de Edessa, uma região fronteiriça entre os domínios romanos e os persas, e depois de Nisibis, já em território governado pelo Xá, promoveu a expansão da teologia das Duas Naturezas desde as franjas orientais do território bizantino até o sul da Península Arábica, a Ásia Central, o Tibete, a China, a Índia e o Sri Lanka. Por sua vez os partidários da Natureza Única, associados de modo indelével à experiência do cristianismo egípcio, afirmaram-se como a ortodoxia cristã na Etiópia e na Núbia e estabeleceram uma presença permanente na Palestina, na Síria, em Edessa, na Mesopotâmia e na Índia, mantendo simultaneamente focos de atividades na Anatólia e na própria Constantinopla. No Egito, a rejeição de um patriarca de Alexandria nomeado pelo imperador bizantino em 516, e a crescente identificação deste governante, supostamente herético, com as forças infernais equivaleu a uma declaração aberta de independência da Igreja local.

De acordo com Jenkins, grosso modo, o credo calcedônico sobreviveu porque desenvolveu raízes profundas em centros fundamentais e organizados do cristianismo que ascenderam em prestígio e poder político ativo na segunda metade do primeiro milênio de nossa era: a Ásia Menor e os Balcãs, territórios cada vez mais centrais do Império Romano do Oriente, e em Constantinopla, sua capital. Roma permaneceu como um sólido bastião de apoio, mas manteve-se à margem das principais ondas de confronto teológico que abalavam e cindiam o mundo cristão, a não ser naqueles períodos, relativamente curtos, nos quais esteve diretamente sob o domínio político do imperador de Constantinopla. A manutenção da ortodoxia calcedônica, entretanto, fez-se ao custo de um prolongado e profundo desgaste do domínio sobre as áreas mais orientais do império. As divisões religiosas em grande escala, concentradas em áreas fronteiriças especialmente importantes do ponto de vista da geoestratégia e da sua produção de recursos materiais e humanos, abriram enormes fissuras no tecido imperial romano. Por primeiro, vieram os persas, que então baseavam suas reivindicações de expansão na fé zoroastrista, religião oficial do império dos Xás. Seu avanço significou o brusco direcionamento da Palestina e da Síria para o oriente, o virtual colapso de largas áreas da economia bizantina, o despovoamento de cidades e campos e o decisivo afastamento de muitas igrejas desta área da cristologia calcedônica – afinal, supunha-se que Deus não permitiria que tal derrota fosse infringida a um governo que estivesse praticando sua religião da forma correta. Em seguida, vieram os árabes muçulmanos. Enquanto o Egito e o oriente bizantino se afundavam em feudos religiosos, e o conflito com os persas chegava a um fim de jogo caracterizado pela exaustão mútua, novas forças religiosas se agitavam na Península Arábica. A história da ascensão do Islã é bem conhecida, mas, de fato, é difícil de compreender se não se leva em conta o estado das divisões cristãs posteriores ao Concílio de Calcedônia. Não por acaso, o colapso das posições bizantinas diante do avanço islâmico deu-se por primeiro naquelas regiões onde o sentimento popular se inclinava mais fortemente em direção das igrejas monofisita e nestoriana. Autores destas tradições chegaram a saudar os conquistadores árabes como libertadores da opressão causada por um regime herético e, ao menos nas primeiras décadas, de domínio islâmico, eles não viram maiores razões para mudarem de opinião; de fato, os muçulmanos pouco se importavam com as divisões dos cristãos, desde que todos eles respeitassem sua autoridade, pagassem seus impostos no prazo e, de um modo geral, estivessem dispostos a colaborar com os governantes adventícios.

No entanto, observa Jenkins, o livramento dos calcedônicos veio a um preço exorbitante. Por séculos, os cristãos monofisitas e nestorianos sobreviveram e até prosperaram nas sociedades dominadas por muçulmanos, mas, protegida pela autoridade constituída de uma civilização florescente, a parcela da população que professava a fé de Maomé cresceu mais e mais. Naquelas terras nas quais o cristianismo havia se estabelecido por primeiro, as comunidades cristãs gradativamente se tornaram minorias cada vez menores, sujeitas a leis mais duras, a medidas discriminatórias e, eventualmente, a campanhas de conversão forçada. “A Alexandria cristã virou progressivamente a Alexandria muçulmana, até que o Cairo, completamente muçulmano, se apropriou da maior parte de sua glória e riqueza”21. A partir do século XIII, uma série de desastres políticos e militares combinados com mudanças econômicas e climáticas decisivas criaram um ambiente intolerável para as minorias, algumas das quais foram totalmente eliminadas. De acordo com Jenkins, portanto, foi basicamente por falta de outra opção que o futuro do cristianismo esteve, primeiro, naquelas regiões minguantes ainda sujeitas ao Império Romano, que não tinham mais necessidade de conciliar as opiniões do Egito ou da Síria, e, depois, naquelas partes da Europa ocidental que nunca desafiaram o credo calcedônico22.

O nono e último capítulo do volume (O que foi salvo), é de morfologia e, pareceme, de intenção bastante diversa dos demais. Jenkins assinala sua crença de que “o processo de estabelecer a ortodoxia [cristã] envolveu muito mais do que podemos chamar de acidente político”; lembra que “[…] A experiência cristã inclui uma grande variedade de tendências diferentes, interpretações diferentes, e a maioria acha ao menos alguma justificativa nas Escrituras Sagradas ou na tradição”; e destaca que, afinal, “não é evidente por que uma corrente triunfou sobre a outra”23.

Daí a conveniência dos cristãos serem tolerantes “a respeito da diversidade das expressões não essenciais da fé”: “[…] Visto historicamente, sabemos que outras versões poderiam ter tido sucesso, e podem conseguir isso em tempos vindouros”24.

Após esta asserção, o autor passa a considerar alguns exemplos que mostram que, depois das batalhas de Éfeso e Calcedônia, seus temas continuaram a agitar cristãos de diferentes latitudes, que sabiam pouco ou nada a respeito desses acontecimentos originais. Para ele, é algo típico da história cristã que ideias e crenças continuem a ressurgir muito tempo depois que supostamente foram derrotadas ou exterminadas – seja porque sobreviveram enquanto tradições subterrâneas, clandestinas e contra hegemônicas; porque foram redescobertas mediante a pesquisa erudita e a leitura de textos antigos; ou porque constituem respostas mais ou menos necessárias a certas variáveis encadeadas pela combinação de determinadas ênfases ao se ler a Bíblia com uma constelação particular de estímulos e de sentimentos religiosos vinculados ao cristianismo.

Mais do que apenas constatar que “[…] A história da crença cristã é a história de ressurreições sem fim” de uma série vasta, mas não infinita, de temas e dramas teológicos, Jenkins conclui seu volume argumentando que as ideias alternativas que foram vencidas eram e são partes tão estruturais da fé tanto quanto a ortodoxia ainda subsistente, de modo que sempre precisam ser envolvidas, compreendidas e confrontadas pelos cristãos. “Num mundo ideal, livre das disputas de poder da Antiguidade”, destaca o autor, “esse diálogo pode em si ser uma coisa positiva, uma maneira pela qual o pensamento cristão desenvolve sua própria compreensão.

Uma religião que não está constantemente gerando alternativas e heresias parou de pensar e alcançou apenas a paz dos cemitérios”25.

Tal leitura humanista das guerras santas da Antiguidade Tardia, que é um corretivo necessário ao novo triunfalismo cristão que tem assumido, entre nós, a perigosa faceta de um movimento intolerante e potencialmente violento, é apenas um dos méritos do livro de Jenkins. Gostaria de apontar mais três deles.

O primeiro é sua escrita ao mesmo tempo fluida e segura, que torna acessível a qualquer leitor culto um tema tão complexo, normalmente reservado de um modo hermético apenas aos mais intrépidos teólogos e especialistas em história da religião. Por infeliz acaso, o encanto do texto é prejudicado na edição brasileira por uma tradução de qualidade muito desigual e por uma revisão especialmente mal realizada. São numerosos os anglicismos, os erros de pontuação e de concordância e até as confusões nominais, que tornam o entendimento do escrito muito mais difícil do que aquilo que o tema naturalmente já exige. Tais falhas se acumulam página a página – em certa parte, Tertuliano é confundido com Mani; em outra, Pôncio Pilatos é promovido de governador a imperador; e assim por diante –, causando sobressaltos e sinuosidades inexistentes na publicação original e bastante prejudiciais ao leitor. O simples concurso de um especialista no tema poderia ter melhorado muitíssimo a publicação e espera-se que, em uma possível segunda edição do volume, ao menos os erros mais gritantes sejam suprimidos. (Por exemplo, aquele, risível, que se verifica na p. 141, onde o esquema da árvore genealógica da dinastia de Teodósio é substituído pela observação “Entra figura da árvore”). Não obstante este sério problema, o estilo de Jenkins, que denuncia, sob seu professo cristianismo tolerante e conciliador, escandalizado com a violência das disputas religiosas do primeiro milênio, o impacto da verve irônica de Edward Gibbon, é por si só um atrativo do volume. Outro mérito é o fato de o pantanoso e espinhento terreno dos debates cristológicos ser destrinchado com a ajuda de imagens extraídas da atualidade, da cultura contemporânea, analogias que, sem cair em anacronismo simplista, ajudam o leitor a estabelecer parâmetros de comparação e a desnaturalizar as concepções mais difusas da história cristã. A paleta de referências mobilizadas nesta tarefa é notável: a Família Soprano, o Gangues de Nova Iorque de Scorcese, as batalhas de hooligans, o ativismo xiita, Osama bin Laden, as convenções anuais do Partido Republicano, o macarthismo e os esquetes de Monty Python são todos referidos para que o leitor seja introduzido no debate acerca de como os conflitos que precederam, marcaram e seguiram as assembleias eclesiásticas de Éfeso e Calcedônia reinventaram o cristianismo, de como “um mundo [foi] moldado pelo resultado daquelas lutas quase esquecidas do século V, que aconteceram num mundo de impérios e Estados que acabaram todos na ruína”26.

O terceiro e talvez maior dos méritos do livro de Jenkins, especialmente no mercado editorial brasileiro, é o fato de ele basear seu trabalho não apenas nos textos tradicionalmente utilizados pelos historiadores ocidentais do cristianismo, mas investir na consideração das fontes que consideram a própria versão do cristianismo que veio a se tornar a hegemônica no mundo ocidental como herética. O autor não se guiou apenas pelos manuais, nem mesmo pela bibliografia específica, mas foi ler e apresentar aquilo que foi registrado nas eventualmente confusas atas conciliares e nos historiadores eclesiásticos dissidentes bizantinos, siríacos e coptas; ao lado dos conhecidos volumes de Sozômeno, Evágrio. Sócrates e Procópio de Cesareia, Jenkins arrola a crônica do Pseudo-Dioniso de Tell-Mahre, a História dos Patriarcas de Alexandria, as hagiografias de Pedro Ibérico e de Severo de Antioquia, a crônica de João, bispo de Nikiu, as cartas de Filoxeno de Mabbôgh, entre outros escritos.

Ele faz especial referência ao Bazar de Heráclides, longa e interessante memória escrita pelo deposto e condenado Nestório durante seu exílio, que teve uma edição siríaca redescoberta por estudiosos europeus em um mosteiro no Curdistão no começo do século XX. Para o desconhecimento destas fontes, cujas consequências são a aceitação de certas valorações teológicas (como ortodoxo) como se simples descrições históricas e a acentuação da parcialidade que sua exclusão implica, contribuem – é bom que se tenha claro – não apenas dificuldades de ordem linguística ou o fragilíssimo estado da pesquisa em língua portuguesa neste campo de investigação, mas também preconceitos residuais de ordem especificamente religiosa. Utilizando um leque mais amplo de versões acerca dos acontecimentos eclesiásticos do século V e de seus desdobramentos, Jenkins consegue devolvê-los à sua historicidade particular e desnaturalizar as narrativas oficiais mais difundidas no ocidente sobre a história do cristianismo. Graças a este redirecionamento, todo um novo campo se abre à investigação histórica e teológica sobre a constituição da ortodoxia cristã conforme agora nós a conhecemos.

Notas

2 JENKINS, Philip. A próxima cristandade: a chegada do cristianismo global. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 44.

3 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 48.

4 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 43-44.

5 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 27-28.

6 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 45.

7 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 46.

10 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 55.

11 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 109.

12 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 128.

13 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 149.

14 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 159.

15 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 223.

16 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 226.

17 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 244.

18 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 244.

19 Rejeitada não apenas por Roma, mas também pelos egípcios e pelos sírios – as partes contentoras que pretendia contemplar – e abandonada posteriormente pela Igreja Bizantina, esta fórmula de fé continua a subsistir como a cristologia oficial da Igreja Apostólica Armênia. Cf. DALE, Irvin T. & SUNQUIST, Scott W. História do movimento cristão mundial – Vol . 1: do cristianismo primitivo a 1453. Tradução de José Raimundo Vidigal. São Paulo: Paulus, 2004, p. 262-263.

20 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 259 21 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 295.

22 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 295.

23 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 297-298.

24 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 298.

25 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 308.

26 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 60.

Alfredo Bronzato da Costa Cruz –  Mestre em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Bacharel e Licenciado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. E-Mail: bccruz.alfredo@ gmail.com.

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A História das Constituições brasileiras: 200 anos de luta contra o arbítrio – VILLA (NE-C)

VILLA, Marco Antonio. A História das Constituições brasileiras: 200 anos de luta contra o arbítrio. São Paulo: Leya, 2011. Resenha de: SILVA, Virgílio Afonso da. Historinhas (Irrelevantes) sobre as Constituições brasileiras. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.96, Jul,.2013.

Em alguns âmbitos, e certamente no campo do direito, a academia brasileira escreve muito pouco para o grande público. Em sua História das constituições brasileiras, Marco Antonio Villa avisa, logo no início, que não se trata de um livro de direito constitucional, tampouco de uma obra acadêmica1 , o que certamente chama a atenção para o livro. O autor conseguiu mostrar que é possível escrever sobre um tema árido sem que a linguagem seja necessariamente árida. Infelizmente, contudo, talvez esse seja o único mérito do livro.

Villa não conta uma história das constituições brasileiras; simplesmente compila anedotas e lugares-comuns ao lado de equívocos conceituais e falta de informação. No livro, quase tudo é classificado como “bizarro”, “curioso”, “inusitado” ou “exótico”, e o Brasil como um país sem “seriedade legal”2 .

O livro carece, também, de fio condutor identificável. Quando muito, baseia-se em duas premissas que, se não necessariamente equivocadas, demandam alguma fundamentação. O simples fato de ser um livro não acadêmico, não jurídico, feito para o grande público, não isenta o seu autor de expor suas premissas e justificá-las. Essas duas premissas, ainda que não explícitas, são: (1) as constituições brasileiras, com raríssimas exceções, sempre foram muito detalhadas e tratam, frequentemente, de assuntos não constitucionais; (2) as constituições brasileiras são muito longas, têm muitos artigos (uma consequência quase natural, aparentemente, da primeira premissa)3. Essas premissas não são necessariamente equivocadas, mas demandam fundamentação. Quando o autor afirma que as constituições brasileiras com frequência trataram de assuntos que não são tipicamente constitucionais4 , parece ele supor que existe um critério claro que permita, em todos os casos, distinguir o que é assunto constitucional do que não é. Mas Villa parece não ser capaz de definir esse critério. Não basta citar aqui e ali artigos, incisos ou parágrafos anedóticos dessa ou daquela constituição, que, por razões que não importam neste momento, conseguiram chegar ao texto constitucional. Infelizmente, contudo, esse é o argumento-padrão de Villa ao longo do livro: ao invés de buscar critérios ou parâmetros para as suas afirmações, ele recorre ao anedótico.

A obsessão pelo número de artigos das nossas constituições segue a mesma linha: elas seriam muito longas porque tratam de muitos assuntos. Mas, da mesma forma que Villa não explica o que deve e o que não deve ser tratado em uma constituição, também não explica o que é uma constituição longa, tampouco qual é a relação do tamanho de uma constituição com sua qualidade e capacidade de produzir os efeitos desejados.

Com essas deficiências no pano de fundo, pretendo, nos próximos tópicos desta resenha, analisar as principais ideias e problemas do livro de Villa: a questão do tamanho de nossas constituições; o recurso a anedotas como estratégia argumentativa; o uso questionável de comparações com outros países (apenas quando isso interessa aos objetivos do autor); o grande número de equívocos conceituais e a frequente referência a situações fora de contexto, com o intuito de apresentá-las, para usar o vocabulário de Villa, como “bizarras”, “exóticas” ou “curiosas”.

O TAMANHO DE NOSSAS CONSTITUIÇÕES

Villa está convencido de que nossas constituições sempre foram muito longas, com muitos artigos, muitos dos quais tratam de “assuntos não constitucionais” ou são, para usar o termo preferido do autor, simplesmente bizarros. Villa compra um dos maiores lugares-comuns a respeito da extensão das constituições: boa é aquela com poucos artigos5. De brinde, leva também outra história da carochinha: a Constituição dos Estados Unidos é boa e longeva porque tem poucos artigos6.

Duas questões, no entanto, não são respondidas: (1) por que uma constituição com poucos artigos é melhor do que uma com muitos? (2) O que exatamente significa “poucos artigos” (ou “muitos artigos”)? Villa faz uma discutível contraposição entre países “com seriedade legal” e países “sem seriedade legal”. Aqui tampouco diz o que significam esses dois conceitos. Apenas ficamos sabendo que, para ele, o Brasil se inclui na segunda categoria. Mas não parece ser difícil supor que Estados Unidos e alguns países europeus seriam incluídos na primeira. A Constituição brasileira de 1988 tinha, em seu texto original, 245 artigos. Já a Constituição dos Estados Unidos, que parece ser o ideal de constituição para Villa, tem apenas sete artigos no seu texto original e 27 artigos extras, inseridos por emendas. Mas o que dizer então das constituições da Alemanha, com 146 artigos, dos Países Baixos, com 142, ou da Suíça, com 197 artigos? Se a qualidade de uma constituição é medida pelo número de artigos, Brasil e Suíça parecem ter muito em comum. Pelo menos essa deveria ser a conclusão de Villa.

O que Villa não quer ver é o óbvio: ter poucos ou muitos artigos, em si, não significa absolutamente nada. Em primeiro lugar, por uma razão trivial: o conceito de artigo não é algo estanque e igual para todas as constituições. Aquilo que a Constituição dos Estados Unidos chama de artigo é uma unidade dividida em diversas seções que, por sua vez, estão divididas em diversos parágrafos. Ou seja: o conceito de artigo na Constituição dos Estados Unidos equivale a uma divisão interna do texto que teria função mais próxima dos títulos e capítulos da Constituição brasileira, não do nosso conceito de artigo. Tendo isso em mente, a comparação muda bastante. Os sete artigos originais da Constituição dos Estados Unidos não seriam, na verdade, sete artigos para os padrões legislativos brasileiros (e de diversos outros países). Mas, mesmo com esses ajustes, a comparação continua não tendo nenhuma relevância.

A quantidade de artigos ou, o que é muito mais relevante, a quantidade de temas tratados em uma constituição não são questões definíveis a priori, com base em padrões imutáveis. Quem afirma que determinados artigos não deveriam estar na constituição tem que expor o seu conceito de constituição. O leitor que procurar esse tipo de informação no livro de Villa sairá frustrado. A tentativa de demonstrar que há coisas fora de lugar é feita apenas por meio de exemplos anedóticos escolhidos a dedo, ignorando tradições jurídicas, conjunturas históricas ou aspectos políticos.

Villa não pretende, por exemplo, contextualizar sua análise e afirmar que a Constituição dos Estados Unidos é mais enxuta do que a de outros países simplesmente porque foi feita em uma época distinta da maioria das constituições ainda em vigor. O que se almejava com uma constituição no século XVIII não é o mesmo que se costuma pretender atualmente. Tendo esse contexto em mente, a Constituição brasileira, ainda que possa ser mais pródiga em temas do que outras, destoa menos do padrão contemporâneo do que Villa quer fazer crer.

Além da recorrente crítica ao suposto tamanho exagerado de nossas constituições, o livro é também um desfile de “causos” que nada provam e não têm, de fato, qualquer relação com a história de nossas constituições. Villa dedica páginas e mais páginas a expor informações absolutamente irrelevantes, como se interessasse a alguém que quer conhecer a história de nossas constituições saber que Olavo Bilac, no exercício da função pública, escrevia despachos em forma de versos7 , ou que o Visconde de Taunay impediu José do Patrocínio de fazer um discurso no primeiro casamento civil celebrado no Brasil8 , ou ainda que, na década de 1930, um açougueiro foi preso por uma diferença de 50 gramas na venda de carne9. Informações como essas, que nada dizem sobre as constituições brasileiras, recheiam o livro de Villa.

Nas suas críticas às constituições brasileiras, Villa usa as experiências internacionais apenas e tão somente na medida em que sirvam aos seus objetivos. Em diversos momentos, ele finge estar diante de artigos que só poderiam fazer parte de constituições de “repúblicas bananeiras”, para usar outra expressão do próprio Villa10 . A leitura de constituições de outros países, no entanto, mostraria um cenário diverso.

Villa afirma, por exemplo, que o artigo que define a língua portuguesa como idioma oficial do Brasil (art. 13) é muito “estranho”, “pois ninguém estava pretendendo adotar outra língua”11. Do ponto de vista jurídico, essa afirmação não faz sentido, pois supõe que só deve fazer parte de uma constituição aquilo que está em risco. Além disso, no plano do direito comparado, teríamos que supor, por exemplo, que o art. 2 º da Constituição da França, que declara o francês idioma oficial do país, deve ter sido uma reação a alguma revolta desconhecida que pretendia forçar a adoção de outra língua na terra de Molière. O mesmo vale para o art. 8 º da Constituição da Áustria, que diz que o alemão é o idioma oficial do país, e para o art. 27 da Constituição polonesa, que declara que o polonês é o idioma oficial da Polônia.

O art. 4º da Constituição de 1988 é chamado de “latino-americanismo” (em sentido irônico e pejorativo, claro), por fomentar a integração latino-americana12. Talvez fosse o caso de perguntar se Villa diria o mesmo sobre o art. 23 da Constituição alemã acerca da consolidação da União Europeia.

Para Villa, é “incrível” o fato de que a Constituição de 1824 tivesse um artigo que declarava que “a pessoa do imperador é inviolável e sagrada: ele não está sujeito a responsabilidade alguma”13. Se a “rigorosa pesquisa” a que faz menção a orelha do livro tivesse de fato ocorrido, teria sido fácil descobrir que outras constituições da época tinham artigos idênticos. Uma sugestão de leitura seria o art. 5º da Constituição da Noruega (ainda hoje em vigor), segundo o qual “a pessoa do rei é sagrada; ele não pode ser censurado ou acusado”.

O tamanho da Câmara dos Deputados também é alvo da estratégia de mostrar dados de maneira enviesada. Na aritmética de Villa, se a Câmara brasileira tem 513 e a dos Estados Unidos tem 435 membros, algo está errado, porque a população americana é maior do que a nossa. Villa afirma: “A Câmara chegou ao número total de 513 deputados, uma das maiores do mundo (nos Estados Unidos, a Câmara dos Representantes tem 435 membros e a população é superior à brasileira)”14. Mas o que dizer, então, da Assembleia Nacional francesa, com 577 membros, ou do Parlamento alemão, com 620, ou da Câmara dos Comuns na Inglaterra, com, pasmem, 650 membros? Aqui, de novo, esses exemplos atrapalhariam o esquisito argumento de Villa. Melhor então escondê-los (já que, se Villa afirma que a Câmara brasileira é “uma das maiores do mundo”, é possível supor que ele tenha pesquisado o tamanho de outras casas legislativas e, portanto, sabia desses números).

Além de não fazer comparações internacionais quando não interessa, Villa baseia parte da sua análise de casos supostamente “bizarros” em noções jurídicas bastante equivocadas. Ele confunde impedimento do presidente com impeachment, para depois chamar de “exótico” o sistema de substituições e sucessões da atual Constituição brasileira15. O exotismo, contudo, só surge por causa dessa confusão conceitual.

Outro equívoco recorrente, especialmente na análise da Constituição de 1988, é forçar incompatibilidades entre dispositivos constitucionais com o propósito de mostrar que nossas constituições são feitas sem cuidado, que aceitam qualquer coisa e que nelas haveria diversas previsões mutuamente excludentes. Villa afirma: “É evidente que são excludentes a democracia direta e a representativa. A dubiedade constitucional foi um meio de aparar as arestas entre os diferentes grupos políticos”16. A afirmação está fora de qualquer contexto e é difícil saber o que Villa quer dizer com ela. É possível supor que ele esteja mencionando o parágrafo único do art. 1º da Constituição, que prevê que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. Embora Villa afirme que há uma contradição “evidente”, ele não diz a razão. O certo é que há inúmeras constituições pelo mundo afora que se apoiam em ideias semelhantes: a democracia representativa é matizada por instrumentos de democracia direta como plebiscitos, referendos ou leis de iniciativa popular. Não há aqui qualquer exotismo.

Pelo contrário, é absolutamente comum que constituições contenham regras gerais que sejam excepcionadas pela própria constituição. É tarefa básica do jurista harmonizar esse tipo de relação entre normas. Villa engana-se, portanto, quando afirma que a contradição que ele aponta como evidente “vai se repetir várias vezes” ao longo da Constituição17. Seu segundo exemplo de normas “evidentemente excludentes” é igualmente equivocado: segundo ele, não é compatível garantir a propriedade (art. 5º, XXII ) e, ao mesmo tempo, exigir que ela cumpra sua função social (art. 5º, XXIII). Qualquer estudante de primeiro ano de direito aprende a resolver essas relações entre regra geral e regra especial.

Quando Villa comenta o art. 4º , parágrafo único, da Constituição de 1988, já mencionado acima, segundo o qual a “República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”, além de pejorativamente classificar o artigo de “latino-americanismo”, Villa afirma:

O despropósito está explícito. Não é somente um princípio. Muito mais do que isso, trata-se da determinação para iniciar o processo de formação de uma comunidade de nações, tal qual a europeia. Como se bastasse simplesmente externar um desejo, como se a palavra substituísse a ação e todas as contradições na organização de uma comunidade tão díspar18.

O que está explícito, contudo, não é o despropósito do texto constitucional, mas o despropósito da interpretação de Villa, que, de novo, tenta forçar a impressão de algo exótico e incrível. É claro que a palavra não substitui a ação. Mas a palavra — no caso uma previsão constitucional — tem uma força normativa que não pode ser ignorada, pois aponta para uma direção a ser seguida. Normas constitucionais não garantem apenas direitos ou definem a organização do Estado, elas também podem definir — e com frequência definem — objetivos a serem perseguidos. O art. 4º , parágrafo único, faz exatamente isso.

Há diversos outros equívocos conceituais ao longo do livro de Villa. Embora isso possa indicar menos cuidado na elaboração do livro do que a orelha e a apresentação do livro sugerem, alguns desses equívocos conceituais não seriam necessariamente um problema digno de muita atenção, especialmente em um livro não jurídico e não acadêmico. A menção a alguns deles acima não tem, portanto, o objetivo de apontar o erro pelo erro. O problema é que cada um dos incontáveis equívocos serve de trampolim para que Villa invente mais uma de suas situações aparentemente “exóticas”, “bizarras” ou “inusitadas”. Tendo esse objetivo em mente, Villa deveria ter se preparado melhor. É claro que, se o tivesse feito, teria encontrado menos historinhas para contar, mas certamente haveria menos razões para corrigi-lo.

Outra forma de forçar exotismos é por meio da referência a situações descontextualizadas. Assim, o leitor incauto poderá imaginar que o voto censitário (baseado na renda ou propriedade) durante o império era mais uma invenção brasileira19 , embora qualquer estudioso saiba (Villa inclusive) que o voto censitário era a regra geral no século XIX , no mundo inteiro.

No capítulo sobre o STF , Villa cita a frase, supostamente dita por um de seus ministros no passado: “Estamos aqui para aplicar a lei e não para fazer justiça”20. O objetivo de Villa parece ser o de sugerir aos leitores que o STF sempre foi formado por pessoas de caráter duvidoso. O problema é que a frase não tem nada de peculiarmente brasileira e nada diz sobre o caráter de um juiz. Ela expressa, ainda que de forma simplificada, um dos pontos centrais de uma corrente jurídico-filosófica dominante por muito tempo (e ainda influente) — o positivismo jurídico — que defende, entre outras coisas, que não cabe ao juiz fazer juízos morais21. Mas revelar esse decisivo detalhe atrapalharia os objetivos de Villa. E não se trata de mero desconhecimento do autor. A frase acima citada teria sido dita pelo ministro Hahnemann Guimarães a Lêda Boechat Rodrigues, autora de um extenso trabalho sobre a história do STF , que Villa cita. É possível supor, então, que ele o tenha lido. No entanto, ao contrário de Villa, Lêda Boechat Rodrigues não cita o episódio de forma descontextua­lizada e faz questão de explicar o que há por trás da frase do ministro: “A convicção do Ministro Hahnemann Guimarães era a de um ardente positivista jurídico”22. E, embora de forma bastante simplificada, não deixa dúvidas de que se trata de um embate de correntes jurídico-filosóficas, não de questões de caráter: “Mais próximas do meu sentir ressoavam as palavras do admirável Benjamin N. Cardozo […]. A Escola Sociológica do Direito americana parecia-me levar a sentenças de muito maior valia que as inspiradas pelo Positivismo Jurídico”23. Se Villa tivesse exposto o contexto, teria perdido a oportunidade de tripudiar às custas de um possível desconhecimento de seus leitores do que está por trás dos fatos que narra. Mais uma vez, preferiu esconder os detalhes.

O livro de Villa, em suma, além de não ser uma história das constituições brasileiras (tampouco do STF), mas uma mera coleção de anedotas pouco relevantes sobre temas marginais, é todo baseado em estratégias argumentativas duvidosas, por não mostrar contextos, por esconder a experiência internacional com o intuito de fazer crer que nossa experiência é sempre singular e, por fim, por basear-se em interpretações equivocadas dos textos constitucionais.

Villa parece se divertir com um suposto exotismo brasileiro. Uma pena que não o demonstre por meio de uma análise mais bem informada. Com isso, perdeu a oportunidade de escrever um livro interessante, que analisasse por que, em determinados momentos, as constituições brasileiras não conseguiram produzir os efeitos esperados. Poderia, até mesmo, tentar entender por que nossas constituições foram aumentando de tamanho, já que esse parece ser um tema que o interessa. Poderia, por que não, também mostrar o que funcionou nos últimos quase duzentos anos. Isso não significaria fazer uma análise ufanista de nossas constituições. Tampouco deixaria o livro mais árido. Mas Villa preferiu o caminho fácil, o anedótico. Para quem está atrás de anedotas irrelevantes, pode ser um passatempo indolor. Já para quem procura uma história das constituições brasileiras, ler o livro de Villa é definitivamente pura perda de tempo.

Notas

1 VILLA, Marco Antonio. A história das constituições brasileiras: 200 anos de luta contra o arbítrio, pp. 9-10.         [ Links ] 2 Ibidem, p. 126.
3 Não quero com isso dizer que essas são as duas únicas premissas do livro de Villa. Com certeza deve haver outras, tão pouco explícitas quanto essas que menciono. Se há alguma premissa explícita, talvez sejam as duas definidas na apresentação do livro: a predominância do arbítrio estatal em nossas constituições e a dissociação dos textos constitucionais com o Brasil real (p. 10). Essas duas premissas, contudo, não são de fato desenvolvidas ao longo do livro (ainda que, no caso da primeira, ela seja o pano de fundo das constituições dos períodos autoritários de nossa história).
4 Por exemplo, Villa, op. cit., pp. 40, 48, 56, 90, 126.
5 Ao longo de quase 150 páginas, Villa consegue encontrar apenas um único ponto positivo em todas as constituições da história do Brasil: a de 1891 foi uma constituição concisa (p. 32). O número de artigos das nossas constituições é quase um fetiche para Villa e é tema recorrente no livro (além da p. 32, cf. também as pp. 48 e 115, por exemplo).
6 Ibidem, p. 116.
7 Ibidem, p. 28.
8 Ibidem, p. 39.
9 Ibidem, p. 64.
10 Ibidem, p. 90.
11 Ibidem, p. 127.
12 Ibidem, p. 117.
13 Ibidem, p. 19.
14 Ibidem, p. 119, grifos meus.
15 Ibidem, pp. 121-122, 125.
16 Ibidem, p. 118.
17 Ibidem, p. 118.
18 Ibidem, pp. 117-118.
19 Ibidem, p. 17.
20 Ibidem, p. 131.
21 Apenas para ficar nos autores clássicos dessa corrente jusfilosófica, cf. KELSEN, Hans. Reine Rechtslehre. 2. ed. Viena: Deuticke,         [ Links ] 1960; HART, H. L. A. The concept of law. Oxford: Clarendon Press,         [ Links ] 1961. Há traduções brasileiras de ambos os livros.
22 RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, t. III,         [ Links ] p. 39.
23 Ibidem.

Virgílio Afonso da Silva – Professor titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP.

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A era da ilusão: a diplomacia nuclear em tempos traiçoeiros – ELBERADEI (CTP)

ELBARADEI, Mohamed. A era da ilusão: a diplomacia nuclear em tempos traiçoeiros. São Paulo: Leya, 2011. Resenha de: ARIAS NETO, José Miguel. É Possível um Mundo sem Armas Nucleares? Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 05 – 05 de outubro de 2012.

“Para que então a amaldiçoada fadiga que Deus deu ao gênero humano como tarefa diária durante a sua curta vida? Para que a carga sob a qual cada um vai abrindo o seu caminho para a sepultura? E ninguém foi interpelado sobre se sim ou não desejava carregar com ela, se queria ter nascido neste lugar, nesta época e neste ambiente. Sim, porque já que a maior parte dos males que afligem os homens deriva deles próprios, das suas leis e governos deficientes, da arrogância dos opressores e de uma quase inevitável fraqueza de governantes e governados, que destino foi esse que submeteu o homem ao jugo de sua própria espécie, à fraca ou louca arbitrariedade do seu semelhante?” Johann Gottfried Herder. Idéias para a Filosofia da História da Humanidade. (1784-1791)

“Deve, portanto, instaurar-se o estado de paz; pois a omissão de hostilidades não é ainda a garantia da paz e se um vizinho não proporciona segurança a outro ( o que só pode acontecer num estado legal) cada um pode considerar como inimigo a quem lhe exigiu tal segurança. Immanuel Kant. A paz perpétua. (1795-1796).

O livro de Mohamed Elbaradei é extraordinário. A começar pelo título, cujo original em inglês The age of deception, traduzido elegantemente para o português como A era da ilusão.

Tanto o original como a tradução induzem à uma reflexão. O leitor deve atentar para o fato de que deception não é uma decepção no sentido trivialmente atribuído à palavra, assim como também o termo ilusão pode induzir ao engano se entendido como engano ou confusão. De fato o termo ilusão é perfeitamente intercambiável com deception na medida em que seja entendido como “manobra astuciosa para enganar ou iludir”, também como registra o Houaiss: promessa de prazer, felicidade, durabilidade etc. que se revela decepcionante, dolorosa ou efêmera; esperança vã; decepção, desilusão.Esta compreensão é fundamental para que de imediato se saiba que o livro é uma obra que busca despertar uma centelha de esperança na nossa contemporaneidade. Esperança no diálogo e não na força, na autoridade moral e não na imposição arbitrária. É uma obra digna de um Nobel da Paz, ao autor à IAEA (Agência Internacional de Energia Atômica) concedido em 2005. A vida e o livro de Mohamed dão uma resposta às indagações de Herder: ele, assim como nós, não foi interpelado sobre se desejava ou não nascer neste tempo, no lugar e no ambiente em que veio ao mundo. Mas ele tomou, durante sua curta vida, a tarefa diária de construiruma paz cosmopolita.

Daí o título que é denúncia sobre a “arte de iludir”, e sobre a “ilusão” e, neste caso sim, o engano, que Elbaradei aponta exaustivamente, em se acreditar que é possível um mundo sem armas nucleares mantendo-se o status quo atual, no qual os países detentores de armamentos procuram impedir, por meio da astúcia, irmã maligna da prepotênciaII, que os não detentores desenvolvam seus programas, inclusive para fins pacíficos. Em última instância, trata-se de um livro que analisa a questão do ponto de vista das relações de poder.

Assim, o título do livro possui um duplo sentido que indica o direcionamento da crítica encetada pelo autor e, ao mesmo tempo, a inabalável crença de que um mundo com programas nucleares pacíficos só existirá a partir do diálogo, da negociação franca, da superação das desconfianças mútuas, e da renúncia a um mundo dividido assimetricamente.

O livro é dividido em doze capítulos, além de introdução e conclusão. Em cada um dos capítulos é analisado um “caso” de atuação da IAEA em situações de conflito sobre o desenvolvimento de programas nucleares. No conjunto o livro abarca os últimos vinte anos, havendo alguns recuos até os anos oitenta que funcionam mais ou menos à guisa de notas explicativas. Os casos analisados são o do Iraque após a primeira e durante a segunda guerras do Golfo; a Coréia do Norte, dos primórdios do programa nuclear até às detonações de bombas nucleares; o caso da Líbia; da descoberta da rede clandestina de A.Q. Khan e finalmente o caso do Irã é abordado em quatro capítulos, dos primórdios do programa à sabotagem do Acordo Irã-Turquia- Brasil. Há ainda um capítulo no qual é narrada a premiação com o Nobel e os desdobramentos desta na atuação da agência e do próprio Mohamed.

A astúcia, quando desempenhando o papel de irmã maligna da prepotência, não é aquela que afirmava Hobbes ser a alternativa para os mais fracos defenderem-se dos mais fortes, ao contrário, como Mohamed bem a caracteriza, é a utilização, com base na potência ou projeção da força, dos critérios de dois pesos e duas medidas, tema que intitula um dos mais inquietantes capítulos do livro. De fato, pensando nos EUA e no Reino Unido, Elbaradei aponta os seguintes desdobramentos na política internacional do final dos anos oitenta aos nossos dias: a) apesar da destruição pela IAEA do programa nuclear do Iraque e apesar desta não encontrar vestígios de armas de destruição em massa (informação que hoje se tem seguramente) se faz uma guerra destrutiva para depor o regime; b) pressiona-se a Coréia do Norte, mas quando esta faz seu primeiro teste com um artefato nuclear, faz-se um acordo; c) Também se é tolerante com a Índia, Paquistão e Israel – países não signatários do TNP; d) adota-se, na administração Bush e Blair, como explica o autor, o mantra “nenhuma centrífuga funcionando no Irã”, a despeito do fato deste ser signatário do referido acordo, e por isto mesmo, possuir o direito de desenvolver programa nuclear com fins pacíficos e, finalmente, e) o mau exemplo das potencias nucleares em não apenas manter, mas incrementar seus arsenais nucleares, quando, de acordo com os dispositivos do TNP deveriam estar destruindo-as.

Além disso, os EUA, o Reino Unido e Israel procuraram e obtiveram estrondoso sucesso em sabotar todas as iniciativas que a IAEA sob a batuta de Elbaradei, tomou no sentido de estabelecer um protocolo adicional de inspeções com o Irã, aproveitando-se do clima de desconfiança em relação a este último por parte do mundo ocidental. Esse processo de sabotagem continua inclusive na censurável e vergonhosa atitude dos EUA e do Conselho de Segurança da ONU em dinamitar o acordo Brasil-Turquia-Irã em 2010.

Enganar-se-ia, porém, quem apressadamente pensar que Elbaradei adota uma narrativa do tipo “mocinho-bandido”, invertendo os termos destas, fazendo dos EUA , do Reino Unido ou de Israel “um outro eixo do mal”, por exemplo. De fato, Elbaradei não economiza críticas ao Iraque, à Coréia do Norte ou ao Irã, demonstrando como estes regimes muito fizeram para provocar a “desconfiança” do ocidente, atitude que forneceu às potências nucleares que dominam o Conselho de Segurança da ONU, os argumentos – verdadeiros e falsos – para desenvolverem esta política, aparentemente insana. Digo aparentemente, pois o livro de Elbaradei é ilustrativo quanto a esta questão também e não permite nenhuma ilusão.

Para discutir este problema é preciso levar em consideração três questões fundamentais nas Relações Internacionais, com aquele interesse cosmpolita Herderiano-Kantiano: a História, a Cultura e a Política.

Comecemos com a História e façamos aqui uma junção de Herder com Kant, mesmo que para desgosto de ambos os filósofos. Herder, discípulo de Kant, tinha uma perspectiva de História fundada na tragédia e não na dialética, o que bem caracteriza o romantismo alemão e seus seguidores, especialmente Leopold Von Ranke que cunhou a famosa e mal entendida frase wie es eigentlich gwesen ist, isto é a História tal qual se passou. Ranke aqui só retoma Herder quando este afirma que a História deve ser a ciência do que é, e não do que deveria ser, afirmação que o segundo faz contra as formulações ético-teleológias de Kant e o primeiro contra as de Hegel. Mas se Ranke recusa a idéia de uma finalidade moral na história – recusa que é compartilhada por Fustel de CoulangesIII – é porque refuta a idéia de uma história mestra da vida, com seu cortejo de exemplos e prescrições morais. Como conseqüência – de grandes implicações para os estudos históricos – não há um destino dado apriori a ser cumprido pela humanidade. Por outro lado, a história tem um sentido conferido pelo historiador em seu trabalho artístico de reconstrução do conhecimento a partir de seu presente.

É a busca rankeana pelos “nexos causais” que permitirão a formulação de “totalidades significativas” na história. Essas aparecem- e aqui se reata com a filosofia de Hegel -como a realização do espírito no mundo, como aquilo que essencialmente é, e o trabalho do historiador é olhar com olhos imparciais – pelo lado da ciência – e reconstituir o conhecimento através da escrita – pelo lado da arte.

Esta perspectiva tem uma grande importância em nossos dias, na medida em que, tanto Herder, quanto posteriormente Ranke, insistem em que olhemos as questões de um ponto de vista “neutro, imparcial” como fundamento da busca de uma verdade possível, mesmo que fragmentada. A utilidade destas formulações reside no fato de que devemos ter, em nosso modo de ver as coisas, certa dose, do que a antropologia do século XX denominou “relativismo”. Ou, retomando as formulações de um dos mais antigos historiadores e de um “especialista em história da guerra”, procurar compreender os negócios humanos como Heródoto, que afirmava em sua História: “Ao escrever a sua História, Herodoto de Halicarnasso teve em mira evitar que os vestígios das ações praticadas pelos homens se apagassem com o tempo e que as grandes e maravilhosas explorações dos Gregos assim como a dos bárbarospermanecessem ignoradas; desejava ainda, sobretudo, expor os motivos que os levaram a fazer guerra uns aos outros”.IV É esta dose certa de relativismo que possibilita a Elbaradei fazer uma contundente crítica do que ele chama de “diplomacia nuclear”, com seus teatros, simulações e dissimulações que tem jogado o mundo em uma tensão sem fim e originado atos da mais completa barbárie quando se constata o sofrimento inominável a que é submetida nesse processo a população mais vulnerável. As guerras, tensões, os bloqueios e sanções são os exemplos de como essa diplomacia tem moído carne humana num liquidificador que não desliga. Igualmente criminosos e responsáveis, desse ponto de vista, são os governos de todos os países envolvidos nessa “diplomacia” nuclear, deletéria para a vida humana. São todos igualmente culpados: dos EUA à Coréia, passando por Israel, Iraque, Irã, inclusive aqueles que pecam pela omissão, pelo silêncio.

Eis as coisas como são. No entanto, aqui também residem, em parte, alguns dos limites desse “relativismo ético”. A questão é: as coisas poderiam e deveriam ser diferentes¿

Torna-se necessário, então, retomar a questão da historicidade das relações políticas e culturais no Ocidente. E aí encontramos a junção de Herder, Ranke e Kant. De fato, se os dois primeiros recusavam a idéia de uma finalidade última da História, uma escatologia moral (Endzweck) e, portanto, de ações pautadas segundo “imperativos categóricos”, não deixaram de se impressionar com as perspectivas ético-cosmopolitas das ações humanas e com a crítica da razão que tanta água jogou no moinho do romantismo.

Com Kant, compreendemos que a razão cartesiana é parcialmente burra, ou seja, que há um sem-número de fenômenos que ela não pode compreender. Ora, estes fenômenos, são aqueles nos quais românticos vão buscar o entendimento para a vida dos homens: sentimentos, impressões, tradições, costumes, ou seja, “o espírito do tempo” residiria nestes fenômenos e não no formalismo das instituições, leis, etc. Em outras palavras, Kant afirma na primeira proposição da sua Ideia de História Universal que se prescindirmos de uma doutrina teleológica “ não teremos uma natureza regulada por leis, e sim um jogo sem finalidade da natureza, e uma indeterminação desconsoladora toma o lugar do fio condutor da razão”.V É exatamente no campo da indeterminação que os românticos vão apostar. Se, para eles, as coisas são como são também é possível que as coisas sejam diferentes, não a partir de uma perspectiva racional de soma zero, mas sim como produto das tensões em que emoções e sentimentos não fiquem de fora. Em suma, a razão pode até ajudar, mas não é tudo e ao se insistir apenas em um conjunto prescritivos de normas jurídicas a coisa não vai dar certo. Isto é, o que os românticos recusam na postura iluminista é o seu caráter prescritivo que tende ao autoritarismo na medida em que diagnostica o real como erro, a partir da formulação teleológica do que deveria ser. O conhecimento, assim concebido, torna-se, como teorizaram os frankfurtianos, apenas uma racionalidade instrumental, dominadora e totalitária. Assim, enunciada uma suposta “verdade”, o que dela difere é colocada no registro da ignorância e do atraso. O etnocentrismo ocidental aglutina a este pensamento equívoco, um argumento moral também equívoco: isto é, que as potencias ocidentais são “mais racionais”, mais adiantadas, e, por isto mesmo, “mais responsáveis” que os “subdesenvolvidos” e “atrasados”. Após o 11 de setembro este argumento se transmutou na falácia do denominado “choque de civilizações”. Elbaradei descarta tudo istoVI e remete à idéia e à prática do diálogo.

Este diálogo, é como gostaria de conceitualizar aqui, um diálogo amplo, no qual intervêm diferenças culturais e sentimentos que não podem ser desprezados. Aliás, em sua ótica – que talvez consiga visualizar a nós do ocidente melhor por ser egípcio – este desprezo tem colocado todas as tentativas de acordos a perder. Inúmeras vezes aponta em seu livro que os norte-americanos não sabem como falar com os iraquianos, e como isto seria fundamental – saber falar – para que as coisas funcionassem bem. Em suma é necessário conhecer e respeitar o outro – respeito que é uma característica fundamental de “civilização”, entendida esta não nos termos do século XIX, mas em seu sentido ampliado no XXI, isto é, um conceito que envolve as noções de cultura (conhecimento), tecnologia e educação (fraternidade e compaixão – o tratamento dispensado ao outro).

Elbaradei leva essas concepções às suas últimas conseqüências. Em um relato emocionante, fala de seus filhos: “ Meu filho e minha filha não se importam com aspectos como cor, raça e nacionalidade. Não vêem nenhuma diferença entre seus amigos Noriko, Mafupo, Justin, Saulo e Hussam ….[ E falando da escolha feita pela filha observa] Laila reunia forças para me apresentar ao homem que ela amava. Ela sabia que, de alguma maneira, minha expectativa era que ela se casasse com um egípcio. Mas na condição de alguém que observa diariamente os efeitos desastrosos da desconfiança cultural abençoei-a pela escolha feita.” VII Tratava-se, no caso, de um jovem britânico. Mas não é só no plano privado e pessoal que se vislumbram estas atitudes. Apesar de todas as campanhas contra a IAEA e contra ele pessoalmente feitas pela imprensa americana, sempre ao sabor dos interesses dos governos daquele país, Elbaradei remete-se com carinho àquele país, quando então a administração Obama ainda parecia realizar esforços para superar a questão iraniana: “Minha última visita aos Estados Unidos como diretor geral da AIEA foi absolutamente diferente de tudo o que eu havia vivido nos últimos oito anos. Em Washington, tive uma série exaustiva de reuniões (…). Para onde quer que me virasse, encontrava expressões de agradecimento. Eu sabia que estava em casa nos Estados Unidos.”VIII Esta busca de um diálogo ampliado – que vai além da pura prescrição jurídica – não exclui esta última. De fato, Elbaradei compreende que as relações internacionais se pautam pela história – confundida muitas vezes com memórias de ressentimentos e desentendimentos culturais – por um diálogo marcado pela desconfiança e por poderes assimétricos e por políticas desiguais e injustas e pelas normatizações jurídicas – um norte da conversa, por assim dizer, mas que são insuficientes frente aos estragos causados pelo ressentimento, pela desconfiança e pelas imposições de força.

É possível modificar este estado de coisas¿ Não só é possível como é imprescindível, uma vez que a questão nuclear é um dos universais do tempo presente. E foi este universal, anunciado pelas cores infernais da destruição, enunciada no leste e no oeste pela sabedoria dos antigos.

Diante do resultado do teste de Trinity, na manhã de 16 de julho de 1945, quando o jornalista Willaim Laurence exclamou: “Prometeu rompeu os grilhões e trouxe à Terra um novo fogo” e Oppenheimer recitou o Bhagavad Gita: “Agora eu me transformei na Morte, o destruidor de mundos”, a humanidade passou a formar uma comunidade de destino: ou remamos juntos ou naufragamos juntos também.

Estar no mundo implica em tentar construir uma esfera pública de exercício da liberdade, mas a liberdade só pode ser exercida entre os iguais e, neste sentido, ela contraria a soberania absoluta, a mônada liberal, isto é, só haverá uma esfera pública global com a redução da soberania. Como observa Hannah ARENDT “A famosa soberania dos organismos políticos sempre foi uma ilusão, a qual, além do mais, só pode ser mantida pelos meios de violência, isto é, com meios essencialmente não-políticos. Sob condições humanas, que são determinadas pelo fato de que não é o homem, mas são os homens que vivem sobre a terra, liberdade e soberania conservam tão pouca identidade que nem mesmo podem existir simultaneamente. Onde os homens aspiram ser soberanos, como indivíduos ou como grupos organizados, devem se submeter à opressão da vontade, seja esta a vontade individual com a qual obrigo a mim mesmo, seja a „vontade geral‟ de um grupo organizado. Se os homens desejam ser livres, é precisamente à soberania que devem renunciar”.IX Elbaradei retoma, assim, o coro das universais preocupações, juntando sua voz às de Oppenheimer, Einstein, Szilard, entre outros, que desde 1946, anunciaram: um mundo ou nenhum.X Estes cientistas ancoraram naquela época, como Elbaradei hoje, as esperanças de um mundo sem armas nucleares nos mais generosos impulsos, sentimentos e argumentos racionais, isto é, no cosmopolitismo produzido pelo Romantismo e pelo Iluminismo. Como observa Tzvetan Todorov: “A abordagem cosmopolita não abole as diferenças, mas conferelhes um quadro comum e um estatuto de igualdade de direitos”.XI É um truísmo afirmar que os estudiosos da História, das Ciências Políticas e das Relações Internacionais devam ler Elbaradei. O que é importante frisar é que qualquer cidadão com um interesse desinteressado pelas questões humanas pode e deve ler Elbaradei para compreender que as relações entre ciência, tecnologia e política podem produzir um mundo instável, mas que isto não é, de modo algum, inevitável. Afinal, ciência, tecnologia e política são fundamentalmente produtos de ações humanas que dependem de nossas escolhas. Elbaradei fez a dele.

Notas

2 HERDER In GARDNER, 1984: 53

3 HARTOG, François. O século XIX e a História: o caso Fustel de Coulanges. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003.

4 HERODOTO. História. São Paulo: Tecnoprint, s/d: 31.

5 KANT, Immanuel. Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. São Paulo: Brasiliense, 1986: 11.

6 Para uma crítica da idéia do “choque de civilizações” o último livro de Tzvetan Todorov é de leitura fundamental. Ver no conjunto de referências deste texto.

7 P. 239

8 P. 350

9 2001: 213

10 Trata-se do nome de um relatório público sobre o pleno significado da bomba atômica, republicado em 2008, e que se encontra nas referências deste texto. 9 2010: 209

Referências

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2001.

ELBARADEI, Mohamed. A era da ilusão: a diplomacia nuclear em tempos traiçoeiros. São Paulo: Leya, 2011.

HARTOG, François. O século XIX e a História: o caso Fustel de Coulanges. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003.

HERDER, J. G. Idéias para a filosofia da história da humanidade. In GARDNER, Patrick. Teorias da História.Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1984, p. 41-59.

HERODOTO. História. São Paulo: Tecnoprint, s/d.

KANT, Immanuel. Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. São Paulo: Brasiliense, 1986.

MASTERS, Dexter e WAY, Katharine. Um mundo ou nenhum: um relatório público sobre o significado da bomba atômica. São Paulo: Paz e Terra, 2008.

RANKE, Leopold Von. Da unidade essencial dos povos romanos e germânicos e de sua comum evolução. In HOLANDA, Sérgio B. (Org.). História: Ranke. São Paulo: Ática, 1979, p. 65-79

___________________. O conceito de História Universal. In MARTINS, Estevão de Rezende ( Org.). A história pensada. São Paulo: Contexto, 2010, p. 202-215.

SMITH, P. D. Os homens do fim do mundo: o verdadeiro Dr. Fantástico e o sonho da arma total. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.] TODOROV, Tzvetan. O medo dos bárbaros: para além do choque de civilizações. Petrópolis: Vozes, 2010.

José Miguel Arias Neto – Pós Doutor em Estudos Estratégicos pela Universidade Federal Fluminense (2011). É professor associado de História Contemporânea no curso de Graduação em História e Docente do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Moderna e Contemporânea, atuando principalmente nos temas: política, representações, militares, marinha. É coordenador dos Grupos de Pesquisa: Estudos Políticos e Militares Contemporâneos e de Estudos Culturais e Mídia.

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