O uso dos conceitos: uma abordagem interdisciplinar | José D’ Assunção Barros

Em épocas de negacionismos, cada vez mais produções sólidas necessitam entrar em pauta para desenvolver o conhecimento histórico e consequentemente o científico. Nesse sentido, que a obra O uso dos conceitos: uma abordagem interdisciplinar de autoria de José D’ Assunção Barros e publicada no ano passado pela editora Vozes se evidencia. Ela que possui como proposta discutir como os conceitos são relevantes para as pesquisas interdisciplinares é dividida em duas partes. Na primeira parte, discute a articulação dos conceitos e a relevância da interdisciplinaridade; e na segunda, demonstra sua articulação com a área de música.

Antes de adentrarmos efetivamente sobre a obra, é necessário conhecer o currículo do seu autor. José D’ Assunção Barros é historiador e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e atua também no programa de pós-graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Sua área inicial de formação contempla as duas proposições da obra, graduação em história pela UFRJ e Doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), e sua graduação em música também pela UFRJ.

A obra em questão possui mais de trezentas páginas e é extremamente rica em símbolos e signos, gráficos, quadros e exemplos das mais diversas áreas, mesmo que privilegie as relações desenvolvidas na História e Ciências Humanas e Sociais, que ajudam a elucidar ao leitor o que o autor propõe na interdisciplinaridade. Para cumprir o objetivo, além da sua divisão em duas partes e elementos textuais como sumário e ficha catalográfica, possui um prefácio, seis capítulos, considerações finais, referências, índice onomástico, onomástico, remissivo e geral.

O sumário da obra busca contextualizar o leitor na diferença entre uma palavra e um conceito, buscando reunir sua etimologia “Conceptus deriva da palavra concipere (conceber), que significa ‘formar dentro de si” (BARROS, 2021, p. 8 – grifo do original). Além de destacar que o conceito é um artefato teórico e abstrato para discutir a realidade prática, interagir, criar notas, acordes e intervalos se referir aos conceitos da área musical. Um exemplo a partir da abstração, é descrito por Stuart Hall (2016) ao se referir ao conceito cultura, que é um dos mais complexos das ciências humanas e sociais e há uma dificuldade em precisá-lo, no entanto, é extremamente relevante para pensar a sociedade por discutir de forma teórica a prática a realidade.

Sequenciando a obra, avançamos para a primeira parte denominada O reino dos conceitos. O autor não faz uma introdução de cada parte, quem sabe isso, seja uma das suas dificuldades e que pode atrapalhar na sua compreensão, apenas inicia o primeiro capítulo, Conceitos: uma introdução interdisciplinar aos seus principais aspectos. O primeiro capítulo é dividido em quatro itens. Nele, percebemos que os conceitos são necessários para todos os campos científicos, mesmo que cada um deles tenha regras específicas, como demonstra Bourdieu (1983), apesar disso, há um diálogo entre eles. É também relevante mencionar que os conceitos são familiares, ainda que não tenhamos consciência disso, estão presentes na vida do cidadão comum e não apenas nos campos científicos.

Nesse capítulo, Barros também destaca a função de um conceito, que é organizar, classificar, comparar e classificar a realidade e que sem ele viveríamos no caos. Entre um de seus exemplos, ele apresenta os conceitos da astronomia: planeta, meteoro, estrela e cometa, pensados por meio da observação, do cálculo e outros procedimentos da história, ciências humanas e das exatas.

Ele também menciona que as principais características dos conceitos são a polissemia, servir para designar vários sentidos em diversas realidades ou situações imaginadas, historicidade, dependem de qual período histórico se encontram “no sentido de que se desenrolam através de desenrolar que pode não apenas lhes trazer novos sentidos, mas também tornar este ou aquele conceito menos ou mais recorrente nos trabalhos científicos de determinado campo” (BARROS, 2021, p. 23), e generalização, que faz abarcar, por um lado, objetos diversificados (conjuntos e subconjuntos) e, por outro, possibilitam a discussão sobre muitas situações, o que significa em um campo do conhecimento pode significar o mesmo em outro, ou totalmente diferente. Como afirma Veiga Neto (2003) referindo-se a Michel Foucault, o que ganhamos com o didatismo na tentativa de conceitualizar os artefatos, autores e situações perdemos na complexidade, diminuindo o detalhamento e simplificando a abstração.

A generalização promovida por um conceito ainda merece algumas menções, principalmente pela necessidade de seu desdobramento em novos. Como exemplo, Barros chama a atenção para o conceito de revolução, que por si só pode significar muitas revoluções, mas ao mesmo tempo desdobra-se em específicas como Revolução Francesa (1789), Revolução Iraniana (1979) ou Revolução Russa (1917). Ele afirma que o conceito se modifica quando se acrescenta uma nova nota, se comparado com música, ao original, criando tanto um caso particular do anterior ou ainda um totalmente completamente diferente. Como generalização, há ainda os conceitos transversais e os agrupadores, que perpassam diversas situações dentro de uma área como os de tempo, fonte histórica, espaço e memória, especificamente na área de história.

Outro conceito utilizado pelo autor, não apenas da área de história, mas da geografia e da sociologia, é o de migração que explica vários deslocamentos humanos e pode ser desdobrado, agrupando a imigração e emigração. Além do que, como aponta Santos (2020) pode ainda atravessar (transversal) ao referir a diversos períodos (historicidade) quando se discute as narrativas brasileiras, a imigração para a substituição da mão de obra escrava pela imigrante, a imigração do segundo pós-guerra com os deslocados ou refugiados de guerra, ou ainda, a imigração dos dias atuais com haitianos, venezuelanos e sírios.

O segundo capítulo, Linguagens conceituais, que é dividido em oito itens, demonstra que todo conceito possui uma referência ao concreto e não necessariamente precisa ser escrito, pode ser falado. Barros começa essa parte com uma advertência: “O primeiro aspecto que vale a pena considerar é que o conceito não é a própria realidade” (BARROS, 2021, p. 37). É uma representação de uma realidade percebida ou imaginada, pois os conceitos são representações, como afirma Hall (2016, p. 31): “Representação é uma parte essencial do processo pelo qual os significados são produzidos e compartilhados entre os membros de uma cultura”. Nesse sentido, que Barros enfatiza que há palavras comuns e conceitos, os que podem ser utilizados para discutir uma realidade e aqueles que são usados cotidianamente: “Uma palavra que habitualmente é vista como ‘conceito’ em determinado capo de saber, em outro pode só parecer uma ‘palavra comum’ (BARROS, 2021, p. 47). Além do que, dentro dos conceitos os símbolos comuns e os conceituais. Os comuns são as apropriações, enquanto os conceituais foram criados para servirem aos movimentos que se referem, foram feitos para o conceito que quer representar.

As linguagens também são pontos relevantes no capítulo, sendo elas, verbais, simbólicas e matemática. Apesar disso, o autor não se preocupa com tanto afinco nas matemáticas, até porque seu foco recai sobre o simbolismo. É nesse capítulo, que analisa os símbolos que serão utilizados na segunda parte da obra: Yin Yang das filosofias chinesas, a suástica do nazismo, a cruz do cristianismo e o A de anarquismo. A suástica e a cruz são símbolos comuns que foram reapropriados pelos segmentos para justificar práticas, faltando elementos para serem conceituais, enquanto o Yin Yang e o A de anarquismo com um círculo, foram criados para demonstrar suas ideias.

O capítulo termina com o item metáforas conceituais. É nele, que o autor comenta sobre a linguagem metafórica utilizada no cotidiano de forma recorrente e também nos meios universitários. Elas são relevantes, pois demonstram um poder de síntese notável e se tornaram um “jargão”, além do objetivo de relacionar dois, ou mais, domínio, como exemplo ele utiliza a expressão política é guerra ou guerra é política, e problematiza seus usos e ambiguidades, fazendo com o que o leitor perceba a distinção entre as duas colocações, permitindo a criação de novas metáforas.

O terceiro capítulo, preocupa-se com a compreensão e a extensão dos conceitos. Ele chama atenção que a aplicabilidade do conceito é sua extensão e que há uma compreensão do seu visível e invisível. Barros utiliza como exemplo o conceito de revolução e aconselha que um conceito muito pobre pode levar a uma extensão imensa e perder na sua percepção. Ele não menciona, mas o conceito de identidade pode também ser um exemplo disso, como afirma Silva (2014), quando eu me identifico como “eu sou brasileiro” automaticamente eu excluo outras possibilidades (a extensão), trazendo a diferença, a parte invisível, não sou australiano ou argentino. Da mesma forma, podemos afunilar a extensão e compreensão “eu sou brasileiro, nascido no estado do Paraná”, isso exclui os nascidos em outros países e outros estados da federação. Ou ainda, afunilar mais, reduzindo a categoria de cidade: “eu sou brasileiro, nascido no estado do Paraná, município de Guarapuava”.

A segunda parte da obra, intitulada Harmonia conceitual, inicia com o capítulo quatro: uma digressão: a Música como inspiração interdisciplinar. Os capítulos quatro, cinco e seis são as maiores contribuições para a abordagens conceituais no campo científico, pois são os que se relacionam efetivamente com a música. É nessas divisões, que o autor desenvolve uma reflexão inédita sobre a correlação entre seus dois campos de formação, história e música, e apresenta uma problematização até então não realizada.

O capítulo quatro é dividido em quatro itens iniciando com uma pergunta que será provada no seu desenvolvimento: “poderia a Música se abrir como inspiração interdisciplinar para os demais campos do saber?” (BARROS, 2021, p. 131). A resposta é sim, pois, primeiramente, a música que é definida por Barros como uma arte que mobiliza das pessoas, assim como a dança, produz sensações de tensão e relaxamento. Ademais, ela em sociedades indígenas pode trazer coesão e sociabilidade, principalmente em rituais e ritos de passagem, especialmente os fúnebres.

No capítulo o autor também menciona a relevância da música, principalmente em filmes, onde ela tem a função de reforçar cenas, trazendo efeitos de alegria, medo, suspense. Ao se referir a uma guerra, a trilha musical geralmente é marcada por movimentos tensos e, por fim, um silêncio, especialmente quando se refere a morte, parando sem nenhuma explicação “Qualquer boa música, enfim, é constituída por um incessante jogo de instabilidade e estabilidades”. A música por si, só é esse jogo de conceitos, entre extensão e compreensão.

Os exemplos do capítulo quatro são inusitados, se não conhecêssemos a habilidade e interdisciplinaridade de José D’Assunção Barros, ele adentra ao ramo da psicologia ao referir-se a dissonância e consonância, e da polifonia na linguística e história. Dentro da primeira premissa, ele aponta o livro 1984 de George Orwell, responsável por uma sociedade imaginada dos Reality shows, afirmando que a dissonância do personagem principal em reconhecer uma ideia matemática divergente da que conhecia é mais torturante que castigos físicos. Ele se compromete, afirmando que as tensões na música e nos conceitos são relativas, o que é tensão em uma situação musical, não necessariamente pode ser em outra e vice-versa.

Na segunda premissa, ele afirma que há várias vozes dentro de uma música como nas narrativas. O exemplo é de Mikhail Bakhtin ao compreender as obras de Dostoiévski, apontando que “A circulação do protagonismo narrativo pelos diversos personagens, capazes de expressar uma visão de mundo singular e enuncia-la com voz própria, traria a possibilidade de enxergar estes romances plurivocais como autênticas tramas polifônicas aplicadas à criação literária” (BARROS, 2021, p. 142). Demonstrando que a polifonia foi criada pelo próprio autor do livro, mas que algumas são espontâneas, e podem parecer ocultas para ouvidos pouco atentos. Barros, assim como Hall (2016), apontam que a polifonia pode ser realizada a partir da intertextualidade presentes em textos e imagens, que podem ser fontes para a história. A reconstrução de uma narrativa de imigrantes, transformando em história pode ser um exemplo, mas concreto no campo histórico (SANTOS, 2020). O uso da língua enquanto discursos e representações por si só, permite, vários sons que podem ser compartimentados ou reunidos.

No quinto capítulo, denominado Acordes conceituais: uma nova possibilidade de conceber os conceitos, divido em cinco itens, o autor explora o acorde como um conceito científico. Ele inicia definindo: “Um ‘acorde’ na teoria e na prática musical, pode ser entendido como um conjunto de notas musicais que soam juntas e assim produzem uma sonoridade compósita” (BARROS, 2021, p. 151). E posteriormente o intervalo: “[…] em Música, à relação entre duas ‘notas”. Esses conceitos são importantes para se pensar como são relacionados com a questão científica. Ele chama atenção que tanto o acorde como o intervalo não são conceitos exclusivos da música e aparecem em diversos campos do saber como a Etnologia.

Nesse capítulo, inicia as comparações entre acorde e conceitos. O primeiro é o acorde conceitual, Barros menciona que como foi visto no primeiro capítulo da obra o conceito é uma representação de uma realidade vivida ou imaginada, no entanto, não pode ser simplista, apesar de precisar ser sintético, pois adiciona notas musicais de diversas áreas e pode ser aplicado a elas. Então, as notas devem ser as quais são necessárias para promover o acorde, a harmonia entre elas.

O item 5.3 Vantagens de compreender os conceitos como acordes conceituais refere-se a questão do acorde ser a estrutura que articula o conceito. Nessa divisão, ele apresenta para o leitor aspectos da teoria musical como o acorde perfeito maior e o menor, que possuem funções distintas na teoria musical e suas possibilidades de articulação, mas que não têm sentido que eles estejam fora da música, sendo necessária a interconexão entre todos, fora de uma composição: “Compreender que os conceitos são como acordes, portanto, é entender que eles não funcionam sozinhos, mas juntam-se a outros para constituir harmonias conceituais” (BARROS, 2021, p. 169). Entre as vantagens estão a totalidade, harmonia, interpenetração, notas comuns, entre outros.

O último capítulo da obra, intitulado: algumas análises de acordes conceituais, é analítico e desenvolve exemplos mencionados em outras partes da obra como o totalitário da suástica e a cruz do cristianismo. Com isso, faz menções e comparações do nazismo para o fascismo, do monoteísmo para o politeísmo. A inovação desse capítulo são as discussões sobre os poliacordes das classificações da biologia e o evolucionismo de Darwin referindo-se a reinos, filo, subfilo, classe, ordem, família, gênero e espécie.

Outro ponto fundamental do capítulo é a exemplificação realizada a partir dos quadros que promove um didatismo, primordial, apenas nas obras de Barros. Em outra obra clássica do autor (BARROS, 2013), ele já se aproveitava desse recurso visual, que permite a visualização do que é desenvolvido dentro do texto. Além disso, igualmente apresenta conexões entre os quadros, mencionando como realizar a leitura das notas músicas dos acordes conceituais de baixo para cima, e ainda, demostrando o que poderia ter sido acrescentado ou retirado, e justificando o porquê da não realização.

Barros apresenta suas conclusões em forma de considerações finais. Ele menciona que o livro por si só é um esforço considerável de interdisciplinaridade com diversos campos de conhecimento. Nisto, reconhece a fragilidade de algumas narrativas e a necessidade que seus campos específicos aprimorem, adequando para suas diferentes perspectivas, uma vez que o seu empenho é ímpar, tendo em visto que só na área das ciências humanas e sociais adentra em várias correntes teóricas e metodológicas que vão dos estudos materialistas aos culturais.

Outra advertência sua é que o mundo não é musicalmente construído, mas pode ser compreendido através de uma imaginação musical. Isso também fica nítido nas últimas palavras de sua obra, que servem como um conselho, “Aos estudiosos dos vários campos de saber cabe seguir adiante como maestros que se colocam diante de suas orquestras, prontos a reger a música dos conceitos” (p. 274). Uma experiência musical que pode ser pensada e conectada com a ciência.

Por fim, tecemos nossa indicação da obra. Por que ler O uso dos conceitos: uma abordagem interdisciplinar de autoria de José D’ Assunção Barros? A resposta pode ser data tanto para a área de história como para a perspectiva interdisciplinar. Uma das respostas possíveis é para aprender a utilização dos conceitos, uma vez que se apresenta como uma discussão teórica e metodológica de fácil acesso para pesquisadores iniciantes e experientes. Para a perspectiva interdisciplinar é perceber que o conhecimento não é fragmentado e precisa dos diversos campos do conhecimento, mesmo que cada um tenha sua própria regra (BOURDIEU, 1983), é necessário pensar que podem ser comparados e pensados como acordes, notas e intervalos. É uma obra recomendável e imprescindível, pois favorece didaticamente ao ensino e a pesquisa.


Referências

BARROS, José D’ Assunção. O projeto de Pesquisa em História. Petrópolis: Vozes, 2013.

BOURDIEU, Pierre. O campo científico. In: ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ática, 1983.

HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio/Apicuri, 2016.

SANTOS, Rodrigo dos. Em busca de um lar: práticas culturais e representações da família Egert na região de Guarapuava -PR (1949-2016). 2020. 204f. Tese (Doutorado em História). Universidade Estadual de Maringá, 2020.

SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença In: SILVA, Tomaz Tadeu da Silva. Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2014.

VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.


Resenhista

Rodrigo dos Santos – Doutor em História Pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Professor da Secretaria da Educação e do Esporte (SEED/PR). E-mail: [email protected]  Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4036-6755


Referências desta Resenha

BARROS, José D’ Assunção. O uso dos conceitos: uma abordagem interdisciplinar. Petrópolis: Vozes, 2021. Resenha de: SANTOS, Rodrigo dos. A interdisciplinaridade nas pesquisas científicas: do conceito ao acorde. Caminhos da História. Montes Claros, v.28, n.1, p.229-235, jan./jun. 2023. Acessar publicação original

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