Os bispos e a ditadura militar brasileira (1971-1980): a visão da espionagem | Paulo César Gomes

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Paulo César Gomes | Imagem: Jornal Opção

Com a expansão dos Programas de Pós-Graduação em História no Brasil, especialmente a partir da década de 1990, dezenas de novos objetos, abordagens, temáticas e problemas passaram a ser privilegiados. Segundo o historiador Carlos Fico (2004, p. 21), nesse período, a produção histórica brasileira deu uma verdadeira “guinada”: a predominância de estudos que recaía sobre o período colonial deslocou-se para a fase republicana.

Nessa dinamização dos cursos de pós-graduação, um objeto que deu uma considerável alavancada foi o estudo da ditadura militar brasileira. A partir dos anos 1990, inúmeros trabalhos foram realizados sobre esse tema enfocando diversos prismas, olhares, agentes, recortes e espaços. Entre os inúmeros assuntos abordados dentro da grande temática ditadura militar, que vão de planos econômicos a organizações clandestinas, destaca-se o estudo sobre a Igreja Católica. Engana-se quem pensa que as pesquisas sobre esse assunto se esgotaram ou que não é mais possível originalidade e avanço sobre ele. Em relação à Igreja Católica, embora hoje sejam bastante conhecidos, notadamente, dois aspectos, o papel dos grupos católicos conservadores nas “Marchas da Família com Deus pela Liberdade” durante o pré-golpe de 1964 e a atuação da ala “progressista” na oposição à ditadura e em defesa dos direitos humanos entre os anos 1970-80, importa dizer que ainda há muito a ser descoberto, analisado, (re) discutido e revelado. A obra de Paulo César Gomes, Os bispos católicos e a ditadura militar brasileira é uma prova disso.

Apesar dos avanços construídos nas últimas décadas, a bibliografia existente sobre a atuação do episcopado brasileiro durante a ditadura brasileira (1964-1985) ainda é bastante resumida. Para entender um pouco a atuação dos sucessores dos apóstolos – como são conhecidos os bispos – durante aquele período histórico é necessário, na maioria das vezes, recorrer a estudos específicos e locais ou biografias dos chamados “bispos progressistas”.

Quem conhece um pouco da hierarquia católica sabe que os bispos exercem/detêm um papel de destaque dentro da instituição religiosa que difere em muito de outros cargos e títulos existentes no catolicismo. Os bispos representam a autoridade máxima da Igreja local em jurisdição e magistério. Eles são responsáveis por santificar, ensinar a doutrina e governar a circunscrição que lhes é confiada. Como salientou pertinentemente o autor (GOMES, 2014, p. 22):

[…] apesar do forte simbolismo e da importância da figura do papa, os bispos têm grande autonomia, o que muitas vezes não era entendido pelos militares, que viam seus protestos como uma quebra de hierarquia no interior da Igreja. […] os bispos não são apenas os representantes do papa, mas também chefes da instituição católica.

Cabe destacar que não apenas pelo fato de ter tomado a figura do bispo católico como objeto de estudo que o livro de Paulo Gomes revela-se digno de nota. Mas, principalmente, por ter trabalhado, com mãos seguras e olhar aguçado, com documentos outrora sigilosos da extinta Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Justiça (DSI/MJ), que estão hoje sob a guarda do Arquivo Nacional.

Para aqueles que se levantaram nos últimos anos, contrários à Lei de Acesso à Informação e à criação das Comissões da Verdade, esbravejando aos quatro ventos que sobre a ditadura não havia mais nada a se revelar – pois os documentos referentes ao período haviam sido “consumidos” (“desaparecidos”, como preferiu dizer o ex-ministro da Defesa, Nelson Jobim) –, o estudo de Paulo Gomes é um verdadeiro balde de água fria. O livro, notadamente o capítulo 3, por exemplo, é repleto de documentos, até então inéditos, que possibilitam o leitor compreender, em certa medida, o modus operandi/faciendi do regime militar no que se refere aos serviços de vigilância, monitoramento e espionagem.

O livro de Paulo Gomes é dividido em três capítulos. No primeiro deles, Os bispos católicos e a ditadura militar, o autor buscou apresentar o seu aporte teórico e tecer algumas considerações sobre a história da Igreja Católica no Brasil. De todos os capítulos, o primeiro mostrou-se o mais frágil. Porém, nada que comprometa o conjunto da obra.

Antecipo ao leitor que não se deve esperar do livro de Paulo Gomes uma grande discussão teórica sobre a relação Igreja-ditadura. A obra apresenta apenas uma ligeira discordância entre os especialistas Luiz Gonzaga de Souza Lima, Thomas Bruneau e Scott Mainwaring. Contudo, surpreendentemente, nomes de reconhecidos especialistas em história da Igreja como João Batista Libânio, José Oscar Beozzo, Frei Betto, Riolandi Azzi, Leonardo Boff, Eduardo Hoornaert e Michael Löwy, ficaram de fora de suas análises.

O brasilianista Scott Mainwaring (2004) é o que ficou em maior evidência no trabalho de Paulo Gomes. Particularmente, em relação a dois aspectos. Em primeiro lugar, à compreensão de que a Igreja Católica, diferentemente do que se costuma imaginar, não é imutável. Ela se adapta, se transforma, conjugando sua tradição em lidar com questões sociais a elementos da cultura temporal na qual está inserida, recriando-os de acordo com os princípios teológicos. Isso significa que não se trata de uma instituição com autonomia absoluta, cujas ações sejam pautadas apenas pelos interesses institucionais transcendentais. A realidade concreta, o dia-a-dia, o contexto sócio-político-econômico, é sempre uma referência constante na construção do discurso/prática da Igreja Católica. E, em segundo lugar, que a essa instituição, apesar de sua aparente homogeneidade, revela-se possuidora de conflitantes micropoderes, de diversas disputas dentro de seus próprios limites internos. No caso da Igreja brasileira pode-se perceber a presença de diversos “bispos progressistas” (Helder Camara, José Maria Pires, Cândido Padin, Pedro Casaldáliga, Avelar Brandão, Lamartine Soares, Ivo Lorscheiter, Paulo Evaristo Arns, Vicente Távora, Antônio Fragoso, Waldyr Calheiros, Tomás Balduíno etc.); assim como, de outro lado, não faltam bispos nitidamente conservadores ou anticomunistas (Antônio Mayer, Vicente Scherer, Geraldo Sigaud, Agnelo Rossi, José Cardoso Sobrinho, Luciano Duarte, Silvério de Albuquerque etc.).

Uma ausência que se nota no primeiro capítulo do livro é a atuação dos chamados “peritos” da Igreja Católica (teólogos, assessores e agentes pastorais), que assessoravam cotidianamente os bispos, exercendo um papel de extrema importância para a expansão do progressismo no interior da Igreja. Muitos desses peritos que auxiliavam de perto os bispos, como Leonardo Boff, Joseph Comblin, Frei Betto, Jon Sobrino, entre outros, sofreram perseguição não apenas por parte da Igreja, mas também pelo regime através de monitoramento, prisões, interrogatórios e proibições de desembarque no país.

No segundo capítulo, Repressão: a comunidade de informações, Paulo Gomes se dedicou a analisar a chamada “comunidade de informações” – expressão criada para designar o conjunto de pessoas e órgãos ligados à atividade de vigilância, monitoramento, espionagem durante a ditadura. Este é um capítulo sem maiores pretensões. Ainda que não traga nenhuma novidade ou descoberta, é um capítulo bem escrito e didático que, utilizando uma boa literatura, apresenta para os leitores pouco afeitos com a temática a engrenagem do serviço de informações durante a ditadura militar.

Para chegar ao seu objetivo, o autor realizou uma breve trajetória das atividades de informações no país. Importante lembrar que essas atividades estiveram presentes em diferentes momentos da República. O primeiro órgão dessa natureza foi o Conselho de Defesa Nacional (CDN), criado no governo do presidente Washington Luís, em 1927. O CDN tinha caráter consultivo e não se reunia mais que duas vezes por ano. Duas décadas depois, foi criado, em 1946, o Serviço Federal de Informações e Contra-Informações (SFICI), primeiro órgão estritamente voltado para os serviços de informações. Vale dizer que o SFICI nunca foi muito prestigioso. Durante toda a sua existência, permaneceu como um órgão de segundo escalão, afastado do presidente da República. Durante o governo Goulart, por exemplo, o SFICI careceu de recursos, estrutura e pessoal. Em julho de 1964, com a necessidade de se criar um sistema mais eficaz, que auxiliasse a consolidação do novo regime e que estivesse de acordo com a Doutrina de Segurança Nacional, foi criado o Serviço Nacional de Informações (SNI). Poucos anos depois, o aparato de informações da ditadura foi reestruturado e foram criadas as Divisões de Segurança e Informações (DSI) dentro dos ministérios civis e os órgãos específicos de informações e contrainformações dentro dos ministérios militares. No Exército, foi montado o Centro de Informações do Exército (CIE), em 1967. Na Aeronáutica, o Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (CISA), em 1970. E na Marinha, o Centro de Informações da Marinha (CENIMAR). Esta já dispunha, desde 1955, de um Serviço de Informações, mas o órgão sofreu mudanças e ampliação no ano de 1971.

No geral, o autor conseguiu demonstrar nesse segundo capítulo que a comunidade de informações da ditadura foi basicamente uma estrutura para inculpação de pessoas, orientada pela suspeição universalizada, já que partia da pressuposição de que todos poderiam ser culpados de subversão ou de corrupção. No dizer Paulo Gomes (2014, p. 106):

No decorrer de sua existência, a comunidade de informações jamais se ateve às suas tarefas de mero ‘sistema de inteligência’. Ela exercia funções típicas de uma ditadura, isto é, a inculpação, que se fundava, basicamente, no ideário anticomunista e no padrão ético-moral da classe média.

O terceiro capítulo, Os bispos católicos e a comunidade de informações, é o ponto nevrálgico da obra. Neste capítulo, fazendo uso de documentos outrora sigilosos, Paulo Gomes buscou analisar a atuação da comunidade de informações por meio de sua produção sobre os bispos católicos, principalmente aqueles tidos como “progressistas”, vistos como “subversivos”, “agitadores”, que eram os que mais causavam preocupação ao regime. De acordo com Paulo Gomes, os bispos católicos estiveram na mira da comunidade de informações com mais intensidade entre 1970 – período que corresponde ao início do fortalecimento de manifestações públicas dos bispos contra o regime militar – e 1980. O auge da espionagem ocorreu entre 1977 e 1980, sendo o ano de 1978 o ápice da espionagem. Em 1978, o número de pareceres produzidos pelos órgãos de informações alcançou mais que o triplo do ano anterior. Uma das razões para isso foi a intensificação das atividades de oposição contra a ditadura espalhadas pelo país – é o caso, por exemplo, do forte movimento grevista desse período que contou com o apoio de boa parcela da Igreja.

O autor também demonstrou que a partir de 1964 já havia certa preocupação dos militares com eventuais atividades críticas de alguns membros do episcopado. Partindo dessa linha de raciocínio, dividiu o terceiro capítulo em duas partes. Na primeira, analisou as primeiras percepções da comunidade de informações sobre os bispos entre os anos de 1964 e 1969. Na segunda, focou sobre as atividades desses órgãos a partir de 1970, mais especificamente entre 1977 e 1980. De acordo com o autor, essa divisão foi estabelecida com base na percepção de que, apesar de terem pontos em comum, as temáticas urbanas e rurais eram tratadas de maneira distinta pela comunidade de informações, como foi possível perceber pela própria organização do acervo, que estabelecia séries específicas para agrupar os documentos que tratavam dessas questões.

Segundo Paulo Gomes, se, de modo geral, em relação aos movimentos urbanos, Dom Helder Camara, Dom Paulo Evaristo e Dom Ivo Lorscheiter se destacavam entre os mais visados, em se tratando do espaço rural, o bispo que mais ensejava a produção de informações era, sem dúvida, o espanhol Dom Pedro Casaldáliga (bispo de São Félix do Araguaia, Mato Grosso), sempre envolvido nos conflitos entre posseiros e proprietários de terras e na luta pelos direitos dos índios e dos camponeses de sua região.

Nos primeiros anos do regime, ainda que houvesse atritos entre a Igreja Católica e o Estado, assim como houvesse esquemas de monitoramento do governo com relação às atividades de certos líderes religiosos, a rede de arapongagem se tornou mais intensa apenas a partir da segunda metade de 1970, quando uma considerável parcela da instituição religiosa começou a criticar publicamente o governo.

De modo geral, para os militares, até os anos 1970, não havia a necessidade de maiores preocupações com relação às atividades dos líderes católicos. E isso se devia, basicamente, a dois motivos. Em primeiro lugar, porque, até aquele momento, os conflitos existentes entre a Igreja e o Estado envolviam, em sua maior parte, bispos de pouca expressão nacional; e, em segundo, porque a suposta “contaminação” do clero por “ideias comunistas” ainda não era vista pelos órgãos de informações como um problema generalizado.

A partir de 1974, porém, com o início do governo Geisel, quando outras instituições (a exemplo da OAB, ABI e o MDB) passaram à ofensiva juntando-se aos inúmeros movimentos sociais que (res) surgiam, a situação foi se modificando. A comunidade de informações começou a perceber que o progressismo estava ganhando espaço no interior da instituição religiosa e que ela estava cada vez mais envolvida com a oposição à “ordem estabelecida” (GOMES, 2014, p. 135-136):

Para os analistas, a questão dos direitos humanos e, logo, o envolvimento da entidade com os presos políticos, além de defesa da justiça social, eram evidências de que o comunismo crescia no seio da Igreja e de que os bispos ‘progressistas’ eram os principais responsáveis por fortalecer essa ideologia.

O autor conseguiu demonstrar que as denúncias contra o governo brasileiro feitas no exterior e as parcerias com importantes instituições internacionais (a Anistia Internacional e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por exemplo) foram os principais canais encontrados pelos bispos católicos para contestar o regime militar brasileiro, defender a justiça social e divulgar os casos de tortura a presos políticos, perseguição a membros da Igreja e outras graves violações de direitos humanos ocorridas no país. Se, no caso da imprensa brasileira, a censura conseguia proibir a divulgação e a circulação de entrevistas e publicações dos bispos progressistas, o mesmo não pode ser dito em relação à imprensa estrangeira que os militares obviamente não podiam controlar. Não é preciso dizer o quanto essa ação do episcopado brasileiro passou a mexer com os brios dos militares, uma vez que estes se mostravam insatisfeitos com a divulgação de quaisquer notícias que denunciassem o caráter repressivo do regime, paralelamente ao esforço que faziam para transparecer a imagem do Brasil como uma “grande potência” democrática.

Um aspecto de extrema importância que transparece ao longo de todo o livro de Paulo Gomes é o enorme desejo da comunidade de informações em depreciar a imagem dos bispos progressistas a fim de que estes fossem enquadrados como “infratores da Lei de Segurança Nacional”. Esta seria, segundo os analistas de informações, a melhor forma de silenciá-los. Após os analistas confeccionarem os relatórios (depreciativos) sobre a atuação dos bispos o procedimento formal a seguir era difundi-los entre a rede e arquivá-los ou encaminhá-los diretamente para o ministro da Justiça, pessoa a qual detinha as prerrogativas legais para enquadrar os bispos como “infratores da Lei de Segurança Nacional”. Se, porventura, o caso suscitasse alguma dúvida no quesito legal, o ministro repassava-o para os seus assessores jurídicos a fim de que estes tecessem suas avaliações. A respeito dessa questão, é importante salientar que todas as vezes que os órgãos de informações procuravam intensificar a repressão sobre o episcopado, fosse tentando impedir viagens, articulando banimento do território nacional, recomendando fechamento de entidades católicas ou buscando enquadrá-los na Lei de Segurança Nacional, esbarravam nos pareceres dos assessores jurídicos do Ministério da Justiça que, especialmente no final dos anos 1970, se mostravam extremamente cuidadosos no trato com os bispos, em razão do peso simbólico desses indivíduos na sociedade brasileira como representantes da milenar Igreja Católica. Nas palavras de Paulo Gomes (2014, p. 14):

[…] mesmo que os bispos progressistas fossem extremamente visados pelos órgãos de informações, não podiam ser tratados pela polícia política da mesma maneira que outros ‘inimigos’ do regime, já que contavam com o grande prestígio natural que sua posição lhes conferia.

Enfim, ratifico a importância do livro escrito por Paulo Gomes para o entendimento da complexa relação Igreja-ditadura brasileira. Recomendo a leitura da obra Os bispos católicos e a ditadura militar brasileira não por pura formalidade acadêmica, mas por reconhecer nela o importante avanço trazido para o campo do conhecimento histórico. As lacunas e imprecisões existentes não tiram em nada os preciosos méritos do estudo de Paulo Gomes. É um livro que, com certeza, deve ser lido, relido e discutido. À bem da verdade, apesar de bem escrito, não é um texto fácil para os jovens iniciantes na temática ditadura militar e Igreja Católica, mas, pelo fato de indicar, em suas notas de fim, a localização de um enorme conjunto de documentos, torna-se um significativo instrumento de pesquisa para aqueles historiadores mais acostumados em pesquisar em arquivos.

Referências

FICO, Carlos. Além do golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Rio de Janeiro: Record, 2004.

GOMES, Paulo César. Os bispos e a ditadura militar brasileira (1971-1980): a visão da espionagem. Rio de Janeiro: Record, 2014.

MAINWARING, Scott. A Igreja católica e a política no Brasil (1916-1985). São Paulo: Brasiliense, 2004.


Resenhista

Rafael Leite Ferreira – Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor da Unibra –Centro Universitário Brasileiro. E-mail:: [email protected]


Referências desta Resenha

GOMES, Paulo César. Os bispos e a ditadura militar brasileira (1971-1980): a visão da espionagem. Rio de Janeiro: Record, 2014. Resenha de: FERREIRA, Rafael Leite. O episcopado brasileiro em tempos de ditadura militar. Aedos. Porto Alegre, v. 13, n. 30, p. 266-271, jan./jun. 2022. Acessar publicação original [DR]

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