Os bispos e a ditadura militar brasileira (1971-1980): a visão da espionagem | Paulo César Gomes

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Paulo César Gomes | Imagem: Jornal Opção

Com a expansão dos Programas de Pós-Graduação em História no Brasil, especialmente a partir da década de 1990, dezenas de novos objetos, abordagens, temáticas e problemas passaram a ser privilegiados. Segundo o historiador Carlos Fico (2004, p. 21), nesse período, a produção histórica brasileira deu uma verdadeira “guinada”: a predominância de estudos que recaía sobre o período colonial deslocou-se para a fase republicana.

Nessa dinamização dos cursos de pós-graduação, um objeto que deu uma considerável alavancada foi o estudo da ditadura militar brasileira. A partir dos anos 1990, inúmeros trabalhos foram realizados sobre esse tema enfocando diversos prismas, olhares, agentes, recortes e espaços. Entre os inúmeros assuntos abordados dentro da grande temática ditadura militar, que vão de planos econômicos a organizações clandestinas, destaca-se o estudo sobre a Igreja Católica. Engana-se quem pensa que as pesquisas sobre esse assunto se esgotaram ou que não é mais possível originalidade e avanço sobre ele. Em relação à Igreja Católica, embora hoje sejam bastante conhecidos, notadamente, dois aspectos, o papel dos grupos católicos conservadores nas “Marchas da Família com Deus pela Liberdade” durante o pré-golpe de 1964 e a atuação da ala “progressista” na oposição à ditadura e em defesa dos direitos humanos entre os anos 1970-80, importa dizer que ainda há muito a ser descoberto, analisado, (re) discutido e revelado. A obra de Paulo César Gomes, Os bispos católicos e a ditadura militar brasileira é uma prova disso. Leia Mais

Bispos guerreiros: violência e fé antes das cruzadas – RUST (PL)

Leandro Duarte Rust é um medievalista em ascensão no Brasil. Professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) é dono de uma crescente bibliografia, iniciada com a publicação de Colunas de São Pedro: a política papal na idade média central (Annablume, 2011), seguida por A reforma papal (1050-1150): trajetórias e críticas de uma história (EdUFMT, 2013) e Mitos papais: política e imaginação na história (Vozes, 2015). Basta olhar para os títulos de suas obras para compreender porque Rust vem se consagrando como um historiador do papado.

Entretanto, seu quarto livro, Bispos guerreiros: violência e fé antes das cruzadas, recém-publicado pela editora Vozes, vai além. Seguindo a história de Cádalo, entronizado como o “antipapa” Honório II, o autor realiza uma profunda análise sobre as relações entre a violência e o sagrado na Península Itálica nos séculos X e XI. Leia Mais

Doctrine and Power: Theological Controversy and Christian Leadership in the Later Roman Empire – GALVÃO-SOBRINHO (RTF)

GALVÃO-SOBRINHO, Carlos Roberto. Doctrine and Power: Theological Controversy and Christian Leadership in the Later Roman Empire. Berkeley/Los Angeles/London: University of California Press, 2013. Resenha de: FIGUEIREDO, Daniel. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 7, n. 1, jan.-jun., 2014.

Quais os mecanismos que levaram à transformação da liderança cristã, ou seja, do bispo cristão, em uma força política e social de destaque no Império Romano na primeira metade do século IV d. C.? Essa é a pergunta central do livro Doctrine and Po-wer: theological controversy and Christian leadership in the later Roman empire (2013), de Car-los Roberto Galvão-Sobrinho. As reflexões do autor sobre essa temática remontam ao final da década de 1990, momento em que defendeu o seu doutoramento1 na Yale University, sob a supervisão de Ramsay MacMullen. Atualmente, Galvão-Sobrinho é professor-associado de História Antiga e História da Medicina na University of Wis-consin2.

Como destaca o autor, a despeito do crescimento das pesquisas que envolvem o assunto, encontramos ainda muitos estudos que se concentram na perspectiva teológica da atuação desses indivíduos, na sua dimensão intelectual, em detrimento de uma maior problematização acerca do impacto da atuação dessas lideranças na vida da Igreja e da cidade (p. 2). Contudo, observa-se que, a partir das últimas décadas do século passado, historiadores da Antiguidade Tardia têm privilegiado o estudo dessas lideranças inseridas no seu contexto de atuação. Eles buscam explicar a complexidade das relações sociais e dos conflitos engendrados por essas relações, que possibilitaram a emergência de líderes revestidos de poder e autoridade. Novas perspectivas de análises se abriram a partir das recentes abordagens preconizadas pelas Histórias Política e Cultural, sobretudo na forma de encarar uma documentação retórica e propagandística que, produzida em momentos de conflitos, muitas vezes chegou até nós permeada pelos interesses das facções em confronto. Portanto, percebe-se, a partir daí, que a dimensão religiosa no período não pode ser desvinculada das demais esferas da vida social, sobretudo da dimensão política, sob pena de se incorrer numa produção artificial de sentidos acerca da atuação desses indivíduos que nos legaram uma massa documen-tal que tem muito a nos dizer para além da história das ideias.

Vislumbramos uma produção historiográfica crescente nessa nova perspectiva que, muito embora o seu grosso recaia sobre historiadores europeus e estadunidenses, também se observa, mais recentemente, a inserção de pesquisadores brasileiros nessa nova fronteira de estudos sobre as implicações político-sociais das controvérsias teológicas no Império romano da Antiguidade Tardia. Dentre essas pesquisas, não há dúvidas que, pela originalidade com que conduz o seu trabalho, podemos inserir essa obra de Galvão-Sobrinho entre aquelas que se tornarão referência para os estudiosos do tema.

Fazendo uso de um extenso corpus documental3, somente possível a um pesquisador com vasta erudição, Galvão-Sobrinho também complementa a sua narrativa com um bom número de notas explicativas sobre essa documentação e a bibliografia utilizada (p. 187-271). Tais documentos abrangem o recorte cronológico de meados do século III d.C. a meados do século IV d.C. nas províncias romanas orientais de fala grega. Para o autor, esse recorte se justifica, pois, a despeito do mosaico de culturas locais, a região manteve certa uniformidade social, econômica, política e cultural que permitiu a ele tratá-la como uma unidade (p. 8). Isso possibilitou demonstrar o seu objetivo principal de que a extensão, tanto no tempo quanto no envolvimento expressivo de diferentes camadas da população por todo o Oriente (clérigos, pessoas comuns, funcionários da administração imperial e, até mesmo, dos imperadores), e o padrão de violência verificado, até então desconhecido nos conflitos teológicos anteriores, fizeram da Controvérsia Ariana4 um paradigma para se entender a afirmação das lideranças eclesiásticas revestidas de poder e autoridade naquele contexto. Ademais, o autor verifica, também, que em vários momentos da controvérsia as oportunidades reais de tolerância e entendimento mútuos foram ignorados ou não levados a sério. Isso, portanto, indica que os líderes da Igreja se engajaram não apenas em uma luta sobre a definição da verdade sobre Deus, mas, também, pela liderança das congregações cristãs e de seus recursos, que eram ativos políticos e econômicos significantes. Desse modo, “alimentar a disputa era questão crucial sobre o relacionamento entre autoridade e ortodoxia, teologia e poder” (p. 4).

Outra questão relevante, até então considerada pela historiografia como preponderante para o prolongamento e virulência da Controvérsia Ariana, refere-se ao envolvimento dos imperadores na querela. Ao contrário, Galvão-Sobrinho constata que a disputa tomou forma de uma crescente resistência e arraigada oposição às pressões imperais por uma uniformidade teológica, mesmo por parte de clérigos beneficiários do patrocínio imperial, que poderiam ter suas posições e vidas ameaçadas. Portanto, embora o autor constate que essas intervenções imperiais contribuíram para os tumultos persistentes, o envolvimento dos imperadores não explica os desafios ao poder imperial por parte do clero nem as sublevações que se originavam nas disputas locais. Desse modo, os eventos turbulentos que circundaram os acontecimentos do conflito, além de uma questão propriamente teológica sobre a definição de Deus, também estavam relacionados às tensões inerentes da própria estrutura interna da organização eclesiástica. Nesse sentido, a análise também perpassa pelas considerações de Pierre Bourdieu, que constatou que a esfera teológica é um lugar de concorrência e as ideologias produzidas nela visando à instauração de um monopólio dos instrumentos de salvação estão propensas a serem utilizadas em outras lutas, como, por exemplo, a disputa pelo poder na hierarquia eclesiástica, conforme as diferentes posições ocupadas pelos seus membros nessa organização.

Para explicar, então, as implicações mais amplas do engajamento das lideranças eclesiásticas nas controvérsias teológicas do século IV d.C. que contribuíram para a construção da autoridade episcopal o autor estrutura seu trabalho em oito capítulos divididos em três partes5. O capítulo 1 (Christian Leadership and the Challenge of Theology), começando pelo século III d.C., traz uma discussão geral dos desafios colocados aos líderes da Igreja num momento em que a questão da autoridade começa, cada vez mais, repousar nas reivindicações deles como representantes do espírito de Deus. Quando se acreditava que os bispos desviavam da “verdade”, como acontecia nas disputas teológicas, essas reivindicações eram questionadas e a legitimidade delas colocadas em dúvida (p. 15-22). O capítulo 2 (“Not in the Spirit of Controversy”: Truth, Leadership, and Solidarity), examina como esses bispos reagiram àqueles desafios no século III d.C., mostrando que, quando confrontados com a dissidência doutrinal, eles se esforçavam para finalizar os desentendimentos e resolver os conflitos por meio da negociação e do debate. Para o autor, a ausência de critério preciso para a ortodoxia e a favorável ambiguidade da “regra da fé” desencorajava sustentar a confrontação (p. 23-33).

Com a emergência da Controvérsia Ariana, o autor percebe uma mudança, para ele fundamental, na natureza da resposta dos bispos aos desentendimentos teológicos. A persistente confrontação, combinada com uma determinação para minar os prelados rivais, veio a substituir o anterior esforço pelo consenso. Nesse ponto é que percebemos a inovadora contribuição de Galvão-Sobrinho para a análise do problema. Essa mudança é primeiro percebida em Alexandria, cidade em que a controvérsia emerge, resultando na necessidade de alcançar maior precisão e clareza em definir a verdade sobre a divindade. Tais considerações são levantadas no Capítulo 3 (Precision, Devotion, and Controversy in Alexandria) para indicar como as novas definições sobre Deus alteraram os relacionamentos entre os líderes da Igreja. Uma combinação entre essa precisão para definir a verdade e o esforço para desacreditar os oponentes (35-46). Na sequência, o capítulo 4 (Making the People a Partner to the Dispute) examina as consequências dessas ações, seguindo de perto os esforços dos clérigos rivais em Alexandria em envolver suas congregações nas disputas. Nesse momento é que se percebe a emergência de um novo tipo de líder na Igreja, “impertinente, empreendedor e combativo” (p. 47-65). O capítulo 5 (“For the Sake of the Logos”: Spreading the Controversy), examina como a disputa migrou para fora do Egito e observa o desenvolvimento de ações similares em outros lugares do Oriente (p. 66-77).

O capítulo 6 (“To Please the Overseer of All”: The Emperor’s Involvement and the Politization of Theology), busca analisar o impacto sentido na disputa a partir da intervenção do imperador Constantino, através da criminalização da dissidência doutrinal que se seguiu à proclamação da ortodoxia nicena (325), tornando as posições teológicas mais politicamente carregadas (p. 78-97). Uma vez que o Concílio de Niceia falhou em produzir um consenso teológico, a disputa reacendeu logo após o concílio e os desentendimentos teológicos se tornaram mais ameaçadores. Desse modo, o capítulo 7 (Claiming Truth, Projecting Power, A.D. 325-361) trata do ambiente politicamente carregado do tempo de Niceia até a morte de Constantino. Ele mostra como os prelados reagiram ao sentido de insegurança gerado pela falta de consenso e compromisso e as ações tomadas para mobilizar os recursos da Igreja para afirmar autoridade e empreender campanhas para suprimir a oposição, eliminar dissidentes e promover suas visões para um campo cada vez maior. A consequência dessas ações foi a consolidação de um novo estilo de liderança que havia emergido nos anos iniciais da Controvérsia Ariana (p. 99-124). Por fim, no capítulo 8 (The Challenge of Theology and Power in Action: Bishops, Cities, and Empire, A.D. 337-361), o autor transporta aqueles desenvolvimentos para a metade do século IV d.C., da morte de Constantino ao início da década de 360. O capítulo mostra como os bispos conceberam novas estratégias de poder que os possibilitou afirmar sua autoridade, algumas vezes em completa oposição ao imperador (p. 125-151): O recurso à violência continuou a ser um elemento chave nesse processo, mas a novidade nas décadas de 340 e 350 foi, primeiro, sua escala e destrutividade e, segundo, sua “rotinização”. Episódios de violência coletiva, em particular, sejam espontâneos ou orquestrados pelos líderes eclesiásticos ou seculares, tornaram-se muito mais frequentes, de fato, frequentemente o meio preferido de conduzir a disputa: espancamentos, abusos, banimentos, perdas de propriedade e vida tornaram-se características comuns da vida em muitas comunidades cristãs conturbadas, com os líderes da Igreja atacando dissidentes e compelindo os fiéis a abraçar suas visões.

[…] o continuado conflito teológico nos anos depois da morte de Constantino produziu “modos de comportamento” ou maneiras de ser e agir – um habitus, na definição de P. Bourdieu – que contribuiu para transformar o episcopado em uma poderosa força social e política, empurrando os líderes da Igreja para o centro da vida pública e reconfigurando as relações entre clérigos e os tradicionais detentores do poder, incluindo o imperador (p. 126-127, destaques do autor).

Por meio dessas considerações, indicamos que esse trabalho de Galvão-Sobrinho é leitura fundamental para os pesquisadores dos conflitos político-religiosos e administrativos na Antiguidade Tardia. Percebemos que esses padrões de violência e a perpetuação dos conflitos nortearam as controvérsias que se adentraram para o século V d.C., mesmo a despeito da oficialização de uma daquelas formas de cristianismos como ortodoxa, em 380 d.C. O que se percebe é que a afirmação desse ethos reuniu condições para que personagens investidas de legitimidade político-espiritual transfe-rissem para o plano político-religioso os seus projetos escatológicos.

1 GALVÃO-SOBRINHO, Carlos Roberto. The Rise of the Christian Bishop: doctrine and power in the later Roman Empire, A.D. 318-380. Tese (Doctor of Philosophy). 334 f. Yale University, Graduate School, New Haven/USA, 1999.

2 Vide https://www4.uwm.edu/letsci/history/faculty/galvao.cfm. Acesso em 14/04/2014.

3 Uma extensa bibliografia das fontes é indicada nas páginas 183-185 e no Apêndice, p. 161-182).

4 Conflito que se iniciou nas comunidades cristãs de Alexandria no início do século IV d.C. e que tentava explicar como é possível acreditar que Jesus fosse um ser divino e insistir, ao mesmo tempo, na exis-tência de um só Deus. Tais conflitos se deram em torno, sobretudo, das ideias do presbítero Ário e seus seguidores. Em suma, para Ário, e as diferentes nuances de pensamento que a sua doutrina ensejou, a Palavra, não é coeterna com o Pai, inconcebida como ele é, pois é do Pai que ela recebe a vida e o ser. Portanto, Jesus, a Palavra ou o Logos (nomes pelos quais se designa a segunda pessoa da Trindade) é dependente e subordinado ao Pai (Deus). Tais ideias colidiam com a ortodoxia que viria a ser oficializa 5 Part one – Points of departure: theology and Christian leadership in the third-century Church; Part two – God in dispute: devotion and truth, A.D. 318-325 e part three – Defining God: truth and power, A. D. 325-361.

Daniel de Figueiredo – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” UNESP/Franca Correspondência: Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Departamento de História. Av Eufrásia Monteiro Petráglia, 900 – Centro – 14409-160 – Franca, SP E-mail: [email protected].

 

 

Baluartes da Fé e da Disciplina. O enlace entre a Inquisição e os bispos em Portugal (1536-1759) – PAIVA (LH)

PAIVA, José Pedro. Baluartes da Fé e da Disciplina. O enlace entre a Inquisição e os bispos em Portugal (1536-1759). Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011. Resenha de: XAVIER, Ângela Barreto. Ler História, n.61, p.189-194, 2011.

1 O título deste livro propõe uma tese que é, por assim dizer, contraintuitiva: a de que se verificou um enlace – uma aliança? – entre os bispos e a inquisição no processo de controlo da ortodoxia (e, em concreto, de repressão da heresia) e de disciplinamento social que se pode identificar no Portugal da época moderna. Para quem defende a natureza jurisdicional da monarquia portuguesa, na qual cada «corpo» da respublica era demasiado ciente das suas prerrogativas, a ideia de um enlace entre inquisição e bispos não é, de facto, evidente. Partindo do conceito de campo forjado por Pierre Bourdieu, é o próprio José Pedro Paiva a lembrar, aliás, nas páginas introdutórias do livro, e cito, que a Igreja era «uma instituição heterogénea, um corpo pluricelular, formada por diversos grupos e uma multidão de indivíduos. Estes possuíam uma cultura heteróclita, uma formação moral e princípios religiosos com alguma margem de diferenciação» (p. 8). E é o próprio autor a afirmar que o surgimento da Inquisição em Portugal, em 1536, tinha originado uma situação inédita, obrigando a uma reorganização dos equilíbrios de poder no campo religioso.

2 Apesar disso – e é sobre esta situação improvável que o livro incide – a história da relação entre os bispos e a inquisição, dois incontornáveis protagonistas do campo religioso, seria, até 1745, uma história feliz, mais feita «de laços do que de limites» (p. 188). Contrapondo-se aos que têm atribuído quase exclusivamente ao Santo Oficio a missão de velar pela defesa da ortodoxia católica no Portugal da época moderna, José Pedro Paiva apresenta, ao invés, uma paisagem na qual esta missão era executada por esses dois baluartes da fé que eram o episcopado e o Santo Ofício.

3 Mas antes de passar aos conteúdos do livro, creio que, para o melhor podermos apreciar, ele deve ser situado, em primeiro lugar, na produção historiográfica do próprio autor. Os primeiros dois livros de José Pedro Paiva – Práticas e crenças mágicas. O medo e a necessidade dos mágicos na diocese de Coimbra (1650-1740) (Coimbra: Livraria Minerva, 1992), e Bruxaria e superstição num país sem caça às bruxas: 1600-1774 (Lisboa: Editorial Notícias, 1997) – incidiram, como é sabido, sobre temas sobre os quais pouco ou nada se escrevera em Portugal, mas que eram amplamente discutidos no contexto internacional. Dessa forma, José Pedro Paiva deu um contributo muito importante para o entendimento das práticas inquisitoriais a este nível, mas também, para um conhecimento mais aprofundado da sociedade portuguesa da época e, nomeadamente, a sua religiosidade. Com os capítulos de sua autoria publicados no 2º volume da História Religiosa de Portugal, os quais providenciam um excelente mapeamento de muitos aspetos da história institucional da Igreja da época moderna, nomeadamente na sua relação com o poder político, começa a configurar-se, com alguma visibilidade, aquilo que se poderia apelidar de projeto sistemático – para o qual os anteriores livros acabam por concorrer. Com a publicação, em 2006, de Os Bispos de Portugal e do Império – 1495-1777 (Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra), de Os Baluartes da Fé, em 2011, bem como de um outro projeto bibliográfico já na forja, parece tornar-se claro que José Pedro Paiva se constitui como um dos mais importantes renovadores da história portuguesa da época moderna – nomeadamente da sua história religiosa –, recolocando o fenómeno religioso, as instituições e os agentes religiosos, numa história mais geral, e, em concreto, na história política, da qual foram muitas vezes expulsos.

4 Este output historiográfico torna cada vez mais visível, importa dizer, a impossibilidade de se fazer uma boa história política, social, cultural, da época moderna, sem atender ao papel estrutural que a dimensão religiosa nela teve. Note-se, ainda, que este revisionismo historiográfico que em Portugal tem contributos essenciais de outros autores – Francisco Bethencourt, José Adriano Freitas de Carvalho, Maria de Lurdes Correia Fernandes, Federico Palomo, e mais recentemente Giuseppe Marcocci –, dialoga diretamente com o que de melhor se faz, a este nível, internacionalmente.

5 Dito isto, passe-se, então, a uma descrição muito sucinta do livro que se desenvolve em cinco longos capítulos.

6 Os primeiros dois capítulos privilegiam a dimensão institucional do diálogo entre bispos e Inquisição e o modo com ambos colaboraram na repressão da heresia.

7 A fundação da Inquisição, as alterações que necessariamente comportou para o campo religioso, potenciadas pelas estratégias desenvolvidas (com frequente proteção do poder político, nomeadamente do cardeal D. Henrique, e do poder papal) no sentido de aumentar as suas competências sobre matérias de jurisdição da fé, colidindo com áreas tradicionalmente reservadas à esfera episcopal (nomeadamente em matéria de confissão, de repressão das heresias, e até mesmo de censura), constituem as temáticas abordadas no primeiro capítulo.

8 Apesar das áreas de inevitável colisão entre ambos, e apesar da complexidade do processo, o autor mostra que o ajuste do episcopado em relação à nova situação jurisdicional, ocorreu desde muito cedo – a começar pelos bispos diretamente envolvidos no processo de fundação da Inquisição, ou nos que foram inquisidores, e continuando na «estrutura estável disseminada por todo o reino, que o esquadrinhava até ao nível da mais pequena paróquia» que os bispos dispunham, cujos agentes – párocos, vigários, curas –, e dispositivos – as visitas pastorais – reuniam um caudal de informação que desembocava na Inquisição, sugerindo, inclusive, matérias nas quais esta podia e devia intervir. Em suma, esse ajuste de objetivos permitiu que entre bispos e Inquisição houvesse uma relação de «grande harmonia, estreita colaboração e profunda complementaridade» (p. 140), relação que é atestada por um conjunto de documentação que Paiva utiliza de forma convincente.

9 Os dois capítulos seguintes incidem sobre «o enervamento de matriz ideológica» que impregnava a boa relação entre as duas instituições – objeto do terceiro capítulo –, o qual melhor se entende no contexto dos processos de disciplinamento social que caracterizaram os «estados confessionais» da época moderna, analisados no quarto capítulo.

10 Esse enervamento de matriz ideológica tinha no mal-estar em relação aos cristãos-novos o principal pólo unificador, expresso em sermonários, tratadística e catecismos. A sintonia ideológica de que nos fala José Pedro Paiva, fazia tanto mais sentido quanto era estruturante a convicção de que os cristãos-novos eram um perigo para a coesão da respublica, constituindo-se, por isso mesmo, como um obstáculo ao próprio poder político. Daí a relevância da aliança entre a coroa e a igreja – da qual a relação entre bispos e inquisição se constituía como mais uma, e muito importante, declinação.

11 No capítulo seguinte, uma excelente introdução à operatividade do conceito de «disciplinamento social» para analisar os processos políticos e sociais que ocorreram na época moderna, e o papel que bispos e inquisição aí tiveram, Paiva mostra que, e cito, «bispos e inquisição vigiaram espaços diferenciados, concentraram a atuação sobre estratos de populações distintos, puniram crenças religiosas e comportamentos de diferente tipo (…)» – apesar de os bispos terem julgado mais gente e de, no geral, terem uma severidade punitiva bastante menor, marcados pelo seu ethos de pastores, revelado, aliás, na opção por «estratégias mais pedagógicas, educativas e doces» (p. 292), em contraponto com a «severa e pública repressão das heresias» que caracterizava o trabalho dos «vigias», i.e., dos inquisidores.

12 Estes quatro capítulos visam demonstrar a tese central do livro: de que a relação entre estas duas instituições foi feita, nestes dois séculos, mais de laços do que de limites. Contudo, e de modo a complexificar a paisagem, o autor dirige a sua objetiva, no capítulo final, para dois pontos distintos: para o lado, e para o interior.

13 Na primeira parte do capítulo final, compara as experiências antes descritas, com os casos espanhol e italiano, para reiterar a ideia – antes enunciada – que a experiência portuguesa, fazendo jus ao tradicional provérbio dos «brandos costumes», tinha sido muito mais pacífica do que as vizinhas. Isto é, o «corporativismo institucional» – se é legítimo falar assim – seria muito maior naqueles territórios do que em Portugal, onde, no final de contas, as próprias instituições de disciplinamento eram disciplinadas…

14 Na segunda parte deste capítulo mostra que esse disciplinamento de ambas instituições – e repare-se que no livro fala-se, quase sempre de bispos e de Inquisição, e raramente de bispos e inquisidores – não silenciava posições dissonantes. Como em qualquer bom e duradoiro enlace, também no casamento entre o Santo Oficio e os bispos «existiram desconfianças, receios, problemas e até discórdias» (p. 322), e grandes conflitos. Ou seja, a harmonia entre as duas instituições também se construiu tensionalmente, no século XVIII, com a querela que opôs Inácio de Santa Teresa à Inquisição, prolongada na questão do sigilismo, cavar-se-ia um fosso inultrapassável entre Inquisição e bispos, os quais deixariam de se submeter, doravante, à hegemonia entretanto alcançada pela Inquisição. Ao mesmo tempo que se anunciavam os novos ventos da secularização. Ou seja, o enlace que caracterizara dois séculos de relação e que, para muitos, explicava esse Portugal «limpo de scismas e erros» (p.427) perderia agora a vitalidade que o caracterizara, nele passando a medrar, nas palavras do autor, «mais limites do que laços» (p. 418). Intui-se, pela leitura do livro, que no fim desse casamento vislumbrava-se, também, o fim de um sistema, cujos primeiros golpes surgiriam, logo, com a chegada do Marquês de Pombal ao poder.

15 Para além das inúmeras virtualidades que o livro encerra que se podem declinar das observações anteriores, e de outras que, por economia de espaço, não podem aqui ser desenvolvidas, algumas opções de caráter metodológico também devem ser salientadas. Desde logo, a sua amplitude geográfica e o jogo de escalas que permite, pois aí se contam, simultaneamente, uma história macro, uma narrativa maior – e não apenas portuguesa –, e várias histórias micro (e aí se pressente a lição de Ginzburg) que, de uma ou de outra forma, para ela concorrem. Por exemplo, ficamos a conhecer mais sobre a densidade e variabilidade das vidas no interior do reino, em vez de nos ficarmos por alusões ao que se passava nas grandes cidades, i.e., as cidades onde havia Inquisição. Esse pulsar da vida das gentes de Viseu até Évora, e daqui a Goa ou a Lisboa, é, a meu ver, muito enriquecedor. Ou seja, José Pedro Paiva consegue apresentar um elegante equilíbrio para as difíceis articulações entre o macro e o micro, entre estrutura e agency, entre análise e processo, o que, como é sabido, é extremamente difícil de alcançar.

16 Esta verificação convida a uma segunda observação: a dimensão sociológica (e a marca de Pierre Bourdieu é explícita) e antropológica de trabalhos anteriores do José Pedro Paiva, também aqui está bem presente. Não só na identificação de regularidades grupais (a Inquisição como bloco, os bispos), mas também no mapeamento das minudências da vida concreta, e ao modo como estas deram textura ao processo histórico, não se deixando domesticar completamente (não se deixam disciplinar?), pelo olhar, pelos modelos teóricos, pela escrita do historiador.

17 Ainda assim, a autora destas páginas não ficou totalmente convencida com o argumento desenvolvido por José Pedro Paiva. A meu ver, os Baluartes da Fé e da Disciplina permitem uma contraleitura. I.e., uma leitura igualmente densa da narrativa aí contada – assente na mesma documentação e nos muitos casos elencados pelo autor – pode suscitar mais dúvidas em relação à «grande harmonia, estreita colaboração e profunda complementaridade» (p. 140), que, segundo José Pedro Paiva, teria caracterizado a relação entre bispos e Inquisição nos séculos XVI e XVII, e para além das ambiguidades referidas pelo próprio. O exemplo de D. Gaspar de Leão, primeiro arcebispo de Goa, a quem coube estabelecer a Inquisição naqueles lugares é, a esse respeito, sintomático. A carta pastoral com que abre a tradução do tratado de Jerónimo de Santa Fé, publicado em Goa em 1565, expressa uma tendência, presente em vários outros prelados em optar pelas vias doces em vez de escolher as vias repressivas que a Inquisição corporizava na relação entre cristãos e judeus e/ou cristãos-novos. Mas outras situações, também exploradas por José Pedro Paiva, como as dificuldades dos anos iniciais, os conflitos de precedências no âmbito cerimonial, ou as discórdias mais substantivas às quais o autor dedica várias dezenas de páginas, podem também revelar que não foi com bons olhos que os bispos assistiram à implantação da Inquisição, e às suas tentativas desta – e dos seus inquisidores – em ser reconhecida como a principal instituição eclesiástica portuguesa. Mas estas minhas dúvidas são, também elas, ancoradas em posicionamentos historiográficos igualmente explícitos, os quais formatam, inevitavelmente, a interpretação deste livro incontornável para quem quiser compreender os processos políticos, institucionais, sociais e culturais do Portugal da época moderna, pelo que convido o leitor a, por si só, inquirir da natureza da relação entre estes dois baluartes da fé – bispos e inquisidores – e avaliar as suas características.

Ângela Barreto Xavier – ICS – Universidade de Lisboa

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