Os bispos e a ditadura militar brasileira (1971-1980): a visão da espionagem | Paulo César Gomes

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Paulo César Gomes | Imagem: Jornal Opção

Com a expansão dos Programas de Pós-Graduação em História no Brasil, especialmente a partir da década de 1990, dezenas de novos objetos, abordagens, temáticas e problemas passaram a ser privilegiados. Segundo o historiador Carlos Fico (2004, p. 21), nesse período, a produção histórica brasileira deu uma verdadeira “guinada”: a predominância de estudos que recaía sobre o período colonial deslocou-se para a fase republicana.

Nessa dinamização dos cursos de pós-graduação, um objeto que deu uma considerável alavancada foi o estudo da ditadura militar brasileira. A partir dos anos 1990, inúmeros trabalhos foram realizados sobre esse tema enfocando diversos prismas, olhares, agentes, recortes e espaços. Entre os inúmeros assuntos abordados dentro da grande temática ditadura militar, que vão de planos econômicos a organizações clandestinas, destaca-se o estudo sobre a Igreja Católica. Engana-se quem pensa que as pesquisas sobre esse assunto se esgotaram ou que não é mais possível originalidade e avanço sobre ele. Em relação à Igreja Católica, embora hoje sejam bastante conhecidos, notadamente, dois aspectos, o papel dos grupos católicos conservadores nas “Marchas da Família com Deus pela Liberdade” durante o pré-golpe de 1964 e a atuação da ala “progressista” na oposição à ditadura e em defesa dos direitos humanos entre os anos 1970-80, importa dizer que ainda há muito a ser descoberto, analisado, (re) discutido e revelado. A obra de Paulo César Gomes, Os bispos católicos e a ditadura militar brasileira é uma prova disso. Leia Mais

Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos / Ludmila C. Abílio

O Brasil é, hoje, o terceiro maior mercado mundial de produtos de higiene pessoal, perfumes e cosméticos. Segundo dados do setor, no ano de 2013, o país ficou atrás apenas dos Estados Unidos e do Japão e à frente de gigantes como a China. A previsão é que o Brasil ocuparia, até o primeiro semestre de 2016, o segundo lugar no ranking. No Brasil, a campeã de vendas nesse setor é a Natura. A enorme quantidade de pessoas vendendo produtos cosméticos revela o crescimento exponencial desse setor. No mundo são cerca de 95 milhões de vendedoras. O Brasil tem, atualmente, 4,5 milhões. Somente a Natura tinha, em 2007, 400 mil pessoas revendendo seus produtos. Em 2014, já tinha chegado à marca de 1,3 milhões. O sucesso da Natura adveio, principalmente, da adoção, desde 1974, do “Sistema de Vendas Diretas” (SVD). As vendas nesse formato não exigem postos físicos de trabalho; elas ocorrem através de relações interpessoais, com “consultoras” que vão de porta em porta apresentar os catálogos aos clientes. Esse sistema é antigo no Brasil, mas, no último decênio cresceu de modo avassalador. O Brasil ocupa hoje a quarta posição nessa área, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, Japão e China. O volume de negócios do setor movimentou mundialmente o montante de US$ 169 bilhões em 2013; no Brasil chegou à marca de R$ 41,6 bilhões.

Vendo esses expressivos números, uma pergunta logo vem à baila: será que o crescimento do setor de perfumes e cosméticos no Brasil está sendo acompanhado no mesmo ritmo de melhorias salariais e de trabalho para os indivíduos que dele fazem parte?

Será que o negócio do SVD, que vem crescendo em ritmo galopante, tem realmente gerado lucros e benefícios para os revendedores, conforme divulgam amplamente as empresas que operam nesse sistema? O recente livro de Ludmila Costhek Abílio aponta que não.Escolhendo como objeto de estudo uma das mais importantes empresas de cosméticos do país, a Natura, a autora revela que a empresa tem conquistado lucros exorbitantes adotando uma “estratégia de negócios” que acarreta inúmeras condições adversas para quem está na ponta –baixa remuneração, informalidade, indistinção entre tempo de trabalho e de não trabalho, instabilidade, precariedade, exploração do trabalho, flexibilidade, adoecimento, sofrimento, falta de reconhecimento etc. Ludmila tira a maquiagem da Natura e revela que o SVD dessa empresa é uma atividade que, sob o amparo legal, tem a aparência de um “não trabalho”, mas que, na prática, tem a concretude de um trabalho pesado, precário, extremamente extenuante, ausente de normas e de vínculos empregatícios reconhecidos, e o mais grave: “não pago”.

A pesquisa de Ludmila desnuda friamente a “contradição” que permeia a relação entre a Natura e as revendedoras: de um lado, a “visibilidade” da marca; de outro, a condição “invisível” das consultoras, que estão em toda parte, mas que não têm o trabalho reconhecido, nem visto como tal. Em outras palavras, o que fica visível na relação entre a Natura e o seu exército de um milhão de revendedoras (menos de 5% dos consultores são homens) é que muito embora essas mulheres não sejam reconhecidas como trabalhadoras pela empresa, a verdade é que sem elas os atuais lucros da Natura não existiriam. A Natura conseguiria manter o mesmo valor de mercado e a sua alta margem de lucro se assalariassem um milhão de revendedoras com direitos e garantias trabalhistas? A resposta de Ludmila Abílio é, obviamente, um “não”,pois a acumulação,o sucesso comercial e os lucros galopantes da Natura advêm justamente da exploração do trabalho, da flexibilização, da extração de valor do excedente, da informalidade, ou seja, do duro trabalho “não pago” às revendedoras.

Na primeira parte da obra, Ludmila realizou um fecundo panorama sobre os perfis socioeconômicos das “profissionais” e a relação que elas mantinham com as vendas. Para atingir o seu objetivo, a autora realizou entrevistas com consultoras das mais variadas regiões e posições sociais. Ao longo da pesquisa, Ludmila percebeu que o perfil socioeconômico das revendedoras é bastante heterogêneo, englobando estratos da classe baixa, média e alta. Ludmila apontou que as pessoas de baixa renda formam a maioria das empregadas no ramo do SVD. E o motivo não é difícil de entender. Deve-se, grosso modo, à voracidade do capitalismo que aumenta cotidianamente a fileira dos desempregados e tende a puxar para baixo o poder de compra dos mais pobres. A Natura se apresenta para muitos indivíduos como uma verdadeira “tábua de salvação”. Para as mulheres que estão empregadas no trabalho formal (domésticas, faxineiras e babás, por exemplo), a Natura é tida como um complemento de renda; já para as centenas de desempregadas, ela é vista como a única fonte de renda. O que se revela surpreendente no estudo de Ludmila é que as revendedoras de baixa renda são as que amargam, no geral, tanto os “menores lucros” como os “maiores prejuízos” decorrentes dos altos índices de inadimplência. Aqui, cabe advertir que a Natura repassa para as revendedoras todos os riscos (de estocagem e de inadimplência) envolvidos na atividade.

Assim como a população pobre, a classe média também não é homogênea. Em relação à venda dos produtos, Ludmila dividiu a classe média em dois grupos. O primeiro é constituído por mulheres que fazem das vendas sua ocupação e principal fonte de renda. São mulheres que empregam vários dias da semana e horas do dia para a venda de Natura. São mulheres que trabalham duramente para subir no ranqueamento da empresa e, assim, serem premiadas com viagens, troféus, bijuterias, cosméticos etc. As entrevistas de Ludmila revelaram que, de uma maneira geral, esse grupo é formado por mulheres que largaram sua profissão para se dedicar exclusivamente à Natura. O que torna trágico para essas mulheres é o fato de que se antes a atividade gerava um razoável lucro, hoje, devido ao aumento do número de revendedoras, muitas se arrependem de terem largado o trabalho formal.

O segundo grupo de vendedoras no interior da classe média é constituído por mulheres que não apresentam a venda dos produtos da Natura como a sua principal fonte de renda. De acordo Ludmila Abílio, 70% das revendedoras da Natura têm outra atividade principal. O que, na realidade, significa horas de trabalho para além de sua própria jornada, a banalização do “trabalho para além do trabalho”. Nesse grupo estão incluídas centenas de mulheres que vendem os produtos em seus locais formais de trabalho, mas sem maiores pretensões salariais e de carreira dentro da Natura. São mulheres, portanto, que optaram por uma dupla (ou tripla?) jornada –trabalho fora de casa, trabalho de dona de casa e venda dos produtos –, combinando a venda dos produtos com outras atividades. A existência de trabalho formal e estável possibilita queas vendas dessas consultoras sejam mais estáveis e rentáveis com pequeno índice de inadimplência. De modo geral, essas mulheres, que já detém uma profissão, não procuram se qualificar como “vendedoras” da Natura. Preferem preservar a identidade de sua ocupação principal, de seu trabalho formal. As vendas aparecem para esse estrato de mulheres como passatempo ou como uma oportunidade para consumir produtos por um preço menor, apagando-se, assim, todo o complexo e cruel processo de vendas envolto.

Além de expandir seu mercado consumidor e trabalhador para as classes baixas e médias, a Natura também alcançou estratos da elite. Há poucos anos, criou o “setor Crystal” para congregar consumidoras e vendedoras de altas rendas. Este setor funciona de forma diferente dos demais. Ao invés de 500 a 800 consultoras por cidades, a Natura destina, em média, 40 apenas por área. As consultoras são mulheres jovens, de nível superior, que vêm da elite ou circulam por ela. O ingresso ao seleto grupo se dá por meio de convites.Geralmente, a venda dos produtos não ocorre por meio do catálogo, mas através de reuniões e festas organizadas pelas vendedoras. Mas, por que mulheres de alta renda procuram essa atividade? As respostas, obviamente, são diversas: para terem maior “independência financeira”; preencherem o tempo; aumentarem o círculo de amizade com as pessoas da mesma posição social; ou até mesmo porque acreditam nos valores da empresa, sua filosofia vinculada ao capitalismo verde, que cultua a “sustentabilidade” e se apresenta como “politicamente correta”. Para muitas pessoas, a Natura representa a prova do “Brasil que dá certo!”. A análise de Ludmila Abílio em relação ao comportamento das vendedoras dessa classe social é mordaz: embora não se sintam “trabalhadoras”, todas as ações envolvidas no processo de venda dos produtos levam essas socialitesdesempenharem exatamente a mesma atividade pela qual as suas empregadas domésticas recorrem para complementar a renda familiar.

Na primeira parte do livro também foram trabalhadas outras questões que atingem as revendedoras da Natura, independentemente de sua posição social. A principal delas é que as consultoras raramente sabiam identificar quanto ganhavam por seu trabalho, quanto gastavam (“investiam”) com a compra dos produtos ouquanto tempo dedicavam à atividade. No geral, as contas feitas pelas revendedoras se mostravam complicadas e confusas, pois misturavam a venda dos produtos com o consumo próprio–que, surpreendentemente, se revelou, através da pesquisa, altamente excessivo, para não dizer desnecessário. E esse consumo supérfluo tem uma explicação simples: as vendedoras da Natura são constantemente envolvidas a se tornarem elas mesmas propaganda da marca. Cabe ressaltar que, além de incentivar as vendedoras a se constituírem em vitrines vivas dos artigos que vendem (na verdade, agentes não pagas pelo marketing que realizam), o estímulo da Natura ao consumo também se dá por meio de “pontuação”, com a qual a empresa encoraja as mulheres a “investirem” em maciços estoques de produtos que, na maioria, não são vendidos. Essas mulheres se constituem, assim, no dizer de Ludmila Abílio, em “trabalhadoras-consumidoras”, à medida que trabalham para consumir e consomem para trabalhar. Vale enfatizar que o trabalho de Ludmila –embora trate da relação e da situação de trabalho de um conjunto de mulheres numa empresa específica, a Natura –não deve ser entendido como mais um “estudo de caso”. O seu trabalho extrapola em muito essa definição. E este é justamente o brilhantismo da obra, quea fez ser a vencedora, em 2013, do prêmio Mundos do Trabalho, da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (ABET) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).

Na segunda parte da obra, Ludmila demonstrou claramente que a exploração econômica envolvida no SVD não ocorre de maneira acidental ou por acaso. A exploração faz parte da própria “gestão de negócios” das empresas desse ramo. Elas acumulam capital através da extração de valor do excedente, ou seja, acumulam capital através do duro trabalho (“não pago”) de seus próprios vendedores.  Ludmila, ao tratar do caso específico da Natura, a insere nesse contexto mais amplo de exploração e precarização do trabalho que caracteriza hoje as políticas neoliberais. Ou seja, a autora parte do trabalho invisível, não reconhecido de mais de um milhão de mulheres para pensar na relação deste com a acumulação da Natura. A enorme disparidade entre o lucro da empresa e a “riqueza distribuída” para as consultoras fica visível, por exemplo, nos relatórios anuais da Natura. No Brasil, a receita líquida da Natura em 2014 foi de R$ 7,640 bilhões e o lucro líquido de R$ 732,8 milhões. No ranking das marcas mais valiosas em 2014, a Natura ficou em sexto lugar, superando, inclusive, a Petrobras. À frente da Natura estão apenas: Itaú, Bradesco, Skol, Banco do Brasil e Brahma. Por outro lado, essa bonança financeira não é sentida pelas trabalhadoras. No Relatório Anual de 2013,por exemplo, a companhia apresentou o rendimento anual médio de R$ 4.138 para as vendedoras, o que correspondia ao ganho de R$ 345 por mês. Vale salientar que, como toda média, esses números são problemáticos, pois as vendedoras não vendem necessariamente da mesma forma, nem a mesma quantia todos os meses, além de que existirem mulheres que pagam mais do que ganham por causa do assíduo consumo dos produtos.

No começo dos anos 1990, no auge das políticas neoliberais, diversas pessoas passaram a pregar basicamente duas teses. A primeira advogava a “inevitabilidade” das terceirizações, flexibilizações e desregulações trabalhistas para garantir a sobrevivência do “mercado”. A segunda dizia respeito à primazia do imaterial e à perda de centralidade do trabalho. Mas será que houve, de fato, um “adeus ao trabalho”? Ludmila responde que não. Para autora, é um equívoco pensar na tese do “fim do trabalho”. À bem da verdade, os trabalhadores estão todos aí em nosso redor –motoboys; atendentes de telemarketing; assalariados dos fast food; trabalhadores dos hipermercados; terceirizados de toda ordem, entre outros. É só olhar para os países do Terceiro Mundo –onde se encontram 2/3 da população mundial que trabalha –que se encontrará milhões desses trabalhadores. O momento atual representa uma “mutação do trabalho”, mas não a sua eliminação.

Os trabalhadores de hoje estão inseridos numa “nova morfologia” do trabalho que reduziu o operariado industrial de base taylorista/fordista e ampliou, a partir da lógica da flexibilidade toyotizada, contingentes de terceirizados, subcontratados, temporários e precarizados. Esse “novo proletariado” não está mais, em sua maioria, na indústria, mas sim no setor de serviços. O trabalho desse “novo proletariado”, just in time, toyotizado, está cada vez mais precário, intensificado, flexível, instável, rotativo, baixo remunerado, informal, desregulado e ausente de normas e vínculos empregatícios reconhecidos. São pessoas que trabalham por mais tempo, mais intensamente e também em formas que muitas vezes não são reconhecidas ou contabilizadas como trabalho. Ludmila Abílio, ao procurar entender como mais de um milhão de mulheres se envolveram em um negócio pouco rentável, que demanda investimento monetário e tempo e que permeia tanto o tempo de trabalho como o tempo do lazer, traz uma importante contribuição para entender a história recente do trabalho, mais precisamente a “nova morfologia” do trabalho e o seu desenho multifacetado, resultado das fortes mutações que vem abalando o mundo produtivo do capital nas últimas décadas.

Referências

ABÍLIO, Ludmila Costhek. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo: Boitempo, FAPESP, 2014.

Rafael Leite Ferreira – Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco(UFPE). Professor da Unibra -Centro Universitário Brasileiro. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0295848610110162. Email: [email protected]


ABÍLIO, Ludmila Costhek. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo: Boitempo, FAPESP, 2014, 238p. Resenha de: FERREIRA, Rafael Leite. O sistema de vendas diretas da Natura: O hiato entre a acumulação da empresa e a precarização do trabalho. Em Perspectiva. Fortaleza, v.4, n.1, p.275-280, 2018.Acessar publicação original [IF].

Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos | Ludmila Costhek Abílio

O Brasil é, hoje, o terceiro maior mercado mundial de produtos de higiene pessoal, perfumes e cosméticos. Segundo dados do setor, no ano de 2013, o país ficou atrás apenas dos Estados Unidos e do Japão e à frente de gigantes como a China. A previsão é que o Brasil ocuparia, até o primeiro semestre de 2016, o segundo lugar no ranking. No Brasil, a campeã de vendas nesse setor é a Natura. A enorme quantidade de pessoas vendendo produtos cosméticos revela o crescimento exponencial desse setor. No mundo são cerca de 95 milhões de vendedoras. O Brasil tem, atualmente, 4,5 milhões. Somente a Natura tinha, em 2007, 400 mil pessoas revendendo seus produtos. Em 2014, já tinha chegado à marca de 1,3 milhões. O sucesso da Natura adveio, principalmente, da adoção, desde 1974, do “Sistema de Vendas Diretas” (SVD). As vendas nesse formato não exigem postos físicos de trabalho; elas ocorrem através de relações interpessoais, com “consultoras” que vão de porta em porta apresentar os catálogos aos clientes. Esse sistema é antigo no Brasil, mas, no último decênio cresceu de modo avassalador. O Brasil ocupa hoje a quarta posição nessa área, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, Japão e China. O volume de negócios do setor movimentou mundialmente o montante de US$ 169 bilhões em 2013; no Brasil chegou à marca de R$ 41,6 bilhões. Leia Mais

Informação, repressão e memória / Marcília Gama Silva

Entre os anos de 2012 e 2014, com a criação de diversas comissões da verdade no Brasil e próximo à passagem dos cinquenta anos do golpe civil-militar de abril de 1964, as discussões a respeito da derrubada do presidente João Goulart e do regime autoritário que se seguiu cresceram de maneira considerável, fomentando a realização de audiências públicas, reportagens especiais, seminários, documentários, filmes e, principalmente, novas e ricas produções bibliográficas. Uma destas produções, por exemplo, foi o livro da historiadora Marcília Gama da Silva, Informação, repressão e memória: a construção do estado de exceção no Brasil na perspectiva do DOPS-PE (1964-1985), de 2014.

Fruto de sua tese de doutorado, defendida, em 2007, no Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal de Pernambuco, o livro, que tem uma agradabilíssima escrita, teve como foco estudar a “rede de informações” instalada, em Pernambuco, durante o regime militar (1964-1985), tomando como base o intercâmbio informacional criado entre o Departamento de Ordem Política e Social de Pernambuco (DOPS-PE) e os demais órgãos de informação em nível regional e nacional.

Ao se dedicar à questão da “espionagem/monitoramento/vigilância”, Marcília Gama se associou a um tema que, dentro da historiografia brasileira, tem crescido, qualitativa e quantitativamente, durante os últimos anos. O interesse por essa temática remonta à metade da década de 1980, quando importantes jornalistas lançaram sólidas obras, desnudando a face vil da comunidade de informações. Na década de 1990, uma nova contribuição ao tema foi dada com o lançamento de uma trilogia pela CPDOC da Fundação Getúlio Vargas (FGV), na qual os próprios militares expunham diretamente opiniões, pontos de vista, críticas ou elogios acerca de sua atuação no exercício do poder. Nos anos 2000, o tema teve uma nova alavancada com a publicação de centenas de artigos em revistas especializadas e a produção de riquíssimos trabalhos acadêmicos.

O estudo de Marcília Gama, portanto, ao tratar da questão do monitoramento feito pela ditadura, não apenas complementa as obras clássicas sobre o tema, mas, principalmente, por seu recorte espacial local e pela vasta documentação apresentada, avança no cerne da questão, trazendo à tona as nefastas atividades de informações produzidas pela ditadura em Pernambuco. Atividades que, além de levianas e fincadas no preconceito e na ignorância, eram conduzidas pela suspeição universalizada, ou seja, sob o lema da “inculpação”, já que partia da pressuposição de que todos poderiam ser subversivos, até que provassem o contrário.

O livro de Marcília é composto por três capítulos, ao longo dos quais se buscou refutar a tese de que as atividades de informação no Brasil eram precárias ou amadoras. Marcília procurou mostrar que longe de um amaradorismo, as atividades de informações faziam parte de uma complexa rede de especialistas que tudo buscava anotar, captar, ouvir, enxergar e arquivar. O grande desejo da comunidade de informações sempre foi, na verdade, o de ser onipresente. Para conseguir a tão sonhada vigilância total da população, a ditadura, por exemplo, contratou e/ou deslocou de outros órgãos centenas de agentes e peritos, utilizou centenas de agentes infiltrados nas organizações clandestinas e nos movimentos sociais, além de instigar, cotidianamente, considerável parcela da população a colaborar com as atrocidades cometidas pelo regime.

Uma das primeiras preocupações de Marcília foi mostrar como a questão das informações passou a ocupar um lugar estratégico dentro da ditadura, ou seja, como a extensa e dinâmica rede de informações serviu de base para a manutenção do próprio regime e de seu aparato repressivo. No primeiro capítulo da obra, ao analisar a conjuntura do pré-golpe de 1964, Marcília demonstrou que não é afeita a modismos historiográficos e ao recente “revisionismo historiográfico” que vem sendo denunciado nos últimos tempos, entre outros, pelos professores Caio Navarro de Toledo e Renato Lemos. E isto é um ponto digno de ser ressaltado, especialmente no atual momento historiográfico que apresenta uma notável relativização de certos eventos e agentes históricos.

Retomando análises clássicas de autores como René Dreifuss, Maria Helena Moreira Alves, José Comblin e Caio Navarro de Toledo (hoje, esquecidas ou descartadas por vários acadêmicos), Marcília apontou a atuação do “complexo IPES-IBAD” na desestabilização do governo João Goulart e, principalmente, o importante papel que a ESG desempenhou, durante os anos 60, como núcleo formador de opiniões, de visão de sociedade e de comportamento, através dos discursos proferidos, das palestras e cursos ministrados por civis e militares sobre a Doutrina de Segurança Nacional.

É de suma importância ressaltar que embora o livro de Marcília possa ajudar a entender a lógica e o modus operandi dos órgãos de segurança em Pernambuco, o foco da autora não foi o estudo da estrutura da repressão tout court, mas sim o desenvolvimento da complexa “rede de informações” montada pela ditadura nesse estado. A sua ideia foi enfatizar as rotinas policiais de investigação, mostrar as estratégias de vigilância e identificar os discursos policiais produzidos a respeito de alguns grupos, tais como os camponeses, estudantes e grupos de luta armada, que eram taxados de “comunistas”, “subversivos” e “perigosos” à ordem política e social do país. E tal escolha se deu justamente porque a autora entendeu que os conceitos “informação” e “repressão”, embora conexos, tinham objetivos e atuações diferentes dentro do regime.

Em outras palavras, apesar de absolutamente relacionadas, as atividades de informações (espionagem) e as de segurança (repressão) eram normatizadas, coordenadas e executadas em esferas próprias. Os órgãos de informação trabalhavam na busca, coleta, análise e “pescagem” da informação para alimentar os Inquéritos Policiais Militares, enquanto os órgãos de segurança atuavam diretamente no “estouro” de aparelhos, na prisão, nos interrogatórios, no combate direto ao inimigo.

A discussão sobre o “auxílio” do governo norte-americano para a montagem, robustecimento, atualização e modernização da polícia política e técnico-científica, em Pernambuco, no início da década de 1960, foi outro grande trunfo trazido por Marcília Gama para o conhecimento da nossa recente história política. Ela mostrou que Pernambuco – visto como um dos principais focos de comunismo e subversão do país – recebeu altas somas de dinheiro, recursos (transportes, equipamentos de escuta e telefonia etc.) e inúmeros cursos, no país e no exterior, destinados ao aperfeiçoamento de agentes públicos às atividades de informação e repressão. Para a autora, esse apoio financeiro e técnico foi completamente minado com a posse do governador Miguel Arraes, em janeiro de 1963, que desmontou o poderoso “programa de auxílio americano” chamado Ponto IV, gerando forte descontentamento por parte dos policiais estaduais e dos EUA. Com a deposição de Arraes em abril de 64, os acordos foram retomados, tendo a USAID fornecido, já no início de 1965, despesas de viagens e estadias para que técnicos americanos ministrassem “cursos de aperfeiçoamento” a policiais e gestores estaduais.

Em diversas passagens da obra, Marcília analisou com riqueza de detalhes, sobretudo por intermédio de excelentes diagramas, tabelas e organogramas, a superestrutura da polícia política em Pernambuco. Convém aqui ressaltar que a polícia política pernambucana não foi montada com o advento do golpe de 1964. Embora aperfeiçoada durante o regime militar, tal polícia foi montada ainda na década de 1930, através da Lei nº 71, de 23 de dezembro de 1935, com a clara finalidade de coibir o avanço do comunismo, cuja atuação era vista como grande ameaça à ordem, sobretudo após o levante comunista de novembro do mesmo ano, ocorrido em Natal, no Recife e no Rio de Janeiro. Seis segmentos passaram então a ser vigiados de perto pela recém-criada Delegacia de Ordem Política e Social de Pernambuco (DOPS): a imprensa, as entidades de assistência social (incluindo os sindicatos), determinadas lideranças; os partidos políticos e associações; a zona urbana (indústria, comércio e empresas) e a zona rural (os camponeses).

Em 1961, a Delegacia foi transformada em “Departamento de Ordem Política e Social (DOPS)”, aumentando a vigilância e a repressão aos trabalhadores urbanos e rurais durante o governo Cid Sampaio (1959-1962). Essa “modernização” da estrutura policial atendeu à necessidade de aperfeiçoar a máquina estatal para o combate das ações consideradas “subversivas” (manifestações, protestos, greves, passeatas, pichações etc). Os corriqueiros abusos cometidos pela polícia estadual só foram contidos, de fato, com a posse de Miguel Arraes no início de 1963.

Contudo, com o advento do golpe de 64, os abusos foram retomados e intensificados pelo DOPS. Com a deflagração do golpe iniciou-se uma fase de puro ódio, uma verdadeira caça às bruxas. Somente nos primeiros dias de abril de 1964, quase duas mil pessoas foram presas em Pernambuco. Em milhares de casos, as prisões políticas não tinham formalidade legal. Entre as prisões, havia centenas de detenções por desavenças pessoais. Naquele contexto, nas águas da perseguição política, tudo era válido.

Nos limites desta resenha, importa valorizar a riqueza do trabalho de Marcília Gama e a sua contribuição para o conhecimento da polícia política pernambucana e das ações (legais e ilegais) da comunidade de informações, suas formas de atuação, a cadeia de comando, sua organização e funcionamento. No entanto, não poderia aqui de deixar de mencionar alguns problemas que permaneceram na obra. O primeiro, a meu ver, é a utilização da expressão “regime civil-militar”. A autora faz uso desse conceito sem problematizá-lo. É importante destacar que há, atualmente, uma rica discussão historiográfica sobre o caráter civil ou não do regime.

O segundo problema é a interpretação do Ato Institucional nº 5 (AI-5) como um “golpe dentro do golpe”. Na verdade, quando usamos essa expressão, muitas vezes, estamos refletindo a própria leitura feita pela “linha dura” a respeito do regime. Entre os anos de 1964 e 1968, o que grande parte dos meios de comunicação e do oficialato então denominava de “linha dura” ou de “força autônoma dentro das Forças Armadas” (autodeclarada a verdadeira guardiã dos princípios da “revolução”) foi se constituindo como um grupo de pressão muito eficaz e conquistando, paulatinamente, consideráveis espaços de poder no interior do governo. A caminhada e a evolução da presença desse grupo são essenciais para entender diversos episódios do regime, pois evidencia que o projeto repressivo baseado numa dura “operação limpeza” estava presente desde os primeiros momentos do golpe de 64. Neste sentido, o AI-5 deve ser entendido como o amadurecimento de um processo que se iniciara muito antes, e não uma decorrência dos episódios de 1968, diferentemente da tese que sustenta a metáfora do “golpe dentro do golpe”, segundo a qual o AI-5 iniciou uma fase completamente distinta da anterior.

O terceiro problema identificado na obra de Marcília é a larga utilização de expressões como “populismo”, “democracia populista”, “colapso do estado populista implantado por Vargas”, sem as devidas ponderações e críticas que esses conceitos certamente requisitam. Não vou aqui entrar no mérito da discussão sobre a utilização ou não do conceito de “populismo”, mas considero que Marcília deveria indicar ao seu leitor o aporte teórico-metodológico que estaria orientando os seus estudos.

Outra crítica que lanço ao trabalho da autora é a falta de discussão sobre a relativa diminuição de poder dos DOPSs após a criação e fortalecimento, no final da década de 1960 e início de 1970, de outros órgãos de informações no país (a exemplo do CIE, CISA e CENIMAR). Apesar da alta complexificação da estrutura do DOPS, o órgão passou a perder espaços de poder, ao longo dos anos 70, nas atividades de investigação e repressão política. A Doutrina de Segurança Nacional estabeleceu como seus órgãos centrais o recém-criado SNI e os órgãos de inteligência militares. Elaborando estratégias, produzindo informações e centralizando os informes estes órgãos eram, indubitavelmente, os agentes mais categorizados da repressão. O processamento e a elaboração das estratégias e “informações” estavam confiados aos órgãos centrais (SNI e agências militares); cabia ao DOPS, na maioria dos casos, municiá-los de “informes”.

Por fim – e talvez seja o mais problema sério da obra –, há o argumento de Marcília de que a ditadura encerrou-se no ano de 1979. Esta concepção, que tem os historiadores Daniel Aarão Reis e Marco Antonio Villa como os seus principais expoentes, é política e historicamente complicada. Já não bastasse a afirmação de que a ditadura brasileira foi uma “ditabranda” – pois teria sido “mais branda” e “menos violenta” do que outras ditaduras latino-americanas –, busca-se difundir nos últimos anos a falácia da “ditacurta”, segundo a qual a ditadura brasileira teria se encerrado em 1979, com a aprovação da anistia e a revogação dos Atos Institucionais draconianos lançados pelos militares.

Rafael Leite FerreiraDoutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

 


SILVA, Marcília Gama da. Informação, repressão e memória: a construção do estado de exceção no Brasil na perspectiva do DOPS-PE (1964-1985). Recife: Editora UFPE, 2014. Resenha de: FERREIRA, Rafael Leite. Manduarisawa – Revista Discente do Curso de História da UFAM, Manaus, v.1, n.1, p.151-156, 2017. Acessar publicação original. [IF]