Protagonismo negro em São Paulo: historiografia e história | Petrônio Domingues

Neste livro iluminador, Petrônio Domingues nos oferece uma introdução compreensiva às pesquisas recentes sobre a história e a cultura negra em São Paulo, muitas delas realizadas por estudiosos afro-brasileiros.

O livro começa com as obras clássicas de Roger Bastide e Florestan Fernandes, e o muito debatido conceito deste sobre ser a vida comunitária afro-paulistana caracterizada pela anomia social. Domingues habilmente resume os autores que criticaram este conceito, desde várias perspectivas. O que Fernandes via como anomia, Domingues sugere, era na verdade os afro-paulistas a desenvolverem suas próprias interpretações da realidade social, com base em suas próprias tradições e valores culturais, e agindo de acordo com isso. “Florestan Fernandes não percebeu, em vários aspectos, como os ex-escravos e seus descendentes eram dotados de vontades próprias, procuraram reorganizar a vida a partir de sua própria perspectiva, inventaram e reinventaram cotidianamente a liberdade, emprestando significados singulares (nem sempre convencionais) a suas ações” (p. 32).

Esta refutação de Fernandes abre caminho para o conceito organizador do livro: o “protagonismo negro” em São Paulo. Quer dizer, uma visão dos afro-paulistas ― e, na verdade, de qualquer grupo humano ― como intérpretes ativos de seus mundos sociais, protagonistas ativos em seus mundos sociais e, como resultado, criadores de seus mundos sociais. Isto não quer dizer que eles interpretaram, agiram e criaram em condições de liberdade total. Ao contrário: viveram suas vidas dentro das estruturas econômicas, políticas e sociais que impunham (e impõem) graves limites sobre o domínio do possível. O objetivo de qualquer pesquisa histórica, sugere Domingues, deve ser o resgate e a análise, principalmente no nível micro, das constantes interações entre estrutura e ação, e os resultados históricos que elas produzem.

Dentro desse quadro analítico, Domingues empreende um levantamento minucioso das pesquisas históricas publicadas desde os anos 1980 até os 2010. Ele começa com a vida institucional e organizacional, revisando os livros, as teses e os artigos sobre os movimentos negros, sobre a participação negra nos movimentos políticos multirraciais (por exemplo, no republicanismo, nos sindicatos, nos partidos políticos etc.), sobre os clubes sociais negros, sobre as irmandades católicas e sobre os cordões carnavalescos e as escolas de samba. Esta seção conclui com uma discussão lúcida das relações entre as elites negras e as camadas populares negras, e de como os dois grupos se entrelaçavam nessas organizações: “comunicavam-se permanentemente, em mão dupla, de cima para baixo e de baixo para cima” (p. 88).

Depois de examinar a vida organizacional negra, o livro muda seu foco para métodos e abordagens históricos que se mostraram especialmente frutíferos nas pesquisas recentes. Domingues destaca a importância das biografias para lançar luz sobre as histórias individuais que, no seu conjunto, compõem a história de um povo. A biografia também se presta à narrativa e, de fato, alguns dos trechos mais interessantes do livro relatam as vidas de figuras históricas como Esmeraldo Tarquínio (eleito prefeito de Santos em 1968, mas impedido de assumir o cargo pela ditadura), Virgínia Leone Bicudo (como seu antecessor Juliano Moreira, uma psicanalista pioneira) e Helenira Resende (uma líder estudantil carismática que morreu na guerrilha armada do Araguaia).

A biografia tem suas armadilhas, Domingues adverte, uma das quais é a tentação de apresentar seus sujeitos como figuras sem máculas e miticamente heroicas. O mesmo perigo aplica-se à história oral, quando os pesquisadores acriticamente transcrevem e reproduzem depoimentos que apresentam o passado duma maneira idealizada ou simplificada. Mas adotando as precauções devidas, ambos métodos são componentes necessários dos dispositivos que os historiadores trazem a seu trabalho.

Um aspecto curioso do livro: ao descrever as tentativas de várias organizações negras no início do século XX de criar escolas para as crianças da comunidade, Domingues levanta a questão: “por que esse estrato populacional acreditava tanto no virtual poder emancipador da educação?” (p. 81). Ele pede mais pesquisa sobre essa questão, mas parece-me que a resposta já se encontra na biografia que começa e termina o livro, a de Antonio Ferreira Cesarino Júnior (1906- 1992). Nascido na pobreza, Cesarino formou-se em direito e em medicina e traçou uma carreira distinguida na USP, na PUC-SP e em outras universidades paulistas. Domingues conclui que “a escola é o lugar onde se impõem sérios obstáculos aos negros; porém, foi lá que Cesarino encontrou os interstícios do sistema normativo por onde passou”, através dos quais ele foi capaz de realizar seu “protagonismo negro” (p. 131).

Não tenho dúvida de que, mesmo os leitores bem lidos na história afro-paulista, vão encontrar neste livro trabalhos e tópicos que eles não conheciam. (No meu caso, não sabia do livro do periodista Flávio Carrança sobre o ativista Hamilton Cardoso, nem o livro de Luciana Maia sobre o movimento Black São Paulo, nem vários outros mais).1 Os leitores menos familiarizados com essa história, e que estão procurando uma introdução concisa e abrangente, já encontraram um caminho neste tomo elegante e esclarecedor.


Nota

1 Flávio Carrança (org.), Hamilton Cardoso: militante, jornalista e intelectual, São Paulo: Instituto do Negro Padre Batista, 2008; Luciana Maia, Força negra: a luta pela autoestima de um povo, São Paulo: Autografia, 2015.


Resenhista

George Reid-Andrews – The University of Pittsburgh. https://orcid.org/0000-0002-5510-2456


Referências desta Resenha

DOMINGUES, Petrônio. Protagonismo negro em São Paulo: historiografia e história. São Paulo: Edições SESC, 2019. Resenha de: REID-ANDREWS, George. São Paulo negro em movimento. Afro-Ásia, n. 64, p. 702-704, 2021. Acessar publicação original [DR/JF]

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