Slavery in the Age of Memory: Engaging the Past | Ana Lucia Araujo

Na última década, a abordagem da historiadora Ana Lucia Araujo sobre a escravidão atlântica e seu legado de memória no mundo contemporâneo consolidou-se como uma das mais originais e abrangentes. Slavery in the Age of Memory, seu mais recente livro, vem na esteira dessa trajetória, original em sua ênfase no problema das representações do passado escravista ao longo do tempo e especialmente abrangente na perspectiva transnacional e comparativa. Como todo bom livro, pode ser lido sem qualquer informação prévia, mas conhecer a trajetória e a produção anterior da autora permite ao leitor um diálogo mais rico e denso com os novos aportes trazidos por esta obra.

Historiadora brasileira com doutorado no Canadá de língua francesa, profissionalmente radicada nos Estados Unidos, na Universidade de Howard, uma histórica instituição negra, Ana Lucia Araujo possui um raro domínio de erudição acadêmica sobre a escravidão atlântica e seu legado em cada um dos espaços pelo qual transitou: o Atlântico Sul afro- -luso-brasileiro, o espaço atlântico construído a partir do antigo império colonial francês, os Estados Unidos e outros espaços de colonização inglesa. Raros pesquisadores conseguem articular, com a mesma desenvoltura, uma perspectiva genuinamente atlântica e transnacional.

Além disso, Ana Lucia Araujo tem se consolidado como uma das mais importantes intelectuais ativistas no campo da história pública da escravidão, com o desenvolvimento do projeto digital #Slavery Archive Book Club, onde arquivos, projetos digitais, fontes e literatura acadêmica sobre a questão são divulgados e debatidos durante a pandemia que ora todos nós ainda enfrentamos.

O “problema da representação das atrocidades humanas” foi parte do título de uma resenha escrita por Araujo, publicada na Afro-Ásia, em 2014, sobre o filme 12 anos de escravidão, ganhador do Oscar. A frase bem sintetiza o problema de fundo que informa a original trajetória de pesquisa da autora. A Afro-Ásia, como principal revista acadêmica brasileira para os estudos da escravidão e do pós-abolição no mundo atlântico, tem repercutido seu trabalho. Estou entre os que já aqui o comentaram. Escrevi em 2010 a resenha do livro resultante de sua tese de doutorado, Public Memory of Slavery: Victims and Perpetrators in the South Atlantic (Cambria Press, 2010). O livro partia de uma perspectiva relativamente descentrada, possibilitada por um olhar desde o Atlântico Sul para os estudos transnacionais sobre o tráfico atlântico de escravizados, para mapear as ambiguidades e tensões abertas pela explosão internacional de ações memoriais sobre o tema, desde os anos 1990, sobretudo a partir do projeto Rota dos Escravos da UNESCO. O racismo persistente e as fronteiras porosas entre traficados e traficantes, sobretudo na atual República do Benin, antigo Daomé, oferecia um ponto de partida privilegiado para descrever as ambiguidades e interconexões complexas dos processos de memorialização contemporâneos das atrocidades do tráfico atlântico de escravizados.

Quatro anos mais tarde, em Shadows of Slavery Past (Routledge, 2014), essa perspectiva transnacional e comparativa seria ampliada para incluir o Atlântico norte, com foco na experiência da violência extrema que acompanhou cada fase do processo de mercantilização de seres humanos racializados que esteve na base da constituição moderna do espaço atlântico. Mais uma vez, a lente mirava a pluralidade de agentes envolvidos, seja nos processos de escravização no continente africano, na travessia do Atlântico ou no processo de inserção forçada dos sobreviventes como escravos em diferentes sociedades das Américas. A análise se voltava, sobretudo, para as formas complexas, contraditórias e ambíguas como o tráfico e a escravidão foram rememorados, combatidos ou silenciados no espaço público dos diferentes países considerados, desde pelo menos o final do século XVIII, quando a instituição escravista passou a ser moralmente condenada por um amplo arco de agentes sociais no Ocidente. Na sequência direta desse trabalho, a historiadora aprofundou sua pesquisa sobre a memória da escravização como base das lutas de libertos e seus descendentes por reparações para os males físico, moral e material causados pelo tráfico de cativos e pela escravidão, no seu mais resenhado livro, Reparations for Slavery and the Slave Trade: A Transnational and Comparative History (Bloomsbury Academic, 2017).

Desta sequência nasceu o livro agora resenhado. O que mais impressiona no conjunto da pesquisa realizada por Ana Lucia Araujo é o volume e amplitude da informação reunida em cada livro e a clareza do texto em descrever os processos analisados. São livros de História. Livros que contam uma história social, transnacional e comparativa da memória da escravidão enquanto representação pública. É na capacidade de descrição comparativa dos problemas enfrentados que a força analítica de cada livro da pesquisadora se constrói. Neste, não é diferente, mas, dessa vez, Ana Lucia Araujo o organiza a partir de algumas discussões teóricas que buscam sistematizar sua abordagem conceitual sobre as relações entre representação, memória e história, o que lhe permite a produção de uma espécie de síntese interpretativa, mesmo que parcial, sobre o caminho por ela até agora percorrido.

A começar pelo subtítulo: engaging the past. O livro foi concebido no dia seguinte ao massacre de cerca de uma dezena de pessoas em uma igreja afro- -americana metodista em Charleston, nos Estados Unidos, por um supremacista branco que, em seguida, se deixou fotografar em sítios de memória ligados à escravidão com símbolos da Confederação sulista que guerreou contra a União nortista para garantir a expansão da escravidão nos novos territórios incorporados pelos EUA. A igreja atacada foi destruída e reconstruída algumas vezes ao longo dos séculos XIX e XX, em grande parte porque havia sido fundada por Denmark Vesey, líder de uma conspiração escrava em 1822, pela qual foi condenado à morte e para quem, na década de 1990, foi erigido um memorial no interior do templo.

As batalhas públicas pela memória da escravidão e da Confederação nos Estados Unidos, cada vez mais presentes, inspiraram, segundo a autora, a síntese conceitual buscada no livro sobre as relações entre memória, história e representações do passado escravista. O texto fica nos devendo uma discussão conceitual das noções de racialização negra e supremacia branca, centrais à análise. A autora os utiliza recorrentemente como principais legados do colonialismo e da escravidão no tempo presente.

O primeiro capítulo (“Weaving Collective Memory”) discute o passado escravista como “memória coletiva”. Para tanto define e discute este conceito, que atribui sobretudo a uma memória compartilhada, transmitida de forma geracional dentro de determinados grupos, especialmente familiares, de forma “plural, fragmentada e dinâmica”, sempre reconstruindo o passado a partir de experiências individuais de classe, gênero e raça. Segundo o livro, descendentes da antiga elite escravista encontrariam condições mais favoráveis do que as famílias formadas pelos escravizados para preservar narrativas, documentos e objetos que transmitem e renovam uma memória coletiva.

Há exceções. Ana Lucia Araujo as conhece bem. Podemos citar a força da memória coletiva entre descendentes da última geração de africanos revelada pelo projeto de história oral Memórias do cativeiro, que coordenei com Ana Lugão Rios no LABHOI/UFF sobre as áreas cafeeiras do Rio de Janeiro ou as entrevistas com descendentes de libertos nos Estados Unidos dos anos 1930. Com certeza, o que levou a autora a escolher sobretudo a experiência da família de Francisco Felix de Souza, famoso traficante brasileiro no Benin, e a de Thomas Jefferson, terceiro presidente dos Estados Unidos, para o capítulo em questão, foi o fato de ambas serem formadas por descendentes de escravizadores e escravizadas e deverem às posições de poder escravista de seus antepassados a inscrição precoce no espaço público da memória coletiva dos descendentes de escravizados.

Na narrativa comparada, a fronteira racial fluida, mas colonialmente hierarquizada, da memória coletiva do Benin e a força da fronteira racial na memória coletiva dos descendentes de Jefferson, com dois diferentes sobrenomes (Jefferson/Hemmings), evocam um contraste eloquente, que não nega, ao contrário, reafirma, o papel estrutural da supremacia branca nos dois casos, mesmo após a viragem memorial da década de 1990. Reencontrando a questão de fundo de sua rica trajetória de pesquisa ― como lidar com uma memória coletiva familiar que se refere à prática de atrocidades formalmente categorizadas como crime contra a humanidade ―, a autora conclui o capítulo analisando duas memórias familiares de descendentes de traficantes escravistas que não deixaram descendentes entre seus escravizados.

O segundo capítulo, “Shrines of Cultural Memory”, explora a noção de “memória cultural” mais diretamente ligada à noção de “dever de memória” e à ação de grupos organizados, movimentos sociais e ativistas dos movimentos negros e antirracistas, sobretudo nos últimos trinta anos. Eles vão mobilizar leituras alternativas do passado escravista para visibilizar a experiência e o legado cultural dos escravizados, como na identificação e sacralização de cemitérios, na construção de memoriais, na patrimonialização de práticas culturais, entre outras iniciativas, em diversos espaços do mundo atlântico.

De forma complementar, o terceiro capítulo, “Battles of Public Memory”, sobre a “memória pública” enquanto “campo de batalha”, coloca em relevo a dificuldade de tornar as inciativas de ativistas da memória cultural em fenômenos públicos de ressonância coletiva mais ampla, face à patrimonialização da supremacia branca prevalecente ainda na maioria dos espaços nacionais considerados. Em ambos os capítulos, destaco o poder analítico das narrativas sobre as experiências de visitações a antigas plantations como sítios de memória sensível da escravidão, bem como as contradições e ambiguidades das iniciativas de construir performances daquele passado com atores, brancos e negros, em sociedades estruturalmente racistas.

Os capítulos 4 (“Setting Slavery in Museum”) e 5 (“Memory and Public History”) continuam a acompanhar as batalhas pela história pública da escravidão em instituições de origem colonial como os museus e o papel dos historiadores profissionais nesse campo de disputa. São aqui analisadas algumas das múltiplas e fascinantes maneiras de narrar a experiência dos escravizados, os esforços para descolonizar a narrativa da escravidão em espaços museais do mundo atlântico, bem como seus limites. A pesquisa da autora sobre o tema vem se expandido, tendo já anunciado um novo livro em andamento sobre a questão. No capítulo 5 encontramos a ação do historiador profissional voltado para o grande público e seu papel de intermediário nas batalhas pela memória que definem os limites éticos e políticos das narrativas públicas sobre a escravidão, um tema moral e psicologicamente sensível.

Por fim, é na arte visual que a autora identifica as mais bem sucedidas iniciativas de produzir narrativas complexas, não maniqueístas, capazes de comunicar o indizível da violência escravista e denunciar sua terrível continuidade. Sua discussão neste capítulo, intitulado “Art and Memory”, coloca em revelo o trabalho de seis artistas que se debruçaram sobre a questão, com diferentes origens, formações artísticas e identidades raciais, quais sejam, Cyprien Tokoudagba, Romuald Hazoumé, William-Adjété Wilson, Rossana Paulino, Nona Faustine e François Piquet.

Trata-se de um livro essencial para todos os interessados nas batalhas pela memória da escravidão colonial e no desafio de narrar, de forma complexa, as atrocidades envolvidas e seu atualíssimo legado de racismo e desumanização.


Resenhista

Hebe Mattos – Universidade Federal de Juiz de Fora. https://orcid.org/0000-0002-9158-2397


Referências desta Resenha

ARAUJO, Ana Lucia. Slavery in the Age of Memory: Engaging the Past. Nova York: Bloomsbury Academic, 2020. Resenha de: MATTOS, Hebe. O problema da escravidão como memória. Afro-Ásia, n. 64, p. 659-664, 2021. Acessar publicação original [DR/JF]

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