The Sacred Cause: The Abolitionist Movement/Afro-Brazilian Mobilization/and Imperial Politics in Rio de Janeiro | Jeffrey Needell

Datando o início do abolicionismo organizado no Rio de Janeiro a partir de 1880, Jeffrey Needell tratará das estratégias de líderes, ativistas e dos debates dentro do governo imperial. Crítico de uma “interpretação materialista” do abolicionismo brasileiro, Needell enfatiza que “as teses abolicionistas defendidas nos últimos cinquenta anos não conseguiram demonstrar precisamente a articulação [da política abolicionista] entre os afro-brasileiros, o movimento e o governo parlamentarista da monarquia brasileira (1822-1889)” (p. 1). Ele deixa clara sua intenção de demonstrar “a presença e a participação da classe média e das massas afro- -brasileiras no movimento” (p. 65). Dado seu foco sobre o papel decisivo das “massas” afro-brasileiras para acabar com o regime escravista em maio de 1888, um título mais apropriado para a monografia poderia ter sido The Sacred Cause: AfroBrazilian Mobilization, the Abolitionist Movement, and Imperial Politics in Rio de Janeiro.

Needell vê a Revolta do Vintém, de janeiro de 1880, e a decisão de Pedro II de destituir o presidente doConselho de Ministros, visconde de Sinimbu (no cargo de janeiro de 1878 a março de 1880), como importantes eventos que levaram ao surgimento do movimento abolicionista. No bojo da “crise financeira em curso”, Sinimbu aumentou a tarifa dos bondes. Os protestos rapidamente ganharam força nas ruas, com queima de bondes e levantamento de barricadas. A polícia reprimiu violentamente os manifestantes. A Revolta do Vintém reformulou a dinâmica política do Rio de Janeiro.

A Revolta do Vintém foi instrutiva porque demonstrou que a população do Rio tinha capacidade e intenção de se mobilizar em relação aos assuntos públicos se visse que seus próprios interesses estavam envolvidos. Mais importante ainda, a queda do gabinete de Sinimbu demonstrou que tanto a ameaça quanto a realidade da mobilização pública nas ruas e na imprensa podiam causar mudanças políticas (p. 63).

Depois que o gabinete revogou o aumento das passagens, Needell escreve, “a população urbana voltou para casa” (p. 63). Eles podem ter voltado para casa, mas certamente não se esqueceram.

Em sua avaliação da Revolta do Vintém, Needell afirma: “Os reformistas [liberais, republicanos progressistas] podiam ser uma minoria sem expressão no Gabinete, mas se conseguissem fornecer liderança e direção nas ruas para pessoas dispostas a segui-los, eles poderiam ter um impacto direto no parlamento e nos cálculos do monarca” (p. 63). Esta frase e outras semelhantes levantam uma questão não resolvida para este resenhista. O protesto afro-brasileiro se manifestou de forma independente e espontânea da população de cor ou foi dirigido e moldado por outros?

Com base na pesquisa de vários estudiosos, Needell lança luz sobre as dificuldades do “mundo obscuro dos pobres afro-brasileiros do Rio” residindo na cidade do Rio de Janeiro na década de 1880. Ao analisar a atuação do despachante de trem pardo Miguel Antônio Dias, o autor lança uma luz para a compreensão do movimento abolicionista de baixo para cima. Jornalista, ativista, membro fundador da Confederação Abolicionista (1883), Dias trabalhou incansavelmente nos bastidores, defendendo os escravos e promovendo a abolição. Ele compreendeu a importância de cultivar conexões com líderes influentes, como o visconde do Rio Branco e André Rebouças. Intimamente conectado às ruas e aos moradores de um dos bairros mais negros do Rio de Janeiro, Dias pode ser considerado um interlocutor entre a classe baixa e a média. “Ele trouxe algo único, a saber, as conexões com as massas como base para a mobilização delas. Sua posição na sociedade racializada e hierárquica do Rio permitiu-lhe chegar às massas populares como alguém que as conhecia, vivia entre elas e podia muito bem ter vindo delas” (p. 78). O professor Needell destaca a infinidade de maneiras pelas quais a mobilização afro-brasileira impulsionou o movimento abolicionista no Rio de Janeiro. Aíincluída a criação de pelo menos 17 organizações abolicionistas (1881-1883) ― que aumentaram para cerca de quarenta entidades em abril de 1884 ―, reuniões públicas e manifestações, espetáculos de teatro e o compartilhamento de periódicos que pediam o fim da escravidão. Os protestos se expandiram dramaticamente a partir de 1885, com manifestações urbanas envolvendo a participação de milhares de pessoas. As “mais significativas” delas ocorreram em meados de maio de 1885, junho e julho de 1886 e agosto de 1887, para chamar a atenção para as demandas pelo fim do regime escravista enquanto o Parlamento estava em sessão. “Foi esse componente extraparlamentar do movimento que impulsionou a causa, usando propaganda, moldando e adaptando táticas, e aumentando constantemente o recrutamento para reuniões e manifestações […]. Um movimento sem precedente na história brasileira, formado na sua maioria por afro-brasileiros apoiando aos milhares, por anos, uma causa moral, sagrada e atuante nas ruas, de novo e de novo” (p. 247).

O livro oferece uma riqueza de informações sobre três ativistas conhecidos que desempenharam papéis importantes no movimento abolicionista. O mais famoso era Joaquim Nabuco. Pernambucano, fundador, em setembro de 1880, da Sociedade Brasileira contra a Escravidão, Nabuco clamou pelo fim do regime escravista. Por meio de discursos na Câmara dos Deputados e da publicação de seu livro O abolicionismo (1883), Nabuco se tornou o “rosto público e paladino mais célebre” do movimento (p. 70). Mas Needell presta uma homenagem especial ao mais sutil e discreto abolicionista, o afro-baiano André Rebouças. Ele organizou sem alardes protestos públicos, grupos abolicionistas e campanhas de propaganda. Colaborou estreitamente com Miguel Dias. “Nabuco e Rebouças, os principais líderes e estrategistas do movimento desde o início, viram o movimento e a própria abolição como um avanço do reformismo transformador dentro da monarquia. Eles queriam mudança sem revolução” (p. 82).

O terceiro líder era José do Patrocínio. Filho de um padre fazendeiro e de uma de suas escravas, Patrocínio recebia uma mesada fornecida pelo pai para estudar medicina e farmácia na cidade do Rio. Tornou-se um destacado jornalista do carioca Gazeta de Notícias no final da década de 1870, que fazia a cobertura dos debates na Câmara dos Deputados. Figura extraordinária que orgulhosamente se identificava como “negro” e não temia ninguém, Patrocínio foi incansável na sua condenação da elite, dos conservadores, da repressão policial e do que considerava a fraqueza política de d. Pedro II. “Ele se tornou o coração exposto e palpitante do movimento, célebre por seu jornalismo ardente, discursos apaixonados e conclaves radicais” (p. 71). Embora o autor enfatize o respeito de Patrocínio por Nabuco e Rebouças, prevalece na sua descrição o sentido de que o radicalismo e o dinamismo de Patrocínio foram decisivos para o sucesso do movimento. Para dar apenas um exemplo, à medida que o movimento declinava em 1882, Nabuco e Rebouças buscaram refúgio na Europa, mas Patrocínio permaneceu no Rio de Janeiro, onde sua fama se espalhou. Seus escritos e ativismo foram decisivos para provocar as manifestações em massa que eclodiram no Rio em 8 de dezembro de 1882. Essa agitação caótica abalou a elite e o parlamento. Anteriormente, Patrocínio tinha viajado ao norte de Fortaleza numa visita que durou quatro meses (outubro de 1882 a fevereiro de 1883), período em que manteve contato próximo com aliados do Rio (entre eles João Clapp, Nicolau Moreira, Vicente de Sousa, Ernesto Sena, Ubaldino do Amaral, Raúl Pompeia, Federico Severo). A visita de Patrocínio a Fortaleza não pode ser desconsiderada: suas ações contribuíram para que o governo do Ceará declarasse a abolição da escravatura em março de 1884, a primeira província do império a fazê-lo. O Ceará se tornou um “segundo Canadá” para escravos fugidos e a rede secreta que os informava; Patrocínio tornou-se uma figura nacional.

Da mesma maneira que em The Party of Order: The Conservatives, the State, and Slavery in the Brazilian Monarchy, 1831-1871 (2006), neste livro Needell analisa em detalhes a política imperial. Uma dialética emergiu entre os líderes abolicionistas e o parlamento: reivindicações por uma reforma liberal e uma reação hostil por parte de poderosos conservadores. É impressionante o detalhamento da capacidade dos conservadores de minar, em cada conjuntura, as iniciativas e a legislação antiescravistas durante as duas últimas décadas do regime, incluindo a Lei do Ventre Livre (1871); a ascensão e queda do gabinete Dantas (1884-1885); e a Lei dos Sexagenários (1885). Através dessa mistura de histórias política e social, fica-se com uma noção clara de como os representantes do governo, muitos deles proprietários de escravos, responderam às pressões e críticas populares. Ao mesmo tempo, o autor fornece evidências do imperador d. Pedro II e da princesa Isabel como progressistas empenhados em acabar com a escravidão o mais rápido possível em busca de civilização e do progresso da nação.

Em 1906, Joaquim Nabuco passou pelo Recife ao retornar de uma missão diplomática no exterior. Em Minha formação no Recife, citado por Needell, Gilberto Amado escreveu:

Grande manifestação o esperava. Nabuco desembarcou realmente nos braços dos pretos que o carregaram nos ombros do cais até o Teatro de Santa Isabel […] Das torrinhas, atulhadas de estudantes, partiam exclamações e vivas. Nabuco entrou no palco seguido pelas delegações […]. Nabuco, no palco do teatro, alçando o braço, disse, apontando para o recinto, que se concentrara num silêncio palpitante: “Foi aqui que se fez […] que nós fizemos a Abolição!” (p. 258).

Estaria Nabuco se referindo à mobilização dos anos 1880? Ou à década de 1860 no Recife?

Ainda jovem, Nabuco vira os protestos abolicionistas naquela cidade durante aqueles anos. Há evidências de que Miguel Dias atuou em várias frentes no Rio de Janeiro desde o final da década de 1860, inclusive pagando ao jornalista republicano Salvador de Mendonça para publicar artigos denunciando a prostituição de escravas trazidas do Nordeste para o Rio como parte do comércio interprovincial de escravos (p. 76). Nesses mesmos anos, o afro-brasileiro Luiz Gama escrevia poesia, condenava a escravidão e defendia escravos fugidos nos tribunais de São Paulo. Gama foi o grande precursor de Antônio Bento, radicalizado no início da década de 1870 a partir de sua experiência como delegado de polícia e juiz, e ficou famoso no final da década de 1880 por ajudar escravos a fugir no interior da província de São Paulo. Como Needell nota, as atividades subversivas de Bento provocaram a desagregação do regime escravista naquela província a partir de meados de 1887. Ao lidar com as complexidades da mobilização afro-brasileira após 1880, parece que a década de 1860 merece um maior escrutínio para a compreensão da consciência negra, resistência e mobilização.

Uma crítica e depois uma reflexão. Needell sugere que “o movimento [abolicionista] teve início e terminou no parlamento; a mobilização de pessoas fora do parlamento foi planejada pelos líderes do movimento para pressionar este corpo e obrigá-lo a acabar com a escravidão por lei” (p. 53). Esta frase é um dos muitos exemplos de como o autor interpreta a sociedade brasileira do século XIX. Supostamente, membros da elite política, alguns dos quais simpatizantes da abolição, sabiam o que queriam, e articularam suas opiniões em discursos e publicações, elaboraram políticas. Também orientaram e organizaram os abolicionistas nas ruas. Tal interpretação desconsidera as múltiplas maneiras pelas quais as classes baixas urbana e rural, escravizados e livres, resistiram à sua exploração e marginalização. Pressões de baixo para cima na cidade do Rio de Janeiro e no meio rural de todo o império (redes de comunicação entre afrodescendentes, assassinato de fazendeiros e feitores, fuga de escravos, um underground railroad para facilitar a fuga de escravos) forçaram os líderes abolicionistas (Rebouças, Nabuco etc.) a reverem suas posições, assim como aos parlamentares. A direção veio de baixo, não de cima.

O debate parlamentar ou a possibilidade de uma lei que pusesse fim à escravidão eram preocupações periféricas para a maioria dos homens e mulheres negros que lutavam para sobreviver. Muitos negros pobres que se juntaram aos protestos organizados esperavam, simplesmente, que pudessem melhorar suas condições de vida. Eles entendiam que as leis aprovadas no parlamento, inclusive a da abolição, tinham pouco impacto em suas vidas.

Ninguém pode, depois de ler este volume, deixar de fazer dolorosas comparações com o tempo presente no Brasil. Muitos dos tópicos abordados têm um toque atual: aviltamento do “outro”, corrupção, subterfúgio, verbosidade simplista e o vazio do discurso político. Só podemos esperar que a próxima geração produza líderes que tenham a capacidade de aplicar as lições aprendidas com o passado às complexas questões do presente.


Resenhista

Dale T. Graden – University of Idaho. https://orcid.org/0000-0003-2500-0640


Referências desta Resenha

NEEDELL, Jeffrey D. The Sacred Cause: The Abolitionist Movement, Afro-Brazilian Mobilization, and Imperial Politics in Rio de Janeiro. Stanford: Stanford University Press, 2020. Resenha de: GRADEN, Dale T. Abolição sagrada para alguns. Trad. da resenha Laura de Oliveira Guedes. Afro-Ásia, n. 65, p. 742-748, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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