The Things of Others: Ethnographies, Histories/and Other Artefacts | Olívia Maria Gomes da Cunha

O que primeiro chama a atenção do livro The Things of Others são suas mais de 750 páginas. Se for certo aquele ditado que diz que um bom livro deve se sustentar em pé, este possui alicerces sólidos para tal. Fruto de mais de duas décadas de pesquisa, as 65 páginas de bibliografia atestam a vastidão e densidade da empreitada. Talvez estejamos diante da obra de uma vida. Olívia Maria Gomes da Cunha, professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, transita com fluência entre a antropologia e a história e percorreu arquivos no Brasil, em Cuba, na Inglaterra e, sobretudo, nos Estados Unidos, atrás dos acervos, fundos e coleções documentais dos principais antropólogos e sociólogos responsáveis pela configuração, no campo das ciências sociais, dos chamados “estudos afro-americanos”, um processo que a autora vai conceitualizar como “a criação de um artefato de conhecimento” (p. xi).

Cunha nos propõe acompanhar o percurso das “coisas” criadas e acumuladas pelos antropólogos, nas suas interações com os Outros, no trabalho de campo e alhures, e como estas mudaram para se transformar em “objetos científicos”, passíveis de produzir conhecimento antropológico sobre uma multiplicidade de modos de existência objetificados enquanto “afro-americano”, “afro-brasileiro” ou “afro-cubano”, entre outras designações. Ou seja, ela pretende investigar as práticas que autorizam os “modos discretos de fazer e de ser ‘afro’ como assunto de ciência” (p. xii). O escopo temporal da pesquisa abrange a primeira metade do século XX, embora o foco substantivo corresponda às décadas de 1930 e 1940. O recorte espacial tem uma dimensão atlântica, com destaque para Cuba, Estados Unidos e Brasil, geografia por onde circularam os principais protagonistas do livro: Fernando Ortiz, Ruth Landes, Arthur Ramos, Melville Herskovits, Donald Pierson, Edward Franklin Frazier, Lorenzo Dow Turner, Edison Carneiro, Rómulo Lachatañeré e vários outros.

Cunha deixa claro desde o início que o interesse dela “não é produzir evidências sobre a criação de uma epistemologia do conhecimento e suas conexões transnacionais” (p. xii), nem traçar as genealogias intelectuais dos estudos afro-americanos, nem escrever uma história da antropologia (p. 10), embora o livro contribua, de forma significativa, para isso também. Sua intenção explícita é decifrar as “condições pragmáticas”, as práticas, as historicidades, que possibilitam a construção do conhecimento sobre o Outro e as coisas dos Outros. Trata-se, assim, de um exercício de reflexividade crítica sobre o proceder da antropologia, mas também da história e da arquivologia, na produção e institucionalização dos seus saberes, alinhado ao desconstrucionismo pós-moderno que tem dominado os debates teóricos nas últimas décadas.

A autora interpela um repertório conceitual sofisticado e situado, recorrendo à noção de “artefato”, proposta por Marilyn Strathern, para incluir objetos materiais, mas também eventos, experiências e conhecimento, produtos de diferentes “criadores”, sejam eles humanos (antropólogos, historiadores, sociólogos, arquivistas etc.), práticas transformativas, máquinas ou instituições – instâncias que Bruno Latour, por sua vez, chama de forma inclusiva “actantes” (actants).1 A proposta de Cunha é identificar as imbricações entre objetos e pessoas, entre humanos e tecnologias, sinalizando as mutações dos artefatos (em especial as coleções etnográficas), através da análise das práticas e as relações estabelecidas entre os diversos “actantes”. Ocupando posição de destaque nesse arcabouço teórico figuram ainda os conceitos de “criação” e “objetificação” de Roy Wagner, de “purificação” de Latour, e de “multiplicidade” de Gilles Deleuze e Félix Guattari, entre outros.2 Para Cunha, a heterogeneidade e dinamismo dos encontros, confrontos e desencontros entre os antropólogos e os vários Outros, não isolou, “criou”, “objetificou” ou “purificou” um único artefato, mas uma “multiplicidade”, entendida como um sistema não hierarquizado de unidades distintas, capaz de progressivas reconfigurações, intensidades e extensões (o afro-americano, o negro-americano, o afro-brasileiro etc.).

O campo de Cunha enquanto etnógrafa são os arquivos e, mais concretamente, as coleções etnográficas, entendidas como assemblagens de coisas colecionadas e como confluência idiossincrática de eventos, afetos e objetos reunidos em torno de um ego. Cunha apela à perspectiva de Latour e rejeita a distinção ontológica entre objetos inanimados e sujeitos humanos, imaginando um mundo povoado de “quase-sujeitos” e “quase-objetos”. Assim, ela concebe essas coleções etnográficas formadas por “coisas hibridas”, engajando pessoas, instituições, relações, eventos e materialidades. Em última instância, postula-se que, através de conexões e historicidades variáveis, os artefatos produzem novas materialidades e “criam” também as pessoas.

Se, por um lado, como a própria autora ressalta, o interesse nos procedimentos e práticas concretas de criação de objetos científicos, no trabalho de campo convencional, poderia ser comparado aos projetos de uma antropologia da ciência explorados por Bruno Latour, Isabelle Stengers, Annemarie Mol e outros, caberia perguntar se a antropologia do arquivo proposta por Cunha não se alinha, abrindo uma nova frente de investigação nas coleções etnográficas, a essa antropologia do “laboratório” preocupada na compreensão dos mecanismos de produção de “artefatos de conhecimento” científico.3

Cunha trata o arquivo e suas práticas de salvaguarda, de classificação, de organização, como seu campo privilegiado. Ela, porém, questiona a primazia conferida aos objetos enquanto “dados, informação, registro, evidência ou fonte” e propõe ir além do seu valor documental e sua função “verificacionista”, recusando entender o arquivo como apenas uma “caixa preta” que contém provas da veracidade do que aconteceu no passado.4 Nesse sentido, há uma tentativa de escapar ao paradigma representacional e interpretativo, para descortinar significados oblíquos, inscritos na própria manipulação e organização dos itens contidos no arquivo. O interesse da autora está na transformação dos objetos documentais (textuais e não textuais, incluindo fotografias, registros de áudio etc.), levando em conta sua materialidade, seu manuseio e seus efeitos, ou seja, sua agência (agency), no fazer da história antropológica e suas práticas.

Para dar conta dessa dinâmica, Cunha propõe olhar para o que ela chama de plots (traduzível talvez como tramas). Recorrendo a Guimarães Rosa, o plot é concebido como “um tipo de fabulação que converte certas estórias em histórias” (p. 10). A estratégia narrativa parece consistir em descrever uma multiplicidade de tramas ou estórias (e os eventos que as animam), balizando suas conexões e correspondências, até sua emergência enquanto “histórias” ou “artefatos”. A imagem de um complexo de “tramas emaranhadas” (entangled plots) (p. 485) transmutando em “histórias” serve tanto para denotar os artefatos de conhecimento (um manuscrito, uma coleção etnográfica, o campo dos estudos afro-americanos), como o próprio livro de Cunha.

Após o Prefácio, onde são apresentadas as principais linhas argumentativas da obra, e da Introdução, de caráter mais teórico, comentando as ideias acima esboçadas e muitas outras, seguem os nove capítulos estruturados em três partes: Memorabilia (capítulos 1 a 4), Objetos Móveis (Mobile Objects) (capítulos 5 e 6) e Novos Arranjos (Remakings) (capítulos 7 a 9).

No primeiro capítulo, Cunha problematiza a complexidade envolvida na formação das coleções etnográficas de Ruth Landes, Fernando Ortiz, Arthur Ramos, Donald Pierson, Melville Herskovits e Lorenzo Turner. A partir das suas correspondências privadas e institucionais, Cunha analisa os diversos momentos e maneiras em que os artefatos (cadernos de campo, diários, correspondências, manuscritos, notícias de jornal, fotografias, cartões postais, registros de áudio etc.) foram produzidos e seus deslocamentos posteriores. A antropóloga e historiadora ao mesmo tempo chama a atenção para o fato de que esses objetos não nasceram como documentos, mas foram aos poucos transformados nisso.

Cunha escrutina, em particular, o processo de doação e a inevitável mutação que ele exerce na coisa doada. Ruth Landes, por exemplo, ao ser convidada a ceder seu acervo ao National Anthropological Archives, do Smithsonian Institution, passou os últimos anos da sua vida selecionando, organizando e anotando de forma criativa seus papéis, escrevendo inclusive uma narrativa autobiográfica com toques de “semificção” para falar de questões sensíveis. A mutação continua com a tecnologia da salvaguarda, quando a coleção entra no arquivo, e com a intervenção do arquivista, catalogando, indexando e conectando os diversos itens por meio de listas, inventários e outros protocolos. Cunha destaca a imbricação complementar entre doação e criação, notando como a última não afeta tanto a materialidade do objeto quanto ao evento do qual ele é índice. Cunha concebe esses processos, em que as coisas ao serem inseridas em novos sistemas de relações alteram suas possibilidades semânticas, como a criação de plots ou tramas.

Várias outras tramas e enredos associados às coleções são descritas, como a fragmentação arbitrária dos papéis de Herskovits, divididos em quatro instituições (Northwestern University, Indiana University, Schomburg Center, Smithsonian), ou a conjuntura política que marcou o destino da coleção Fernando Ortiz, em Cuba. Todavia, a relação do Schomburg Center com a comunidade local do Harlem, em Nova York, mostra como objetos do passado são investidos com os significados do presente dos visitantes, em mais uma instância de criação transformativa. Um assunto correlato é a propriedade intelectual das coleções e a função do curador ou legatário, erigido como quase proprietário, assim como o papel dos mediadores, instituições, consultantes, e pessoas legalmente responsáveis, sinalizando a ambiguidade entre autores, doadores e proprietários. Nesse capítulo, portanto, a autora situa e apresenta a eclética configuração dos artefatos-coleções que constituem o campo etnográfico a partir do qual vai examinar a construção dos vários avatares do “problema do negro”.

O segundo capítulo acompanha a trajetória intelectual do advogado cubano Fernando Ortiz no período inicial de sua carreira, entre a publicação, em 1906, do seu clássico Los Negros Brujos, prefaciado por Cesare Lombroso, e sua segunda edição, em 1917. Cunha trata da relação dele com o médico legal Nina Rodrigues, sediado na Bahia, apontando para a “convergência de aproximações” no tratamento das relações entre feitiçaria e criminologia, determinismo racial e libre arbítrio, primitivismo e moralidade, mas defende a relativa independência dos seus pensamentos. A autora argumenta a hesitante, mas gradual, transição de Ortiz entre seu alinhamento inicial com o determinismo biológico de Lombroso, para o determinismo social, inspirado pela microssociologia, a psicologia social e a filosofia de Gabriel Tarde.

A preocupação de Ortiz em elaborar argumentos para transformar os “crimes” dos bruxos em “objeto científico”, o levou da medicina legal para a “etnografia criminal”. Cunha sugere que as notícias de jornais e outros artefatos textuais coletados por Ortiz, ao lado de suas visitas a museus, passeios noturnos e experiência na hampa habanera (submundo de Havana), constituíam para ele a materialização icônica da existência dos bruxos. Ortiz experimentou com o ecleticismo teórico, combinando a “objetividade moderna”, baseada na materialização da feitiçaria em “objetos”, usados como “evidência” (uma forma de fetichismo científico), com a exploração do psíquico, nas suas profundezas “atávicas” e “primitivas”. Esse exercício, porém, abria frestas para certa crença no poder dos objetos, que ele entendia, igual a Nina Rodrigues, como “religião africana” e “cultura” e não como simples degradação. Em definitivo, Ortiz não era um descrente.

Apesar dos esforços para não equivaler os “bruxos” aos ‘negros’ ou “afro-cubanos”, e alertar para os perigos de “transfusão” ou ‘contaminação’ que os primeiros podiam exercer sobre os segundos (e também sobre os brancos), subjaz na narrativa de Ortiz uma ambígua homologia entre ambas as categorias, com potencial extensividade à sociedade cubana como um todo. A metáfora da “transfusão” enquanto comunicação entre substâncias também expressa comunicabilidade entre distintos modos de conhecer, entre a empiria científica e a espiritualidade metafísica, e conota a transitividade entre termos irreconciliáveis como África-Europa, branco-preto, primitivo-moderno, degenerado-civilizado. Esse hibridismo dos extremos prefigura a concepção de Ortiz sobre o “afro- -cubano”, termo que ele grafava de forma significativa como “afrocubano”, e que Cunha vai analisar mais adiante. Conforme sintetiza a autora, o capítulo é uma dissecção do olhar de Ortiz e sua hesitação entre o modelo científico baseado nas “ontologias visíveis” e a possibilidade de uma “transfusão” da “ontologia bruxa” latente em Los Negros Brujos. 5 Cunha acaba por compreender essa obra-artefato como um “esboço da teoria da ação dos bruxos” (p. 203).

O terceiro capítulo nos leva de Cuba para o Brasil, de Ortiz para Arthur Ramos, com quem Cunha parece demonstrar menos simpatia. A trajetória intelectual de Ramos, porém, sugere certo paralelismo com a do advogado cubano. Partindo da sua tese doutoral, intitulada Primitivo e loucura (1926), e da sua colaboração no Serviço Médico Legal de Bahia (1931-37), sob a influência da criminologia italiana, Ramos progrediu para a psicologia infantil, a psiquiatria, a psicanálise, a educação e a higiene. Influenciado por Lévy-Bruhl, sua tentativa de entender os efeitos da cultura na psique o levou a estudar o folclore e a mitologia e, finalmente, chegou à antropologia, concebida como síntese de todos esses saberes.

Cunha parte da análise do currículo de Ramos e outros papéis conservados no que ele chamava seu “arquivo inútil”. Porém, a autora descarta contextualizar historicamente esses documentos, e propõe seguir suas pegadas e inscrições para revelar a prática científica de Ramos. Ela escrutina a forma como o pesquisador acionava, na clínica, nas prisões, no âmbito doméstico e familiar, seus informantes, interlocutores e assistentes, inclusive sua esposa e irmãos, amiúde reformulando a relação doutor-paciente, no que Cunha vai chamar de “estilo anamnésico” (p. 205), técnica do médico para, através da cordialidade, obter informações do paciente. Cunha aponta como esses colaboradores, na verdade coprodutores do conhecimento e dos múltiplos objetos etnográficos criados no campo, não receberam o devido reconhecimento na obra do doutor. De novo o interesse de Cunha está na gênese e mutação desses objetos em material etnográfico, fossem anotações sobre casos psicopatológicos associados ao transe mediúnico ou transcrições de cantigas de candomblé escritas por seus assistentes.

Cunha destaca a contribuição de Ramos para teorizar o problema do sincretismo, concebido como elemento místico e pré-lógico da mentalidade primitiva. Em sua primeira obra etnográfica, O negro brasileiro (1934), Ramos identifica o fenômeno tanto no candomblé (ou “fetichismo dos afro-baianos”), como nas macumbas e catimbós dos “negros e mestiços brasileiros”, e o considera enraizado em representações coletivas de difícil alteração. Avançando, todavia, além das ideias esboçadas por Rodrigues e Ortiz (este último falava de “endosmoses religiosa”), Ramos tenta uma sistematização da teoria nativa do sincretismo, reconhecendo, ao lado de processos mentais de fusão ou identificação entre santos católicos e orixás, outros de justaposição e equivalência e não de mistura.

Na parte final do capítulo, ganha destaque a relação entre Ramos e o jornalista e etnólogo Edison Carneiro, uma relação tensa e assimétrica de mestre para discípulo, que situava Carneiro numa posição de assistente e coletor de objetos, fotografias, cantigas. Mas Carneiro, consciente do seu lugar diferenciado, enquanto negro, com trânsito livre entre o povo de santo, era cioso dos seus dados e reivindicava sua autonomia, inclusive, como nota Cunha, ao fornecer suas informações e textos a Ramos, o transformando no seu assistente editorial. Carneiro se posicionou de forma crítica frente a certas ideias do mestre, como sua abordagem psicanalítica para interpretar o transe, enquanto a afiliação política do primeiro também os afastava, pois Carneiro era comunista. Essas assimetrias – raciais, políticas, de status e de maneiras de se relacionar com o Outro – perpassam as preocupações de Cunha ao longo do livro e são motivo de atenção recorrente.

No quarto capítulo voltamos a Cuba, agora para acompanhar a segunda etapa da trajetória intelectual de Ortiz. Ecoando o percurso de Ramos no Brasil, ele também transitou da criminologia à antropologia, com uma progressiva imersão etnográfica nos cabildos, entre tocadores de batá (o pequeno tambor iorubá) e sacerdotisas da Santeria, abandonando a sua inicial criminalização da religião como bruxaria. Dessa abordagem mais culturalista, surgiu um novo interesse pela música e a poesia, tratadas como linguagens dos afro- -cubanos e expressões de cubanismo, cubania ou cubanidad. Para Ortiz, a cubanidad seria a fonte da identidade afro-cubana, mas a primeira não seria a totalidade, nem a segunda apenas a parte; ambas estariam misturadas de forma ambivalente, o prefixo “afro” denotando a qualidade de uma outra forma de viver. Cunha apresenta a mudança intelectual de Ortiz para entender as aproximações que lhe permitiram comparar e contrastar a ontologia afro-cubana com outras modalidades afro-americanas de existir. Para Ortiz a singularidade afro- -cubana resultava da especificidade do encontro multiétnico que formou o caráter nacional em Cuba e não podia ser reduzida a uma mera “variante” do processo transnacional comum a todas as populações negras no Novo Mundo, como queria o antropólogo norte-americano Melville Herskovits.

Cunha identifica a figura de Janus – um vaso formado por duas cabeças de mulher, uma branca e outra negra, unidas pela parte posterior, olhando em direções opostas – usada como emblema da Sociedad de Estudios Afrocubanos, fundada com Ortiz à frente em 1937, como a metáfora por excelência do afro-cubano. Na tentativa utópica de reconciliar extremos e tensões dualistas, o ícone caracteriza não apenas aquela sociedade heterogênea, de artistas e intelectuais, brancos e pretos, mas a emergência dos estudos afro-cubanos como um artefato multiforme, multifuncional e de múltipla autoria.

Para além de alianças e interdependências, a figura de Janus também simboliza dissensão e assimetria, como Cunha nos mostra ao analisar a relação entre Ortiz e Rómulo Lachatañeré, uma figura relativamente desconhecida, que a autora tem o mérito de resgatar. Negro, descendente de migrantes franceses do Haiti, nascido em Santiago de Cuba, farmacêutico, comunista, exiliado em Nova York, aspirante a antropólogo, Lachatañeré faleceu num acidente aéreo em 1952. Sua relação com Ortiz se parece com aquela entre Ramos e Carneiro e, como na trama brasileira, a autora aponta as “marcas de dissenção” entre eles. Por exemplo, encorajado por Herskovits e William Bascom, Lachatañeré questionou a representação dos santeros lucumís como criminosos, crítica que levou Ortiz a corrigir sua interpretação, embora nunca reconhecesse essa dívida intelectual.

O capítulo também examina a correspondência entre Ortiz e Herskovits e a destes com Ramos, no período de preparação dos dois congressos afro-brasileiros, em meados da década de 1930. Nesse intenso diálogo transnacional, Cunha acompanha o debate conceitual para teorizar os processos de contato e mudança culturais das populações afro-americanas. A noção de “aculturação” de Herskovits, a de “transculturação” de Ortiz, reinterpretada por Malinowski no prefácio de Contrapunteo cubano del tabaco y el azucar (Ortiz, 1940), a de “amalgamação” de Lachatañeré, a de “sincretismo” de Ramos, testemunham a efervescência competitiva naquele processo de objetificação do negro nas Américas. Cunha ainda mapeia uma série de eventos e de projetos associativos internacionais (alguns deles que nunca saíram do papel), mostrando a tensa coexistência, na institucionalização do campo, de várias representações de raça e de nação, resultado não apenas de diversas conjunturas e agendas nacionais e pessoais, mas também de distintos regimes de conhecimento e hierarquias intelectuais. A figura de Janus, “combinação assimétrica de unidades” (p. 320), reaparece na oposição entre brancos e pretos, norte-americanos e hispanos, funcionalistas e culturalistas, acadêmicos e populares. O capítulo, assim, aponta para a dissensão e a dissonância nos diálogos, ao lado da sinergia e da colaboração.

A segunda parte do livro, “Objetos móveis”, inicia no capítulo 5, com um novo deslocamento geográfico, desta vez para o sul dos Estados Unidos, em concreto a Universidade de Fisk, em Nashville, Tennessee. Sua fundação em 1866, após a guerra civil, esteve ligada a um projeto missionário para educar negros egressos da escravidão, virando mais tarde um dos baluartes dos Black Colleges (faculdades negras) do país. Cunha examina o Departamento de Sociologia e Antropologia (depois de Ciências Sociais), no período de 1926 a 1945, quando a universidade foi secularizada e modernizada, recebendo apoio de agências filantrópicas laicas para o desenvolvimento das ciências aplicadas. Cunha trata aquele departamento como um “laboratório”, um espaço de conectividade entre pessoas (antropólogos e sociólogos), projetos de pesquisa, experimentos teóricos, publicações, políticas institucionais, mas o seu objetivo último é produzir uma “cartografia da plantation” (p. 363).

Cunha propõe mapear a construção conceitual da “plantation” – associada ao Deep South, à escravidão e a uma fronteira colonial e cultural – não através de uma abordagem cronológica, mas do contraste entre as diversas imagens e modulações interpretativas que essa instituição tem gerado. Recorrendo mais uma vez a Strathern, Cunha compara a plantation a um objeto fractal, modelo de sociedade que podia ser transformado e adaptado sem perder sua forma original. Esse “experimento heurístico” (p. 363) leva Cunha a estabelecer conexões entre a objetificação da plantation, o projeto educativo dos Black Colleges e os empreendimentos coloniais, missionários e filantrópicos, revelando uma constelação de relações insuspeitas por trás da criação da ideia de negritude e do “negro” nas ciências sociais norte-americanas.

Cunha insiste na rigorosa aplicação de sua metodologia, na busca de “linhas” e “indícios” dispersos nos fundos documentais para mostrar o conceito de plantation, como “uma assemblagem gradual através de uma série de projetos que mobilizaram vários actantes” (p. 46). A dimensão cumulativa e coletiva é enfatizada e, com certeza, o Departamento de Sociologia e Antropologia de Fisk reuniu notórios “actantes”, como os sociólogos Charles S. Johnson, chefe do departamento desde 1926, Edward Franklin Frazier, incorporado em 1927, e o mestre de ambos, Robert E. Park, em 1935, quando se aposentou da Universidade de Chicago. Eles convidaram John Hope Franklin, Hortense Powdermaker (discípula de Malinowski), Paul Radin (discípulo de Franz Boas), Donald Pierson, Ruth Landes, Lorenzo Turner e outros, e Cunha radiografa seus movimentos com minúcia.

Vários deles compilaram dados, censos, relatos de viagem, questionários sobre as sociedades de plantation. Radin coletou narrativas de conversão religiosa, Frazier relatos autobiográficos, destacando a personalidade e o temperamento dos entrevistados, se afastando de interpretações arcaicas da plantation como folk culture. Robert Park ministrou cursos dobre relações raciais e contato cultural e começou a teorizar sobre a noção de fronteira colonial e territorial em relação à noção de hibridação. Cunha destaca como o problema do hibridismo, da mistura e do contato racial foram pensados em associação direta à historicidade da plantation e da escravidão, ecoando, assim, os debates sobre aculturação e transculturação que estavam sendo travados alhures naquele momento. Cunha encerra o capítulo refletindo como, na cartografia da plantation, os diversos “mapas” ou modelos não coincidem com precisão uns com os outros, nem com os seus referentes, existindo sempre um deslocamento diferencial que, no entanto, é o que torna significativa sua produção.

O sexto capítulo atenta para as viagens das cartas e seus efeitos. Distintas dos cadernos de campo ou dos diários pessoais, destinados a um único leitor que é o próprio autor, as cartas, às vezes escritas como relatório de atividades, são artefatos de papel que, na sua circulação, dinamizam relações, conectam lugares, abrem espaços de reflexão e de lançamento de hipóteses. Cunha ensaia a compreensão desse potencial através da análise da correspondência mantida entre Donald Pierson e seus orientadores acadêmicos, Robert Park e Robert Redfield, entre 1934 e 1942, quando ele cursou seu doutorado, incluindo o estágio preparatório em Fisk, o trabalho de campo no Brasil e o período de redação da tese, já de volta a Fisk.

A escolha do Brasil para a pesquisa de Pierson foi de Park, atendendo a sua agenda de promover estudos sobre contato racial, hibridismo e mestiçagem, e evidencia a curiosidade que as relações sociais no Brasil suscitavam nestes cientistas sociais norte-americanos.6 A parada obrigatória em Fisk, em 1935, embora de poucos meses, permitiu a Pierson conhecer a região da plantation e coletar dados e teorias sobre o assunto. Quando o sociólogo chegou na Bahia, após um trânsito de seis meses no Rio de Janeiro, o objeto de sua pesquisa, porém, continuava em aberto.

Essa indefinição é destacada por Cunha, cujo principal interesse é escrutinar a “criação” de conhecimento no trabalho de campo e entender como os “dados” são manufaturados. Para essa análise, a correspondência de Pierson, em especial os relatórios bimensais escritos na Bahia entre 1936 e 1937 e enviados ao comitê supervisor de sua tese em Chicago, são um prato cheio. Através deles, é possível acompanhar a inserção social do pesquisador no campo, tanto entre as elites intelectuais brancas como entre as classes populares negras e os membros dos candomblés. Mas o foco de Cunha é a gradual construção do objeto etnográfico, os avanços e recuos, as hesitações, oscilando entre uma abordagem comparativa de relações raciais, como sugerido por Redfield, ou um “estudo de comunidade”, investigando assuntos de caráter mais histórico e cultural.

Park recomendou a produção de dados sobre “fatos”, o que levou Pierson a detalhar distinções no uso de termos como branco, pardo, mulato, moreno, cabra, preto, confirmando a existência de linhas de cor que definiam “raças” e relações sociais, mas constatando que essas linhas não eram objetivas e só podiam ser acessadas através de pesquisa personalizada e qualitativa. Cunha nota a atenção de Pierson às diferenças dos interlocutores. Pierson acaba por questionar a possibilidade de enquadrar a “confusão” terminológica baiana no modelo birracial dos Estados Unidos ou acomodar os vestígios das hierarquias coloniais às categorias analíticas de Chicago e Nashville, como “classe” ou “casta” (para grupos raciais). Essas dúvidas analíticas e a tensão entre a orientação dos mentores acadêmicos levaram Pierson a produzir uma abordagem híbrida, tentando reconciliar as expectativas dos mestres nos Estados Unidos, dos intelectuais brasileiros e dos informantes locais, acolhendo todas as variáveis.

Na última parte do capítulo a autora traz evidências de como os “dados da Bahia” levantados por Pierson levaram Park a propor uma ampliação da compreensão do termo “Negro” para além da definição canônica elaborada por W. E. B. Du Bois, circunscrita ao contexto birracial dos Estados Unidos e ao modelo do “one drop rule” (uma gota de sangue negro tornaria alguém negro). Park tentava contemplar populações de ascendência africana em contextos de contato cultural menos segregacionista que o norte-americano, como o Brasil era então percebido. E Cunha conclui: “Pierson plantou a semente de um estranho fruto, germinado em algum lugar do campus de um Black College em Tennessee e nas ruas e ladeiras de Salvador” (p. 463).

O sétimo capítulo inaugura a terceira parte do livro, “Remakings”, e está dedicado a Ruth Landes, outra viageira, formada na Universidade Columbia, Nova York, com trânsito por Fisk e pela Bahia. Se no capítulo 1 Cunha aponta para os processos de seleção, edição e anotação realizados por Landes no processo prévio à doação do seu acervo, aqui ela vai utilizar as suas cartas, diários e manuscritos, escritos entre 1938 e 1947, ano da publicação de seu livro The City of Women, para descortinar a intrincada progressão de sua produção intelectual, com contínuos processos de revisão e reescrita, condicionados pelo diálogo com seus mentores acadêmicos e os interesses dos seus editores. As cartas escritas por Landes a Ruth Benedict são divididas em dois blocos, correspondentes à passagem de Landes por Fisk, em 1938, e a sua estadia na Bahia, em 1938 e 1939. Em nova reflexão metodológica, Cunha faz questão de sublinhar sua intervenção na escolha dos fragmentos epistolares, transcritos na integra, de acordo com sua relevância temática, e os efeitos que cria essa edição, uma forma de coprodução de significados, evidenciando “tramas emaranhadas” (entangled plots) e a existência em Fisk de uma interseção de redes sociais.

Segue uma meticulosa análise do complexo processo de elaboração de vários textos, incluindo aquele finalmente intitulado “A Cult Matriarchate and Male Homosexuality”. Nele Landes defendia a tese de que o poder das mulheres negras no candomblé exercia tal fascinação nos sacerdotes homens que estimulava neles uma ambição mimética, condizente ao homossexualismo e ao travestismo. Essa controversa interpretação gerou reações críticas de Herskovits e Ramos, que acabaram por vetar a publicação de outro texto dela, numa coletânea organizada por Gunnar Myrdal sobre o ethos do negro no Novo Mundo. Anos depois, Landes atribuiria esse ataque pessoal ao sexismo e à competitividade que imperava no meio acadêmico. Cunha trata também das dificuldades na preparação de The City of Women, da pressão da editora Macmillan para ela adotar a primeira pessoa verbal e um tom mais jornalístico, para atrair um público mais amplo, e as resenhas adversas que suscitou sua publicação – entre outros, do pontífice Melville Herskovits.

A transição de Landes de uma escrita científica para outra mais subjetiva, pelo que hoje ela é valorizada, contrasta com o movimento inverso de Carneiro, que passou de um estilo pessoal a outro mais etnográfico e observacional, que supunha mais científico. Cunha examina a correspondência intermitente entre ambos, salientando sua relação de troca, relativamente simétrica, ele atuando mais como supervisor do que como assistente no campo, e ela reciprocando com dados etnográficos. O elo entre eles evoluiu, mas permaneceu forte ao longo dos anos, inclusive com um reencontro, em 1966, quando ela retornou brevemente ao Brasil. Cunha encerra o capítulo referindo-se à participação de Landes numa coletânea sobre as vivências no campo de mulheres antropólogas, no que seria mais uma experiência de memorização e viagem ao passado, mediada, porém, pelas sugestões e até a velada censura da organizadora do volume.7

Esses diversos momentos permitem visualizar a complexa trajetória intelectual de Landes, mas servem a Cunha para dar relevo ao leitmotiv do livro: o processo que leva da experiência vivida aos dados etnográficos e destes aos artefatos documentais. Cunha lembra, porém, que a informação que circula no campo, resultado da agência de pessoas que a pesquisa converte em objeto antropológico, “não pode ser domesticada” e seus efeitos não param, mediando e afetando, de forma recorrente, novos encontros e relações (p. 535).

O penúltimo capítulo vai detalhar as relações do pesquisador com o Outro no campo, apontando para diversas estratégias e atitudes e seus efeitos. Herskovits e sua mulher Frances desenvolveram um método que consistia em propor ao informante situações hipotéticas, do tipo “como se”, indagando qual seria a reação e elicitando informações que nunca teriam surgido numa entrevista formal. Essa metodologia é contrastada com o proceder de Lorenzo Turner nas comunidades Gullah, da Carolina do Sul e Georgia, que, cultivando a intimidade e a confiança dos seus interlocutores, favorecido por sua condição racial, conseguiu acessar e identificar falares africanos, como os chamados basket names, não usados diante de pessoas estranhas. Cunha traz ainda o caso de Frazier, que elaborava diagramas, perfis biográficos e retratos sociológicos, combinando questionários e observações fenotípicas. Cada uma dessas formas de interação produzia artefatos diferenciados. Mas não se trata apenas da construção de artefatos documentais.

A autora sublinha que essas interações eram instrumentais para a “criação” multifacetada de personagens. A análise, nesse caso, focaliza na figura do famoso babalaô Martiniano Eliseu do Bonfim e nas relações que com ele estabeleceram pesquisadores como Herskovits, Landes, Pierson, Turner e Frazier. Sem minimizar o protagonismo de Bonfim, a maioria desses pesquisadores fizeram do adivinho ou “feiticeiro” uma personagem para construir um imaginário de conexões africanas e africanismos, enquanto Frazier, com seu método genealógico, salientava a ruptura das relações de parentesco com a ancestralidade africana. Em The City of Women, Landes imaginou a personagem de uma cliente em busca de um serviço religioso (disfarçando sua própria experiência), para narrar o encontro com Bonfim e como este operava no universo da “feitiçaria”. Já Turner, em atitude aparentemente menos manipulativa, se dedicou apenas a gravar uma conversa em iorubá entre Bonfim e Ana dos Santos, uma amiga da família Bonfim, nascida em Lagos. Nesse caso, era o próprio Bomfim que assumia a iniciativa e tomava as rédeas da conversa. Cunha encerra o capítulo enfatizando as diversas historicidades cruzadas produzidas por esses encontros, insistindo na complementaridade entre multiplicidade e singularidade, entre as estórias e os casos e suas metamorfoses em histórias, cada uma como forma de conhecimento singular.

O nono e último capítulo retira a autora do arquivo e a leva (e nos leva) aos candomblés da Bahia. Trata-se, nos termos da própria Cunha, de um “experimento” etnográfico, baseado em restituir aos terreiros contemporâneos cópias das fotografias e dos sons (registros de entrevistas e de cantigas) produzidos, entre 1938 e 1940, por Frazier, Landes e Turner. A intenção era observar os efeitos e as respostas provocadas por aqueles artefatos nos descendentes biológicos e espirituais dos sujeitos fotografados na década de 1930. O experimento aconteceu em Salvador, em 2003, e privilegiou os terreiros do Engenho Velho e do Gantois, com alguns dos encontros realizados nos próprios templos. Como Cunha reconhece, esse tipo de experiência de feedback não é novidade na prática antropológica, porém, a dela é única na sua especificidade e historicidade.8 A ambição de Cunha não seria produzir uma história visual dos terreiros, nem buscar a compreensão nativa, mas “ser afetada por outros modos de existência e experienciar outros modos de visualização” (p. 666). Mais do que entender o que as imagens significam para o Outro, ela coloca como problema o trabalho conceitual que os antropólogos mobilizam para essa tentativa de compreensão, incluindo a restituição de imagens.

Após considerações sobre a produção e uso no campo do material audiovisual de Landes, Frazier e Turner (Herskovits parece que ficou de fora), e sua subsequente transformação arquivística, Cunha passa a descrever os efeitos desses artefatos nos seus interlocutores contemporâneos. Por exemplo, Mestre Didi reagiu de forma fria ao escutar a voz de Martiniano do Bomfim, sugerindo como a memória pessoal pode não coincidir com a aura de respeitabilidade que a memória coletiva atribuía ao babalaô. Seguem comentários a propósito da micropolítica envolvida na organização dos encontros nos terreiros e da indagação que uma liderança religiosa fez sobre os motivos da pesquisadora para realizar aquele experimento. Segundo interpretação daquela sacerdotisa, seria um “enredo” dos orixás e uma forma de “retorno”, deixando a “ontologia bruxa” de Ortiz permear também pelas frestas do livro.

Cunha nota a dificuldade dos membros das casas em identificar muitas das pessoas que aparecem nas fotografias, quando não são parentes próximos, e a fixação da atenção, talvez para compensar, em objetos e aspectos espaciais, reconhecendo, por exemplo, transformações na arquitetura ou elementos físicos do terreiro. As expectativas etnográficas do que Cunha, com ironia, chama de “primeiro contato” (first contact), não se cumpriram, mas surgiram descobertas inesperadas. Ela constatou como o poder evocativo das imagens fala mais para o presente do que para o passado. Na leitura subjetiva das imagens, a presença do fotógrafo era suprimida ou apenas interpelada para criticá-lo ou corrigi-lo, revelando uma dupla historicidade das imagens: a das memorias pessoais e a da sua criação antropológica. Nas palavras de Cunha, “a memória se revelou contra a história” (p. 661).

Cunha teoriza sobre a noção de uma “forma arquivística” (archival form) que é imposta e transforma os objetos (enquanto criações da experiência sensível), lhes conferindo, por um lado, valor enquanto “fontes” de um determinado tipo de conhecimento e, por outro, valor enquanto “artefatos documentais”, submetidos à ciência da arquivologia. A atribuição de “forma arquivística” funcionaria como um encantamento, como um truque de magia orientado a negar a erosão do tempo e o esquecimento, e a salvaguardar e ativar de forma recorrente a memória do encontro assimétrico entre o pesquisador e o Outro, fonte do conhecimento antropológico. Cunha sugere que, para além da tentativa de controlar os significados construídos tendo por base a forma arquivística, há distintas maneiras de se relacionar com a memória, a história e o passado. O experimento de Salvador pretende, assim, aceder a objetos criados, manipulados e concebidos de forma diferente do enquadramento arquivístico.

Finaliza o capítulo com uma reflexão sobre a variedade de interpretações possíveis diante da fotografia. A explicação física de como a resolução ou a qualidade da imagem fotográfica está diretamente relacionada ao efeito de sua infinita fragmentação poderia funcionar como metáfora do livro, ou seja, a coimplicação da multiplicidade e da unidade seria tão essencial para entender a tese do livro como para entender a sua estrutura e estilo narrativo.

Assim como o campo dos Estudos Afro-Americanos seria resultado do intrincado cruzamento e entrelaçamento de tramas, estórias, deslocamentos, fluxos, transformações e historicidades, condizentes com a reificação científica do negro, o livro, ele próprio um artefato documental inserido nesse campo, responderia à mesma arquitetura, multifacetada, multivocal e polifônica, orientada a criar uma narrativa, uma história quiçá, dos modos de produzir conhecimento antropológico. O fato de o livro carecer de conclusão, arremate ou fechamento é indicativo de uma consciência, manifesta em vários momentos do texto, de incompletude, de impossibilidade de atingir qualquer totalidade, aceitando a permanente abertura a outras interpretações, reconfigurações e extensões. Como exemplo dessa inevitável seletividade, cabe mencionar a vertente francófona da história, do Haiti ou autores como Roger Bastide, que parecem ter ficado na sombra.

A densidade da reflexividade teórica sobre a manufatura dos objetos etnográficos, no campo e no arquivo, vai garantir ao livro um lugar de merecido destaque no debate antropológico e historiográfico internacional nos anos a vir. Sem tirar o mérito dessa empreitada, atrativos complementares enriquecem a obra. Apesar da crítica da autora à abordagem verificacionista, ela não consegue escapar ao fascínio e poder do valor documental das suas fontes. Reunindo documentos de difícil acesso, alguns transcritos na íntegra, e uma excelente iconografia (com mais de 50 imagens pouco conhecidas), o livro não deixa de oferecer inestimáveis insumos para uma história transnacional dos estudos afro-americanos, ou uma história da antropologia, âmbitos nos quais o livro também poderia ser enquadrado.

The Things of Others é, assim, uma leitura imprescindível para os interessados na antropologia do arquivo e nas questões epistemológicas a ele associadas, um campo que suscita crescente reflexão também entre os historiadores. A vocação interdisciplinar do projeto é, portanto, um aspecto a ser elogiado. Sobretudo, trata-se de uma obra imperdível para aqueles interessados nos estudos afro-americanos e na compreensão pormenorizada da complexa criação histórica, nas ciências sociais, da ideia do negro como objeto de estudo. A desconstrução crítica desse processo emerge como uma saudável contribuição para nos alertar sobre a geopolítica do conhecimento e seus efeitos. Para aproximar essa temática e a discussão teórica correlata do público brasileiro seria desejável uma tradução para o português.


Notas

1 Marilyn Strathern, “Artifacts of History: Events and Interpretations of Images” in Jukka Siikala (org.), Culture and History in the Pacific (Helsinki: Finnish Anthropological Society, 1990), pp. 25-44; Bruno Latour, Reassembling the Social: An Introduction to ActorNetwork Theory, Oxford: Oxford University Press, 2005.

2 Roy Wagner, The Invention of Culture, Chicago: The University of Chicago Press,1981 [1975]; Bruno Latour, Science in Action: How to Follow Scientists and Engineers Through Society, Cambridge: Harvard University Press, 1987; e We Have Never Been Modern, Cambridge: Harvard University Press, 1993; Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, São Paulo: Editora 34, 2006, v. 1.

3 Amiria Henare, Martin Holbraad e Sari Wastell (orgs.), Thinking Through Things: Theorising Artefacts Ethnographically, Londres: Routledge, 2007, p. 15; Latour, Science in Action; Isabelle Stengers, The Invention of Modern Science, Minneapolis: University of Minnesota Press, 2000, v. 19; Annemarie Mol, The Body Multiple: Ontology in Medical Practice, Durham: Duke University Press, 2002.

4 Para uma crítica da abordagem “verificacionista”: David Scott, “That Event, This Memory: Notes on the Anthropology of African Diasporas in the New World”, Diasporas, v. 1, n. 3 (1991), pp. 261-284.

5 A expressão “ontologia bruxa” é de Cunha (p. 202). Para a expressão “ontologias visíveis”: Karen E. Fields, “Witchcraft and Racecraft: Invisible Ontology in Its Sensible Manifestation” in G. Bond e D. Ciekawy (orgs.), Wichcraft Dialogues: Anthropological and Philosophical Exchanges, Athens: Ohio University Press, 2001, pp. 283-315

6 A importância da agenda teórica de Park na pesquisa de Pierson na Bahia é também analisada por Marcos Chor Maio, “Entre Chicago e Salvador: Donald Pierson e o estudo das relações raciais”, Estudos Históricos, v. 30, n. 60 (2017), pp. 115-140, trabalho curiosamente ausente na bibliografia de Cunha.

7 Peggy Golde (org.), Women in the Field: Anthropological Experiences, Berkeley: University of California Press, 1986 [1970].

8 O experimento etnográfico de Cunha antecedeu àquele do pesquisador francês Xavier Vatin que, no entanto, apresentou sua experiência de restituição do material de Lorenzo Turner aos candomblés baianos como pioneira: Xavier Vatin, Memórias afro-atlânticas: as gravações de Lorenzo Turner na Bahia em 1940 e 41, Catálogo/CD, Petrobras, 2017.


Resenhista

Luís Nicolau Parés – Universidade Federal da Bahia. https://orcid.org/0000-0002-9909-2499


Referências desta Resenha

CUNHA, Olívia Maria Gomes da. The Things of Others: Ethnographies, Histories, and Other Artefacts. Leiden e Boston: Brill, 2020. Resenha de: PARÉS, Luís Nicolau. A criação de artefatos documentais e a história dos estudos afro-americanos. Afro-Ásia, n. 64, p. 682-701, 2021. Acessar publicação original [DR/JF]

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