Travessias no Atlântico Negro: reflexões sobre Booker T. Washington e Manuel R. Querino | Sabrina Gledhill

De certa maneira, os historiadores são verdadeiros parceiros dos eguns – ancestrais cujos mundos pretendemos reviver com nosso trabalho. Um dos exemplos mais claros disso tem sido o desenvolvimento da nossa compreensão da escravidão; abordagens inovadoras da história social têm nos ajudado a ouvir atentamente os escravizados e a dar voz à natureza horrenda da escravidão e à imensidão do esforço, fé e criatividade necessários para se sobreviver a ela. A biografia tem desempenhado um papel particularmente importante nesse sentido.

O gênero de narrativas do cativeiro da literatura anglófona – a mais lida é a autobiografia de Olaudah Equiano – vem sendo complementado pela leitura crítica de arquivos, como exemplificado pela obra de Saidiya Hartman e Marisa Fuentes.1 Historiadores da escravidão no Brasil, como João José Reis, Flávio Gomes, Lisa Earl Castillo, Luis Nicolau Parés e James Sweet, entre outros, trouxeram à luz notáveis vidas transatlânticas que têm nos ajudado não só a compreender os desafios da escravidão, mas também a precariedade da liberdade nas sociedades moldadas pelo consumo de corpos negros.2

Mais recentemente, os historiadores têm trazido esse espírito de inovação metodológica e atenção aos detalhes das vidas individuais para a era imediata do período pós-abolição. Embora a abolição tenha inaugurado um contexto bem diferente para os afrodescendentes, estamos começando a perceber que a mesma precariedade que marcou as vidas dos libertos durante a escravidão também caracterizou o pós-abolição como um todo. Como o campo de estudo continua a crescer, estamos aprendendo sobre as diferenças geracionais entre aqueles que viveram a transição – pessoas que tenham testemunhado os horrores da escravidão – e aqueles nascidos após a abolição, capazes de pesar o resultado das escolhas da geração da abolição. Assim como a história da escravidão, a biografia tem nos ajudado a apreciar a realidade viva do pós-abolição para os afrodescendentes, para além das amplas análises estruturais e sociológicas da época, muitas das quais foram escritas por elites não negras. Travessias no Atlântico Negro, de Sabrina Gledhill, é uma avaliação crítica do papel da biografia de dois gigantes da geração da abolição. O seu livro apresenta os perfis de Booker T. Washington, o fundador, presidente e defensor da Tuskegee, a mais proeminente universidade negra da sua época, e Manuel Querino, artista, político e etnógrafo baiano. Gledhill utiliza as diversas narrativas das suas vidas, produzidas por eles bem como por seus biógrafos, como um prisma para compreender os desafios do pós-abolição no mundo Atlântico. No processo, ela nos lembra que a nossa parceria com o sujeito da biografia – os eguns cujas experiências terrenas esperamos partilhar – é contextualizada por nossas próprias perspectivas e pelas agendas cambiantes do nosso tempo.

Querino e Washington viveram a era em que as antigas nações escravistas das Américas lidavam com o “problema negro”. No Brasil, Nina Rodrigues advertia que a raça negra “há de constituir sempre um dos fatores de nossa inferioridade como povo”, posicionando os negros como antitéticos ao progresso da nação. Sentimentos eugênicos semelhantes levaram também o Brasil a proibir a imigração negra. Nos Estados Unidos da América, um breve período de abertura cívica para os negros imposta aos antigos estados escravistas, após a Guerra Civil (1861- 1865), foi rapidamente substituído por um sangrento reino de terror para impedir o avanço econômico, social ou político dos negros. As mesmas elites, que durante tanto tempo tinham assumido a propriedade dos corpos negros, começaram a ditar os seus planos para os novos cidadãos de cor. Acima de tudo, isso girava em torno do trabalho assalariado, especificamente no interesse na continuidade das economias do pré-abolição. Trabalho autônomo, lazer e movimento, ou quaisquer medidas propiciatórias do fortalecimento dos negros, foram sujeitos a vigilância e policiamento. Assim, nas duas nações, os afrodescendentes tiveram de trafegar num terreno hostil e por vezes perigoso enquanto procuravam ter voz ativa em relação a sua cidadania.

Para Gledhill, esses paralelos fornecem a fundamentação para um olhar mais atento a dois homens controversos, mas influentes, que viveram a transição da escravidão para a liberdade e que ajudaram a moldar as formas como a pertença negra poderia ser imaginada. Ela mostra de que modo eles construíram cuidadosamente suas imagens públicas como discurso sobre o papel dos negros em suas sociedades. Também fizeram escolhas que mostram semelhanças na política racial do Brasil e dos EUA, numa altura em que suas respectivas mitologias raciais de hipodescendência e democracia racial não tinham tomado forma plena.

Travessias no Atlântico Negro é aberto com um prefácio do professor Jefferson Bacelar, que comenta a ousadia da escolha Gledhill, dada a forma como ambos os seus sujeitos, por vezes, perderam a estima da política negra progressista. Ele antecipa um dos temas centrais de Gledhill – que, apesar de acurada tentativa de usar as suas próprias vidas como forma de política ideológica negra, os legados desses dois homens têm-se mostrado altamente maleável nas mãos dos seus biógrafos. Alguns desses biógrafos lhes faltaram com respeito e, por vezes, mostraram animosidade, o que afetou nossa compreensão de suas contribuições para a história do pensamento político da diáspora africana. Bacelar emoldura o livro com concisos esboços biográficos de ambos os homens e com uma visão geral do texto. Ele observa que a participação dos negros nas guerras recentes em cada país – a Guerra Civil nos Estados Unidos e a Guerra do Paraguai com o Brasil – teve impacto nas suas vidas e visões políticas, lembrando-nos do significado dessa história para as gerações pós-abolição. Aprendemos que o serviço militar negro não só foi um caminho para a liberdade durante a escravidão, era prova de patriotismo e do papel crucial dos negros na formação da política racial pós-abolição da nação.

Apesar dos paralelos, porém, Bacelar nota uma questão que ecoa ao longo da leitura do texto: esses homens são, em última análise, muito diferentes e com diferentes graus de impacto em suas sociedades. Booker T. Washington foi um grande líder da diáspora africana, com ligações e influência entre os negros de vários países, incluindo o Brasil. Frank Guridy, citado por Gledhill, documentou o enorme alcance da reputação de Tuskegee em todo o mundo negro, atraindo centenas de estudantes do Caribe, da América Central, América do Sul e do continente africano.3 É célebre o convite que recebeu para jantar com o presidente dos Estados Unidos; Washington foi internacionalmente considerado o afro- -americano mais famoso da sua época. Embora a atenção da história tenha-se centrado no trabalho estratégico com os aliados brancos, Washington estava firmemente assentado na construção institucional da comunidade negra. Querino, por outro lado, é lembrado como um interlocutor da experiência negra com os brancos e a sociedade em geral, e não por serviços diretos à comunidade negra. As suas relações no seio da comunidade negra eram frequentemente complexas e contenciosas. Ao contrário de Washington, o círculo de influência de Querino estava, em grande parte, confinado ao seu estado natal, a Bahia.

Então, por que devemos colocar essas duas vidas em diálogo? Gledhill argumenta que, apesar dos seus diferentes contextos nacionais, ambos os homens lutaram com a mesma lógica racial do mundo Atlântico, o que os levou a recorrer a táticas semelhantes de criação de espaço para uma cidadania negra equitativa: “A valorização da instrução e qualificação do negro, especialmente o recém-liberto; a formação de alianças com brancos em posições de influência e poder; e o esforço para combater estereótipos negativos de várias maneiras: utilizando imagens dignas de pessoa de cor preta, produzindo biografias de negros ilustres e oferecendo seu próprio exemplo de homens de sucesso que começaram do nada, ou seja, self-made men” (p. 3). Do ponto de vista da política negra dos séculos XX e XXI, aspectos dessas políticas cairiam em desuso e acabariam por ser contestados. Uma tradição negra radical emergiria a exigir reparações e compensações, e rejeitar a política de respeitabilidade como inútil num sistema de racismo estrutural. Mesmo a estratégia de confiança nos aliados brancos seria ponderada em função da importância da ajuda mútua negra global na política do Pan-Africanismo. Ao traçar a fluidez das nossas caracterizações de homens que encarnaram essas estratégias políticas da geração abolicionista, Gledhill oferece uma janela para a evolução da política negra que tem ressonância para todo o mundo afro-atlântico.

O título de Gledhill é uma alusão aos fluxos materiais, ideológicos e culturais do Atlântico Negro de Paul Gilroy, que são a base para pensar essas duas vidas em diálogo, e o pano de fundo mais amplo de todos os países que se debatem sobre ter uma nação moderna com uma significativa população afrodescendente. Ela não volta a Gilroy, embora as intervenções dos seus sujeitos no discurso racial de suas nações dialoguem bem com as formas como Gilroy procura inscrever a contribuição negra para o mundo social e cultural do Atlântico negro. Na Introdução e no Capítulo 1, ela discute a lógica racial reinante que se tornou o contexto em que os seus sujeitos viveram. Ela observa que as pressões da exclusão racial e da violência antinegra ajudaram a formar o conceito de uma “nação” negra nos Estados Unidos, o que mais tarde abriria a porta para Washington ser lançado no rol dos principais representantes da “raça”, ironicamente chamado de “presidente negro” (p. 80). Ela contrasta as emergentes lógicas raciais nacionais em torno da hipodescendência dos Estados Unidos e a narrativa das três raças do Brasil, mas continua a mostrar como ambos os países foram igualmente influenciados pelos conceitos circulantes do racismo científico. Gledhill nos lembra que este foi o período anterior à consolidação das mitologias nacionais que celebravam o mestiço no Brasil e o capitalismo negro nos Estados Unidos. Na virada do século XX, a presença negra foi causa de pânico em muitos círculos.

Devemos lembrar que o conceito de eliminação de negros era corrente naquela altura; repatriamento, imigração europeia, branqueamento cultural e eugenia eram todos assuntos de debate de alto nível. Curiosamente, ambos os países também conceberam os negros como uma categoria populacional minoritária; no Brasil, isso foi conseguido por meio da separação das categorias pardos e pretos, um ponto que estava a ser contestado já nos anos de 1920 na imprensa negra e nas organizações políticas, que reivindicavam a identidade coletiva de “negro”. Aqui, penso eu, Gledhill toca num ponto de comparação mais fundamental do que as formas como a negritude foi definida em cada país. Tanto Querino como Washington foram importantes nas contribuições do povo negro para a construção do significado de uma nação moderna com uma significativa população afrodescendente – uma questão que definiu tanto as suas vidas como seu tempo.

Não há evidências de ligação pessoal entre os contemporâneos Washington e Querino, mas a semelhança dos desafios que enfrentaram, argumenta Gledhill, levou a paralelos nas estratégias que seguiram. Embora o livro esteja estruturado de forma a alternar considerações sobre Washington e Querino, Gledhill começa o livro com enquadramentos que se aplicam a cada contexto. Em ambos os países, os senhores de escravos proibiam a alfabetização e reprimiam as práticas culturais africanas. Ela menciona que os escravistas nos Estados Unidos deram especial atenção à Revolta dos Malês na Bahia, em 1835, o que reflete uma circulação de informação atlântica. É de se notar que os escravizados também estavam bem conscientes dessas táticas de repressão, e suas formas de resistência se tornaram a base de uma tradição radical negra. Assim como foi analisado por autores como Julius Scott, as notícias de revoltas, particularmente da Revolução Haitiana, foram as primeiras manifestações de um circuito afro-atlântico de comunicação e ideias em desenvolvimento, para o qual Washington e Querino contribuíram durante suas vidas.4 O trabalho e a visão de Washington foram explicitamente diaspóricos e envolveram relações com pessoas negras em vários continentes. Embora Querino estivesse mais concentrado localmente, a sua pesquisa fez circular informação sobre acontecimentos e história africanos contemporâneos para o público baiano por meio dos temas do bloco carnavalesco Pândegos d’África. Utilizou politicamente, também, a cultura e a história para destacar o papel integral dos afrodescendentes nas sociedades americanas, uma estratégia que acabaria por reformular as narrativas nacionais e prefigurar o campo da antropologia afro-atlântica.

Gledhill analisa, então, as leis e políticas do período pós-abolição. Em ambos os países, foram utilizadas leis contra a vagabundagem para obrigar o trabalho assalariado. Como veremos mais tarde, tanto Querino como Washington procuraram ajudar os negros a alcançar a autonomia financeira e a propriedade empresarial. Ela concentra uma atenção substancial no racismo científico, especialmente nas ideias de Gobineau, Agassiz e Spencer tal como circulavam em ambos os países.

Aqui vemos como as elites estavam a se debater com o que pensar sobre os negros, e o que embasava as formas como tentavam manipular e restringir o espaço social, econômico e político dos negros. Ao que parece, um dos benfeitores de Washington, Andrew Carnegie, era profundamente influenciado por Spencer e suas ideias. Isso ilustra como as elites poderiam considerar determinadas iniciativas negras potencialmente congruentes com a manutenção de uma ordem racial hierárquica. As tentativas de Washington de aproveitar do apoio das elites a serviço das suas instituições renderam-lhe as acusações de ser traidor racial e aliado de racistas, que o assombrariam mesmo décadas após a sua morte.

Cada país anunciou a abolição como o início de uma nova era, celebrando o conceito de meritocracia democrática. Cada um a seu jeito, Washington e Querino investiram profundamente nesta promessa. Contudo, rapidamente ficou claro que ambas as sociedades estavam a cerrar fileiras para excluir os negros do progresso real e do acesso ao empoderamento, traindo os mitos do acesso, e forçando as estratégias negras a girar em torno da relação com um estado hostil. Esse era um terreno precário a percorrer. Ao invocar o conceito de precariedade durante o pós-abolição, estou a pensar como era frágil o estatuto de cidadania para a geração a que Washington e Querino pertenciam. É por isso que o serviço militar negro se tornou tão central para as reivindicações negras de patriotismo e cidadania, em comparação a imigrantes recentes, embora a sua dimensão de gênero tenha tornado as mulheres acessórias. Sabemos que o terrorismo e a violência nos Estados Unidos poderiam esmagar as aspirações negras num instante, mas Querino nos lembra que havia também no Brasil muitas restrições sutis, mas profundas, à elevação dos negros. Com toda sua educação e realizações, Querino era constantemente referido como “humilde”. Podemos imaginar que em algum momento de sua vida adulta alguém deve tê-lo chamado de “moço”. Apenas uma simples palavra poderia simbolicamente desfazer, ou pelo menos tornar invisíveis, todos os seus anos de formação, trabalho profissional, realização política e posição social.

Os meandros das escolhas que as pessoas tiveram de fazer é algo que a biografia ajuda a tornar visível. Gledhill aponta a importância da biografia para oferecer modelos positivos e contrariar estereótipos negativos sobre os negros, mas também a escassez de biografias de figuras históricas negras, particularmente de intelectuais. Quanto a isso, tanto Washington como Querino destacam-se não só como vidas dignas de atenção biográfica, mas também como pessoas que, muito antes dos mandatos da Lei 10.639, procuraram elas próprias chamar a atenção para as vidas de negros ilustres (p. 18). Gledhill explica que essas são as convenções da narrativa vindicacionista, como é caracterizada por Antenor Firmin, do Haiti – outro exemplo da circulação de ideias no mundo afro-atlântico. Em um diálogo direto com o racismo científico, a vindicação baseia-se em exemplos de realizações negras para defender a humanidade da raça. Nessa perspectiva, tanto Querino como Washington utilizaram o exemplo das suas vidas para ilustrar o potencial da raça negra como um todo. A atenção de Gledhill às nuances ajuda-nos a ver como o uso da biografia por Querino e Washington foram também intervenções ideológicas. Por exemplo, ao utilizar a biografia para celebrar os sucessos de pessoas consideradas “negros puros”, Washington estava a contrariar os princípios da supremacia branca e o colorismo implícito do conceito de W. E. B. Du Bois do “Décimo Talentoso” (p. 74).

No Capítulo 2, Gledhill começa a detalhar como Washington e Querino moldaram a si mesmos como encarnações conscientes das estratégias de elevação por meio de seus próprios esforços e da respeitabilidade em que tanto acreditavam. Embora Washington já fosse conhecido por seu trabalho à frente do Tuskegee, desde a fundação em 1881, foi seu discurso na Exposição de Atlanta, em 1895, que o impulsionou definitivamente para o papel de principal porta-voz da raça, substituindo Frederick Douglass, que morreu no mesmo ano (p. 80). Um corolário do conceito de uma “nação” negra distinta, posicionar um líder com este incômodo de um “presidente negro” de fato, pelos meios de comunicação social, é uma tradição nos Estados Unidos, que destila de forma não natural o pensamento político negro numa única e palatável voz. Como foi o caso de exemplos mais recentes, como Martin Luther King ou Barack Obama, esses célebres porta-vozes (e são invariavelmente homens) estão justapostos contra uma alternativa geralmente mais radical (como Malcolm X ou o Ministro Louis Farrakhan, da Nação do Islã). Isso expõe frequentemente divergências ideológicas que se podem aprofundar em competição e animosidade, como acabou por acontecer entre Washington e outros grandes pensadores, como W. E. B. Du Bois e Ida B. Wells (p. 73 nota 12).

Washington estava determinado a elaborar cuidadosamente a sua imagem pública. Sua primeira autobiografia, The Story of My Life and Work, foi escrita em 1900 com um ghostwriter negro e destinada principalmente ao público negro. No ano seguinte, sua fama internacional foi solidificada. Com a ajuda de um ghostwriter branco, publicou Up From Slavery, a história redentora da sua vida, que foi traduzida para várias línguas, incluindo versões publicadas no Brasil. Naquele mesmo ano, um convite do presidente norte- -americano Theodore Roosevelt fez de Washington o primeiro afro-americano a jantar na Casa Branca, simbolizando alturas possíveis para um descendente da escravatura, e incitando a virulência dos racistas e dos negros, que pensavam que Washington cedia aos brancos em demasia.

Gledhill mostra que W. E. B. Du Bois, que inicialmente elogiou o discurso de Washington em Atlanta, viria mais tarde a usá-lo contra ele, como prova de sua acomodação. Du Bois tornar-se-ia um crítico ardente de Washington, e foi instrumental na formação da sua imagem conciliadora. No entanto, ao nos mostrar as próprias palavras de Washington, Gledhill oferece outras interpretações possíveis de sua posição, especialmente à luz da dificuldade em liderar os negros do Sul, numa altura em que qualquer ação que pudesse ser entendida como “sair do seu lugar” poderia ser enfrentada com a destruição da vida e da propriedade. É quase impossível exagerar o nível de ameaça sob o qual os negros viviam nos Estados Unidos do pós-abolição, incluindo as cidades do Norte, onde a escravidão tinha sido abolida décadas antes. Washington operou no Sul no auge dos linchamentos pela Ku Klux Klan e dezenas de outros bandos de milícias formais e informais, apenas uma das muitas ameaças físicas que também podiam incluir estupro de trabalhadoras domésticas, ser apanhados à noite numa cidade com toque de recolher para negros (sundown towns) e detenção ou prisão por policiamento antinegro.

Se os terroristas raciais podiam assassinar ritualmente um homem negro apenas pela suspeita de olhar indevidamente para uma mulher branca, só podemos imaginar a delicadeza exigida a Washington, uma realidade que é frequentemente subvalorizada pelos seus biógrafos. Embora tenha procurado e conseguido financiamento de elites brancas, Washington propôs estratégias que acabariam por fazer com que os negros se tornassem menos dependentes dos brancos, tais como aprender um ofício e possuir propriedade, e oferecer alternativas ao caminho da política partidária (p. 71).

Washington usou Up From Slavery para esclarecer as posições políticas que tinha inicialmente postulado no seu discurso de Atlanta e para conter a virulência de seus críticos. No entanto, os violentos surtos racistas em Atlanta e Brownsville, Texas, em 1906, fizeram com que a abordagem de Washington à ascensão negra parecesse fútil, e o que foi percebido como sua fraca resposta aos incidentes feriu irremediavelmente sua imagem. Em 1911, foi vítima de um ataque violento em Nova York por um zelador branco que o acusou de ter falado “olá, querida” a sua mulher, o que resultou em Washington ficar preso e com 16 pontos na cabeça. Mesmo inocentado depois, o fato aconteceu ao lado de um hotel num bairro mal-afamado de Nova York, daí começarem a circular rumores de infidelidade conjugal, possivelmente com uma mulher branca. Quando morreu, em 1915, o seu funeral contou com a presença de milhares de enlutados, mas as controvérsias sobre sua vida continuariam postumamente.

Embora Querino também gozasse, em alguma medida, de notoriedade local, nunca lidou com o intenso escrutínio da fama internacional. A forma como orquestrou sua imagem, centrada no contexto local da Bahia, era talvez mais típica da política quotidiana de respeitabilidade, numa altura em que muitas pessoas ainda acreditavam na promessa de espaço em suas sociedades, se se comportassem apropriadamente. Nascido em Santo Amaro, em 1851, Querino ficou órfão quatro anos mais tarde, quando uma epidemia de cólera ceifou a vida de cerca de 25.000 habitantes da pequena cidade. Gledhill oferece detalhes meticulosos sobre as muitas pessoas que intercederam na sua vida, começando por Manuel Correia Garcia, que pode ter sido, de fato, o seu pai biológico. Educado na Europa, e bem relacionado politicamente, Correia Garcia organizou o sistema de ensino primário da província e foi o principal fundador do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. O seu plano para o jovem Querino, porém, assim como aconteceu com Washington, foi enviá-lo para aprender um ofício prático. Gledhill observa que embora Querino tenha sido treinado para ser pintor decorador, acabaria por seguir os vários caminhos do seu tutor como educador, político e investigador em antropologia e história.

Gledhill usa habilmente os conhecimentos autobiográficos de Querino, espalhados por seus escritos, e os comentários dos seus biógrafos para traçar uma vida bastante diversificada. Oficial militar e veterano de guerra, intendente municipal, professor de artes e ofícios, defensor dos trabalhadores e paladino da herança negra do Brasil, fica claro por que os seus biógrafos se referiam tão frequentemente a seus humildes começos para destacar suas muitas realizações. Ela revela como Querino procurou moldar e interpretar sua própria narrativa, tal como a explicação de sua tentativa frustrada de alcançar o título de doutor em Arquitetura (pp. 94-95). Mostra Querino a ser impulsionado na posição social por meio de suas ligações, educação e posições profissionais. Os escritos de Querino revelam como ele concebeu seu trabalho e sua vida em termos políticos. Para ele, a educação era uma via pela qual o antigo escravizado podia entrar “vantajosamente na partilha” (p. 96), claramente em acordo com a visão dos seus contemporâneos americanos.

Embora ambos os homens se tenham representado como exemplos do éthos do vencedor pelo próprio esforço, Gledhill nota a importância das relações de cada um deles com influentes aliados brancos. Ambos, nitidamente, tiraram grande partido dessas relações. Ao longo de sua vida, Washington recebeu apoio de Samuel Chapman Armstrong, o fundador do Hampton Institute, onde estudou em troca de trabalho no campus. E foi Armstrong quem, mais tarde, recomendou Washington para presidente fundador de Tuskegee. Como ainda hoje, a função de presidente universitário é angariar dinheiro, e Washington provou ser hábil em obter fundos das pessoas mais poderosas e ricas da nação, incluindo Andrew Carnegie, John D. Rockefeller e George Eastman, da Kodak. A atenção de Gledhill aos detalhes ajuda-nos a ver que esse não foi um mero exemplo de patrocínio branco a negros submissos. Para Julius Rosenwald, um dos principais varejistas do país e diretor da Sears Roebuck, a cuidadosa elaboração de Up From Slavery, de Washington, para uma audiência branca tornou-se uma ferramenta de recrutamento. Ele despertou o interesse de Rosenwald pela filantropia para as causas negras, que inicialmente se centrou nas afiliadas negras da segregada YMCA. Washington encontrou-se com Rosenwald depois de falar num evento da YMCA e, pouco depois, o convidou a se juntar ao conselho de administração do Tuskegee. Washington cultivou a sua relação com Rosenwald, com longas visitas a sua casa, o que acabou por resultar no apoio financeiro e material ao Tuskegee e no papel de Washington como árbitro das decisões de financiamento a outras instituições negras (pp. 68-69).

Em momentos críticos de sua vida, patronos influentes também intervieram em favor de Querino, como seu patrono político Conselheiro Dantas e o pintor espanhol Miguel Navarro y Cañizares. Ambos facilitaram sua formação avançada e seu trabalho como educador e promotor de ofícios profissionais. Teria sido útil saber como essas relações foram mantidas e nutridas, embora tal detalhe muitas vezes escape nos arquivos.

Para Gledhill, a confiança nos patronos brancos aponta para uma tática central de elevação para a geração da abolição. Ela argumenta que a cultura do mecenato logo foi corroída, deixando os negros desiludidos e em busca de novos caminhos de pertença e plena cidadania. Gledhill sugere que este foi, de fato, o motivo para Querino se dedicar à defesa dos negros e dos ofícios pelo resto da sua vida (p. 108). Embora o sentimento paternalista da antiga classe de senhores de escravos possa de fato ter se dissipado, temos indicações de que os afrodescendentes continuaram a cultivar o mecenato tanto de negros como de brancos de forma criativa. Washington, por exemplo, obteve apoio de Madame C. J. Walker, uma das primeiras milionárias negras do país. Na sua posição de intendente municipal, Querino foi patrono político de instituições negras, como a Sociedade Protetora dos Desvalidos e os candomblés. Tal como a colocação de Washington de pessoas influentes na direção de Tuskegee, os candomblés estrategicamente escolhiam para o cargo de ogã pessoas bem posicionadas na sociedade e que pudessem defendê-los, como fizeram com Querino (pp. 102, 104). Essas foram adaptações de antigas tradições de clientelismo para a era pós-abolição.

Gledhill estrutura o Capítulo 2 como um contraste entre os autorretratos e olhares externos. Nessa segunda dimensão da sua análise, vemos os nossos personagens refletidos principalmente na imprensa e pelos biógrafos. Washington foi maculado na imprensa pelos ataques de W. E. B. Du Bois, que Gledhill aponta como, talvez, a maior influência para a formação de sua imagem póstuma. Embora Querino tenha enfrentado desafios e perdas em sua carreira na política e no ensino, seus escritos etnográficos e sua associação com Nina Rodrigues e o IGHB acabaram por colocá-lo como uma voz influente nos debates raciais de sua época. Bernardino de Souza, o secretário perpétuo do IGHB, registrou os constantes pedidos, de todo o Brasil, de informação sobre suas pesquisas (p. 133).

Mas o que dizer de suas imagens para a população negra? Esse não foi o enfoque do estudo de Gledhill, mas é neste âmbito que há um amplo território para ir além da ortodoxia biográfica sobre estes homens. Gledhill oferece um vislumbre da influência de Washington na África ao relatar duas ocasiões em que lhe foi pedido para intervir em assuntos africanos. Representantes do governo colonial alemão solicitaram sua assistência na formação agrícola para a produção de algodão, e foi consultado sobre a escalada de tensões entre a comunidade repatriada afro-americana e as comunidades indígenas na Libéria. Gledhill lembra que Washington negociou bolsas de estudo para estudantes da Libéria, e também foi documentado que o Tuskegee registrou pelo menos um estudante do Togo. Isso abre a questão da imagem pública de Washington no mundo negro, que não foi desenvolvida por Gledhill. Em Forging Diaspora, citado por Gledhill, Frank Guridy documenta a relação que se desenvolveu entre Tuskegee e os filhos da elite negra de Cuba, e as formas como o poder do império moldou relações díspares entre negros estadunidenses e outros negros. Não só os estudantes afrocubanos frequentaram Tuskegee, como a sua filosofia ressoou profundamente entre os afro-cubanos, que fundaram um Instituto Booker T. Washington.5 Washington estava certamente interessado nas relações com outras comunidades negras, refletindo o emergente ativismo pan-africanista consolidado no Primeiro Congresso Pan-Africano de 1900. Em 1912, Washington acolheu uma Conferência Internacional sobre o Negro, em Tuskegee, com participantes dos Estados Unidos, Inglaterra, África, Caraíbas e América do Sul.6 Talvez o mais significativo em termos de impacto final tenha sido a impressão que ele causou no jovem Marcus Garvey, cuja mudança para os Estados Unidos foi expressamente para se encontrar com Washington. A UNIA de Garvey, primeira organização internacional de massas da diáspora africana, baseou-se profundamente na doutrina da autossuficiência de Washington.

Manuel Querino também foi moldado por suas circulações em espaços negros, embora, como para Washington, essas nem sempre fossem relações fáceis. Na verdade, Gledhill nos diz que “na sua vida, teve vários problemas, seja entre o operariado ou nas associações, o que lhe gerou muitos desafetos”. Ela não entra em detalhes sobre os desafios políticos que o levaram a perder a eleição para um segundo mandato no Conselho Municipal e, eventualmente, a abandonar definitivamente a política. Contudo, é no âmbito negro em que há muito mais a se aprender sobre Querino, e teria sido útil para Gledhill ter trabalhado mais detidamente com alguns dos detalhes valiosos da sua vida, particularmente como foi documentado por Wlamyra Albuquerque.

As minhas próprias pesquisas nos registros da Sociedade Protetora dos Desvalidos mostram que ele pode ter operado oportunisticamente com a instituição, reclamando benefícios por deficiência e sendo descoberto em perfeita saúde.7 No entanto, é igualmente importante que ele tenha decidido aderir a esta organização explicitamente negra, e convém notar a preponderância de artistas entre os seus membros. De fato, muitos dos membros também pertenciam à União Philantrópica dos Artistas, ao Montepio dos Artistas e ao Centro Operário, o que nos incentiva a pensar de que forma as organizações de raça e de trabalho se entrelaçavam e como se integraram na vida de Querino. Através da SPD, vemos outras redes; muitos membros eram ativos em irmandades, particularmente na Ordem Terceira de Nossa Senhora do Rosário, nos terreiros de candomblé e no tremendamente popular clube de carnaval Pândegos d’África.

Os Pândegos foram o segundo e, provavelmente, o mais popular dos clubes “africanos” que se tornaram sensação no carnaval de Salvador entre 1895 e 1904. Gledhill refere-se à afirmação de Manuel Querino de que os Pândegos faziam uma recriação fiel dos festivais africanos. No contexto da retórica da modernidade do Brasil republicano, em que Nina Rodrigues advertia publicamente sobre a ameaça dos negros na sociedade moderna, incluir nas festividades uma cerimônia religiosa africana (damurixá) e as canções e os instrumentos proibidos do candomblé foi uma forma de disputa política pelo espaço negro. Nina Rodrigues considerou isso uma “vingança dos negros fetichistas”.8 Do mesmo modo, as referências de Querino aos negros como “colonos” os colocava retoricamente em comparação com os recém-chegados imigrantes, afirmando seu papel essencial na formação do Brasil. Essa era também uma forma de intervenção nos debates sobre os termos da pertença negra. Querino, além disso, provavelmente fez pesquisa sobre o Rei Lobossi e outros personagens celebrados pelos Pândegos. Abriu seu capítulo sobre o carnaval em Costumes Africanos no Brasil com uma citação do diário de viagem de Alexandre de Serpa Pinto, de 1881, que menciona Lobossi como o Rei de Barôze, ou Lui.9 Esta investigação acadêmica incorporada nas canções populares de um grupo carnavalesco é significativa porque representava uma reivindicação não para a África dos seus antepassados, mas para a África contemporânea sob o colonialismo, uma preocupação mais vasta do pan-africanismo no mundo atlântico.

No entanto, há também questões que permanecem por explorar sobre o envolvimento de Querino em organizações negras. Depois de ter deixado caducar sua membresia na Sociedade Protetora dos Desvalidos, solicitou readmissão em 1892, mas lhe foi negada. Dado o cultivo da SPD de aliados políticos que lhe concediam isenções fiscais e, por vezes, apoio financeiro, é interessante que eles não acolhessem Querino numa altura em que ele estava mais próximo da política municipal. De fato, quando Querino solicitou, perfidamente, benefício por incapacidade, em 1896, alguns membros avisaram que Querino poderia se vingar, interrompendo o apoio financeiro que a Protetora recebia do governo. E foi o que aconteceu, embora a entidade não tivesse provas diretas do envolvimento de Querino com a questão. Para os Pândegos, também parece que a liderança de Querino em 1900 não trouxe muita sorte. Amplamente celebrados na imprensa desde a sua primeira aparição, em 1896, assim que Querino entrou em atividade, o clube deixou de desfilar até 1929.10

Isso nos leva a pensar, mais atentamente, nos detalhes das relações que Querino desenvolveu nos terreiros sobre os quais escreveu mais tarde. Foi nomeado ogã, um título muitas vezes dado estrategicamente às pessoas para contar com sua influência e proteção. Podemos pensar como ele lidou com as hierarquias religiosas em comparação com pessoas como Martiniano do Bomfim, um babalaô treinado com vasta experiência na África e seu colega nos Pândegos, a quem foi confiada a cerimônia de abertura do clube – a damurixá. Dada a sobreposição entre os terreiros e as outras associações negras com as quais Querino esteve envolvido, espera-se que futuras pesquisas possam revelar mais sobre como ele se movia nas delicadas relações do trabalho de campo como um dos primeiros etnógrafos negros a trabalhar dentro de suas comunidades de origem.

Os sujeitos da história tentam manter algum controle sobre as suas narrativas, esforço que Gledhill mostra nem sempre ter sido bem-sucedido, mas o silêncio é outra forma de controle que pode, de fato, ser mais difícil de romper. Apesar de tudo o que aprendemos sobre a vida pública de Washington e Querino, é interessante que estes homens ainda consigam manter alguns segredos e espaços privados. O começo de vida de ambos permanece envolto em mistério, que eles próprios poderiam ter ajudado a resolver. No entanto, é nas suas vidas adultas que esses espaços privados são ciosamente guardados. Os três casamentos de Washington, os filhos, a frequência nas igrejas negras e as redes sociais tê-lo-iam colocado dentro de espaços negros privados que lhe teriam proporcionado o contraponto psicológico e espiritual para a sua vida pública altamente escrutinada. Washington nunca revelou por que estava numa parte mal-afamada de Nova York na altura em que sofreu o ataque, por entre rumores de que estava a consorciar-se com mulheres brancas fora do seu casamento. Querino pouco informou sobre suas relações, muitas vezes conflituosas, e muito do que acontecia no espaço dos terreiros de candomblé em que circulou está escondido da vista do público. De toda a atenção às limitações do poder negro, o segredo foi um dos escudos originais disponíveis sob a escravidão, e sua utilidade aparentemente não foi esquecida após a abolição.

Apesar de suas consideráveis realizações, os dois homens sofreram nas mãos dos seus biógrafos, tema abordado no Capítulo 3. As duras críticas de Du Bois a Washington macularam para sempre sua reputação, sua biografia e, consequentemente, sua importância para as estratégias políticas afro-americanas no século XX. Ambos foram também tratados com condescendência por seus biógrafos. Vemos o orgulhoso Querino, que ministrava aulas, ocupava cargos políticos e circulava com brancos e negros influentes, constantemente referido como “humilde” ou “modesto”. Apesar dos seus muitos interesses, um jornal de Cachoeira trazia uma notável recordação unidimensional: “Operário nasceu, tornou-se operário e operário morreu” (p. 128). Outros descreveram-no como sendo jornalista, militante, intelectual, artista etc., mas foi mais valorizado postumamente como informante cultural. Durante muito tempo, os biógrafos mostraram-se relutantes em creditar Querino como o acadêmico que ele aspirava ser. Viam-no principalmente como um portador de cultura, ou informante cultural (p. 137), em vez de um intérprete, analista e etnógrafo.

Ao longo do tempo, tem havido alguma reabilitação de suas memórias. Gledhill menciona uma pesquisa mais recente sobre Washington que tenta compreendê-lo no contexto do seu tempo, embora uma redenção total ainda permaneça distante. Para Querino, Gledhill mostra a evolução da apreciação de suas contribuições, rastreando os prefácios de várias edições do seu trabalho. Na 2ª edição de Costumes africanos, lançada em 1988, Querino é retratado como um fundador da antropologia brasileira, e Thales de Azevedo credita a ele o uso de modernas técnicas de observação antropológica. Como Gledhill nos lembra, com o campo da Antropologia ainda na infância durante o tempo de Querino, todos os etnógrafos eram autodidatas e experimentais.

Gledhill dedica o capítulo final às notícias sobre Booker T. Washington na imprensa brasileira. Antes da tradução completa de Up from Slavery, o relato mais extenso de sua vida e obra foi a tradução seriada da resenha escrita pela aristocrata francesa Marie-Thérèse de Solms Blanc, publicada no Diário da Bahia, sob o seu pseudônimo T. H. Bentzon. Gledhill incluiu o texto completo no apêndice, um rico bônus ao livro. É interessante considerar esta resenha, que apareceu em 1902, juntamente com a crescente maré de críticas aos carnavais africanos e candomblés nas páginas da imprensa baiana naquela altura. A história de Washington poderia ter sido vista como um modelo alternativo de comportamento para os negros brasileiros? Graciliano Ramos traduziria Up From Slavery, em 1940, tomando largas liberdades com o texto. E ainda agravou o seu tratamento para com Washington, escrevendo posteriormente sobre ele com arrogância e desprezo, questionando até mesmo sua inteligência.

Embora Washington tenha recebido uma atenção considerável no auge da sua fama, Gledhill, utilizando a hemeroteca digital, registra um declínio gradual nas menções a ele na imprensa nacional brasileira. É lamentável que ela não inclua a imprensa negra na sua análise. Estudiosos encontraram mais de uma centena de notícias em jornais sobre Washington datados desde 1899, o que teria certamente repercutido numa imprensa profundamente interessada numa visão diaspórica da negritude. Na sua dissertação sobre Frederico de Souza Baptista, que foi muito ativo nas organizações negras e na imprensa negra no pós-abolição em São Paulo, Livia Tiede observa que Washington nunca sofreu uma perda drástica de prestígio, como aconteceu nos Estados Unidos.11 Em 1950, ele foi recordado positivamente, ao lado de Paul Robeson, George Washington Carver, Marian Anderson e W.E.B. Du Bois, nas páginas de Quilombo, a revista do TEN (Teatro Experimental do Negro), de Abdias do Nascimento (pp. 180-181).

Em Charisma and the Fictions of Black Leadership, Erica Edwards nos adverte de que as nossas tradições de história de “grande homem” podem limitar nossa plena apreciação de toda a gama da imaginação política e das possibilidades no Atlântico negro.12 Certamente, é importante considerar Washington e Querino no meio de muitas pessoas comuns, inclusive mulheres, também tentando definir estratégias nos anos que se seguem à abolição. No entanto, Gledhill nos lembra como eram verdadeiramente notáveis as vidas destes homens, e o quanto eles contribuíram para imaginar e defender o espaço negro nas suas sociedades pós-abolição. Igualmente esclarecedora é a forma como os seus legados continuam a evoluir nas mãos de seus biógrafos e no pensamento político negro.

Em Travessias no Atlântico Negro, Gledhill nos convida a pensar não só nessas figuras influentes no contexto transatlântico, mas também a refletir sobre o significado dessas vidas para diferentes gerações em diferentes momentos, à medida que todos continuamos a trabalhar em prol da promessa da abolição total.


Notas

1 Equiano, Olaudah, The Interesting Life of Olaudah Equiano, or Gustavus Vassa, The African https://www.gutenberg.org/files/15399/15399-h/15399-h.htm; Saidiya Hartman, Scenes of Subjection: Terror, Slavery and Self-Making in Nineteenth Century America, Nova York: Oxford University Press, 1997; Marisa Fuentes, Dispossessed Lives: Enslaved Women, Violence and the Archive, Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2015.

2 João J. Reis, Divining Slavery and Freedom: The Story of Domingos Sodré, An African Priest in Brazil, Cambridge: 2015; James Sweet, Domingos Alvares, African Healing, and the Intellectual History of the Atlantic World, Chapel Hill: UNC Press, 2011; João José Reis, Flávio Gomes e Marcus J. M. de Carvalho, The Story of Rufino: Slavery, Freedom and Islam in the Black Atlantic, Nova York: Oxford University Press, 2020; Lisa Earl Castillo e Luis Nicolau Parés publicaram vários artigos sobre a vida transatlântica de influentes líderes do candomblé baiano do século XIX. Ver, por exemplo, “Marcelina da Silva e seu mundo: novos dados para uma historiografia do candomblé ketu”, Afro-Ásia, n. 36 (2007), pp. 111-151.

3 Frank Guridy, Forging Diaspora: Afro-Cubans and African Americans in a World of Empire and Jim Crow, Chapel Hill: UNC Press, 2010, p. 18.

4 Julius Scott, The Common Wind: Afro-American Currents in the Age of the Haitian Revolution, Londres: Verso, 2018.

5 Guridy, Forging Diaspora, cap. 1.

6 Robert M. Park, “Tuskegee International Conference on the Negro”, The Journal of Race Development, v. 3, n. 1 (1912), pp. 117-120 https://www.jstor.org/stable/29737946?origin=crossref.

7 Kim D. Butler, Freedoms Given, Freedoms Won: Afro-Brazilians in Post-Abolition Sao Paulo and Salvador, New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 1998, pp. 164-165.

8 Wlamyra de Albuquerque, O jogo da dissimulação: Abolição e cidadania negra no Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 220.

9 Manuel Querino, Costumes Africanos no Brasil, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1938, p. 102; Kim D. Butler, “Masquerading Africa in the Carnival of Salvador, Bahia, Brazil 1895-1905”, African and Black Diaspora: na International Journal, v. 10, n. 2 (2017), pp. 203-227.

10 Albuquerque, O jogo da dissimulação, p. 222.

11 Livia Tiede, “União da Raça: Frederico Baptista de Souza e a militância negra paulista no Brasil pós-Abolição (1875 – 1960)”, Tese de Doutorado, Universidade de Campinas e Rice University, 2022. Tiede anota notícias sobre Washington que remontam a 1899 e continuam até a segunda metade do século XX.

12 Erica Edwards, Charisma and the Fictions of Black Leadership, Minneapolis: University of Minnesota Press, 2012.


Resenhista

Kim D. Butler – Rutgers University. https://orcid.org/0000-0002-8390-4114


Referências desta Resenha

GLEDHILL, Sabrina. Travessias no Atlântico Negro: reflexões sobre Booker T. Washington e Manuel R. Querino. Salvador: EDUFBA, 2020. Resenha de: BUTLER Kim D. Releituras críticas para a história do pós-abolição. Trad. da resenha Mariângela Nogueira. Afro-Ásia, n. 64, p. 740-759, 2021. Acessar publicação original [DR/JF]

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