Visões do tempo no medievo e a escrita da História/CLIO- Revista de Pesquisa Histórica/2022

No final do século XIX, ao criticar a linha de pensamento do positivismo, o filósofo Friedrich Nietzsche, em seu livro Aurora (1881), diz em seu aforismo de número 307: “Facta! Sim, facta ficta! [Fatos! Sim, fatos fictícios]. – Um historiador não se ocupa do que efetivamente ocorreu, mas dos supostos acontecimentos: pois apenas estes tiveram efeito. E, do mesmo modo, apenas dos supostos heróis. Seu tema, a assim chamada história universal (Weltgeschichte), são opiniões sobre supostas ações e os supostos motivos para elas, que novamente dão ensejo a opiniões e ações cuja realidade (Wirklichkeit) imediatamente se vaporiza e apenas como vapor tem efeito – uma contínua geração e fecundação de fantasmas, sobre as névoas profundas da realidade insondável. Os historiadores falam de coisas que jamais existiram, exceto na representação mental (Vorstellung)”1.

O início do século XXI será lembrado como o momento marcado justamente pelas construções de realidades ao estilo do que o filósofo alemão alertava, mas identificadas por termos mais atuais como “fake news” e “pós-verdade”. O campo das disputas políticas contemporâneas das décadas de 2000 e 2020 foram palco, de forma global, do avanço de tais ferramentas e a utilização da estratégia de construções de narrativas e boataria para atingir objetivos dos mais diversos. Fenômeno que já se encontrava presente mas talvez não tão claro ou com tamanha potência, em décadas anteriores. Um exemplo emblemático, na década de 1990, no Reino Unido, será quando Tony Blair e Gordon Brown tomam o controle do Partido Trabalhista – cuja vitória será considerada por críticos da época como o momento em que “matou-se o socialismo na Grã-Bretanha” – e a política deixa de ser liderada por ideologias, mas pela opinião pública; onde não eram mais importantes os atos políticos em si, mas como seriam divulgados pela imprensa.

O que parece algo recente ao grande público faz parte do ofício do historiador há décadas. Para citar apenas alguns nomes mais próximos à realidade da segunda metade do século XX e início do XXI, obras como as de Michel de Certeau, A Escrita da História (1975), de Eric Hobsbawm, Nações e Nacionalismos (1990), e de Patrick Geary, O Mito das Nações (2008), entre outras, a análise sobre as construções de narrativas históricas se tornou um campo de extrema importância dentro do ofício do historiador.

Seja para a compreensão das relações de alteridade entre as civilizações do Mediterrâneo Antigo ou para construção de identidades locais na Cristandade latina do medievo, compreender os nacionalismos da Europa do século XIX, ou ainda as apropriações do passado medieval por nossa contemporaneidade, o estudo da escrita da História se torna imprescindível. Régine Le Jan, em seu artigo de 2016, intitulado “O Historiador e suas Fontes: Construção, Desconstrução, Reconstrução”, reforça essa postura por parte dos pesquisadores sobre as múltiplas interpretações e reinterpretações que as fontes históricas podem receber em momentos diferentes e mesmo em curtos espaços de tempo.

Interpretações, reinterpretações ou apropriações que, extrapolando o âmbito acadêmico e se aliando a contextos políticos e midiáticos de naturezas diversas devem ganhar uma atenção mais especial por parte do historiador cada vez na atualidade. Especialmente quando envolvem processos de legitimação ideológica ou da moral vigente. Criando mitos modernos que merecem, senão a desconstrução, ao menos uma vivissecção.

No que concerne ao atual dossiê “Visões do tempo no Medievo e a escrita da história”, o mesmo buscou reunir trabalhos sobre a produção, interpretação, circulação, apropriação, compilação e recriação do passado do medievo. Para tanto, este número conta com artigos como “A cavalaria nas Crônicas da Batalha de Crécy (1346)” o de Ives Leocelso Silva Costa, no qual, ao observar o século XIV enquanto um período marcado por engajamentos bélicos expressivos, investiga a construção da imagem da cavalaria do século XIV, bem como seus valores relacionados aos feitos de armas da nobreza, nas crônicas do período.

Já no texto “A utilização do termo “patria” no passado medieval português: uma análise da Vida y Hechos Heroicos del Gran Condestable de Portugal”, Luciano Viana aborda de forma profunda e com muita propriedade o uso e a concepção do termo “pátria” voltado às narrativas do passado português do séculos XIV – XV.

No que ainda diz respeito ao medievo, o artigo “A Crônica da Irlanda entre tradições historiográficas, cronológicas e manuscritas (740 – 911)” de Kauê Junior Neckel, disserta sobre uma nova interpretação da obra Crônica da Irlanda em sua importância e mesmo sua existência para a escrita da história da época, bem como de que maneira a mesma está inserida no Anais Irlandeses.

Entre os artigos de temática mais ampla, o leitor encontrará trabalhos como “Dante Alighieri, historiador” de Eduardo Leite Lisboa, que se dedica a analisar a obra de Dante, a forma como o mesmo utiliza a história enquanto um recurso em suas obras e sua relação com o campo do pensamento político da Itália às vésperas do Renascimento e o de Thuyla Azambuja de Freitas, “As pinturas de infâmia e a estética da suspensão: corpos retratados pendurados por pintores dos séculos XII ao XV”, no qual desenvolve uma análise de corpos expostos pendurados como alegorias do inferno, a partir de fontes imagéticas de pintores dos séculos XII ao XV.

Isso posto, consideramos que os artigos aqui selecionados, a partir de suas temáticas específicas, têm bastante a contribuir para os Estudos Medievais no Brasil, evidenciando que, as pesquisas aqui organizadas, ofertam discussões profícuas a respeito das diferentes concepções de tempo, história e narrativa no medievo.


Nota

1 NIETZSCHE, Friedrich. Aurora. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.


Referências

CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982.

GEARY, Patrick. O Mito das Nações: A invenção do Nacionalismo. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2005.

HEN, Yitzhak and INNES, Matthew. The Uses of the Past in the Early Middle Ages. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.

HOBSBAWM, Eric J. Nações e Nacionalismo desde 1780. Programa, mito e realidade. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2008.

LE JAN, Régine. “O historiador e suas fontes: construção, desconstrução, reconstrução”. In: Signum – Revista da ABREM. v. 17, n.1. p.5-26.


Organizadores

Elton Oliveira Souza de Medeiros – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Substituto na área de História Antiga e Medieval da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). E-mail: [email protected]  ORCID: 0000-0002-9901-014X

Isabela de Albuquerque Rosado do Nascimento – Doutora em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é Professora Adjunta de História Medieval e Ensino de História Medieval na Universidade de Pernambuco/Campus Garanhuns. E-mail: [email protected]  ORCID: 0000-0003-1445-2895


Referências desta apresentação

MEDEIROS, Elton Oliveira Souza de; NASCIMENTO, Isabela de Albuquerque Rosado do. Apresentação. CLIO- Revista de Pesquisa Histórica. Recife, v. 40, n. 2, p.1-4, jul./dez. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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