O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo | Leandro Pereira Gonçalves

Leandro Pereira Goncalves Imagem Arquivo pessoalBBC News Brasil
Leandro Pereira Gonçalves | Imagem: Arquivo pessoal/BBC News Brasil

O historiador dos fascismos históricos tem uma dupla dificuldade em tratar dos neofascismos, uma de ordem moral, outra de ordem teórica. Sobre a primeira – e em vista das sucessivas ondas de neofascismos do mundo posterior à Segunda Guerra – paira a pergunta: o que fazer quando a sensação de déjà-vu se apresenta para a sociedade? Inevitavelmente, ela se volta para aqueles que ela entende como os ‘guardiões do passado’, requerendo explicações sobre o fenômeno reincidente. No que concerne à segunda ordem de dificuldades, é certo que um dos mandamentos do historiador é ‘não farás pontes entre passado e presente em vão’. Se isso está correto, é certo também que aos historiólogos é imputada a obrigação de explicar o passado à luz do presente e o presente à luz do passado, numa espécie de retroalimentação.

Embora escoimados de certos rigores da ‘cenografia’ acadêmica, os autores de O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo, apresentam à sociedade algumas pontes entre passado e presente que estão longe de serem vãs. Na obra publicada pela Editora da Fundação Getúlio Vargas (2020), os dois especialistas no campo dos ‘estudos verdes’ (um do campo dos fascismos históricos, outro dos neofascismos) juntaram forças numa tentativa, bem-sucedida, em nosso julgamento, de demonstrar o quão perigoso é enterrar o conceito de fascismo em 1945, abandonando, assim, o olhar fenomenológico. Nosso argumento ficará mais claro ao longo desta avaliação crítica.

A começar pelo prefácio fora dos cânones, assinado pelo jornalista Octávio Guedes, o livro de Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto busca alcançar um público não acadêmico, embora os universitários, sem dúvida, possam se valer da obra a título de leitura inicial. O livro apresenta quatro capítulos, com apenas um destinado ao integralismo ‘histórico’, aquele que dividiu com Hitler, Mussolini, Mosley, Rolão Preto etc. o desejo de um mundo livre do Iluminismo e seus resultados políticos e sociais, durante a década de 1930. Os outros capítulos tratam da longa trajetória do ideário integralista, da clandestinidade e exílio, nos tempos de Estado Novo (1937-1945), aos novíssimos projetos integralistas associados à maré de extrema direita que o Brasil vive, desde aproximadamente 2013. A assustadora linha de continuidade das ideias e instituições integralistas, antes de demonstrar força política institucional, nos períodos posteriores a 1945, indica mais a presença perene de uma cultura política conservadora na sociedade tupiniquim, que, hora ou outra, flerta com a fronteira que separa os fascismos dos conservadorismos tradicionais: a revolução social (e moral) fascista.

Que não nos engane o número de páginas dedicadas: a Ação Integralista Brasileira original (1932-1937) foi o momento máximo da proximidade do fascismo com o poder no Brasil e o texto dos professores da UFJF deixa isso claro no capítulo 1, intitulado “A formação do Sigma: a Ação Integralista Brasileira”. Com uma escrita fluida e bem embasada na historiografia do integralismo, o capítulo apresenta a trajetória da AIB do “plantio da semente”, na mente de Plínio Salgado, escritor e político líder do movimento, até sua prisão e exílio em meados de 1939, evento que provoca a primeira grande desestruturação interna na grei verde. O capítulo apresenta de forma didática, às vezes um tanto simplificada – embora condizente com o escopo da obra – a ideologia, os ritos, a estrutura organizacional, as vitórias e derrotas eleitorais e os conflitos que levaram à derrocada do movimento, sob ditadura de Getúlio Vargas.

Não sem uma pitada de sarcasmo e cotidiano, a AIB é apresentada “nua e crua”, com suas contradições, exageros, acasos e a desorganização que levou ao fatídico putsche do Palácio Guanabara e suas consequências desastrosas para o movimento. Destaca-se, ainda, sobre o primeiro capítulo, que o texto nos permite uma imersão no clima hostil da militância dos anos 1930, entre fascistas e antifascistas, estes últimos representados pela Aliança Nacional Libertadora, com destaque para a minuciosa narrativa em torno da Batalha da Praça da Sé, de 7 de outubro de 1934.

Incomoda-nos um pouco a insistência no conservadorismo da AIB como elemento definidor do fascismo brasileiro, como sustentado na frase que se segue e que se refere à tríade de líderes camisas-verdes (Plínio Salgado, Gustavo Barroso e Miguel Reale): “o que os unia, sem dúvida, era o conservadorismo e a atuação política” (GONÇALVES; CALDEIRA NETO, 2020, p. 24). O que define a AIB como um fascismo é também o que a distingue de outras formas de conservadorismo. Todo fascismo tem um pé no passado, mas almeja uma revolução cultural futura, um recambio estrutural das bases da organização e da mentalidade das sociedades (GRIFFIN, 1991). Não obstante, compreendemos a insistência, uma vez que o caldo de cultura política sobre o qual o integralismo se erigiu exigia a ênfase no “retorno”, contra o avanço do mundo moderno cosmopolita, sem moral e – talvez o mais importante para o fascismo brasileiro – sem Deus, já que a AIB era um fascismo católico.

O capítulo 2, sob o título “O integralismo entre a democracia e a ditadura”, apresenta os rumos do integralismo após a dissolução e repressão do Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945), algo que às vezes se confunde com a trajetória de seu líder exilado em Portugal, desde junho de 1939. O texto, nesse ponto, é rico em detalhes da vida de Salgado em terras lusitanas: é abordada a dedicação aos estudos e conexões com os meios conservadores católicos portugueses, bem como a busca quase que desesperada por uma alternativa para a volta ao Brasil. Uma das esperanças nutridas por Plínio, inclusive, foi a aproximação com os nazistas, a partir da constatação do avanço do Eixo na Segunda Guerra. O livro apresenta evidências fortes de encontros de Salgado com enviados do Reich, embora, ao cabo, a conexão tenha caído na malha fina da repressão salazarista. Malgrado o malogro das esperanças, segundo os autores, o período do exílio foi fundamental para amalgamar outra formatação política para o integralismo no pós-guerra, que vai se materializar no PRP (Partido de Representação Popular), um partido embasado no conservadorismo cristão conservador que escondia “a doutrina integralista e a tônica fascista” (GONÇALVES; CALDEIRA NETO, 2020, p. 76).

O livro mostra como o PRP foi fundado das cinzas da AIB, com ordens expressas de Salgado quanto ao mascaramento dos cacoetes fascistas (camisas, gritos etc.), embora mantendo intocados os princípios conservadores e certa ritualística. Durante o período do PRP, a chave para o entendimento da conturbada relação de Plínio com os militantes históricos da falecida AIB, nos quais ele mesmo insuflou a paixão fascista, é a necessária política de alianças, à qual o novo partido se abriu. Isso cheirava a traição para alguns radicais de primeira hora, que entraram em êxtase nas eleições de 1955 para presidente, quando Salgado saiu sozinho como candidato e, mais ainda, quando o partido decidiu retomar a simbologia integralista após o pleito. O imbróglio fica maior, como mostra o texto, já que o PRP conseguiu costurar uma aliança com Juscelino Kubitschek em troca de cargos. No final, a política de alianças sempre vencia e foi ela que permitiu a ascensão de uma bancada do PRP na Câmara Federal, nas eleições de 1958. À sombra do poder e à espera de migalhas, o livro mostra como os integralistas participaram do Golpe Civil-Militar que depôs João Goulart em 1964, para depois do AI-5 integrarem discretamente o ARENA. Mostra ainda que algumas figuras de destaque do alto escalão dos governos militares haviam vestido a camisa verde no passado (sobretudo militares), porém, isso não significou algum tipo de conversão ao integralismo. O capítulo se encerra com os eventos que circundam o fim da carreira política e a morte de Plínio Salgado, em 1975.

O capítulo seguinte, “A morte de Plínio Salgado e a origem do neointegralismo”, apresenta os tortuosos caminhos e os múltiplos renascimentos do integralismo, após o abalo sísmico da passagem de Salgado para a Milícia do Além (como o integralismo chamava o paraíso). Plínio não era, para os integralistas, substituível, mas havia certo consenso entre eles de que o ideal verde não deveria ser sepultado com o chefe. A trajetória é tortuosa, contando desde a iniciativa de familiares, passando por integralistas históricos, até os ‘novos’, no sentido duplo da palavra (neointegralistas e o jovens que não tiveram contato com Plínio). Até 2001, como mostra o texto, mais de uma dezena de instituições, muitas conflitantes, disputaram a memória e o posto de guardiões do sigma. A expressão mais “barulhenta” foi representada pela “Ação Integralista Brasileira” de 1987, liderada pelo excêntrico Anésio de Lara Campos Junior, que se distanciou relativamente dos militantes históricos e da família Salgado, ao mesmo tempo em que flertou com a violência de rua, associando-se a skinheads e a neonazistas, em plena redemocratização do país. Nesse ponto, o texto é preciso e minucioso em mostrar a carreira midiática que Lara Campos fez, forçando a associação – não desejada por todos os integralistas – com o nazismo e o racismo escancarados. Isso, no limiar do século XX, se desdobrou em um campo de disputas entre neointegralistas “conservadores”, que se expressavam pela figura de Marcelo Mendez, e “radicais”, seguidores das posturas de Campos Junior (GONÇALVES; CALDEIRA NETO, 2020, p. 152).

O quarto e último capítulo versa sobre os mais recentes expoentes do neointegralismo, fundamentalmente escorados na internet, como o próprio título sugere: “O neointegralismo no século XXI: das redes sociais à violência política”. Além das entranhas da militância institucional e virtual – esta última por meio da conivência das redes sociais com a intolerância -, o texto explora a recente radicalização dos novos camisas-verdes no contexto de ascensão de políticos ultradireitistas conservadores no Brasil recente. O livro mostra que, mais uma vez, a multiplicidade de aproximações com o legado integralista é marca no movimento dos neo no início do século XXI: de ‘simples’ cultivadores a da memória a antissemitas radicais, os vários integralismos disputaram espaço, com destaque para dois grupos, o Movimento Integralista e Linearista Brasileiro e a Frente Integralista Brasileira.

A escalada de radicalismo e os espasmos de violência dos neointegralistas, entre a campanha para o segundo turno e a posse de Jair Bolsonaro, são um avanço temporal arriscado, mas necessário. Muito embora pensemos que essas relações serão mais bem explicitadas em um futuro, já que estamos imersos em tal contexto, o livro cumpre a função, quase que jornalística, de apontar os riscos de um clima de licenciosidade para a violência de extrema direita na atualidade. O que o comprova? O atentado à bomba no estúdio da produtora Porta do Fundos, em 24 de dezembro de 2019, reivindicado imediatamente por um grupo neointegralista e de autoria comprovada do presidente da Frente Integralista Brasileira do Rio de Janeiro. O que atesta que os autores tocaram em questões fulcrais da extrema-direita brasileira é que sofreram ameaças de violência física do próprio autor do crime contra a produtora, antes de ele ser preso em Moscou pela Interpol1. Assim, o livro termina sugerindo que a violência pode ser agora e num futuro incerto o caminho de novas gerações do integralismo se permanecer o clima de hostilidade contra a diversidade instaurado no país.

Desde suas primeiras páginas o livro faz uso da fotografia, ainda que apenas de caráter ilustrativo, algo que não é incongruente com os objetivos dos autores. Uma ressalva, no entanto, merece ser feita quanto à ausência de datação nas imagens, o que impede a compreensão do uso da própria ilustração em alguns casos. No mesmo sentido e mesmo reconhecendo que se trata de uma obra situada aquém de certos cânones da academia, salta aos olhos a carência de referências, mesmo em citações documentais diretas. Tal crítica, que pode ser lida como apego à “liturgia ABNTista”, não desmerece o conteúdo do trabalho.

Em suma, a historiografia do integralismo ganha uma importante obra que nos possibilita pensar os problemas do presente, à luz do passado e vice-versa. Como na transição da Ação Integralista Brasileira para o Partido de Representação Popular, temos assistido ao dilema de um grupo, avesso às regras do jogo, que chegou ao poder e precisa se adequar à lógica da democracia parlamentar. Tecer alianças, por exemplo, foi como cortar na própria carne para alguns militantes mais radicais e que haviam experimentado o êxtase do radicalismo no auge do movimento camisa-verde. Hoje, o radicalismo no poder se equilibra entre os contrapesos da democracia e testa seus limites, uma vez que não reconheço o valor de seus princípios. Eis apenas um exemplo da atualidade da obra.

Nota

1 ANTES de ser preso, Eduardo Fauzi ameaçou pesquisadores. Revista Época Online, 5 set. 2020. Disponível em: https://epoca.globo.com/antes-de-ser-preso-eduardo-fauzi-ameacou-pesquisadores-1-24624798 . Acesso em: 2 nov. 2020

Referências

GRIFFIN, Roger. The Nature of Fascism Londres: Pinter Publishers, 1991.

GONÇALVES, Leandro Pereira; CALDEIRA NETO, Odilon. O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2020.


Resenhista

Rafael Athaides – Professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, E-mail: [email protected]  ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3647-0509


Referências desta Resenha

GONÇALVES, Leandro Pereira; CALDEIRA NETO, Odilon. O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2020. Resenha de: ATHAIDES, Rafael. O integralismo entre o passado e o presente. Topoi. Rio de Janeiro, v. 23, n. 50, maio/ago. 2022. Acessar publicação original [DR]

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