Pandemia cristofascista | Fábio Py

Fabio Py Imagem CONIC
Fábio Py | Imagem: CONIC

Quando o presidente de um país, cujos mandatários há décadas não ousam descuidar do eleitor religioso, precisando também lidar com uma crescente bancada evangélica, usa o termo “cristofobia” em discurso diante da Organização das Nações Unidas – ONU, é sinal de que a religião ali não pode ser um tema menor na escrita da História atual. Pelo menos desde as últimas duas décadas do século XX enchendo estádios, templos e urnas, o movimento evangélico no Brasil, todavia, tem participação no curso dos acontecimentos da nossa contemporaneidade desproporcional à atenção que lhe tem sido dedicada pela academia. O livro Pandemia cristofascista, do teólogo Fábio Py, pode ser visto como um alerta sobre o custo que temos pago pela falta de compreensão deste fenômeno.

Trabalho sucinto, cujo eixo principal é a análise da “unção” conferida ao presidente Jair Bolsonaro por líderes das maiores organizações evangélicas do país durante a semana da Páscoa de 2020, o opúsculo divide-se em quatro seções. São elas: introdução; histórico e crítica da Frente Parlamentar evangélica (mais conhecida como “bancada evangélica”); estudo do processo de construção de uma imagem santificada do presidente da República em meio à escalada da pandemia de Covid-19; e conclusão, onde o comportamento dos líderes religiosos que contribuíram para a minimização da crise sanitária de 2020 é criticamente contraposto ao que seria esperado de sacerdotes genuínos, segundo o livro bíblico Levítico. Leia Mais

O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo | Leandro Pereira Gonçalves

Leandro Pereira Goncalves Imagem Arquivo pessoalBBC News Brasil
Leandro Pereira Gonçalves | Imagem: Arquivo pessoal/BBC News Brasil

O historiador dos fascismos históricos tem uma dupla dificuldade em tratar dos neofascismos, uma de ordem moral, outra de ordem teórica. Sobre a primeira – e em vista das sucessivas ondas de neofascismos do mundo posterior à Segunda Guerra – paira a pergunta: o que fazer quando a sensação de déjà-vu se apresenta para a sociedade? Inevitavelmente, ela se volta para aqueles que ela entende como os ‘guardiões do passado’, requerendo explicações sobre o fenômeno reincidente. No que concerne à segunda ordem de dificuldades, é certo que um dos mandamentos do historiador é ‘não farás pontes entre passado e presente em vão’. Se isso está correto, é certo também que aos historiólogos é imputada a obrigação de explicar o passado à luz do presente e o presente à luz do passado, numa espécie de retroalimentação.

Embora escoimados de certos rigores da ‘cenografia’ acadêmica, os autores de O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo, apresentam à sociedade algumas pontes entre passado e presente que estão longe de serem vãs. Na obra publicada pela Editora da Fundação Getúlio Vargas (2020), os dois especialistas no campo dos ‘estudos verdes’ (um do campo dos fascismos históricos, outro dos neofascismos) juntaram forças numa tentativa, bem-sucedida, em nosso julgamento, de demonstrar o quão perigoso é enterrar o conceito de fascismo em 1945, abandonando, assim, o olhar fenomenológico. Nosso argumento ficará mais claro ao longo desta avaliação crítica. Leia Mais

O ódio como política: A reinvenção das direitas no Brasil | Esther Solano Gallego

Ester Solano Imagem Nocaute
Ester Solano | Imagem: Nocaute

No dia 8 de outubro de 2018, entre o primeiro e o segundo turnos da eleição presidencial brasileira, a editora Boitempo liberou gratuitamente o e-book O ódio como política: A reinvenção das direitas no Brasil, organizado pela socióloga Esther Solano Gallego, com o objetivo e “ajudar a compreender” como havíamos chegado à situação na qual o retrógrado Jair Bolsonaro estava à frente nas pesquisas e com grandes chances de vencer a eleição. Às vésperas de um novo certame, em junho de 2022, as preocupações com as ameaças (algumas delas já concretizadas) à democracia brasileira, as teses, as propostas de resistência ao “fascismo” comunicadas naquele livro permanecem na “ordem do dia”. Por essa razão, revisitaos a obra tantas vezes resenhada para reavivar as suas assertivas.

O odio como politicaOs 22 autores que compõem o projeto são, em maioria, professores universitários brasileiros das áreas das ciências humanas e sociais, ativistas e cartunistas e um religioso identificados com o campo progressista. Todos contribuem para o cumprimento da meta do livro, descrita por Gallego: “aprofundar-se nas complexas dinâmicas das direitas desde diversos pontos de vista e análises”. Se quisermos de fato lutar contra as direitas, continua a organizadora, “com frequência antidemocráticas e retrógradas, devemos primeiro observar, escutar, enxergar a realidade e entendê-la para depois combatê-la. Não sabemos tudo. Aprendamos juntos.” (p.8). [i]

Para iniciar o aprendizado, compreendamos que as “direitas” às quais o título da obra se refere são plurais na terminologia. Os autores a tratam como “conservadorismo radical”, “direita”, “direita radical”, “extrema direita”, “grupos de direita”, “nova direita” e “novas direitas”. Abordadas, em sua maioria, como lideranças políticas, partidos políticos, movimentos e instituições da sociedade civil, as direitas nascem nos anos 80, a partir da reorganização “das classes dominantes”, representadas em várias instituições de pesquisa e financiamento (think thanks), como também das ameaças sofridas por essas classes médias em suas “oportunidades”, da conjunção de identidades e da conjuntura propiciada pelas redes sociais e internet, já nos anos 2000/2010.

Alguns autores destacam o caráter militante desses grupos (ao contrário do caráter financiado desses grupos), o transbordamento dessa militância para além dos partidos, alcançando editoras, movimentos e grande mídia, marcando a sensibilidades de jovens da periferia que passaram literalmente da esperança dos anos de crescimento econômico à indignação com a indiferença do Estado em termos de segurança e oportunidades, por exemplo. Outros ainda ressaltam as consequências que essas direitas de orientação militarizadas trouxeram à vida dos negros, dos pobres, das mulheres e das pessoas GLBTI. A “democracia, os direitos humanos, ao Estado laico e à diversidade humana”, segundo um desses autores, foram as principais vítimas dos fundamentalismos e extremismos advindos das novas direitas.

O diagnóstico está presente na maioria dos textos, enquanto as declarações propositivas são minoritárias. Como sair dessa situação? Em geral, estudar, denunciar, protestar são as medidas. Apenas um se engaja em solução radical: transformar “as condições socioeconômicas que lhe fornecem a base material” (p.35).

No que diz respeito ao espírito deste dossiê de Crítica Historiográfica, vale destacar as ideologias atribuídas às novas direitas brasileiras. Se hoje, autores divergem nos critérios de classificá-las e nos termos empregados para as designações, imaginem há quatro anos. Os autores agrupam os mesmos étimos de modo diferente, embora na maioria das combinações o libertarianismo esteja presente: “libertarianismo” (ultraliberalismo), “fundamentalismo religioso” (antiaborto, homofobia) e “anticomunismo”; “libertarianismo”, “monetarismo” (Chicago) e “neoliberalismo” (Áustria); “libertarianismo”, “conservadorismo” e “reacionarismo”; “libertarianismo”, “fundamentalismo religioso” e “anticomunismo”; “fundamentalismo religioso cristão” e “extremismo religioso cristão” (que ganham a forma de “protofascismo”).

Autores também significam as palavras de modo diferente e até divergente. Eles afirmam que os “conservadores” são os mais aguerridos combatentes da (falsa) “ideologia de gênero”; que o “conservadorismo radical” (mapeado nas redes sociais) divide brasileiros em “pessoas de bem” e “vagabundos”, ou seja, denunciam esse segundo tipo como humanos de comportamento desviante, resultantes de uma educação equivocada e do culto aos direitos humanos, que corrompem a inocência das crianças, cujo líder é Lula e os instrumentos são movimentos sociais, sindicatos e Supremo Tribunal Federal. Eles afirmam, por fim, que a ideologia das novas direitas pode ser sintetizada na ameaça do “inimigo interno”, sobrevivente do Discurso de Segurança Nacional dos tempos da ditadura, na reação ao estado de bem-estar social (neoconservadorismo) e na implantação de políticas de “austeridade” (neoliberalismo).

No que diz respeito especificamente ao lugar do direito, três textos se destacam. Dois deles tratam de direitos de grupos determinados e um da ação do poder judiciário. Em “Precisamos falar da ‘direita jurídica’”, Rubens Casara denuncia o “populismo jurídico” e o “ativismo jurídico” como ameaças à democracia, assim como os operadores do direito que interpretam as leis ao modo conservador e neoliberal, ou seja, que concebem o poder judiciário como “um mero homologador das expectativas do mercado” ou “instrumento de controle tanto dos pobres […] quanto das pessoas identificadas como inimigos políticos do projeto neoliberal” (p.92)

Precisamos falar da direita juridica Imagem UOLCULT

Precisamos falar da direita jurídica | Imagem: UOL/CULT

Dos dois que tratam de grupos, o primeiro descreve ações dos fundamentalistas aos “direitos LGBTI” na Constituinte de 1988 (orientação sexual) e no parlamento, de 2006 a 2015 (anti-homofobia, união estável de pessoas do mesmo sexo e identidade de gênero). “Moralidades e direitos LGBTI nos anos 2010”, de Lucas Bulgarelli, põe formalmente os direitos LGBTI e os direitos humanos em posições separadas, ambos combatidos pelos conservadores. O segundo texto – “Feminismo: um caminho longo à frente”, de Stephanie Ribeiro –, denuncia a negação do “direito ao aborto seguro e legal” (de modo direto pela direita e indireto pela esquerda) e a vertente feminista de orientação “liberal”. Segundo a autora, trata-se de “um feminismo sem comprometimento com outras mulheres […] ou que não precisa ter um posicionamento político […] pautado em ascensão individual e não em rompimento com estruturas opressoras” (p.133)

Apesar dos esclarecimentos, das denúncias e alertas, a coletânea não está isenta de afirmações controversas e/ou usos equivocados de conceitos. Duas delas chamam a atenção pelo primarismo: a inclusão do conservadorismo (uma macro ideologia) em pé de igualdade com o neoliberalismo, por exemplo, a afirmação de que a defesa do estado de direito é uma “reivindicação conservadora” que serve ao capital. Outras não menos inquietantes são: a admissão da existência de “neoliberais de esquerda”; a declaração de que o Ministério Público foi partícipe de todos os golpes de Estado; que o neoliberalismo” e a “nova direita” são ideais antagônicos; e que a esquerda liberal e neoliberalismo progressista são ideais sinônimos.

Usos equívocos que merecem a atenção do leitor são a tomada do fundamentalismo como fundamentalismo religioso, a definição de extremismo como uso de violência, sem a respectiva definição de violência; e o emprego de “feminismo liberal” com o sentido de feminismo neoliberal.

O grande termo ausente, porém, é o “ódio”, que está no título do livro e na apresentação da editora. Ele aparece (antifeminista e pró segurança pública) tangencialmente como o par oposto da esperança (orçamento participativo e bolsa família) entre os jovens pobres de Porto Alegre, o ódio às minorias, disparado pelas “classes dominantes” (FHCC), o discurso de ódio experimentado pelos pobres, diante da falta de “dignidade” resultante da crise econômica (F), o ódio ao pensamento livre disparado pelos reacionários contra os professores pelo ESP (FP), demonstrando que não é sentimento de esquerda ou de direita (contraditando, de certo modo, o que sugere a designação da obra).

As ausências e as situações controversas, ao contrário de borrarem a obra, somente reforçam a importância da sua leitura. Para profissionais do direito, principalmente, o livro pode auxiliar na mudança de sensibilidade dos apartidários e imparciais “operadores” para as causas das mulheres e da população LGBTQIA+. Para os professores de História, o livro serve duplamente: como testemunhos dos anos quentes do golpe e da campanha eleitoral de 2018 e como roteiro de para a ação, seja no planejamento da formação continuada, seja na orientação da ação no interior da escola. Aliás, os objetivos anunciados pela organizadora (e cumpridos com sobras) são em si mesmos pragmáticos e beneméritos: “observar, escutar, enxergar a realidade e entendê-la para depois combatê-la.” (p.9).

Sumário de O ódio como política: A reinvenção das direitas no Brasil

Prólogo | Gregório Duvivier

Apresentação | Esther Solano Gallego

  • A reemergência da direita brasileira | Luis Felipe Miguel
  • Neoconservadorismo e liberalismo | Silvio Luiz de Almeida
  • A nova direita e a normalização do nazismo e do fascismo | Carapanã
  • As classes dominantes e a nova direita no Brasil contemporâneo | Flávio Henrique Calheiros Casimiro
  • O boom das novas direitas brasileiras: financiamento ou militância? | Camila Rocha
  • Da esperança ao ódio: a juventude periférica bolsonarista | Rosana Pinheiro-Machado e Lucia Mury Scalco
  • Periferia e conservadorismo | Ferréz
  • A produção do inimigo e a insistência do Brasil violento e de exceção | Edson Teles
  • Precisamos falar da “direita jurídica” | Rubens Casara
  • O discurso econômico da austeridade e os interesses velados | Pedro Rossi e Esther Dweck
  • Antipetismo e conservadorismo no Facebook | Márcio Moretto Ribeiro
  • Fundamentalismo e extremismo não esgotam experiência do sagrado nas religiões, Henrique Vieira
  • Moralidades, direitas e direitos LGBTI nos anos 2010 | Lucas Bulgarelli
  • Feminismo: um caminho longo à frente | Stephanie Ribeiro
  • O discurso reacionário de defesa de uma “escola sem partido” | Fernando Penna
  • Sobre os autores
  • Charges

Resenhista

Lucas MirandaLucas Miranda Pinheiro é Doutor em História (UNESP/Franca), professor do Departamento de Relações Internacionais (DRI) e do Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória) da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Entre outros trabalhos, publicou (em coautoria) Perspectivas e Debates em Segurança, Defesa e Relações Internacionais e Relações Internacionais: Olhares Cruzados. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6576943412041943; Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4821-0168; E-mail: [email protected].

 


Para citar esta resenha

GALLEGO, Esther Solano. O ódio como política: A reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. 133p. Resenha de: PINHEIRO, Lucas Miranda. Bolsonarismo à direita? Crítica Historiográfica. Natal,.2, n. esp. (Novas Direitas em discussão), ago. 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/um-elemento-ausente-resenha-de-o-odio-como-politica-a-reinvencao-das-direitas-no-brasil-organizado-por-esther-solano-gallego/>.

Como travar o fascismo. História, Ideologia, Resistência | Paul Mason

Paul Mason Foto Antonio Zazueta Olmos 2
Paul Mason | Foto Antonio Zazueta Olmos

O músico e politólogo Paul Mason, além de professor convidado na Universidade de Sheffield, na Inglaterra, atuou como jornalista em diversos meios de comunicação, do The Guardian ao Channel 4. Com diversos livros publicados, quase todos best-sellers no mercado editorial europeu e estadunidense, ficou amplamente conhecido pelos livros Pós-Capitalismo: Guia para o Futuro (2016) e Um Futuro Livre e Radioso (2019). Sua vida pública está envolta em controvérsias, dentre elas a defesa à política do aborto, no Reino Unido, e a declaração de que as políticas reprodutivas não deveriam ser ditadas pelo Vaticano. Mason foi também acusado de antissemitismo por ser membro de um grupo numa rede social que compartilhava postagens contra a comunidade judaica. Em sua defesa, alegou que embora fosse membro do grupo nas redes não endossava suas publicações. Seu novo livro – Como travar o Fascismo: História, Ideologia, Resistência, escrito no período de restrições impostas pela pandemia da Covid-19, foi originalmente publicado no final de 2021 e teve sua versão para português de Portugal lançada em abril de 2022.

Como travar o FascismoA obra foi clamada por pensar ações práticas para combater o avanço do fascismo, caso raro entre as publicações sobre a matéria. O livro de Mason acaba por ser um manifesto político, com forte posicionamento sobre questões transnacionais como a necessidade de união entre a esquerda e o centro político para frear o avanço da escalada autoritária e fascistizante em vários lugares do mundo. Ele retoma a discussão weberiana sobre o monopólio do uso da força e questiona o que faz a sociedade civil quando a extrema-direita quebra esse paradigma, corroendo um dos princípios legitimadores do Estado moderno. Apresenta uma preocupação efetiva sobre as formas e mecanismos de revigorarmos as democracias num momento em que a questão da corrupção e da desilusão da sociedade civil para com elas torna-se latente. Tudo isso escrito em  linguagem simples, com usos massivos de adjetivos e forte apelo com frases em destaque, mas com grande embasamento de bibliografia clássica e alguma atualização historiográfica, por mais que nomes importantes na discussão sobre essa temática hoje não estejam presentes em suas referências. Leia Mais

Las nuevas caras de la derecha | Enzo Traverso

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Enzo Traverso | Foto: ULF Andersen/Gamma-Rapho/Getty/O Globo

O que me levou a ler o livro de Enzo Traverso não foi apenas o título referente a esse dossiê de resenhas sobre “novas direitas”. O fato de ele ser um dos poucos historiadores de ofício a estudarem o fenômeno e de fazê-lo com ferramentas típicas de historiador – a categoria “regimes de historicidade” – foi o que pesou na escolha. Las nuevas caras de la derecha (2021) é a tradução argentina de Les nouveaux visages du fascisme (2017). O título em francês retrata com maior fidelidade o conteúdo desse livro do historiador italiano, atuante na Holanda, França e nos Estados Unidos da América (EUA): a narrativa do processo de transição do fascismo ao pós-fascismo, vivenciada por europeus e estadunidenses nos últimos vinte ou trinta anos, e comunicada imediatamente após atentados terroristas na França, como o massacre do Charlie Hebdo.

Las nuevas caras de la derecha 2O livro é um agregado de entrevistas concedidas ao antropólogo Régis Meyran, em Paris (2016), sobre temas correlatos, atravessados pelo conceito de “pós-fascismo”. O prólogo à edição castelhana, contudo, é inteiramente dedicado a outro conceito: “populismo”. As constantes referências à expressão durante as entrevistas e forte apelo dos estudiosos de Filosofia e História Política ao conceito (em sua visão, já enfraquecido academicamente) levaram-no, provavelmente, a dispender duas páginas para diferenciar populismo e “tendências regressivas solidamente arraigadas” na Europa e nos EUA no século XXI.

Na tipologia, curiosamente, Traverso o reintegra como categoria, quando afirma que o populismo argentino e peronista (nacionalista, messiânico, carismático, autoritário e idealizador do povo) difere dos “populismos reacionários” estadunidense (D. Trump) e francês (M. Le Pen e E. Macron). O primeiro distribui riqueza entre os pobres e os insere no sistema democrático. Os segundos são orientados pela entrega da nação “las fuerzas impersonales del mercado”. (p.21). O primeiro, acrescentamos, foi gestado no imediato pós-guerra em mundo bipolar. O segundo, reitera o autor, foi gestado na “era da globalização neoliberal”. O primeiro, por fim (como vários movimentos políticos do século XIX), pode continuar a ser designado “populismo”. O segundo, entretanto, deve ser tipificado como “pós-fascismo”.

O primeiro capítulo do livro – “¿Del fascismo al posfascismo” – é dedicado à definição dessa nova categoria. O que vemos nas duas primeiras décadas do século XX, segundo Traverso, não é um resíduo nem um prolongamento do fascismo, ou seja, não é o caso de se falar em “neofascismo”. Os fascismos clássicos (italiano ou alemão) eram antidemocráticos e os pós-fascismos (ao menos o de Le Pen) querem “transformar el sistema desde dentro” (p.27). Os fascismos clássicos eram estatistas, imperialistas e queriam criar uma “terceira via entre liberalismo e comunismo” e os pós-fascismos (ao menos o de Trump) são neoliberais. Os fascismos clássicos possuíam uma visão de mundo e um “modelo alternativo de sociedade”, enquanto os pós-fascismos (o de Trump é, novamente o exemplo) não tem programa ou se reduz a um “Make America Great Again”. Os fascismos clássicos estavam fundamentados em uma “ideologia forte” e o pós-fascismo, exemplificado por Macron, significa o “grau zero de ideologia”.

Com as sucessivas comparações, somos levados a definir o pós-fascismo a partir de traços ideológicos na esfera política, econômica e social: combate à democracia, defesa do livre mercado, ausência de projeto societário e de ideologia forte. Traverso, contudo, acrescenta uma marca diacrítica fundamental: “Lo que caracteriza al posfascismo es un régimen de historicidade específico – el comiezo del siglo XXI – que explica su contenido ideológico fluctuante, inestable, a menudo contradictorio, en el cual se mezclan filosofias políticas antinómicas.” (p.26).

A oralidade que marca o texto e a interrupção do entrevistador, provavelmente, o impede de detalhar esse novo “regime de historicidade”. Tomando como base o seu livro anterior (citado pelo apresentador, Régis Meyran), somos induzidos a compreendê-lo como um tempo sem futuro (horizonte de expectativas), algo que explicaria, inclusive, o caráter instável e contraditório das ideologias e as recorrentes antinomias em termos de “filosofia política” no interior dos movimentos e partidos. Esse auxílio, contudo, é insuficiente para relevar as contradições do próprio Traverso nas definições de pós-fascismos por meio de exemplos.

Afinal, se as antinomias são o caráter dos movimentos pós-fascistas, poderíamos rotulá-los como antidemocráticos? Se os fascismos italiano e alemão reuniam “corrientes diferentes, desde las vanguardias futuristas hasta los neoconservadores, de los militaristas más belicosos a los pacifistas muniquenses etc.” as antinomias deveriam continuar traço diferenciador dos movimentos e partidos do século XXI? Se as categorias “horizonte de expectativa” e “espaço de experiência” estão fundadas na ideia de continuidade passado/presente/futuro, porque afirmar peremptoriamente que as novas direitas do século XXI, exemplificadas na figura de Trump, não representariam uma continuidade histórica e nem uma herança com o fascismo histórico (mesmo que o sujeito citado não as reivindicasse conscientemente)?

O segundo capítulo – “Políticas identitarias” – expressa concepções de Traverso sobre o emprego da categoria “identidade”, acompanhada de suas críticas aos discursos identitários difundidos, principalmente, pela Frente Nacional (FN) e o “Partido de Indígenas de la República” (PIR). Sua ideia de identidade é remetida (entre outros referenciais) a P. Ricoeur – que lhe inspira na caracterização das identidades veiculadas pelos partidos de esquerda (ipseidade – identidade histórica) e de direita (mesmidade – identidade essencial). Em termos abstratos, Traverso elogia as políticas identitárias de esquerda que reivindicam o “reconhecimento”, ao passo que as de direita reivindicam a “exclusão”.

A esquerda radical (Traverso lamenta) nunca soube conciliar diferentes pautas identitárias, pondo o fator econômico (a classe) acima das identidades de raça, gênero e religião. Nesse sentido (ainda que de modo irônico, para Traverso), a nova direita representada pela FN, por exemplo, é mais eficiente, pois associa a defesa dos “blancos humildes”, manifestando, assim, a sua simpatia pela categoria interseccionalidade. Quanto às críticas às políticas de direita, estas não são nada genéricas. O laicismo, as identidades nacionais e étnicas difundidos pela FN são reacionárias (defensivas), ilógicas, antieconômicas e antissociais.

A melhor parte da discussão entabulada por Traverso, nesse capítulo segundo, está nas razões que ele aponta para esse reacionarismo. As políticas identitárias das novas direitas (que geram a exclusão de migrantes), o laicismo autoritário de Estado (que negam a cidadania plena aos ex-colonizados e que prometem o retorno à Europa anterior ao Euro) são produtos da própria República e do Colonialismo. Assim, não se pode acusar a FN de antirrepublicana, posto que as exclusões do tipo fazem parte da história da República francesa recente. Nesse trecho, quase que ouvimos Traverso declarar que não há (não houve) um germe ultradireitista. Foi a própria serpente (a República francesa) que pariu os identitarismos excludentes dos novos reacionarismos.

Aqui, vemos como o autor põe grupos de esquerda e de direita sob o mesmo solo – que gera as mesmas distorções. Ele avança ainda mais na indicação de semelhanças quando afirma que as “direitas radicais”, os “expoentes liberais e conservadores” não mais buscam “legitimar uma política” por meio da “ideologia”, que “se improvisa a posteriori”. Chega a empregar a expressão “pós-moderna” para tipificar esse traço do nosso tempo. Mesmo que esteja entre aspas, essa expressão não cabe na passagem.

Se ele admite a legitimidade política não ideológica como consequência de uma relação pós-moderna dos humanos com o tempo, as continuidades de ideias e práticas das novas direitas com as ideias e práticas de direitas do século XIX e XX não mais se sustentam. Se, ao contrário, ele reitera a interpretação das novas direitas dentro dos quadros de um novo regime de historicidade, a condição “pós-moderna” não faz nenhum sentido no seu texto.

Além desse deslise teórico, Traverso revela um misto de idealismo em relação à ideia de partido político, em prejuízo, inclusive da sua abordagem historicista (realista) sobre as novas direitas. A vida partidária, mesmo em tempo anterior ao século XXI, é marcada por estratégias de sobrevivência que resultam em diferentes comportamentos, desde a manutenção de um programa, passando pela captura dos eleitores, até a manutenção do poder, quando à frente do Executivo.

No terceiro capítulo do livro – “Antissemitismo e islamofobia” –, as questões identitárias ganham ainda maior espaço. O entrevistador parece determinado a extrair de Traverso uma crítica às definições dos termos em pauta e uma comparação entre os dois fenômenos, tomando-os em seus elementos aparentemente similares: o antissemitismo na primeira metade do século XX e a islamofobia no início do século XXI. O autor resiste várias vezes a compreendê-los como fenômenos simétricos e, implicitamente, a considerá-los “ideologias”. É certo, julga ele , que as afinidades existem: para os antissemitas dos anos 30 do século passado, judeus e bolchevistas eram um “outro” ameaçador, enquanto para os islamofóbicos, os mulçumanos e os terroristas islâmicos são um novo outro inimigo; o antissemitismo estruturava os ideais nacionalistas do início do século XX, enquanto a islamofobia estrutura os nacionalismos europeus do início do século XXI.

Essas similitudes, contudo, são menos expressivas quando observadas caso a caso, com destaque para a experiência francesa. Para Traverso, a “judeofobia” é combatida pelo Estado francês que, por sua vez, legitima a islamofobia. Os judeus estão integrados econômica, social e culturalmente, enquanto africanos e asiáticos e seus descendentes, mesmo nascidos na França, experimentam uma cidadania de segunda categoria. Nos anos 60 do século passado, ao lado dos negros, judeus marcharam em luta contra o racismo e pelos direitos civis. Hoje, organizações civis que congregam judeus confundem o Estado de Israel e comunidade judaica, oprimindo palestinos em suas próprias terras: “La memoria del Holocausto se há convertido en una religión civil republicana, en tanto que la memoria de los crímenes coloniales sigue negada o acallada, como en el caso de las controvertidas leyes de 2005 sobre el ‘papel positivo’ de la colonización.” (p.88). A emergência da islamofobia contemporânea, conclui o autor, não pode ser reduzida ao racismo clássico dos séculos XIX e XX ou ao fator imigração. O colonialismo entranhado na República é o que explica (na certeira expressão de Meyran) o “racismo de pobre” em vigor na França.

Observem que não apresentei nenhum senão ao capítulo terceiro e o mesmo ocorre com o quarto capítulo – “¿Islamismo radical o islomofascismo? El Estado Islãmico a la luz de la historia del fascismo”. Nele, novamente, Meyran tenta extrair de Traverso uma posição sobre a potência heurística da categoria (“islamofascismo”) e, consequentemente, sobre a validade de tipificar o Estado Islâmico (EI) com expressão do fascismo. Ele  rechaça a proposição, embora reconheça semelhanças entre os fascismos italiano, alemão e francês e as ações do EI.

Elas estariam principalmente, nos contextos de emergência do primeiro e do segundo fenômeno (desestabilização da Europa pós Primeira Guerra Mundial e desestabilização de países árabes pós invasões soviéticas, estadunidenses e europeias no Iraque e Afeganistão, por exemplo) e no caráter conservador das suas revoluções (o emprego da tecnologia para propagandear uma sociedade “obscurantista”, baseada em um “passado imaginário”. As diferenças, contudo, superam as similaridades mais gerais, quando, segundo Traverso, o analista aborda os fenômenos diacronicamente e em suas particularidades.

hemos visto surgir fascismos en América Latina, es decir, fuera de Europa: ahora bien, estos se instalaron en el poder gracias al apoyo de los imperialismos, las grandes potencias. En Chile, uno de los peores regímenes fascistas latinoamericanos se instaló mediante un golpe de Estado organizado por la CIA. […] La fuerza del EI, al contrario, radica en el hecho de mostrarse ante los ojos de muchos musulmanes como un movimiento de lucha contra el Occidente opresor. Eso vuelve problemático definir este movimiento como fascista.

Henry Kissinger e Augusto Pinochet 1976 Imagem Ministerio de Relaciones Exteriores de ChileWikipedia

Henry Kissinger e Augusto Pinochet (1976) | Imagem: Ministerio de Relaciones Exteriores de Chile/Wikipédia

Fascismo é conceito histórico, não devendo ser usado como categoria analítica. Totalitarismo (de H. Arendt) é categoria analítica adequada ao exame do EI, mas limitada à sua natureza abstrata (de categoria), a exemplo da categoria nacionalismo. O nacionalismo fascista é cimentado pelo “culto ao sangue” (Itália) e “culto ao solo” (Alemanha) e o nacionalismo do EI é “universalista”; o fascismo (categoria ou conceito histórico?) do Chile foi apoiado pelo imperialismo estadunidense que combate agora as ações do EI; o fascismo da Itália e da Alemanha emergem como alternativa à democracia liberal, enquanto o EI emerge em território que nunca praticou a democracia; o fascismo da Itália e da Alemanha eram anticomunistas enquanto o EI nunca encontrou a resistência de “uma esquerda radical”.

Ao listar meia dezena de razões para não tipificar o EI como fascista, Traverso demonstra os perigos das conclusões sobre causas e consequências de fenômenos históricos com base apenas no emprego de categorias (sobre todo os tipos ideais). Ideologias são apenas uma variável. Não é a religião que explica o EI: “hay que estudiar l la relacion que existe entre Marx, el marxismo, la Revolución Rusa y el estalinismo […] resulta evidente que el EI no es la revelación del islan ni la única expresión posible del islam, pero si uma de sus expresiones […] la Inquisición no es la única expresión posible del cristianismo, !también existe la teologia de la Liberación”. (p.92) Traverso, por fim, deixa implícito que quando cientistas sociais e historiadores tomam a ideologia como causa eles enviesam os resultados. Quando estrategistas e políticos agem dessa forma, o prejuízo é em escala. Eles criam “espantalhos”, omitem o assentimento popular ao EI, o financiamento ocidental ao EI, a contribuição ocidental midiática à banalização da violência (adotada pelo EI), a instrumentalização das ideias de direitos humanos, liberalismo e democracia para exterminar os movimentos emancipatórios de povos africanos e asiáticos.

Nas conclusões do livro – “Imaginario político y surgimento del posfascismo” –, mais uma vez, o leitor perceberá a tensão entre o reiterar de uma tese (a falência das utopias do século XX, a exemplo do comunismo e do fascismo, dá vasão às investidas pós-fascistas, encarnadas pelas novas direitas e o terrorismo islâmico), a instabilidade da aplicação dos conceitos (o “modelo antropológico do neoliberalismo”, também referido como “idolatria do mercado”, é ou não uma ideologia dos últimos 20 anos?) e a atribuição de valor na causação das novas direitas (a extinção das ideologias do século XX, a precariedade socioeconômica de grandes segmentos populacionais, na Europa, Ásia e África ou os dois condicionantes simultaneamente?).

Da mesma forma, ainda na conclusão, Traverso consolidará,  sinteticamente, as principais ideias que se propôs a defender durante a entrevista: 1. Novas direitas (ou direitas radicais) e islamismos não são fascistas; 2. Novas direitas e islamismos são “sucedâneos” reacionários (passadistas e xenófobos) das utopias do século XX; 3. Movimentos sociais e partidos políticos de esquerda (com suas iniciativas, ironicamente, dispersas em um mundo globalizado) não são capazes, no curto prazo, de preencher esse vazio utópico; 4. “Religiões cívicas” como o republicanismo francês pós massacre Charlie Ebdo e memorialismo anti-holocausto, respectivamente, acrítico e vitimista, são incompetentes como freios às novas direitas. Sua percepção de futuro, contudo, é otimista: “no hay inexorabilidade alguna. Pueden myy biente aparecer en cualquer momento mentes creadoras, dotadas de una poderosa imaginación, y proponer una alternativa, outro modelo de sociedad.” (p.116).

No início desta resenha, anunciei a razão da minha escolha: queria observar o que caracterizaria o trabalho de um historiador de formação e ofício que estuda o fenômeno das “novas direitas”. A resposta serve como avaliação geral do livro. Em Las nuevas caras de la derecha o noviço de história é beneficiado, talvez, pelo gênero textual (marcado pelos diálogos entre Meyran e Traverso) que elimina a organização lógica de um texto e (se o noviço aceita participar como observador) em benefício da liberdade de suspender a leitura e refletir sobre o lido sem perder o fio da meada (já que as questões ou temas se encerram ao final de uma ou duas intervenções do entrevistador).

Esse expediente possibilita a percepção das várias tensões que atravessam o livro e que ensinam de modo mais realista como trabalha um historiador que se ocupa do referido tema, obviamente, aos que estão predispostos a aprender: a tensão sobre as escolhas de variáveis para a comparação (sobre o que serve e o que não serve para fazer analogias, se mais as semelhanças, se mais as diferenças) e as justificativas políticas empregadas para fazê-lo; a tensão sobre a adequabilidade e a eficácia do emprego do conceito histórico e da categoria analítica; a tensão da escolha entre se comportar como historiador tipicamente historicista (examinando múltiplas variáveis e construindo contextos prováveis a partir de múltiplos pontos de vista) e um cientista social (empregando modelos/tipos e fazendo generalizações sobre sujeitos concretos a partir de categorias/abstrações); a tensão de perceber a oportunidade para problematizar uma situação concreta, mediante antinomias ou explicações unilaterais, e de encontrar o melhor momento para reiterar a sua tese sobre os estados de coisas nos quais estamos envolvidos no início do século XXI (Estado Islâmico, Trump, Le Pen): fenômenos pós-fascistas resultam do fracasso das revoluções do século XX e da crise do capitalismo como fornecedores de horizontes de expectativas para populações alijadas da globalização e vitimadas pelo colonialismo.

Sumário de Las nuevas caras de la drecha

  • Prefacio a la edición castellana
  • 1. Prólogo
  • 2. ¿Del fascismo al posfascismo
  • 3. Políticas identitarias
  • 4. Antisemitismo e islamofobia
  • 5. ¿Islamismo radical o “islamofascismo”? El Estado Islámico a la luz
  • de la historia del fascismo
  • Conclusión. Imaginario político y surgimiento del posfascismo
  • Sobre el autor

Para citar esta resenha

TRAVERSO, Enzo. Las nuevas caras de la drecha. Buenos Aires: Titivillus, 2021. 234p. Resenha de: FREITAS, Itamar. As recentes direitas de um historiador. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n. esp. (Novas Direitas em discussão), ago. 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/3237/>.

Os militares e a crise brasileira | João Roberto Martins

Joao Roberto Martins Filho Foto Gabriela Di BellaThe Intercept
João Roberto Martins Filho Foto: Gabriela Di Bella/The Intercept

Em 2020, João Roberto Martins Filho publicou a segunda edição de O palácio e a caserna: a dinâmica militar das crises políticas na Ditadura (1964-1969), adaptação da sua tese de Doutorado em Ciência Política, orientada por Décio Saes e defendida em 1989. Nesse livro, manteve a proposição de que as forças armadas brasileiras configuram um partido político fortalecido na emergência uma “ideologia militar fortemente calcada na repulsa à política civil”, cujas pautas correlatas e consequentes seriam a estabilidade social e a garantia da ordem. (p.55). A tese contrapunha-se à interpretação da experiência militar como um conflito entre dois ideais capitalistas: o internacionalismo da Escola Superior de Guerra (ESG) e o nacionalismo de grupos minoritários. Um ano depois da republicação, Martins Filho nos brinda com outro estudos sobre “militares” e “crise” dos anos recentes, reunindo dezessete autores vinculados a instituições de ensino e pesquisa nas áreas de Estudos de Defesa, Segurança Internacional, Relações Internacionais, Estudos Estratégicos, Ciência Política e História Contemporânea, Antropologia e, ainda, profissionais do jornalismo e da área militar.

Os militares e a crise brasileiraSe o organizador registra que a proposição de 1989 ficou no limbo até 2005, agora restam poucas dúvidas de que os militares representam funções e estratégias de um partido político para si mesmos e que são corresponsáveis pelos ataques à democracia liberal brasileira, perpetrados, por exemplo, desde 2013. O leitor, contudo, encontrará alguma dificuldade para chegar às provas dessa responsabilização. A coletânea é qualitativamente desequilibrada e variada em termos de gênero textual. Verá divergências compreensíveis e saudáveis, em termos de fontes e interpretações. A credibilidade das Forças Armadas (FA), na última década, por exemplo, é tida como em declínio e em ascensão; as políticas dos governos progressistas em termos de defesa são vistas positivamente e negativamente; e a profissionalização dos militares é fundamental e nula para a sua submissão ao controle político civil. Leia Mais

A linguagem fascista | Carlos Piovezani e Emilio Gentile

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Carlos Piovezani e Emilio Gentile | Imagens: UFSCAR e Igoriziano

A ascensão da extrema direita nos últimos anos aconteceu em sequência ao fim de governos que adotaram posturas progressistas no que condiz à concessão de direitos. Assim, após o governo de Barack Obama (2009-2017), o primeiro presidente negro dos Estados Unidos, tivemos a eleição do republicano Donald Trump; no Brasil, por sua vez, os doze anos de governos petistas foram encerrados com o impedimento da presidente Dilma Rousseff, em 2016. Dois anos mais tarde, Jair Messias Bolsonaro, então filiado ao Partido Social Liberal (PSL), foi eleito presidente. Frente a esse quadro, interrogamo-nos: como lideranças extremistas, associadas a discursos fascistas, conseguiram conquistar legiões de seguidores? Essa questão foi o cerne do livro A linguagem fascista, escrita por Carlos Piovezani e Emilio Gentile, lançado pela editora Hedra, em 2020.

A linguagem fascistaOs autores possuem amplo conhecimento nos estudos acerca de linguagem e dos fascismos; Piovezani é linguista e professor associado do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de São Carlos. Além disso, atuou como professor convidado na École de Hautes Études en Sciences Sociales e foi autor de obras como A voz do povo: uma longa história de discriminações (2020). Já Emilio Gentile é historiador e professor emérito da Università La Sapienza de Roma, sendo considerado um dos principais especialistas mundiais em fascismo. Entre os livros publicados por ele estão Le origini dell’ ideologia fascista (1975) e Quien és fascista (2019). Leia Mais

Una questione di provincia. Criminalità e camorra tra età giolittiana e fascismo | Carolina Castellano

Gli studi sulla genesi sociale e storica delle camorre “di provincia” tra Ottocento e Novecento risultano comparativamente meno attenzionati dalla letteratura sul tema. Fatta eccezione per alcuni lavori più o meno recenti, talvolta riferibili a letteratura grigia e d’inchiesta giornalistica, il panorama delle ricerche storico-sociali metodologicamente solide sul fenomeno camorristico nella Campania Felix, nella bassa piana del Volturno e nella Terra di lavoro, non è ricchissimo. Eppure, una porzione significativa del dibattito sulle origini delle camorre nello Stato unitario si è dispiegato in questi luoghi, dove ha assunto tratti peculiari e simili alla mafia siciliana del latifondo, sulle cui forme la storia e le scienze sociali hanno certamente rivolto maggiore attenzione, producendo una bibliografia assai più ricca1.

Il volume di Carolina Castellano, storica contemporaneista presso l’Università di Napoli Federico II, aggiunge interessanti tasselli alla comprensione delle camorre dell’entroterra. Da tempo attenta alla storia della giustizia, del settarismo ottocentesco e della criminalità organizzata campana, su questi temi Castellano è già autrice di una articolata produzione, al cui interno troviamo – tra gli altri – il volume Affari di camorra2. Curato con Luciano Brancaccio, sociologo, quel volume raccoglie i risultati di una ricerca condotta da diverse prospettive disciplinari, che alla storia contemporanea e alla sociologia affiancano l’economia, la teoria dell’organizzazione e le scienze giuridiche. La collaborazione tra queste e altre discipline è propria del Laboratorio di Ricerca sulle Mafie e la Corruzione (Lirmac), attivato presso il Dipartimento di Scienze Sociali della Federico II, di cui Carolina Castellano è co-fondatrice. A parere di chi scrive, nell’ultimo lavoro di Castellano, Una questione di provincia. Criminalità e camorra tra età giolittiana e fascismo, si può apprezzare l’effetto positivo di questo percorso di cooperazione interdisciplinare. Cooperazione che non disconosce distinzioni e sensibilità, punti di vista e tradizioni di ricerca interne alle diverse prospettive: Una questione di provincia è un saggio di storia contemporanea. Eppure, prosegue e alimenta un confronto con strumenti metodologici e linguaggi differenti, rafforzando il tenore delle conoscenze acquisite e delle chiavi interpretative3 . Conoscenze e interpretazioni che in questo modo sono di maggiore interesse non solo per l’erudizione accademica, ma anche per il dibattito pubblico e per alimentare proposte politiche4 ; una angolatura che trova particolare riscontro nell’interesse che l’Autrice rivolge all’anticamorra storica, laddove le fonti giudiziarie e di polizia non sono unicamente contenitori di informazioni, ma punti di vista dai quali riflettere sulla costruzione pubblica e politica della “camorra rurale”, sulle politiche di sicurezza e di ordine pubblico, sull’uso partigiano della strumentazione giuridico-giudiziaria. Leia Mais

Sobre o relativismo pós-moderno e a fantasia fascista da esquerda identitária | Antonio Risério

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Antonio Risério| Foto: Walter Craveiro

Sobre o relativismo pós-moderno e a fantasia fascista da esquerda identitária não se encaixa nos cânones acadêmicos, mas expressa a existência de uma polêmica direcionada à academia, nos espaços de opiniões homogêneas, onde impera o consenso, no caso, os debates acadêmicos do campo educacional e nas ciências sociais. O autor Antonio Risério (1953-) é um conhecido polemista que, tendo sido militante estudantil, preso pela ditadura, trabalhado na campanha e nos governos petistas, hoje se proclama crítico da esquerda, que ele qualifica de fascista e identitária. Na sua formação acadêmica ele possui mestrado em Sociologia. Hoje ele se identifica profissionalmente como escritor.

CR Resenhistas 1A obra é um ensaio sobre teoria e política, mas o teor é mais político. Ela está dividida em nove seções ou capítulos e os “anexos”, que compõem mais de um quarto do livro. Seu estilo narrativo demonstra um sentimento bastante amargo e o uso da palavra ressentimento, em um sentido nietzschiano, empregado para se referir à “politização do ressentimento” por parte da esquerda identitária, também é patente nos argumentos do autor. A sua narrativa não possui uma estética agradável, utilizando-se sem rodeios de palavras de baixo calão, abusando dos parênteses para tentar expor suas ideias, e eu ainda notei a economia no uso de preposições e artigos, o que dificulta o exercício de uma leitura mais suave. Leia Mais

O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo | Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto

Leandro Goncalves e Odilon Caldeira
Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto | Fotos: Tribuna de Minas

O Fascismo em CamisasA obra O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo foi escrita pelos historiadores Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto, e publicada em 2020, pela Editora FGV. No tocante aos autores, Gonçalves concentra suas pesquisas em questões relacionadas à História da América Latina nos campos da História Política e Cultural, bem como, estudos no âmbito das direitas, dos fascismos, integralismo, salazarismo e franquismo. Neto tem experiência na área de História Contemporânea e História do Tempo Presente, atuando principalmente nos temas: neofascismos, direita radical, transições democráticas e processos da extrema direita.

Logo na introdução, os escritores buscam promover para o leitor uma reflexão, no que alude a fazê-los entender que os acontecimentos históricos não ficam presos no seu tempo e inertes nos livros, mas que alguns deles estão em constantes metamorfoses, e se apresentam na sociedade tão velhos e tão atuais. E é a partir dessa premissa que o livro é desenvolvido, e ao longo dos seus quatro capítulos expõe e problematiza a história do movimento integralista brasileiro. Leia Mais

Los más ordenaditos. Fascismo  y juventud en la dictadura de Pinochet | Yanko González Cangas

Los más ordenaditos. Fascismo y juventud en la dictadura de Pinochet es el título del nuevo libro del antropólogo Yanko González. En este, el autor realiza un estudio detallado, a partir del trabajo etnográfico y de fuentes, sobre el pro­ceso de fascistización al régimen institucional de Augusto Pinochet que vivieron los jóvenes derechistas chilenos. En consecuencia, González busca comprender y reconstruir, desde la memoria de los protagonistas, la producción de subjeti­vidades, experiencias juveniles y generacionales vinculadas a las juventudes de Estado de Pinochet y Jaime Guzmán.

En su “Introducción”, González plantea que la dictadura tuvo desde sus ini­cios la misión de organizar a los jóvenes para que fuesen agentes que la apoyaran y perpetuaran, buscando así formar “juventudes leales” al régimen. A través de la pregunta ¿Cómo cambia la formación identitaria con 1973? El autor explica que, una vez ocurrido el golpe de Estado, Pinochet, y sobre todo Guzmán, simpatizan­te del franquismo e inspirado en este, articularía la fascistización de la juventud. El concepto hace referencia a un proceso inacabado, capaz de aprehender ele­mentos menos mutables del fascismo y resignificarlos bajo la institucionalidad vigente en aspectos políticos, socioculturales y económicos, profundizando así el proceso mismo. Leia Mais

Intellectuals In The Latin Space During The Era Of Fascism: Crossing Borders | Valeria GAlimi e Annarita Gori

Na década de 2010, especialmente após a onda internacional de protestos que teve início com a Primavera Árabe em 2011, tornou-se clara uma ascensão de movimentos, ideologias, culturas políticas, partidos e governos de extrema-direita, alguns abertamente (neo)fascistas, com um poder de influência sobre a política europeia que não era visto desde os anos 1930 (Löwy 2015, 653). Nos Estados Unidos, o cenário das eleições presidenciais de 2016, em que foi eleito o candidato republicano Donald Trump, também se caracterizou pela emergência de grupos de direita radicais que vão desde a direita institucionalizada com o Tea Party do Partido Republicano, até discursos mais radicais na alternative right e nos movimentos neofascistas/neonazistas, que se tornaram atores da mais alta relevância sob o governo Trump (Alexander 2018, 1009). No Brasil, a eleição de Jair Bolsonaro em 2018 demarcou essa guinada à direita radical, armamentista, evangélica e tecnológica que se difunde rapidamente pela internet.

Entre hoje e o século passado, as direitas radicais, e especialmente os fascismos e neofascismos, guardam em comum o nacionalismo chauvinista e xenófobo, articulado para a exploração dos “pânicos de identidade” que surgem nos campos conservadores, com a violência cultural com que o capitalismo transforma estruturas socioeconômicas e formas de vida, gerando sentimentos “antissistema”, “anti-cosmopolitas”, “antidemocráticos”, “anti-pluralistas”, “anticomunistas”, “anti-globalistas”, etc. Majoritariamente, são favoráveis a políticas autoritárias de segurança pública, como a introdução ou reabilitação da pena de morte. (Löwy 2015, 654). Em resumo, para utilizarmos uma expressão de Francisco Carlos Teixeira da Silva (2000, 179) inspirada na interpretação de Zeev Sternhell (Cf.: Sternhell 1995, 3-35) do fascismo como cultura política, a “negação do outro” continua a ser a tônica dos discursos e práticas fascistas ao longo do tempo. Leia Mais

Salazar e Franco. La alianza del fascismo Ibérico contra la España republicana: diplomacia, prensa y progaganda | Alberto Pena Rdríguez

No sentido político, as coleções históricas contemporâneas produzidas em Espanha e Portugal mantiveram-se isoladas. As questões relacionadas a Portugal são muito subdesenvolvidas na historiografia española, assim como os estudos sobre as relações bilaterais entre os dois países. Felizmente, esta tendência está sendo revertida em decorrência da geração de estruturas comuns de pesquisa, de novas relações acadêmicas e do surgimento de múltiplas publicações históricas. O livro do Dr. Alberto Pena Rodríguez é, neste contexto, uma contribuição fundamental à abordagem dos desenvolvimentos político-econômicos e das interações socioculturais entre Espanha e Portugal nas décadas centrais do século XX. O livro Salazar e Franco. A aliança do fascismo ibérico contra a Espanha republicana: diplomacia, imprensa e propaganda é composto por dez capítulos, distribuídos em três blocos temáticos, e abriga uma extensa seção de fontes documentais.

O livro destaca a importância das ações políticas de Salazar no sentido de solapar o projeto político da Segunda República Espanhola (1931-1939), ações que podem explicar a similaridade de direitos nos países ibéricos durante os duros anos de isolamento espanhol, sob a ditadura de Franco. A investigação aponta para a existência de desenvolvimentos semelhantes e paralelos entre Espanha e Portugal e, ao mesmo tempo, chama a atenção para os elementos de rejeição e para as principais diferenças culturais e funcionais entre os dois países. Leia Mais

Fascismo: definição e história | Luce Fabbri, Fernanda Grigolin e Rodrigo Millán

Lucce Fabbri
Luce Fabbri | Imagem: Diccionario Biográfico de las Izquieras LatinoAmericanas

A tarefa de definir o fascismo esbarra quase sempre na capacidade do fenômeno de se articular entre a indefinição que o caracteriza enquanto projeto e a rispidez da coação que o materializa. Vitalismo e indiferença, desprezo pelas “massas” e medo de insurreição, burocratização e ilicitude: as oscilações de um fascismo que se propõe pensamento e ação encerram contradições, disputas e aporia.

Como, então, definir aquilo que aparenta ser insondável e estarrece? Em Fascismo: definição e história, ensaio escrito em 1963, a anarquista de origem italiana Luce Fabbri desce para as linhas de choque da reflexão para trazer uma visão sóbria, engajada e densa do fenômeno. Leia Mais

A tentação fascista no Brasil: imaginário de dirigentes e militantes integralistas – TRINDADE (RBH)

TRINDADE, Hélgio. A tentação fascista no Brasil: imaginário de dirigentes e militantes integralistas. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2016. 837p. Resenha de: GONÇALVES, Leandro Pereira. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.36, n.73, set./dez. 2016.

São 17 horas em Brasília. Com os olhos inchados, o rosto deformado pelos anos e após acordar de uma longa sesta, o antigo (e eterno, para os militantes) chefe dos integralistas concedeu uma entrevista ao então doutorando em Ciência Política da Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne) Hélgio Trindade, que teve um segundo encontro com o líder dos camisas-verdes em São Paulo. Na ocasião das pesquisas, foram realizadas entrevistas com Miguel Reale, Dario Bittencourt e Rui Arruda, dentre outros integralistas ou simpatizantes, como Alceu Amoroso Lima e Menotti Del Picchia.

O momento não era nada propício para o desenvolvimento de uma pesquisa dessa estirpe, pois estávamos vivendo os duros tempos da ditadura civil-militar e muitos dos integralistas dos anos 1930 eram figuras ativas no contexto do regime autoritário, como o general Olympio Mourão Filho, que recebeu de pijama e chinelos o então doutorando em seu apartamento, em Copacabana. Detalhes pitorescos e impensáveis que serão descobertos nas 837 páginas do livro A tentação fascista no Brasil: imaginário de dirigentes e militantes integralistas.

Não há estudioso que não tenha esbarrado com o nome de Hélgio Trindade. A tese de doutorado denominada L’Action intégraliste brésilienne: um mouvement de type fasciste au Brésil, traduzida e publicada no Brasil, em 1974, sob o título Integralismoo fascismo brasileiro na década de 30 (Trindade, 1974), é cada vez mais viva na Ciência Política e nos trabalhos historiográficos. Esse estudo promoveu a entrada da temática no meio acadêmico, sendo também responsável por tornar conhecido o movimento e tê-lo interpretado. O pesquisador gaúcho foi o precursor dos estudos e é referência cada vez mais atuante para os que buscam compreender esse fenômeno político do século XX que arrastou multidões e mobilizou milhares de pessoas em torno de um grande nome: Plínio Salgado.

A nova produção de Hélgio Trindade é lançada em contexto acadêmico extremamente oposto ao do momento de divulgação da tese, em 1974, quando não havia amplos diálogos. A tentação fascista no Brasil: imaginário de dirigentes e militantes integralistas é uma espécie de “promessa” do professor emérito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em 1979, o ex-reitor da UFRGS e da Unila anunciou, na 2ª edição da tese, publicada pela Difel, que um volume seguinte teria como objeto de análise um conjunto de depoimentos gravados, inéditos, colhidos com dirigentes e militantes integralistas, mas, por implicações éticas, faria a divulgação após a morte de todos.

Há muitos anos os pesquisadores comentavam sobre as entrevistas, e muitos se questionavam onde elas estavam e se realmente existiam, visto que o material sempre foi objeto de desejo de todos os estudiosos do tema. Agora, finalmente, há a possibilidade de termos em mãos uma parte significativa dos depoimentos que foram concedidos a Hélgio Trindade. Vejo como um feito da publicação o trabalho que o autor teve em organizar as entrevistas de maneira temática, pois o livro não é apenas uma simples transcrição, há um árduo trabalho metodológico acompanhado por referências e contextualizações amplas sobre o período e o Movimento.

Em “Nota prévia” o autor defende o uso fascista para a caracterização do integralismo frente ao debate da década de 1970 e suas repercussões no contexto acadêmico contemporâneo, polêmica existente desde a defesa da tese. O prefácio da segunda edição (Trindade, 1979), reproduzido no novo livro e escrito pelo cientista político da Universidade de Yale, Juan J. Linz, falecido em 2013, destaca a importância da investigação no cenário acadêmico, principalmente por identificar um tipo fascista fora do contexto europeu, temática que segue a introdução escrita pelo autor, demonstrando em uma visão continental a particularidade do movimento integralista – “O fascismo na América Latina em debate”. Antes de nos brindar com as entrevistas, faz uma síntese da tese, expondo o universo ideológico do integralismo para que o leitor possa identificar elementos da estrutura da Ação Integralista Brasileira.

Plínio Salgado, o líder do movimento, mereceu um capítulo exclusivo: “Entrevistas com dirigentes e militantes da AIB”. Nele, o chefe supremo dos camisas-verdes aponta questões sobre o passado e sobre um presente utópico. São palavras que permitem ao historiador identificar elementos até então conhecidos no campo das hipóteses, nos aspectos político, cultural, internacional, religioso ou mesmo pessoal. Com as entrevistas, é possível contribuir com diversas investigações, como a força exercida pela intelectualidade portuguesa em Plínio Salgado, tanto na juventude, pela leitura de obras ligadas aos católicos lusitanos, como no contexto do pós-guerra, quando António de Oliveira Salazar estabeleceu papel preponderante na composição de um novo Plínio Salgado após o exílio (cf. Gonçalves, 2012).

Em “Imaginário da elite dirigente e Dirigentes e Militantes Locais” Trindade oferece entrevistas realizadas entre maio de 1969 e setembro de 1970 com representantes do movimento e líderes de destaque no cenário político: Frederico Carlos Allendi, Rui Arruda, Dario Bittencourt, Margarida Corbisier, Roland Corbisier, José Ferreira da Silva, Arnoldo Hasselmann Fairbanks, Antonio Guedes Hollanda, Américo Lacombe, José Ferreira Landin, Edgar Lisboa, José Loureiro Júnior, Jeovah Mota, Olympio Mourão Filho, Erico Muller, Zeferino Petrucci, Miguel Reale, João Resende Alves, Goffredo da Silva Telles, Ângelo Simões Arruda, Ponciano Stenzel, Antonio de Toledo Pizza e Aurora Wagner. Como as entrevistas estão no anonimato, uma relação foi inserida no fim do livro, mas no início de cada entrevista há uma pequena biografia do depoente que permite ao estudioso a identificação, mas isso não é tão simples para os demais leitores.

Em sequência, Trindade traz em “Olhares externos de intelectuais independentes” entrevistas de personalidades que viveram o período e que conviveram em algum momento com Plínio Salgado e outros membros do movimento: Alceu Amoroso Lima, Cruz Costa, Candido Morra Filho, Menotti Del Picchia e Antonio Candido, sendo este último o único depoente ainda vivo. Como não há relações políticas e comprometimentos em algumas passagens, os nomes desses são identificados nas entrevistas.

A obra, que marca o retorno do autor ao debate (apesar de nunca ter deixado de fazer parte da discussão),2 tem dois aspectos principais e de grande relevância: 1º) permite identificarmos o olhar do ator no contexto histórico; nas entrevistas é possível verificar passagens e trechos inimagináveis, pérolas recolhidas por Trindade; 2º) com tal produção, tem-se a possibilidade de revolucionar a historiografia, pois são documentos até então desconhecidos que, graças aos depoimentos, podem confirmar questões que se encontram no campo da hipótese ou verificar possibilidades investigativas. Além disso, o autor faz parte de um seleto rol de pesquisadores, pois, seja na história ou na ciência política, Hélgio Trindade é responsável pela construção de uma interpretação, um pensamento único e, portanto, estabelece uma composição central na esfera acadêmica.

Esta obra busca, além de identificar o imaginário dos militantes integralistas, contribuir para o entendimento de questões acaloradas da sociedade contemporânea, em que as forças políticas conservadoras estão cada vez mais atuantes e com tentações antidemocráticas, reflexões que são realizadas no epílogo: “Ainda a tentação fascista no Brasil?”.

O livro de Hélgio Trindade vem em momento oportuno, pois não pensemos que o pesadelo acabou, uma vez que a intolerância e o autoritarismo estão longe de ser página virada na história da humanidade, principalmente com a complexa crise política que culminou com as ações do dia 31 de agosto de 2016. O livro não poderia ter desfecho mais atual, pois ao citar Karl Marx, conclui: “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”.

Referências

GERTZ, René E.; GONÇALVES, Leandro P.; LIEBEL, Vinícius. Camisas Verdes, 45 anos depois – uma entrevista com Hélgio Trindade. Estudos Ibero-americanos, Porto Alegre, v.42, n.1, p.189-208, abr. 2016. [ Links ]

GONÇALVES, Leandro P. Entre Brasil e Portugal: trajetória e pensamento de Plínio Salgado e a influência do conservadorismo português. 2012. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). São Paulo, 2012. [ Links ]

TRINDADE, Hélgio. Integralismo: o fascismo brasileiro da década de 30. São Paulo: Difel, 1974. [ Links ]

_______. Integralismo: o fascismo brasileiro da década de 30. 2.ed. São Paulo: Difel; Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1979. [ Links ]

Nota

2 Em recente entrevista para a revista Estudos Ibero-Americanos, Hélgio Trindade aponta questões sobre sua trajetória e, principalmente, sobre o impacto da tese na academia brasileira (GERTZ; GONÇALVES; LIEBEL, 2016). Repercussões foram publicadas na edição seguinte e podem ser consultadas em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/fo/ojs/index.php/iberoamericana/issue/view/1032/showToc.

Leandro Pereira Gonçalves –  Professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Pesquisador e autor de diversos estudos sobre o integralismo, notadamente, a trajetória de Plínio Salgado, é doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) com estágio no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL) e com pós-doutoramento pela Universidad Nacional de Córdoba (Centro de Estudios Avanzados), Argentina. Programa de Pós-Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: [email protected].

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Como conversar com um fascista. Reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro – TIBURI (DSSC)

TIBURI, Márcia. Como conversar com um fascista. Reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2015. 194 pp. Resenha de: SCHURSTER, Karl. Diacronie Studi di Storia Contemporanea, v. 27, n.3, 2016.

«Ciò che è in gioco è la riduzione dell’altro a un oggetto»1. Questa frase, tratta dall’ultimo libro della filosofa e artista gaúcha Márcia Angelita Tiburi forse è quella che meglio riassume tutto lo sforzo dell’autrice per far comprendere come agisca l’individuo fascista. Il suo intento principale è quello di analizzare, attraverso 67 brevi saggi, ciò che rimane del fascismo nella società attuale e quanto sia capace di produrre una soffocante quotidianità autoritaria. Niente di più opportuno nell’attuale congiuntura politica brasiliana.

L’8 marzo del 2016 l’Assemblea Legislativa dello Stato di Pernambuco, nel Nordeste brasiliano, ha cominciato a trattare un progetto di legge, presentato dal deputato Joel da Harpa appartenente al neonato Partido Republicano da Ordem Social (PROS), che dispone la proibizione dell’insegnamento di qualsiasi tematica relativa all’ideologia di genere in ambito educativo2. Questo progetto difende il divieto totale di discutere tematiche relative alla questione di genere cercando nella legislazione brasiliana un apparato atto a difendere un modello di famiglia che viene sistematicamente ridefinito attraverso un grande spazio di lotta e mobilitazione di gruppi e movimenti sociali. Il deputato fa ricorso nell’incipit del suo progetto all’aggettivo “difeso”, derivante dal latino defensus, “proibito”, per legiferare sul divieto dei docenti di trattare di questo argomento. È in questo spazio di discussione, su temi controversi, all’interno di una democrazia imperfetta, che si sono preservati gli spazi per quelle pratiche autoritarie che vengono inquadrate nelle analisi di Tiburi. Il suo intento è quello di promuovere un dibattito attraverso cui sia possibile stabilire un dialogo tra idee, proposte e persone che agiscono sotto l’egida del pensiero fascista utilizzando come principale strumento quello che è da tenere più caro trattando di fascismo: il dialogo. Per quale ragione è così importante per il deputato – appartenente a un milieu religioso e proveniente da un partito conservatore – mettere all’ordine del giorno dell’Assemblea Legislativa un progetto di legge che va contro i piani statali, municipali e nazionali in materia di istruzione? La sua proposta mira a evitare il dialogo e a normare ciò che l’altro può e deve essere, esattamente come una proposta fascista, o meglio, fascistizzante. In questo caso l’autrice ci fornisce una propria definizione di fascismo attraverso diversi esempi e riflessioni filosofiche, molte simili alle conclusioni a cui siamo giunti nella nostra tesi di dottorato3. Il fascismo per lei, come per noi, va molto oltre i limiti della politica o anche dell’economia, è all’interno di un campo filosofico nel quale il centro di gravità è qualcosa d’altro: nel caso dei fascismi, la negazione dell’altro. I testi risultano quindi un elemento di giunzione tra la filosofia di Theodor Adorno, il pensiero di Tzvetan Todorov e l’interpretazione della cultura di Homi Bhabha4.

Il testo da cui nasce il libro, Como conversar com um fascista, è una piccola, ma profonda, riflessione su come diverse pratiche sociali, quando non istituzionali, abbiano prodotto nel Brasile contemporaneo l’estinzione della politica. Questo annichilimento di quella che sarebbe per eccellenza l’arte del dialogo avrebbe generato il terreno fertile per la crescita dell’azione politica fascista e sarebbe presente nel nostro quotidiano attraverso ciò che la filosofia ha identificato come il «genocidio indigeno, il massacro razzista e classista contro i giovani neri e i poveri nelle periferie delle grandi città, la violenza domestica e l’assassinio delle donne, l’omofobia e la manipolazione dei bambini»5. Stando così le cose, il dubbio persistente risiede, qui, nella capacità della società di creare meccanismi capaci di impedire la ripetizione di fenomeni di autoritarismo e di odio attraverso una spiegazione rigorosa, adeguata e allo stesso tempo consistente, per i fenomeni dell’agire politico fascista in grado di negare l’esistenza dell’altro. Uno degli esempi più significativi di questo tentativo si ebbe nella stessa Germania, dove – malgrado l’enorme sforzo di denazificazione della società attuato subito dopo il 1945 e l’impatto del maggio 1968 – la società si mostrò incapace di offrire alle nuove generazioni strumenti critici per il superamento della seduzione del nazismo e dell’estremismo, consentendo l’emergere di un’ampia fascia di giovani affascinati dall’estremismo razzista e lo sviluppo dell’odio6. Lo stesso avviene con il nostro tempo presente. Trascorsi trent’anni dal processo di ridemocratizzazione del Brasile, ancora non siamo riusciti ad avanzare in forma sostanziale nella costruzione di una coscienza collettiva che privilegi la convivenza con le differenze. Viviamo ancora in un paese, come sostiene la filosofa, dove la differenza è qualcosa di insopportabile, dove le pratiche e i crimini dettati dall’odio passano come qualcosa di naturale o storicamente giustificabile. La professoressa Tiburi riafferma l’idea per cui le passioni sono sempre frutto di un apprendimento e si formano in noi attraverso l’esperienza. Il fascista, perciò – o colui che utilizza il fascismo come azione politica – è quell’individuo che ha vissuto e vive costanti esperienze di odio e diviene, con il passare del tempo, incapace di provare affetto per l’altro. Parafrasando l’autrice, questo individuo è stato ed è capace di introiettare l’«odio molto prima di riuscire a pensarlo»7.

È chiaro, in considerazione delle tematiche affrontate nel libro di Tiburi – la crisi e il fallimento della politica nella quotidianità brasiliana, la democrazia e l’autoritarismo, la questione di genere, con un’analisi su ciò che ha chiamato la logica dello stupro, la questione dell’aborto, la paura e l’odio in televisione, i problemi etnici-razziali, specialmente per ciò che riguarda la questione indigena – che l’autoritarismo è molto più che presente nella vita brasiliana. È stato sistematicamente trasformato in una pratica giornaliera e banale, producendo quello che Félix Guattari ha chiamato i microfascismi8. Perché il fascismo sia una realtà, sostiene, bisogna che sia alimentato da pratiche quotidiane, da una routine che lo riproduca e che sia in grado di normalizzarlo. Questo non sarebbe quindi solamente un modo di riprodurre il fascismo come pratica e alternativa, ma, ancor più, di sterminio della democrazia, non quella che abbiamo oggi, di facciata, ma quella che desideriamo, a cui ambiamo. Ciò che risulta abbastanza evidente nel libro è che, fino ad ora, tutte le trasformazioni intraprese dalla società o dalle istituzioni sociali come la scuola non sono state sufficienti a formare una nuova gioventù critica e svincolata dai brutali atti di razzismo e di violenza, simbolica e fisica, contro l’altro. Nelle strade, negli stadi di calcio, nei bar e persino negli ambienti di lavoro si moltiplicano gli atti di razzismo e di esclusione, come sottolinea l’autrice del libro9. Riusciremo a superare, discutendone in modo critico, ciò che è già stato chiamato il fascino, der schöne Schein, di una cultura della violenza e del rifiuto dell’altro nel nostro quotidiano? Il libro risponde a questa domanda in modo sufficientemente obiettivo, affermando che solo attraverso il dialogo e il ritorno alla politica saremo in grado di rigettare l’agire fascista non considerandolo come un alternativa.

Il volume, inoltre, affronta, a partire da Nietzsche e dalla sua teoria dell’eterno ritorno, il cosiddetto peso del rancore, di quello che non può essere dimenticato, di ciò che ogni individuo e società sopporta per un lungo periodo. Bisogna comprendere in certi contesti quali siano i mezzi attraverso cui si produce il risentimento e come questi stessi siano in grado di creare uno spazio per la disseminazione dell’odio. Gli esempi attuali del riemergere dell’odio si sono moltiplicati negli ultimi anni, specialmente in Brasile: contro i neri, le donne, gli omosessuali, i migranti interni o coloro che sono immigrati per ragioni politiche o economiche. Persino nell’ambito degli sport di massa, in particolare nel calcio, la moltiplicazione degli atti di razzismo – non sempre affrontati con la necessaria severità dalle autorità responsabili – e spesso, troppo spesso, perpetrati da giovani, mostrano nel contesto della crisi economica globale, con un tasso di disoccupazione elevato e una frustrazione collettiva, un grande vuoto nel campo della rappresentanza politica e una mancanza di azioni da parte della società civile per porre fine all’incessante costruzione di quel che Peter Gay ha chiamato «l’altro conveniente»10.

I fallimenti e le omissioni del nostro processo educativo sono stati in grado di porre un freno all’emancipazione da questo atto e hanno posto le condizioni perché potesse prosperare e risorgere l’odio razziale, di classe, di gruppo, di genere e contro tutti coloro che vengano identificati intenzionalmente o meno, come un “altro” essenzialmente diverso. L’analisi di questi temi è il centro di gravità di gran parte dei capitoli del libro, attraverso vari esempi che disvelano la quotidianità della società brasiliana.

I diversi saggi che riflettono sulla questione femminile e su tematiche in cui la discussione è molto accesa, come lo stupro e la legalizzazione dell’aborto, risultano dunque fondamentali per avvalorare la difesa costante da parte dell’autrice del rispetto, della tolleranza, della diversità come elementi in grado di inibire la moltiplicazione di sintomi, atti e comportamenti permanenti di discriminazione e di odio, molto spesso legati ad un semplice e brutale disegno volto al ritorno ad un passato che è stato vissuto come un trauma. È in quest’ottica che il libro si trasforma in una lettura necessaria per comprendere il Brasile e le sue attuali sfaccettature. Attraverso l’interpretazione di Márcia Tiburi, è possibile capire che anche le democrazie consolidate dal punto di vista istituzionale, come quella brasiliana, corrono rischi costanti quando le pratiche fascistizzanti diventano una faccenda quotidiana.

Notas

1 TIBURI, Márcia, Como conversar com um fascista. Reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro, Rio de Janeiro, Record, 2015, p. 191.

2 Per approfondire, cfr., URL:

<http://200.238.101.22/docreader/docreader.aspx?bib=20160308&pasta=Mar%C3%A7o\Dia %2008 > [consultato il 26 maggio 2016].

3 SCHURSTER, Karl, A história do tempo presente e a nova historiografia sobre o Nacional Socialismo, Tesi di Dottorato – Storia comparata, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012.

4 Cfr. BHABHA, Homi K., I luoghi della cultura, Roma, Meltemi, 2001 [Ed. originale The location of culture, London, Routledge, 1994].

5 TIBURI, Márcia, op. cit., p. 29.

6 Per approfondire si veda il documentario: Heil Hitler, Herr Lehrer! (LISKA, Peter, Heil Hitler, Herr Lehrer! Jugend unterm Hakenkreuz, 3sat, Germania, 2010, 50’). Il film è ricavato dal libro di Jürgen Kleindienst. Cfr. KLEINDIENST, Jürgen, Herr Lehrer: die Kindheit unter dem Hakenkreuz, 1933-1939, Frankfurt am Main, JKL, 1985.

7 TIBURI, Márcia, op. cit., p. 30.

8 Per approfondire l’argomento si veda: GUATTARI, Félix, Revolução molecular. Pulsações políticas do desejo, São Paulo, Brasiliense, 1981.

9 Cfr. l’articolo su «El País»: ALTARES, Guillermo, «Cerca de 26% dos judeus europeus dizem ter sofrido preconceito por causa de sua religião», in El País, 6 maggio 2014, URL:

< http://brasil.elpais.com/brasil/2014/06/05/sociedad/1401978023_851631.html > [consultato il 22 maggio 2016]. Su un altro fronte, gli atti di razzismo contro i neri, i beurs, i pardos, persino se si tratta di celebri giocatori di calcio, si moltiplicano con estrema frequenza e, quando i loro perpetratori vengono identificati, ci sorprendiamo per la loro giovanissima età.

10 GAY, Peter, O Cultivo do Ódio, São Paulo, Companhia das Letras, 1996.

Karl Schurster – È Schurster è stato ricercatore post-doc e ha conseguito il dottorato in Storia presso l’UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Insegna come professore dell’Universidade de Pernambuco nel campo di studi della Storia del Tempo presente ed è membro permanente del corso di Laurea in Scienze della Formazione presso la stessa università. Attualmente sta realizzando un secondo stage postdottorale presso la Freie Universität Berlin sotto la direzione del professor Stefan Rinke. I suoi interessi sono rivolti allo studio della politica internazionale, con particolare interesse sui conflitti, in particolare le guerre mondiali e l’olocausto. È stato vincitore del 2° posto al Premio Jabuti, assieme a Francisco Carlos Teixeira e Francisco Eduardo Almeida per il coordinamento dell’Atlântico: a história de um oceano, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2013.

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The Ideological Origins of the Diry War: Fascism, Populism and Dictatorship in Twentieth Century Argentina | Federico Finchelstein

Como foi possível a Argentina, uma nação fundada sobre preceitos liberais, ser palco de radicalismos políticos tão danosos, que envolveram e acarretaram em sequestros de bebês, assassinatos com motivação política, perseguições antissemitas, atentados a bomba e uma espécie de “tutela legitimadora” estabelecida em conjunção, sob o signo da cruz (Igreja) e da espada (forças armadas)? De que modo a história política argentina do século XX foi marcada por uma espécie de simbiose entre o contexto global do fascismo transatlântico e uma constante prática de adaptação e reformulação à realidade local? Essas, embora não somente, são algumas questões que movem Federico Finchelstein em “The Ideological Origins of the Dirty War: Fascism, Populism, and Dictatorship in Twentieth Century Argentina” (Oxford University Press, 2014, 1ª edição).

Em “Transatlantic Fascism: Ideology, Violence, and the Sacred in Argentina and Italy, 1919-1945” (2010), Federico Finchelstein já estabelecera análise sobre alguns dos elementos caros à história política argentina do século XX: a circularidade de ideias e colaborações intelectuais para e com o fascismo internacional (em especial o italiano), assim como o impacto desse processo naquela que é, na América Latina, a nação com maior incidência da imigração e presença europeia em seu ethos social. Em “Ideological Origins of the Dirty War”, o objetivo do autor é maior e mais exaustivo, seja do ponto de vista da temporalidade, mas também da complexidade do tema. Leia Mais

White Power Music

SHEKHOVTSOV, Anton; JACKSON, Paul (Orgs.). White Power Music: Scenes of extreme-right cultural resistance. Northampton: RNM Publications, 2012. Resenha de: OLIVEIRA, Pedro Carvalho. A extrema-direita faz barulho: música, fascismos e intolerância no recente cenário europeu. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 14, p. 81-84, out./dez. 2013.

Em 06 de agosto de 2012, o ex-militar norte-americano Wade Michael Page, então com 40 anos, entrou um templo Sikh na pequena cidade de Oak Creek, em Winscosin, munido de uma submetralhadora, com a única intenção de ferir os fieis que praticavam seus rituais religiosos naquela manhã de domingo. O resultado foi a morte de 8 pessoas, incluindo um policial e o próprio Page, que cometera suicídio. Naquele mesmo ano os Estados Unidos já havia se chocado com dois crimes semelhantes: os massacres da escola primária de Sandy Hook, em 14 de dezembro, e de Aurora, no Colorado, em 20 de julho. No entanto, o crime cometido por Wade Michael Page levantou no país novos questionamentos, além do já tradicional debate sobre as armas.

No mesmo dia em que o fato ocorreu, o The New York Times publicou uma matéria intitulada “Winscosin killer fed and was fueled by hate-driven music”II (ou “o assassino de Winscosin alimentava e era alimentado por músicas guiadas pelo ódio”).

A chamada Hate Music, a qual Page era adepto por meio do White Rock, passou a ganhar destaque junto ao crime, não sendo representada apenas como um mero detalhe, mas como um relevante motivador da intolerância praticada por ele. Tratam-se de gêneros musicais voltados ao ódio ao Outro, a tudo e todos que não se aproximam do ideal de raça e sociedade que as bandas, em sua maioria composta por skinheads fascistas, defendem.

Mas o que é este grande rótulo musical chamado Hate Music e, principalmente, seu mais ativo subgênero, o White Rock? Estas questões são exploradas a fundo no livro “White Power Music: Scenes of extreme-right cultural resistance”, publicado em 2012 e organizado pelo historiador Paul Jackson e pelo cientista político Anton Shekhovtsov, através da RNM Publications. Sua produção independente é resultado de trabalhos realizados pelo “Radicalism and New-Media Research Group”III (“Grupo de pesquisas em radicalismo e novas mídias”), da University of Northampton, na Inglaterra, e compila nove artigos dedicados às “músicas de ódio”.

Trata-se de uma publicação inédita no Brasil, cujo acesso está limitado aos próprios sites do grupo e de seus colaboradores, podendo ser adquirido pelo valor de 12 libras (aproximadamente R$44,00). Ela faz parte da série “Mapping the Far-Right”, cujo objetivo é realizar um mapeamento de ações da extrema-direita na Europa, de onde são provenientes todos os autores que colaboram com o livro. Neste caso, é o rock fascista que ganha destaque em artigos que abordam sua presença em diferentes países: Alemanha, França, Suécia, Grécia, Hungria, Romênia e República Tcheca. Há também a presença de textos que não necessariamente abordam os cenários musicais, mas os personagens do White Rock, a simbologia, debates sobre gêneros nos círculos fascistas e a participação a importância da informática para os músicos.

É Anton Shekhovtsov que, em sua introdução, faz uma síntese do que é o White Rock, como surgiu e por que é um objeto tão importante para compreender a existência dos fascismos na Europa atualmente. Com isto, o leitor desavisado situa-se no tema que será explorado repetidas vezes. Embora certos aspectos sejam abordados muitas vezes no decorrer do livro por diferentes autores, há variadas visões sobre uma ou outra conceituação, diferentes formas de abordagem e possibilidades múltiplas de questionamentos, que acabam realizando uma rede de informações.

Por exemplo, embora alguns textos, como o livro “Diário de um skinhead: Um infiltrado no movimento neonazista”, do jornalista espanhol Antonio Salas, afirmem que o White Rock possui uma relação de troca entre músicos e partidos de extremadireita, onde jovens são recrutados aos partidos pelas músicas e os partidos financiam as bandas, a socióloga Chiara Pierobon apresenta sistematicamente evidências que comprovam esta relação. Ela afirma, graças a uma metodologia específica, apresentando tabelas com resultados numéricos de pesquisas, que em meio à crise das organizações de extrema-direita na Alemanha, a música é vista como um elemento agregador central.

O White Rock age, portanto, como um instrumento ideológico e de socialização. Neste sentido, estamos acostumados a pensar que as bandas são meros fantoches para os partidos, detentores do patrocínio que será utilizado em seu benefício, como se estivesse contratando um serviço. Mas o historiador francês Nicolas Lebourg e seu colega Dominique Sistach, tentam provar o contrário quando afirmam que os grupos políticos “Nouvelle Resistance” e “Unité Radicale” passaram a usar em adesivos e panfletos um símbolo que representava a banda “Fraction”.

Um dos artigos que mais chama a atenção é escrito pela socióloga grega Sofia Tipaldou, abordando a presença do subgênero na Grécia atualmente, diante de um cenário de crise onde a participação política ativa do “Aurora Dourada”, partido explicitamente neonazista, vem sendo observado com preocupação. Ela afirma que a música vem sendo cada vez mais difundida entre os parceiros do partido e explorada como mecanismo político. Isto revela o papel da música não como forma de entretenimento, mas um agente em nome das causas fascistas. Esta faceta evidencia-se na frase que acompanha a logo do selo musical Black Sun Rising Records, usado pela autora pala ilustrar este pensamento: “Algum dia eles desejarão que nós estejamos fazendo apenas música”.

Respeitando suas metodologias, suas ciências e pesquisas específicas, os autores concordam que o White Rock é um tipo de música que exalta as ideologias e práticas fascistas, buscando uma doutrinação de seus ouvintes por meio de suas bandas. Mais do que isto: evoca seus ouvintes a realizarem atos de violência intolerante contra todos que se mostram contrários às suas visões de mundo, ou diferentes dos indivíduos que integrariam suas “sociedades perfeitas”. Todo este pensamento é confirmado por Paul Jackson, ao fim do livro. Ele estabelece que o principal objetivo do livro é expor diferentes propostas de abordagem deste que é um tema importante para compreender os fascismos no Tempo Presente.

A música como meio de comunicação e propaganda entre os fascistas de hoje é sempre uma questão levantada por autores que exploram seus principais consumidores, os skinheads. A diferença apresentada neste livro é que a música é um elemento central, abordado com minúcia pelos colaboradores. Estes, por sua vez, não recebem detalhamentos importantes que normalmente são incluídos em outros livros, como as áreas em que atuam ou outras contribuições que já realizaram, sendo necessário recorrer aos seus currículos para conseguir estas informações.

Os textos que compõem “White Power Music: Scenes of extreme-right cultural resistance” oferecem novas análises sobre as mudanças nos fenômenos fascistas da atualidade por meio da música. Nos mostram que este subgênero preserva narrativas ultranacionalistas e racistas, recrutando jovens às causas políticas envolvidas com os fascismos. Além disto, o White Rock evoca confrontos urbanos onde a violência ao Outro é levada às últimas consequências.

Referências

SHEKHOVTSOV, Anton; JACKSON, Paul (Orgs.). White Power Music: Scenes of extreme-right cultural resistance. RNM Publications: Northampton, 2012.

Pedro Carvalho Oliveira – Graduado em História pela Universidade Federal de Sergipe. Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET/CNPq/UFS).

Le monde vu de la plus extrême droite: Du fascisme au nationalisme-révolutionnaire – LEBOURG (CTP)

LEBOURG, Nicolas. Le monde vu de la plus extrême droite: Du fascisme au nationalisme-révolutionnaire. [?]: Presses Universitaires de Perpignan, Collection Etudes, France, 2010. Resenha de: ANDRADE, Guilherme Franco de. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 12 – 10 de junho de 2013.

Nicolas Lebourg é um historiador da Universidade de Perpignan, na França. Um dos seus principais campos de pesquisa é sobre a Extrema Direita europeia, principalmente o partido francês Frente Nacional. Em suas pesquisas o historiador francês procura analisar a ideologia política pertencente aos grupos radicais, ideologia chamada por ele de “Nacionalismo Revolucionário” francês. Conhecido e estimado na França pela qualidade do seu trabalho e por outros pesquisadores na história de facções políticas. Nicolas também é conhecido por seu blog (http://tempspresents.wordpress.com) e por seus artigos em revistas e periodicos especializados. Em sua dissertação de mestrado, Lebourg escreveu sobre François Duprat, fundador da Frente Nacional. E em sua tese de doutoradoII ele pesquisou sobre o Nacionalismo Revolucionário.

Seu primeiro livro, “O Mundo visto da mais extrema-direita, do fascismo ao nacionalismo revolucionário”, foi publicado em dezembro de 2010 pela editora Presses Universitaires de Perpignan, que finalmente permite ao público ter acesso aos seus escritos.

Em sua introdução, Nicolas Lebourg explica como o fracasso político da direita francesa, na tentativa de manter a Argélia como seu território, durante a Guerra da Argélia, desmobilizou a identidade política radical, antes apoiada nas concepções de Vichy. Segundo o autor “a humilhação do fracasso da Argélia Francesa” levou a direita radical francesa a buscar um novo caminho político, que fosse significativo do ponto de vista da prática, relacionado à militancia dessa nova ideologia, quanto no aparato ideológico.

Dessas mudanças surgiram duas correntes ideológicas, segundo o autor “duas correntes nasceram desse esforço, a Nova Direita e o nacionalismo-revolucionário. Elas vêm de uma matriz comum”. Então, no decorrer de seu livro, em 250 páginas, o autor procura mostrar como essas correntes de forma dialética se influenciaram com o passar dos anos.

Como essas ideologias marcaram limites ideológicos e exerceram rupturas necessárias no pensamento político. Ambas influenciando-se, nunca longe uma da outra, mas sempre separadas.

Ao longo das páginas, o historiador procura enfatizar as oscilações ideológicas, assim como dos avanços e dos recuos das sete estruturas que formaram o movimento Nacionalismo Revolucionário de 1960 até 2002. Sendo as 7 estruturas: a Europa Jovem (Jeune Europe) , A Organização Luta do Povo (l’Organisation lutte du peuple), Os Grupos Nacionalistas Revolucionários de Base (les Groupes nationalistes-révolutionnaires de base), o Movimento Nacionalista Revolucionário (le Mouvement nationaliste révolutionnaire), Terceira Via (Troisième voie), Nova Resistência e Unidade Radical (Nouvelle résistance et Unité radicale) e o grupo de ação politica internacional A Frente Europeia de Libertação (le Front européen de libération).

No livro o autor procura mostrar que mesmo os grupos pequenos, que podem parecer inexpressivos do ponto de vista eleitoral, não chegando efetivamente a cargos políticos, esses grupos podem ter muita influência do ponto de vista ideológico, mesmo que alguns desses grupos sejam compostos por 200, 300 militantes. Questionado sobre a importância de pesquisar até os menores grupos do Nacionalismo Revolucionário, o autor responde dizendo: “dentro do sistema político competitivo, pequenos grupos descobrem sua importância em seu trabalho de “vigia” e de provedor de conceitos e elementos discursivos para as estruturas populistas que, por sua vez, acessam o espaço da mídia.”.

O autor explica que os nacionalistas revolucionários forneceram a Frente Nacional muitas das suas idéias principais como o antiamericanismo e política restritiva à imigração.

É, provavelmente, nas páginas dedicadas à transformação da Frente Nacional de um partido anticomunista para um partido xenófobo e contrário a imigração na França, que este livro é definitivamente o mais interessante. Nicolas Lebourg conta como François Duprat, então líder dos grupos nacionalistas revolucionários de base, impôs este tema e forçou Jean Marie Le Pen e outros frentistas que não acreditavam na sua idéia. Foi ele quem conceituou a noção de “nacionalismo revolucionário”, uma atualização do “movimento fascista”. No início da FN, são seus grupos nacionalistas revolucionários a ala mais radical do partido. Mas isso não impede que influencie fortemente a linha de discurso do partido e que se tornou a marca de um partido social de extrema direita.

Nicolas Lebourg acredita que o nacionalismo revolucionário morreu em 2002 com a dissolução da unidade radical. Sobre este ponto só podemos discordar dele, porque ainda há sites, revistas e organizações que pretendem seguir a Unidade radical. A capacidade de produção ideológica permanece intacta e a imaginação deles é ainda grande. É bem possível que ainda seja nas mentes dos seus líderes que irão desenvolver-se “conceitos e elementos discursivos” que aparecerão amanhã no movimento nacional e popular.

Desde o início, os movimentos fascistas experimentam uma margem que se diz “socialista e europeia”. Muitas vezes derrotados nas campanhas eleitorais, não foi possível desfrutar do poder. No entanto, conseguiu inventar discursos e idéias para a construção de uma Europa nacionalista. Estes têm contribuído para a formação da propaganda dos Estados fascistas depois de 1942, com destaque para a construção de uma “Nova Ordem Europeia”.

Após a Segunda Guerra Mundial, e, particularmente, com a fase de descolonização, e pós 1968, o neofascismo foi reimplantando esses elementos no contexto do que é chamado de nacionalismo revolucionário.

Tendo deixado a unidade europeia na expectativa, esses fascistas trabalham para o estabelecimento de uma ação e uma ideologia internacional. Eles, portanto, participam em muitas áreas políticas, nacionais e internacionais, e realizam táticas diferentes de um para o outro. Este livro é baseado principalmente em documentos inéditos: arquivos internos dos movimentos neofascistas, revistas produzidas por esses grupos nas décadas de 60, 70 e 80, e também compostos por vários dossies e documentos das policias.

Notas

2 Tradução do título ”O Mundo visto da mais extrema-direita, do fascismo ao nacionalismo revolucionário”.

Referências

LEBOURG, Nicolas. Le monde vu de la plus extrême droite : Du fascisme au nationalisme-révolutionnaire. Presses Universitaires de Perpignan, Collection Etudes, France, 2010.

Guilherme Franco de Andrade – Mestrando no Programa de Pós Graduação em História, Poder e Práticas Sociais da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste, Campus Marechal Cândido Rondon. Sob orientação do Prof. Dr. Gilberto Grassi Calil.

Acesso à publicação original

Bloodlands: Europe between Hitler and Stalin – SYNDER (LH)

SYNDER, Timothy. Bloodlands: Europe between Hitler and Stalin. New York: Basis Books, 2010. 524 p. Resenha de: LOI, Stefano. Ler História, n.62, p. 206-210, 2012.

1 Uma parte importante da historiografia contemporânea é constituída pelos estudos que se debruçam sobre o confronto político e bélico entre as ideologias – e os Estados construídos em volta delas – que marcaram profundamente a vida europeia da primeira metade do século XX, nomeadamente o comunismo na sua realização russa e as ideologias de extrema-direita como o fascismo e, especialmente, o nacional-socialismo alemão. A obra de Timothy Snyder inscreve-se nesta corrente historiográfica, pois tenta oferecer novas perspetivas sobre as consequências que a aplicação das ideologias políticas acima referidas teve na população que as experienciou e que viveu o confronto bélico entre os países moldados por estas ideologias, ou seja, a União Soviética e a Alemanha. Daí a ambivalência do título da obra do historiador americano: as Bloodlands não foram só as zonas das batalhas europeias da II Guerra Mundial, numa Europa dominada pelas figuras de Hitler e Estaline. Elas foram, de uma forma mais vasta, o espaço geográfico compreendido entre o rio Oder e a Roménia, no Oeste, e Leningrado e Estalinegrado, no Leste, onde os Estados nazi e comunista colocaram em prática os princípios ideológicos do comunismo e do nacional-socialismo. Foram, depois, o lugar físico onde se confrontaram militarmente a União Soviética e a Alemanha durante a II Guerra Mundial. As «Terras Sangrentas» são, portanto, os lugares politica e militarmente disputados por Hitler e Estaline, ou seja, a Europa, numa declinação política do confronto entre o ditador austríaco e o ditador georgiano, com destaque no Leste europeu, em particular, na vertente sobretudo ideológica e militar deste confronto, um espaço mais limitado no coração da Europa Oriental.

2 O objetivo principal da obra de Snyder é a descrição dos eventos que marcaram as «Terras Sangrentas» entre 1933 e 1945, período em que, com a evolução política em sentido ditatorial da Alemanha hitleriana, a interação política entre Alemanha e União Soviética marcou o início de uma nova fase da vida europeia. O mesmo autor sugere uma cronologia da dúzia de anos que analisa: a primeira fase, entre 1933 e 1939 é marcada por uma mais acentuada atividade de repressão por parte do regime soviético, com destaque para a grande carestia na Ucrânia entre 1932 e 1934 e a Grande Purga de 1936-1938; a segunda fase, entre 1939 e 1941, é a fase da aliança entre as duas ditaduras através do Pacto Molotov-Ribbentrop, fase caracterizada por uma ação militar ofensiva e repressiva comparável entre as duas potências; enfim, uma terceira fase, entre 1941 e 1945, na qual é a Alemanha nacional-socialista a causar o maior número de mortos e na qual se enquadra o drama da Shoah. Ainda mais, o campo de investigação do historiador americano limita-se à violência desencadeada nas Bloodlands no período acima referido, excluindo as vítimas dos combates entre os exércitos alemão e russo começados com a invasão da Polónia pela Wehrmacht e acabados em maio de 1945, com o cerco de Berlim pelo Exército Vermelho. Snyder quantifica os holocaustos contra a população civil e os judeus nas Bloodlands em cerca de 14 milhões de mortos.

3 A ampla obra de Snyder estrutura-se num prefácio, introdução, onze capítulos e conclusão. O objetivo do prefácio é enquadrar a obra, explicando o que são as Bloodlands, o que lá aconteceu, quando aconteceu, e introduzir os «protagonistas» da obra: Estaline, Hitler e as vítimas do furor ideológico dos ditadores. A introdução e os onze capítulos do livro constituem uma ampla descrição dos eventos que marcaram a história das «Terras sangrentas» entre a tomada do poder por parte de Hitler até à queda de Berlim, em 1945, com algumas referências à situação política na Europa oriental entre o final da I Guerra Mundial e 1933 – o período em que se criaram os pressupostos políticos e sociais para o desenvolvimento do estalinismo e do nacional-socialismo – e alguns aspetos da política interna soviética entre a queda de Berlim em 1945 e a morte de Estaline em 1953. Do ponto de vista de escrita histórica, ao corpo central da obra de Snyder faltam muitos aspetos de problematização dos acontecimentos, sendo a narração orientada quase exclusivamente para a descrição sic et simpliciter dos holocaustos que foram perpetrados nas regiões da Europa Oriental. Deste ponto de vista, os objetivos de síntese e descrição que o autor estabeleceu são cabalmente cumpridos através da análise minuciosa de um amplíssimo conjunto de fontes primárias e secundárias que exploram os testemunhos diretos dos massacres e obras de síntese sobre os principais acontecimentos daqueles anos. A capacidade de síntese de Snyder emerge da sua habilidade em criar um fio condutor entre política, economia, ideologia e imanência dos acontecimentos bélicos que contribuíram para a criação das «Terras sangrentas».

4 Como já foi referido, o problema principal na introdução e no corpo central da obra é a falta da problematização dos factos históricos. A escrita do autor segue os princípios da historiografia descritiva, adotando uma estrutura dos capítulos recorrente, resumível na tríade dos números – quantos mortos houve na fração temporal examinada –, descrição dos factos e apresentação dos testemunhos através das suas próprias palavras. A problematização dos acontecimentos, as razões dos eventos e o cruzamento com o devir histórico estão ausentes da maior parte da obra, embora se coloquem questões interessantes que, todavia, não foram aprofundadas: é o caso das ligações entre o tratamento dos judeus e dos prisoneiros de guerra soviéticos por parte das autoridades nacional-socialistas consoante a dicotomia necessidade de alimentos / necessidade de mão de obra; a avaliação das várias «soluções finais» previstas por Hitler e seus colaboradores perante a «ameaça judaica»; a ligação entre os massacres e os momentos de crise na União Soviética e na Alemanha nacional-socialista; o papel desempenhado pelos outros países beligerantes no que diz respeito aos massacres contra as populações civis e os judeus no período da aliança entre Alemanha e União Soviética, bem como nas fases finais da guerra.

5 A falta de problematização histórica no corpo central do livro virá a ser recuperada nas conclusões, provavelmente a parte mais fecunda de toda a obra. Aí o historiador americano, para além de um resumo das cifras de mortos no período analisado, tenta problematizar os acontecimentos e explicar mais em profundidade as razões que o levaram a escrever o livro. Entre os problemas historiográficos mais interessantes que o autor refere vale a pena citar a ideia dos massacres como resposta natural de ambas as ditaduras perante uma «falha», ou seja, um resultado não alcançado ou um desvio dos planos estabelecidos que, por causa da rigidez das ideologias, não podia ser pensado (unthinkability nas palavras de Snyder) e que, desta forma, era considerado como uma conspiração de alguém contra a ordem estabelecida e contra a tentativa de desenvolvimento destas sociedades. Para além desta «teoria dos massacres», Snyder propõe nas conclusões uma interessante comparação articulada entre os sistemas político-ideológicos nacional-socialista e comunista, referindo-se também aos estudos de Hannah Arendt e de Vasily Grossman. Segundo Snyder para reconhecer as diferenças entre os dois sistemas é necessário reconhecer os pontos em comum. Por fim, Snyder explica melhor os meios que os nazistas – sobretudo as Waffen-SS – usaram para perpetrar os massacres contra os judeus e os prisoneiros de guerra, especialmente entre 1941 e 1945, tentando assim quebrar um conhecimento aproximativo dos acontecimentos, dos meios e das razões que levaram aos massacres nos campos de concentração e nos locais da morte (killing sites) de milhões de pessoas, conhecimento esse que se encontra difundido na maioria do público não académico interessado pela história da II Guerra Mundial.

6 Provavelmente a perspetiva mais interessante do livro encontra-se nas últimas páginas das conclusões, onde se referem os objetivos mais profundos que levaram o autor a escrever a obra. O assunto sobre o qual o autor se interroga diz respeito ao uso dos números na narração histórica. O historiador americano expressa claramente e inteligentemente que os números, como no caso das vítimas dos massacres da II Guerra Mundial, servem essencialmente para sustentar uma política, uma ideologia ou uma propaganda direcionada para um objetivo claro e, por esta razão, é necessário ponderar muito o uso das cifras no trabalho historiográfico, particularmente no caso de acontecimentos históricos recentes. Essa utilização dos números ainda hoje exalta os ânimos da sociedade, como no caso da Shoah ou dos holocaustos da época de Estaline. O autor considera ainda que a tarefa do historiador é ligar os números à memória e não fornecer dados brutos que, implicitamente, podem ser usados por propagandistas para apoiarem as suas teses, tornando-se por isso factos políticos e já não elementos de análise histórica, como de facto já acontece, por exemplo, com os revisionistas da Shoah. O objetivo principal da obra de Snyder é, assim, criar ligações entre os números e as memórias de quem viveu aqueles momentos trágicos da história que não é só a história das Bloodlands mas também a história europeia e a história de cada indivíduo. Por esta razão, não se deveria pensar nos catorze milhões de mortos nas Bloodlands como um enorme número de mortos, porque os grandes números levam necessariamente ao anonimato; o objetivo de Snyder é pensar neste enorme número de mortos como catorze milhões vezes um, pois cada pessoa leva um fragmento singular de uma memória do passado que deve tornar-se história e consciência compartilhada. As palavras de Snyder, neste sentido, são emblemáticas: os regimes nazi e comunista tornaram as pessoas em números e é nossa tarefa, como humanistas, transformar novamente os números em pessoas, caso contrário Hitler e Estaline não modificaram somente o nosso mundo mas também a nossa humanidade1.

7 O objetivo há pouco descrito foi cumprido admiravelmente pelo historiador americano e justifica as amplas partes da sua obra dedicadas aos testemunhos diretos dos massacres perpetrados nas «Terras sangrentas». Pelo contrário, é o mesmo amplo uso de fontes diretas que contribui de forma significativa para a construção de uma narrativa que tem o claro objetivo de impressionar o leitor, de causar uma reação emotiva e suscitar comoção, quando não mesmo horror. Sendo a cadência do corpo central do livro muito descritiva, a construção da narrativa desempenha um papel fundamental nos equilíbrios da obra; é como se o autor tivesse tentado moldar a configuração dos vilões aos protagonistas da história, Hitler e Estaline, corroborando esta tentativa com as vozes das testemunhas, para que um leitor não especialista de história se sentisse familiarizado nas descrições, ou para que, pelo menos, estas coubessem bem na típica dicotomia «bem/mal», sempre muito apreciada pelo grande público. Os primeiros capítulos do livro, de facto, podem parecer uma obra de Robert Conquest2 sem que se vislumbre algum novo equacionar de problemas ou aprofundamento historiográfico. É opinião de quem escreve que não foi por acaso que esta obra, sem dúvida nenhuma interessante e bem escrita, não foi publicada por uma University Press americana, mas sim por uma editora comercial e se tornou um bestseller em quatro países. A construção narrativa de Snyder desvalorizou parcialmente uma obra otimamente estruturada do ponto de vista bibliográfico e que, apesar de tudo, propõe algumas sugestões e problemas historiográficos de claro interesse para a comunidade académica.

8 Retomando afirmações anteriores, provavelmente o problema principal da obra de Snyder é a falta de uma maior problematização dos eventos descritos e uma narrativa que resulta às vezes parcial. Contudo, estas características não devem desvalorizar a força da obra do historiador americano e o enorme trabalho de pesquisa, de avaliação das fontes documentais e a ampla bibliografia em que se alicerça a obra. Em particular, o objetivo que o autor propõe sobre a utilização dos números na narrativa histórica e a problematização do papel dos humanistas perante tragédias como a da Shoah, para além das descrições precisas e pormenorizadas dos factos que aconteceram, tornam Bloodlands uma obra de grande interesse sobre a história contemporânea da Europa Oriental.

Notas

1 Snyder, Timothy, Bloodlands: Europe between Hitler and Stalin, New York, Basis Books, 2010, p. 383.

2 Refiro-me aqui a Conquest, Robert, The Harvest of Sorrow: Soviet Collectivization and the Terror Fa (…)

Stefano Loi – Doutorando em História Moderna e Contemporânea e membro do CEHC, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa. A sua área de pesquisa é a história militar dos séculos XIX e XX. E-mail: [email protected]

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Mussolini e a ascensão do fascismo – SASSOON (H-Unesp)

SASSOON, Donald. Mussolini e a ascensão do fascismo. Trad. De Clovis Marques. São Paulo: Agir, 2009, 200 p. Resenha de: GONÇALVES, Marcos. História [Unesp] v.28 no.2 Franca  2009.

Em obra traduzida recentemente ao português, o sociólogo Michael Mann concluiu pela impossibilidade política de reaparecimento vigoroso do fascismo. A não ser pela eclosão dispersa de agrupamentos neofascistas na Europa Ocidental que teriam como princípio de ação o antiimigrantismo, Mann enumerou alguns fatores que desmotivam uma revitalização acentuada de tais movimentos.1

Parece-nos, no entanto, que o fascínio pelo tema é contínuo devido à preocupação crescente de historiadores e demais cientistas sociais, em estabelecerem marcos conceituais cada vez mais precisos para estudá-lo, classificando-o não somente dentro do seu contexto imediato de referência histórica, isto é, entre o fim das duas guerras mundiais do século passado, e, sim, como uma categoria ampla e de permeabilidade sócio-histórica significativa. Esta dupla razão tem implicado em que as interpretações sobre o fascismo sejam conduzidas pela originalidade na análise dos materiais e nas descrições tipológicas do fenômeno, consolidando-se daí, conteúdos de alcance multidisciplinar.

Não se cogitaria da mesma forma, em uma retomada pura e simples dos estudos sobre o fascismo que viesse a suprir apenas ambições intelectuais, se tomarmos em consideração os argumentos ainda presentes de Renzo De Felice, eminente historiador do fascismo e também, biógrafo de Mussolini. 2 Em meados da década de 1970, Renzo De Felice produziu uma clássica revisão historiográfica do fenômeno, e explicou que as primeiras tentativas de interpretação do fascismo correram contemporâneas a ele e seguiram o processo de sua afirmação. Segundo De Felice, foi apenas por breve período e imediatamente após a segunda guerra que a cultura européia, esgotada com um problema trágico que se queria esquecer e encerrar optou por um distanciamento de curta duração.3 A angustiante necessidade de entender o fascismo e suas variantes de ação e representação, sua violência, rituais e manifestações regionalizadas, fez com que o tema voltasse a ser objeto de indagações com renovada intensidade já no início dos anos 1960.

Desse modo, ao contrário de recuar, ou de ser eclipsada por modismos, a historiografia do fascismo exibe uma notável tendência de avanço e adensamento analítico constatada por recentes traduções que são recepcionadas em nosso meio.

Mussolini e a ascensão do fascismo, estudo de Donald Sassoon, professor de História Comparada da Europa na Universidade de Londres, se constitui como exemplo de excelente síntese de história política sobre a elevação do fascismo a regime político na Itália, berço do movimento.

Numa análise envolvente, ágil e de fôlego, Sassoon traça um painel conjuntural de uma Itália pós primeira guerra sendo rapidamente engolfada pelo fascismo. É dentro desse contexto que o autor estabelece o debate sobre as questões centrais, divididas em cinco capítulos de uma uniformidade ímpar. Sassoon está menos preocupado em investigar as razões de consolidação de uma ditadura e suas raízes intelectuais e ideológicas, ou nem sequer é atraído em saber por que Mussolini conseguiu manter-se durante vinte anos como Chefe de um Estado totalitário. A questão consiste em saber por que Mussolini chegou ao poder, ou seja, o motivo, considerando-se as circunstâncias relatadas, de um líder de um partido eleitoralmente impopular, sem apoio nacional nem controle dos militares, ser nomeado primeiro-ministro e receber o beneplácito da monarquia e de outras fontes de poder social.

Atento a esse problema,Sassoon se empenha em relativizar certos mitos legitimadores do fascismo. Um deles é a lendária “marcha sobre Roma”, de outubro de 1922; o outro é a suposta penetração eleitoral dos fascistas. Neste segundo aspecto, embora o número de adeptos e militantes do fascismo viesse aumentando de forma constante nos primeiros anos da década de 1920, chegando em maio de 1922 a aproximados 322 mil membros, o fascismo nunca se caracterizou por ser uma força eleitoral antes da tomada do poder. Pressionado entre os dois maiores partidos italianos da época, o PPI (Partito Populare Italiano, católico) e o Partido Socialista, representante dos trabalhadores urbanos e da nova intelligentsia, o movimento fascista teve que recorrer a alianças. Reiterando os argumentos enunciados pelos estudos de Robert Paris e Stanley Payne,4 Sassoon indica que foi a aproximação com liberais e nacionalistas de direita o elemento favorável ao crescimento do fascismo:

Em termos eleitorais, o fascismo não fora um grande sucesso. A primeira eleição de que participaram, em 1919, revelou-se um desastre. (…) Os fascistas saíram-se um pouco melhor na eleição de maio de 1921, mas só porque estavam integrados ao blocco nazionale de Giolitti, juntamente com liberais e nacionalistas de direita. Não se pode dizer que Mussolini fora levado irresistivelmente ao poder numa onda de apoio eleitoral (p. 18-19).

A superestimação da “marcha sobre Roma” também é alvo da crítica de Sassoon. Pontuada de fina ironia, a descrição do autor sugere que a linguagem de Mussolini e seus acólitos para justificarem a chegada ao poder pintava um quadro de sublevação e celebrava a violência revolucionária. Impressões falsas que se legitimaram através das duas décadas do regime, destroçando a lembrança de que Mussolini fora designado primeiro ministro dentro de um quadro de legalidade constitucional, malgrado a crise política e econômica atravessada pela Itália no início dos anos 1920.

Neste sentido, é sombrio constatar com Sassoon, que boa parte do programa preliminar fascista visando recuperar e estabilizar a Itália depois da tremenda crise gerada pela primeira guerra, tinha pontos assemelhados, para mais ou para menos, com alguns itens do conteúdo programático de correntes liberais e socialistas. O autor assinala que o programa dos fasci não era abertamente de direita, pois encampava uma série de reivindicações que fugiam aos programas nitidamente conservadores, como, por exemplo: extensão do sufrágio às mulheres, recuo da idade de voto para 18 anos, abolição do Senado, salário mínimo, jornada de trabalho de 8 horas, representação dos trabalhadores nas empresas, imposto sobre a riqueza, confisco de bens da Igreja, imposto especial sobre os lucros da guerra (p. 63-64).

Dois substanciais fatores combinados ajudam a explicar, segundo Sassoon, a razão de ter o poder caído nas mãos dos fascistas: os resultados insatisfatórios da primeira guerra, e as fragilidades históricas do sistema parlamentar italiano.

Considerada uma potência imperialista de segunda classe no começo do século XX, a Itália aderiu à primeira guerra como aliada de franceses e britânicos por injunções e pressões dos entusiastas intervencionistas a favor do conflito, e pela promessa de futuras compensações financeiras e territoriais estabelecidas pelo Tratado de Londres, assinado em 1915. Tão logo encerrado o conflito, produziu-se um descontentamento generalizado em razão de o verdadeiro espólio de guerra recebido estar muito aquém das expectativas italianas. Esta herança mal digerida pelos promotores da presença italiana no conflito foi resumida pelo poeta D’Annunzio em poema no qual aludia à “vitória mutilada”, e à humilhação sofrida por toda uma geração de jovens combatentes. Sassoon explicita que os beneficiários da guerra foram os grupos que formavam o grande triângulo industrial da Itália: Ansaldo (aço), Fiat (veículos), Pirelli (borracha). Enquanto a indústria italiana mostrava-se, como sempre, dependente do governo que era o seu principal comprador, o Estado se escorava nos bancos credores e nos impostos dos contribuintes para equilibrar seus orçamentos. Por seu lado, as associações de veteranos de guerra, além da construção de forte sentimento de comunidade, exigiam mais espaço político, e reconhecimento pelos sacrifícios que a experiência de violência e brutalidade de uma guerra tinham representado: “O número de baixas italianas na Grande Guerra foi muito alto: 650 mil mortos e um milhão de feridos” (p. 46).

Já, as debilidades do sistema parlamentar italiano são detectadas por Sassoon como algo enraizado na cultura política italiana, pelo menos, desde o processo de unificação na segunda metade do século XIX. Sem partidos fortes e estabelecidos, e com uma monarquia que pouco sensibilizava a audiência pública, o Estado italiano era, por conseguinte, um Estado fraco. O parlamento era basicamente uma arena em que os representantes dos interesses fundiários e os industriais entravam permanentemente em disputa em torno de cada lei ou medida financeira:

Da noite para o dia, adversários podiam ser transformados em aliados mediante suborno direto ou indireto – razão da designação pejorativa “transformismo” ser aplicada ao sistema. (…) Desenvolveu-se um sistema de “clientelismo”, no qual os políticos prometiam empregos aos eleitores e seguidores, proteção e um constante fluxo de dinheiro público. Esse tipo de proteção pessoal dificultou o desenvolvimento de partidos políticos modernos e centralizados (p. 71-72).

O avanço do fascismo foi projetado, justamente, nesse quadro crônico de crise social e política em desdobramento. As primeiras percepções sobre o que era o fascismo foram casuais, fortuitas, e críticos antifascistas do futuro próximo, como os líderes comunistas Antonio Gramsci e Palmiro Togliatti apenas faziam menção breve sobre a violência dos fascistas, e, provavelmente, não viam nele, uma real possibilidade de vir a se tornar uma força política estável e candidata à governabilidade.

Através do emprego da violência, o fascismo foi gradativamente angariando adeptos nas zonas rurais e nas classes médias urbanas. Ao eleger o antiesquerdismo e o antisocialismo como fontes de todas as mazelas da Itália, Sassoon sublinha que o fascismo destruiu em pouco menos de dois anos a estrutura institucional do socialismo italiano. A uma velocidade que ninguém poderia ter previsto, descortinou-se aos proprietários de terras a perspectiva de ver o odiado sindicalismo rural liquidado por um movimento, o de Mussolini, que parecia mais capaz de representar suas aspirações de longo prazo: a defesa da propriedade privada, uma política externa nacionalista e a realização de obras públicas para fomentar a economia rural.

Ministros como o velho líder liberal Giollitti, e mais tarde Nitti, foram reiteradamente demonizados pagando o preço da excessiva concentração nas necessidades do setor industrial: “Relegados, os proprietários fundiários das províncias do norte e do centro contra-atacavam, tendo como arma principal os esquadrões do fascismo” (p. 103).

Sassoon reconhece que uma das grandes forças internas do fascismo foi seu expressivo contingente de jovens, sistematicamente propagandeado por Mussolini. Esta força também se materializou na base social do eleitorado fascista constituído por esmagadora maioria do sexo masculino. A juventude fascista enxergava a si como vanguarda imbuída de uma missão épica germinada na experiência dos conflitos, batalhas e da ruína da primeira guerra. Tal demografia juvenil, aliás, é fundamental para percebermos que a ideologia do fascismo, longe de ser difusa ou marcada pela assimetria, era sedutora por estabelecer fronteiras claras no discurso que reforçava as antinomias novo / velho, moderno / arcaico. O fascismo anunciava a construção do homem novo, apropriava-se das filosofias vitalistas e voluntaristas da época, opondo-se à direita tradicional, mais fiel aos valores conservantistas.

Sassoon pretendeu capturar o inusitado do acontecimento fascista a partir da cumplicidade construída pelo conjunto das elites italianas, que por sua posição de visceral antisocialismo preferiu fortalecer o que julgava ser um “mal menor”, e temendo por suas posições consolidadas em face de possíveis avanços de socialistas e comunistas, não aceitaria que a Itália fosse um espelho dos recentes acontecimentos na Rússia. Segundo o autor, essas elites pretendiam transformar Mussolini em “criatura”. As questões que as preocupavam eram a governabilidade e a “ordem pública”, e Mussolini, que pouco tempo antes era apenas uma figura secundária e inexperiente na cena política, num momento estratégico apareceu como o “instrumento” a garantir a tranquilidade dos industriais, não atrapalhar os proprietários rurais, apascentar os sindicatos.

O estudo de Sassoon nos esclarece que a ascensão de Mussolini ao posto de primeiro ministro se não foi recebida com entusiasmo por algumas correntes políticas que, naquele momento, comungavam de projetos aparentados com o fascismo, pelo menos, recebeu desses mesmos setores uma adesão implícita, tornando-os ainda mais cúmplices, seja por omissão deliberada, seja por engajamento escancarado: “Assim, quando Mussolini assumiu, ouviu-se um coro de aprovação, oscilando entre o franco entusiasmo (os nacionalistas e a direita em geral) e a aceitação resignada do fato como um mal necessário (os liberais)” (p. 145). Isto é, antes Mussolini, do que a esquerda.

Embora a conciliação com a Igreja tenha representado uma árdua tarefa para os fascistas, ela se realizou plenamente em fevereiro de 1929. Neste ano, o Estado italiano selou a paz com o Vaticano assinando a Concordata e pondo fim à “questão romana” que se arrastava desde a unificação nas décadas de 1860/70. O acordo reconhecia a soberania do Vaticano, estabelecia indenizações a serem pagas à Igreja pelas perdas sofridas em 1870, reconhecia o catolicismo como “religião de Estado”, determinava o ensino da doutrina católica em todas as escolas oficiais: “Não surpreende que o papa Pio XI considerasse Mussolini o homem ‘que a Providência nos enviou'” (p. 152).

A contínua rediscussão do fenômeno fascista seja como evento historicamente localizado, ou como “grande unidade de análise”, como bem posicionou Francisco C. Teixeira da Silva,5 encontra no estudo de Donald Sassoon um respaldo bibliográfico e metodológico de inegável contribuição. A partir de suas análises, os estudiosos motivados pelo tema podemos localizar hipóteses de trabalho, e insights reflexivos para (re) construir discursos derivativos e / ou elementos comparativos do fascismo. Além do que, podem-se estabelecer pontos de contato entre as múltiplas clientelas filofascistas que agem na cenografia política da contemporaneidade. Não obstante, sobre o fascismo, ou em relação ao que vem sendo chamado de neofascismo, devemos guiar-nos sempre pelas dúvidas e desconfianças quanto aos modelos teóricos que fecham a questão sobre os setores supostamente restritos que abraçam unicamente uma das possíveis tendências do fenômeno.

Notas

1 Dentre os fatores que o autor cita como potentes inibidores dos fascismos estão: 1) a democracia liberal consolidada em toda Europa ocidental; 2) a União Européia, cuja exigência de democracia é um pré-requisito para a entrada dos países pretendentes. Cf. MANN, Michael. Fascistas. Tradução de Clovis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2008.

2 Cf. DE FELICE, Renzo. Mussolini il rivoluzionario 1883-1920. Turim: Einaudi, 1965. Cf. _____. Mussolini il fascista. La conquista del potere 1921-1925. Turim: Einaudi: 1966.

3 Renzo de Felice também alude a certa inércia intelectual relacionada às três interpretações que se cristalizaram a partir da década de 1920: a liberal, a radical e a marxista. Essa cristalização teria impedido que os estudos a respeito do fascismo não somente deixassem de avançar para novos problemas, como também teria gerado posições acomodatícias por satisfazer adeptos das três correntes, num período marcado pela extrema ideologização da cultura política. Cf. DE FELICE, Renzo. Explicar o fascismo. Lisboa: Edições 70, 1977.

4 Cf. PARIS, Robert. As origens do fascismo. Tradução de Elisabete Perez. São Paulo: Perspectiva, 1993. Cf. PAYNE, Stanley G. El fascismo. Traductor: Fernando Santos Fontela. Madrid: Alianza Editorial, 2006.

5 SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Os fascismos. In: FERREIRA, Jorge; REIS FILHO, Daniel Aarão; ZENHA, Celeste. (Orgs.). O século XX. O tempo das crises: revoluções, fascismos e guerras. 4. ed. V. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

Marcos Gonçalves – Professor Adjunto do Departamento de Ciências Humanas – Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de Paranaguá – FAFIPAR – Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR – 83203-280 – Paranaguá – PR – Brasil. E-mail: [email protected].

Esportare il fascismo. Collaborazione di polizia e diplomazia culturale tra Italia fascista e Portogallo di Salazar (1928-1945) – IVANI (LH)

IVANI, Mario. Esportare il fascismo. Collaborazione di polizia e diplomazia culturale tra Italia fascista e Portogallo di Salazar (1928-1945). Bolonha: CLUEB, 2008. Resenha de: NUNES, João Arsénio. Ler História, n.57, p. 162-166, 2009.

1 Com este livro Mario Ivani prolonga o trabalho de comparação entre o fascismo italiano e o regime salazarista, acerca da qual já em 2005 publicara o que se pode considerar, até hoje, a síntese mais conseguida1. Objecto de análise é agora não tanto o confronto entre os dois regimes como o estudo da relação entre eles, tomando como ângulo de observação a tentativa italiana de alargar a sua influência política e cultural em Portugal.

2 O capítulo 1 descreve o nascimento do Estado Novo salazarista, partindo da análise das diversas componentes da ditadura militar instaurada em 1926 e da posição que Salazar nela ocupou. Ivani situa em 1936, com a eclosão da guerra civil de Espanha, a viragem decisiva que «reduziu em muito as distâncias entre o Estado Novo e o modelo político fascista». É a partir do segundo capítulo que a problemática das ideias e organizações fascistas portuguesas é abordada com autonomia. Regista-se pertinentemente que, desde início, «o advento do fascismo suscitou em Portugal uma grande atenção nos meios nacionalistas e reaccionários» e que a influência dos movimentos portugueses de derivação fascista tem sido em geral subvalorizada. Ivani deixa claro como tais movimentos, do Nacionalismo Lusitano ao Nacional-sindicalismo e à Liga Nacional 28 de Maio, se relacionaram directamente com a implantação e os primeiros anos de existência da ditadura, bem como o papel que personalidades a eles ligadas, como António Ferro, vieram a ter no regime salazarista, qualificado pelo mesmo Ferro como «fascismo em acto».

3 A tentativa italiana de «exportação» do modelo fascista constitui o objecto central da obra. Numa primeira fase, tal tentativa assume uma forma essencialmente propagandística, sendo contemporânea de outras iniciativas internacionais do regime mussoliniano, como o Congresso internacional fascista de Montreux (1934). Consistiu ela na criação dos «comités de acção pela universalidade de Roma» (CAUR) e de uma «Liga de acção universal corporativa» que, embora tendo chegado a atrair a adesão de um certo número de figuras de relevo intelectual, não lograram alcançar implantação significativa. Para o autor, o aspecto importante da acção do fascismo italiano no sentido de influenciar o Estado Novo salazarista não se situa tanto nestas tentativas de carácter directamente propagandístico como num processo de penetração orgânica mais difusa e prolongada. Numa perspectiva em que é visível a lição de Gramsci, o autor sublinha a necessidade de encarar «o conúbio entre repressão e máquina do consenso» na consolidação das ditaduras europeias e as implicações do quadro internacional em que ela decorre: «com o advento do nazismo, o antifascismo tinha superado a fase essencialmente italiana para assumir uma consumada dimensão internacional, em resposta à qual as ditaduras de direita intensificaram a colaboração de polícia.»

4 Antes de entrar propriamente na análise da colaboração orgânica entre as organizações policiais italiana e portuguesa, o livro dedica um capítulo à atitude das autoridades portuguesas perante o afluxo dos refugiados. Mostra-se como abundam os juízos racistas em relatórios da PVDE, e sobretudo como foram adoptadas medidas bastante amplas tendentes a obstaculizar a entrada de judeus ou a promover a sua expulsão: medidas que decorriam logicamente do juízo expresso pelo chefe da polícia política, segundo o qual «o hebreu estrangeiro é, por norma, moral e politicamente indesejável». Foram perseguidas, tanto em Portugal como no estrangeiro, através da colaboração com outras polícias, as redes que tentavam organizar a passagem de refugiados para Portugal. O italiano Virgilio Bartolini, acusado de implicação numa destas redes, passou três anos nas prisões e no campo de concentração do Tarrafal, sem nunca ter sido julgado. Também os judeus portugueses, nomeadamente os envolvidos na actividade de difusão religiosa da Obra do Resgate, foram objecto de discriminações, vindo o principal animador desta, o capitão Barros Basto, a ser expulso do Exército.

5 Um dos capítulos de maior interesse do livro é o que respeita às relações entre as polícias italiana e portuguesa, nomeadamente a minuciosa e inovadora análise da actividade dos membros da missão de Polícia italiana enviada a Portugal em 1937, dois dos quais permaneceram no país por quase três anos. O envio da missão nasceu de uma iniciativa do próprio Salazar perante o impasse da investigação acerca do atentado de 4 de Julho de 1937, que por pouco o não vitimou. Com efeito, a polícia política portuguesa partiu do pressuposto da responsabilidade comunista no atentado e rapidamente conseguiu, com os seus métodos habituais, a confissão dos acusados. Viria a verificar-se que eram todos inocentes mas, no curso da detenção, dois deles perderam a vida. O livro deixa claro o alcance que esta missão tinha para os agentes italianos – «alargar os espaços de manobra no interior dos aparelhos portugueses significava também estender por essa via a influência do fascismo entre as elites locais, contribuindo num esforço conjunto com os órgãos de propaganda para a tentativa de exportar o modelo fascista para Portugal» –, e bem assim as fortíssimas resistências que suscitou na direcção da polícia política portuguesa. A missão italiana recusou o caminho de estabelecer relações privilegiadas com instituições, como a Legião Portuguesa, que as procuravam, preferindo manter-se no quadro das relações estáveis com as autoridades designadas pelo governo português. O resultado cifrou-se sobretudo na conclusão de um acordo técnico entre as duas polícias (semelhante a análogo acordo italo-alemão). Com base neste acordo se deu nos anos seguintes uma reforma dos métodos da polícia política portuguesa, tendo como efeito uma muito maior penetração e sistematicidade da recolha de informações entre a população, no sentido do controle e infiltração dos meios oposicionistas.

6 Quase metade da obra é dedicada à «exportação da ideia: diplomacia cultural e propaganda fascista em Portugal» (capítulo 4). Partindo dos modestos inícios da fundação do Instituto em 1928, é analisada com detalhe a acção, que se intensifica a partir de 1933, tendente a «constituir entre os intelectuais portugueses uma espécie de partido filo-italiano». Uma série de conferências, realizadas neste ano por nomes destacados da cultura literária e científica portuguesa, lançou aquilo que na imprensa de Lisboa era descrito como «um movimento de aproximação intelectual com a Itália». Tal acção não se encerrou nas paredes do Instituto Italiano. O director do Instituto de Ciências Económicas e Financeiras, Moses Amzalak, tomou a iniciativa da criação na sua Faculdade de uma «sala italiana», inaugurada em princípios de 1935, onde chegaram a iniciar-se os trabalhos de uma «escola sindical italiana». Não menos interessante é o teor das declarações produzidas nas conferências, tendentes a reclamar os pergaminhos portugueses na história do fascismo europeu: segundo um dos conferencistas, Mussolini, Salazar e Hitler encarnavam o ideal preconizado no princípio do século XX pelo rei português D. Carlos, «figura eminente na origem da actual concepção da suprema política de guiar os povos» e continuado por João Franco e Sidónio Pais.

7 O movimento de difusão cultural fascista sofre uma breve quebra, em 1935, em relação com a agressão italiana à Etiópia e a adesão do governo português à política de sanções económicas contra a Itália, adoptada pela Sociedade das Nações. Tal adesão deveu-se em larga medida à orientação anglófila do ministro dos Negócios Estrangeiros, Armindo Monteiro, no ano seguinte demitido por Salazar2. Este contexto diz muito sobre as realidades portuguesas da época, ao mesmo tempo que explica a observação do ministro italiano em Lisboa, citada no livro, acerca da imprensa portuguesa: «hoje a parte que nos é mais favorável é a mais próxima do governo que entretanto, o paradoxo é só aparente, segue uma política decididamente inglesa».

8 Um aspecto com uma presença marginal, mas não irrelevante, na obra de Mario Ivani, são as acções de agitação anti-fascista que, apesar da perseguição policial, persistem na sociedade portuguesa e encontram ainda forma de expressão pública. Assim por exemplo, a contestação de que são objecto os leitorados de italiano nas três universidades do país, chegando-se em Lisboa, no fim de uma lição inaugural, a «gritos de ‘viva a Abissínia’ e ‘viva o comunismo’ no meio de uma algazarra geral», como é referido num relatório diplomático. Mais tarde, em 1939, uma exposição do livro italiano na «sala do Império» da Universidade de Coimbra será alvo de uma acção clandestina de sabotagem que leva à anulação da cerimónia e a um protesto oficial do governo italiano.

9 A vitória militar italiana na Etiópia relança as manifestações de solidariedade política luso-italiana. Mas sobretudo a guerra civil de Espanha, a partir de Julho de 1936, vai presenciar a unidade dos regimes italiano, alemão e português no apoio à rebelião franquista e abrir novas oportunidades à acção do Instituto de cultura, que «obtém crescentes consensos no interior da camada política e intelectual salazarista.» São relançadas as conferências de personalidades italianas e portuguesas sobre as afinidades das instituições dos dois países nos mais diversos campos. Figuras de destaque da política italiana, como Federzoni, presidente da Academia de Itália e anteriormente do Senado, visitam Portugal. Em 1937, as comemorações do centenário da Universidade de Coimbra, a que Salazar assiste, «transformaram-se num explícito tributo às delegações italiana, espanhola e alemã» e manifestação da unidade dos fascismos. São italianos a receber então o maior número de doutoramentos honoris causa.

10 O autor dedica ainda espaço a uma outra questão acerca da qual não havia investigação anterior, a da influência dos estudos eugénicos, analisando o Congresso de Ciências da População, realizado no Porto em 1940, e a criação em 1936 da Obra das Mães para a Educação Nacional, inspirada na italiana Opera Nazionale per la Maternità e l’Infanzia.

11 A parte dedicada à «acção sobre a imprensa portuguesa» é uma das mais interessantes, no aspecto da revelação do grau de identificação de importantes sectores da sociedade e da política portuguesa com as orientações do fascismo italiano, no período que precede a II Guerra mundial. O adido de imprensa da representação diplomática italiana desenvolve um trabalho sistemático de distribuição de propaganda a figuras influentes vistas como simpatizantes e cuida, além disso, do acompanhamento da imprensa portuguesa. Consegue não só fazer publicar em jornais portugueses, sob pseudónimo, os seus artigos, mas também que textos enviados pelo Ministério da Cultura Popular italiano fossem publicados no Século como artigos do seu «correspondente em Roma». Esta parte da investigação é ainda importante pelo que mostra da orientação governamental, através da União Nacional e do seu órgão de imprensa: «No decurso de 1939, o Diário da Manhã radicalizou a sua orientação a favor do modelo político italiano», correspondendo à visão de Salazar, no princípio da II Guerra mundial, da Itália como garante de uma «zona de paz». Esta italofilia não foi afectada pela publicação das leis raciais em Itália, pelo contrário: «no decurso de 1939 a aproximação do Diário da Manhã às posições do fascismo incluiu uma mais explícita exposição em sentido anti-semita».

12 O autor não restringe a análise aos jornais da capital. Também a imprensa da província é sujeita a escrutínio, constatando-se, na segunda metade dos anos 30, «o florescer de uma série de publicações periódicas de orientação limpidamente fascista, difundidas mesmo nos pequenos centros urbanos». São analisados em detalhe os instrumentos de influência italianos sobre esta imprensa, que tinham de se defrontar com os recursos financeiros superiores da concorrência, não só francesa e inglesa, mas também dos aliados alemães.

13 A partir da entrada da Itália na Guerra, as exigências decorrentes da manutenção da neutralidade portuguesa impunham limites mais estreitos à propaganda italiana. No entanto, são-nos dadas a conhecer em pormenor as actividades, legais e «clandestinas», então desenvolvidas, a distribuição de propaganda a simpatizantes (e quem eram), a recolha de informações sobre os inimigos, as formas de apoio à imprensa legal, nomeadamente de carácter local, que permanece «fiel». Não cessou nesta época a actividade político-cultural do Instituto, através de concertos, sessões de poesia e também de conferências não isentas de alcance político, nas quais continuaram a participar altas personalidades do regime salazarista. Sobretudo, é a partir de então que se verifica uma concentração de esforços na difusão da língua nas escolas portuguesas: na primavera de 1943, havia no país 57 institutos de nível médio e superior com cursos de italiano, contando com mais de 3500 inscritos, número considerável nas condições da escolaridade portuguesa da época.

14 Também a análise do período que medeia entre o 25 de Julho de 1943, data da demissão de Mussolini, e o derrube definitivo do fascismo italiano em 25 de Abril de 1945, não é deixada de lado: destinos diversos e contraditórios do pessoal diplomático e educativo italiano em Portugal, consoante aderiu ao novo governo de Badoglio ou à república de Salò, continuação da actividade fascista a coberto da direcção do Instituto no Porto, relações com os representantes dos Aliados, recusa da polícia portuguesa a impedir a actividade dos partidários de Salò em Portugal, são alguns dos elementos referidos.

15 Um último capítulo, sobre «a comunidade italiana como instrumento de propaganda», em que são sucessivamente passados em revista os «fasci all’estero» (cujo aparecimento em Portugal é anterior a 1926), a Igreja italiana e a actividade das escolas italianas em Portugal, conclui a obra.

Notas

1 «Il Portogallo di Salazar e l’Italia fascista: una comparazione», Studi storici, aprile-giugno 2005 (…)

2 Valentim Alexandre, O Roubo das Almas, D. Quixote, Lisboa, 2006, nomeadamente pp. 110-114.

 

João Arsénio Nunes – Dep. História – CEHCP – ISCTE-IUL

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Fascism outside Europe. The European impulse against domestic conditions in the difusion of global fascism | Stein Ugelvik Larsen

O norueguês Stein Larsen é um conhecido estudioso do tema do fascismo global. Entre seus vários trabalhos, destaca-se a coletânea Who were the fascists? Social roots of European fascism (Oslo, 1980), a qual se constitui num livro clássico a respeito das bases sociais do fascismo europeu, da teoria do fascismo e do estudo comparativo entre os vários movimentos e regimes fascistas da Europa.

No presente trabalho, Larsen mantém a sua predileção por grandes coletâneas com colaborações de autores dos mais diferentes países e continua a se dedicar à história comparativa com vistas à elaboração de uma teoria geral do fascismo. No entanto, ele ampliou sobremaneira, com relação ao seu trabalho anterior, de vinte anos atrás, o enfoque da comparação e também o tipo de perguntas a que ele pretende responder. Leia Mais

Integralismo e política regional: a ação integralista no Maranhão (1933-1937) – CALDEIRA (RBH)

CALDEIRA, João Ricardo de Castro. Integralismo e política regional: a ação integralista no Maranhão (1933-1937). São Paulo, Annablume, 1999, 135p. Resenha de: CYTRYNOWICZ, Roney. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.21, n.40, 2001.

A publicação do livro Integralismo e política regional: a ação integralista no Maranhão (1933-1937), do historiador João Ricardo de Castro Caldeira (São Paulo, Annablume, 1999), suscita a reabertura do debate referente às leituras e interpretações sobre o Integralismo no Brasil. Os estudos já dedicados ao movimento/partido Ação Integralista Brasileira (AIB), que existiu legalmente no Brasil entre 1933 e 1937, concentraram-se principalmente na análise de sua ideologia. Tendo como marco inicial o livro de Hélgio Trindade em 19741, cerca de dez livros e artigos foram escritos desde então sobre o tema, cujo campo é ainda uma grande frente de pesquisa em aberto. Esta produção historiográfica e de ciências sociais é reduzida se comparada, por exemplo, à vasta bibliografia sobre movimentos e partidos de esquerda, e mais ainda se analisada no contexto da produção sobre o primeiro período Vargas e o Estado Novo.

A importância de se estudar o Integralismo decorre, entre outras razões, de sua expressiva atuação política entre 1933 e 1937, do interesse de comparar o Integralismo com outros movimentos fascistas (aceitando-se ou não sua caracterização como fascista2), da necessidade de se pesquisar a história dos movimentos e do pensamento de direita e de extrema-direita no País (que não são apenas miméticos em relação à Europa) e, por fim, do interesse que personagens e obras como as de Plínio Salgado, Gustavo Barroso, Miguel Reale e outros tiveram e têm como matrizes de movimentos e pensamentos no País, muito além do próprio Integralismo. As ressonâncias do Integralismo têm forte presença na atualidade, seja pela ação de pequenos grupos de extrema-direita que se dizem seguidores do Integralismo, seja pela difusão de livros e sites na Internet3, especialmente anti-semitas, que também retomam a ideologia integralista4.

A pesquisa de João Ricardo de Castro Caldeira, realizada como dissertação de mestrado em História na USP, está focalizada na atuação política da AIB no Maranhão e preenche uma lacuna importante na historiografia. Primeiro, por pesquisar o apelo do ideário intregralista em um Estado do Nordeste, tanto no interior como na capital, tendo como eixo central as questões regionais. Segundo, por centrar sua pesquisa na atuação política do partido: suas alianças e oponentes, sua prática política, seus aliados e adversários e seu comportamento eleitoral. O estudo de Caldeira mostra que uma pesquisa local ou regional sobre Integralismo não é apenas a repetição das questões nacionais, mas um alargamento da própria compreensão da atuação do Integralismo no País, e também da compreensão do jogo político entre as forças políticas locais e o regime de Getúlio Vargas. Além disso, as características do Estado, com baixa urbanização e industrialização, colocam um desafio suplementar para se entender a emergência desta ideologia naquele Estado.

O Integralismo foi provavelmente o primeiro partido de massa do País, mantido com a contribuição de seus próprios membros, o que o distinguia dos partidos tradicionais baseados em um modelo oligárquico. Há várias estimativas relativas aos militantes, com números difíceis de confirmar que variam de 100 mil a 1 milhão, discrepância e cifras que sugerem uma percepção de massa que ficou registrada na memória social e na própria historiografia.

Os principais fatores que catalisaram o apoio ao Integralismo no Maranhão, segundo Caldeira, foram o anticomunismo, o nacionalismo, valores próximos ao cristianismo e o importante apoio de setores da Igreja. O anticomunismo deve ser entendido e matizado diante de dados como o número de apenas 3.105 operários nos anos 20 (para uma população, em São Luis, de 70 mil), número que deve ter aumentado pouco na década seguinte. Os integralistas também direcionavam sua propaganda para operários, mulheres e jovens, setores quase não representados pelos partidos existentes. Em 1934, no Maranhão, mulheres fundaram a Ação Feminina Integralista e chegaram a representar 18% dos membros do partido.

O discurso antioligárquico era um dos motes principais do partido no Maranhão. Em uma campanha para a prefeitura de Pedreiras, uma propaganda integralista bradava que o Integralismo pretendia a “liberação de Pedreiras das garras de um feudalismo entorpecente e retrógrado”. Várias caravanas integralistas, originárias de São Paulo e Rio de Janeiro, visitaram o Maranhão. As caravanas eram também chamadas de “bandeiras integralistas” e pretendiam difundir a imagem de um novo desbravamento mítico do País. Delas participava Gustavo Barroso, membro da Academia Brasileira de Letras, que fazia pregações anti-semitas em discursos sobre a “escravização do Brasil aos banqueiros judeus”5.

O Integralismo atraía, assim, especialmente setores das classes médias urbanas, e camadas não representadas na política tradicional, que respondiam ao discurso de um movimento que prometia que as “libertaria” do poder das oligarquias regionais. Aderiam jornalistas, advogados, professores, estudantes, empregados domésticos, médicos, funcionários públicos, padres, funcionários de comércio e operários, entre outros. Esta mistura social já é um dado significativo de uma representação política distinta. A presença de profissionais liberais e de intelectuais explica-se em parte pelo apelo cultural nacionalista. Em suas memórias, Miguel Reale destaca a militância no Integralismo como um espaço importante de discussão da “realidade nacional”6.

É bastante indicativo também que a primeira referência pública na imprensa do Maranhão em relação ao Integralismo fizesse a seguinte descrição: “A ‘camisa verde’ que ele criou para distintivo material de sua idéia está aparecendo, cativante, alegre, persuasiva, em vários pontos do território nacional.” Para entender o Integralismo, certamente tão importante quanto o “conteúdo” do discurso, era o apelo definido por meio de desfiles minuciosamente coreografados, as “Bandeiras” (caravanas), os símbolos, palavras de ordem, canções, discursos dramatizados, estandartes, uniformes, insígnias, rituais, a movimentação da massa, uma mitologia de imagens que Walter Benjamin – referindo-se ao Nazismo – definiu como “estetização da política”. Estes elementos eram um poderoso atrativo e diferenciador perante as práticas dos partidos e criavam toda uma mística ritualizada (rituais que regulavam do nascimento à morte) da adesão que deveria ser considerada não a um partido, mas a um movimento que se apresentava como renovador das forças espirituais da nação7.

No entanto, apesar do discurso violento contra as oligarquias, ao passar do plano do ideário político para o da negociação para chegar ao poder, o Integralismo acabou tendo uma conduta política semelhante à das oligarquias que ele combatia, assumindo políticas clientelísticas e assistencialistas. O partido apoiou, por exemplo, uma negociação em 1936 para eleger um governador ligado a Getúlio Vargas, e participou de uma ampla composição de forças tradicionais da política local, passando a integrar a administração pública. Em 1936 e 37, o Integralismo cresceu no Estado, chegou a deter uma emissora de rádio, a Rádio Sigma, e um jornal comparável aos maiores do Maranhão, que recebia até anúncios da Goodyear. Em 1937, no Maranhão, os integralistas participavam da administração pública, do parlamento estadual, e tinham o apoio de padres e de chefes políticos locais, sem sofrer qualquer repressão. Apesar disso, nas eleições de 1937, embora com núcleos organizados em 17 municípios do Maranhão, apenas seis lançaram candidatos a prefeito ou vereador, e apenas um vereador foi eleito. Nas eleições para prefeito de São Luís, em que se inscreveu sob a legenda “Deus, Pátria e Família”, o partido teve cerca de 5% dos votos e era identificado com as forças da situação.

Esta dualidade entre movimento e partido, entre um combate retórico violento contra o sistema democrático, partidário e parlamentarista (no plano nacional) e antioligárquico (no plano regional, o que lhe dava uma aparência modernizadora) e, de outra parte, aceitação do jogo da política oligárquica e clientelística, quando se trata de negociar alianças e cargos mostra, talvez mais do que qualquer outro dado, os limites objetivos (felizmente) à emergência do Fascismo no Brasil. E também talvez forneça pistas para entender por que o movimento teve pouco apoio eleitoral se comparado à sua repercussão, à época, como marco (ultra) nacionalista de debates dos grandes temas do País, como a organização de um Estado centralizado, além de sua atração como um partido identificado como nacional e antioligárquico. Também se pode sugerir que algumas das bandeiras do Integralismo estavam presentes no próprio ideário do Estado-Novo que se implantaria em 1937, o que pode ter contribuído para difundir seu ideário, apesar de oficialmente banido.

A descrição do processo político e da prática política dos integralistas no Maranhão é realizada por Caldeira com precisão e acuidade, constituindo o eixo central do seu livro. O autor optou por uma pesquisa que privilegiou a prática política e não a análise ideológica, que nem sequer ganha um resumo introdutório, que poderia contribuir para a pesquisa e para uma leitura mais compreensiva para um tema tão (academicamente) pouco conhecido. A pesquisa é coerente com a proposta. Mas não terá essa opção do autor esvaziado em parte o caráter fascista da ideologia integralista, ou simplesmente esvaziado ideologicamente o Integralismo?

A pesquisa sobre a “prática” das alianças eleitorais do partido, o jogo político que em nada difere do jogo político mais arcaico, apesar de uma retórica antioligárquica inflamada, tudo isso acaba mostrando um partido que, no calor da disputa eleitoral, não se diferencia das oligarquias locais. É evidente que este é um dado da pesquisa relevante e consistente, mas não deveria esta ênfase sobre a prática ser colocada para análise juntamente com a análise ideológica do movimento, sob o risco de perder de vista a especificidade e a violência ideológica particular do Fascismo, que é o que caracteriza o Fascismo e o torna específico, com suas variações locais e nacionais?

Caldeira poderia recusar este comentário não apenas reafirmando uma opção historiográfica, diante de uma bibliografia inteiramente dedicada ao estudo da ideologia (em sua maior parte produzida pelas ciências sociais), mas também como uma conclusão da própria pesquisa, no sentido de que esta mostra, no Maranhão, um partido esvaziado de sua violência ideológica e de conteúdos que existiam apenas no discurso nacional, mas não no regional.

Mas não será esta contradição entre a retórica violenta do movimento e sua atuação “prática” esvaziada precisamente uma contradição central do Fascismo brasileiro, expressão das camadas médias que se beneficiavam do alargamento da ação do Estado e das oportunidades de emprego e ascensão social abertas nos anos 30, com a montagem de uma vasta máquina estatal, ao mesmo tempo em que defendiam vagas reformas na estrutura do Estado e se opunham fracamente às oligarquias às quais estavam de fato subordinadas, e diante das quais eramo estruturalmente dependentes? Se é próprio das classes médias não ter um projeto político autônomo, neste caso isto foi acentuado por sua relativa ascensão nos anos 30 e pelo discurso estado-novista que parecia contemplar seus anseios.

E, em conseqüência, este limite do Integralismo no Brasil na década de 30 não seria dado pelo relativo atraso do desenvolvimento capitalista no País e pela não-difusão das relações capitalistas? Esta tese, defendida em estudos de peso, como os de José Chasin, Antonio Rago e no trabalho extremamente instigante de Gilberto Vasconcelos, deve ser colocada para discussão, e não simplesmente negligenciada8.

A dualidade entre Fascismo movimento e Fascismo partido, entre a retórica e o poder, também pode ser observada no Fascismo italiano e no Nazismo alemão, e isto em nada significa atenuar as conseqüências da guerra e do genocídio. Estudos recentes sobre o Nazismo alemão mostram uma convivência, até hoje desconhecida e negligenciada, de partidos tradicionais e de elites políticas locais com os nazistas, que não tinham quadros próprios para fazer funcionar o Estado. Esta idéia, longe de atenuar os crimes nazistas, alarga a responsabilidade por crimes como o próprio genocídio contra os judeus, que não foram “apenas” a decorrência de um discurso violento do partido nazista mas resultado de uma gigantesca e minuciosa operação de destruição que envolveu muitos setores da sociedade e do Estado alemães, havendo, claro, matizes entre responsabilidade indireta, conivência e cumplicidade direta9. Ou seja, entender a passagem da retórica para o poder é um tema central dos estudos de movimentos fascistas e a contradição é própria destes movimentos que não têm maior enraizamento social. Basta lembrar, na Alemanha, o crescimento do partido, a partir dos anos 20, diante dos partidos baseados em forças sociais historicamente estruturadas, como a social-democracia, os comunistas e os partidos centristas, conservadores e católicos. Também no Brasil, a adesão ao Integralismo não tem um enraizamento social mais consistente e prévio aos anos 30, havendo uma história irregular de pequenos movimentos e partidos de extrema-direita.

Ao privilegiar o estudo local, regional, do Integralismo, corre-se o risco de se alargar um horizonte de compreensão, mas de se fechar outro e de menosprezar o poder ideológico do Fascismo como a ideologia do ódio e da destruição. Mais do que optar por uma única interpretação e torná-la profissão de fé – o que Caldeira jamais faz, ressalte-se – é importante pensar sempre entre as diferentes interpretações, confrontando-as diante da pesquisa.

Se há algo que os historiadores têm mostrado nos últimos dez anos de um verdadeiro rush de estudos históricos sobre Nazismo e Fascismo é que, à parte o desejo de se estabelecer tipologias do Fascismo (a mais célebre talvez seja a de Renzo de Felice; a última, a de Umberto Eco10), é cada vez mais esclarecedor e produtivo combinar análises da ideologia com a pesquisa empírica, documental, que busque as especificidades locais da eclosão do Fascismo, que entenda sua prática política específica e, ao mesmo tempo, busque caracterizar uma ideologia que existiu basicamente entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais e que pode ser tipificada.

As particularidades do Integralismo devem ser entendidas em toda a sua complexidade para que seja possível compreender, por exemplo, por que um intelectual como Luís da Câmara Cascudo tornou-se seu asdepto no Rio Grande do Norte11. É preciso efetuar esta discussão sem maniqueísmo prévio, em um arco que comporte personagens tão díspares entre si como Plínio Salgado, Gustavo Barroso e Miguel Reale, os três mais importantes dirigentes nacionais que, com conflitos, conviveram nos anos 1930. Se pensarmos na importância política e intelectual que Reale teria durante décadas, como paradigma de um certo liberalismo, longe de aceitar que sua militância integralista foi apenas um breve parêntese juvenil, ganharíamos na compreensão de como a ideologia fascista é capaz de exercer atração sobre intelectuais que não são “tipos ideais” do Fascismo e de como o Fascismo pode ter pontos de contato com outras ideologias e movimentos. É esta maleabilidade e caráter intrinsecamente contraditório, próprio das condições históricas do entre-guerras, que permite entender estas adesões. No caso de Cascudo, certamente há toda uma gama de questões de política e cultura locais12.

É próprio da ideologia fascista ser um aglomerado de idéias contraditórias entre si, porque o Fascismo e o Nazismo devem ser entendidos, historicamente, muito mais como respostas, como reação, como ideologia do anti (principalmente anticomunismo e, no caso alemão, anti-semitismo) e da destruição, do que como a formulação efetivamente coerente de constituição de um projeto nacional. O partido nazista derivava sua força muito mais da violenta reação contra a democracia, o parlamento, os judeus e o Comunismo, e da violenta pregação que prometia uma inclusão aos setores marginalizados e ameaçados pela crise. Por isso, a guerra e o genocídio, da mesma forma que o racismo e a eugenia, estiveram no centro da ideologia e da ação nazistas. ‘Eu não sou ninguém, mas ao menos não sou judeu’, escreveu Thomas Mann, sintetizando uma pregação chave do Nazismo, que foi o anti-semitismo associado ao anticomunismo. Por justapor idéias contraditórias, como ser simultaneamente anti-capitalista e anti-comunista, o Fascismo atrai diferentes setores sociais e seu discurso repercute em diferentes demandas, falando para várias camadas sociais e dirigindo apelos específicos e contraditórios a cada uma. Assim, não faz sentido procurar em cada militante ou eleitor do Fascismo um representante “ideal” desta ideologia. Igualmente não faz sentido transferir a ideologia mecanicamente para cada situação histórica como se a ideologia se manifestasse apenas como reprodução de si mesma. Mas é fundamental não apenas estabelecer as identidades ideológicas, bem como suas diferenças, e entendê-las como manifestações dos anos 20 e 30, seja no Brasil, Portugal, Romênia, Hungria, Itália ou Alemanha.

A recente eleição de um governo, na Áustria, em aliança com a extrema-direita em um País que é um dos mais prósperos da Europa, com menor índice de desemprego, mostra que o apelo fascista atinge setores nem sempre objetivamente ameaçados por uma crise econômica e social, uma das interpretações clássicas da emergência do Nazismo na Alemanha. Ao contrário, como mostrou Marilena Chauí em seu ensaio sobre o Integralismo13, a crise é uma poderosa imagem engendrada pelo próprio discurso fascista, que investe em um discurso emocional e irracional, repleto de imagens aterrorizantes, brandindo a ameaça de que a sociedade e seus valores estão em desagregação, à beira do caos, e que seria preciso um movimento restaurador de valores, regenerador do homem e uma nova ordem.

Mas é preciso jamais perder de vista que se chame Fascismo, Nazismo ou Integralismo, e em que pesem suas diferenças, o Fascismo é uma ideologia da destruição, da negação e do horror ao conflito, da recusa ao diferente e ao outro, do ódio às divisões sociais, à democracia e ao sistema de representação, do nacionalismo xenófobo, da liderança ditatorial, da guerra, da destruição das organizações da sociedade civil, do terror, da intimidação e do racismo. O fim da história no “Estado Integral” ou no “Reich de Mil Anos” pressupunha um estado permanente de harmonia social, exterminados previamente na “solução final” todos os que fugiam à norma ideal racista. Para o Nazismo, o extermínio dos povos considerados inferiores era considerado “biologia aplicada” que abreviaria um processo que a própria natureza se encarregaria de realizar. Neste ponto, o Integralismo não era monolítico, havendo diferenças sérias entre, por exemplo, Gustavo Barroso e Plínio Salgado, sendo que o anti-semitismo ficou mais marcado na pregação de Barroso.

O livro de Caldeira certamente se insere em um novo caminho historiográfico para os estudos sobre o Fascismo no Brasil (ou movimentos como o Integralismo e outros, sendo que a discussão sobre o caráter fascista não pode ser evitada), no qual ela trabalha com consistência e coerência. Há trinta anos atrás, Gilberto Vasconcelos escreveu seu livro, o professor Florestan Fernandes escreveu no prefácio que duvidava até se o Integralismo era um tema a justificar estudos acadêmicos14. A um pensamento de esquerda racional e intelectualmente sofisticado, a violência caótica e contraditória do discurso integralista parecia apenas desprezível, fruto de um movimento político inexpressivo no Brasil. Quem lê Gustavo Barroso, por exemplo, pode se surpreender com a aparente irracionalidade e total aparente non-sense dos seus panfletos. Foi Jean Paul Faye, entre outros, quem explorou a gramática fascista, mostrando o terrível poder daquela linguagem incitadora de violência e da destruição por meio da articulação de poderosas imagens de crise, de destruição e de ódio. O discurso fascista é extremamente eficaz, atingindo pulsões, sentidos, emoções e circuitos que o discurso racional não penetra. Ler um texto fascista implica desmontar a lógica da construção do Fascismo e não apenas aceitar um debate político racional. Os livros-panfleto de Gustavo Barroso são um exemplo dessa terrível eficácia do mal.

Estas reflexões são sugeridas pelo livro de João Ricardo de Castro Caldeira e pelo seu trabalho de mestrado muito bem articulado e exemplar enquanto pesquisa de história. O campo de pesquisa e de interpretação sobre a história do Integralismo no Brasil é ainda um território em aberto, especialmente à pesquisa documental aliada à análise ideológica. E, sobretudo, politicamente urgente. Poucos dias após a posse do novo governo austríaco, em aliança com a extrema-direita, cujo líder, Haider, tem aberta simpatia pelo Nazismo, foi na Praça da República, no coração da cidade de São Paulo, em 6 de fevereiro de 2000, que um grupo que se diz publicamente integralista e seguidor de Plínio Salgado e Gustavo Barroso cometeu o assassinato de Edson Neris da Silva, de 35 anos, o qual, segundo o grupo que o matou, “parecia homossexual”. Nunca é demais lembrar que o Fascismo é essencialmente a ideologia do ódio ao diferente e que, dependendo das circunstâncias, este ódio transforma-se em destruição física.

Notas

1 TRINDADE, Hélgio. Integralismo, o Fascismo brasileiro na década de 30. São Paulo: Difel, 1974. O livro pioneiro de Trindade é ainda o mais completo e compreensivo estudo sobre o tema, com ampla pesquisa de campo. Os trabalhos que vieram depois particularizaram temas ou aprofundaram certos aspectos ideológicos específicos.

2 Hélgio Trindade considera que a AIB era um partido fascista “em função da composição social dos seus aderentes, das motivações de adesão de seus militantes, do tipo de organização do movimento, do conteúdo do discurso ideológico, das atitudes ideológicas de seus aderentes e do sentido de solidariedade do movimento em relação à corrente fascista internacional”. Mas o debate neste campo entre os poucos pesquisadores do tema é muito intenso.

3 Sobre os sites racistas, ver KAHN, Tulio. Ensaios sobre Racismo. Manifestações Modernas do Preconceito na Sociedade Brasileira. São Paulo: Conjuntura, 1999.

4 Os livros anti-semitas de Gustavo Barroso, como Brasil colônia de banqueiros, foram reeditados pela editora Revisão que edita em português livros nazi-negacionistas em relação ao genocídio dos judeus na Segunda Guerra Mundial e outros panfletos anti-semitas como “Os Protocolos dos Sábios de Sião”, cuja primeira edição em português foi apresentada pelo próprio Barroso.

5 Sobre Gustavo Barroso, ver MAIO, Marcos Chor. Nem Rotschild nem Trotsky: o pensamento anti-semita de Gustavo Barroso. Rio Janeiro: Imago, 1992; RAGO FILHO, Antonio. A crítica romântica à miséria brasileira: o Integralismo de Gustavo Barroso. Dissertação de Mestrado, PUC-SP, 1989 e CYTRYNOWICZ, Roney. Integralismo e anti-semitismo nos textos de Gustavo Barroso na década de 30. Dissertação de Mestrado, FFLCH-USP, 1992; neste último, um capítulo mostra a conexão entre o nazi-negacionismo e Gustavo Barroso. Há ainda muito material e campo de pesquisa para se estudar Gustavo Barroso, sua trajetória intelectual e política. Sobre o anti-semitismo na década de 30, ver LESSER, Jeffrey. O Brasil e a Questão Judaica. Rio Janeiro: Imago, 1995, e para uma descrição da documentação do anti-semitismo, ver CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O anti-semitismo na Era Vargas: fantasmas de uma geração. São Paulo: Brasiliense, 1988.

6 REALE, Miguel. Memórias. Vol. 1. Destinos Cruzados. São Paulo: Saraiva, 1986.

7 Para conhecer a importância das imagens no Integralismo, ver SOMBRA, Luiz Henrique e GUERRA, Luiz Felipe Hirtz (orgs.). Imagens do Sigma. Rio Janeiro: Arquivo do Estado do Rio de Janeiro, 1998.

8 Além da obra já citada de RAGO FILHO, Antonio, ver VASCONCELOS, Gilberto. Ideologia Curupira: análise do discurso integralista. São Paulo, Brasiliense, 1979, e CHASIN, José. O Integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo hipertardio. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1978.

9 Sobre isso, ver CYTRYNOWICZ, Roney. Memória da Barbárie. A história do genocídio dos judeus na Segunda Guerra Mundial. São Paulo: EDUSP/Nova Stella, 1990.

10 DE FELICE, Renzo. Explicar o Fascismo. Lisboa: Edições 70, 1976, e ECO, Umberto. Cinco escritos morais. Rio de Janeiro: Record, 1997. As tipologias sempre agregam elementos interessantes para a análise, em que pese sua generalização e pretensão de modelo que dê conta de todas as particularidades.

11 Até hoje, a chamada cultura popular é tradicionalmente muito mais apropriada por forças políticas conservadoras do que de esquerda, que a vê, muitas vezes, como arcaica, repetitiva e estruturalmente conservadora. Se de um lado a cultura popular está associada a estruturas centenárias de submissão e dominação, criando espaços narrativos míticos de redenção e utopia em uma esfera fora da situação social objetiva, por outro haverá outra saída que não equacionar repetição e criação, enraizamento e libertação, fixação e nomadismo? Esta discussão de história da cultura é sumamente importante para entender o apelo regional, local, que o Integralismo teve no país. Um dos três principais líderes, Gustavo Barroso, violento anti-semita e com posições que podem ser aproximadas ao Nazismo alemão, era um escritor regionalista de sucesso e foi membro da Academia Brasileira de Letras, tendo sido seu presidente. É preciso entender como o Integralismo operou estas justaposições e como se organizou seu apelo.

12 O estudo de GERTZ, René. O Fascismo no Sul do Brasil. Germanismo, Nazismo, Integralismo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987, é exemplar a respeito de como não de pode fazer generalizações que à primeira vista parecem óbvias, ao tratar das diferenças e conflitos entre germanistas, nazistas e intregralistas nas “colônias” alemãs no sul do país.

13 CHAUÍ, Marilena. “Apontamentos para uma crítica da Ação Integralista Brasileira”. In Ideologia e Mobilização Popular. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

14 FERNANDES, Florestan. Prefácio ao livro de VASCONCELOS, Gilberto, Op. cit., p. 11.

Roney Cytrynowicz – Doutor em História Social pela USP.

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Sob a sombra de Mussolini: os italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945 | João Fábio Bertonha

A emergência e afirmação de regimes políticos autoritários, impulsionados por idéias e princípios antidemocráticos, constituíram duas das características mais evidentes do entreguerras, a tal ponto que o “breve século XX” de Eric Hobsbawm já tinha sido batizado de “século das ideologias” por diversos historiadores que o precederam. Nesse conjunto de regimes autocráticos, o regime fascista inaugurado por Mussolini representou, sem dúvida, um paradigma do antiliberalismo, representando — tanto do ponto de vista prático como teórico — o protótipo do que ele mesmo chamou de “Estado totalitário”, termo depois estendido por Hannah Arendt para cobrir a modalidade soviética de poder político absoluto. Muitos historiadores e cientistas políticos, entre eles François Furet de O passado de uma ilusão, consideram aliás que o fascismo se desenvolveu especificamente em reação ao bolchevismo, dele retirando entretanto diversos elementos substantivos e formais, pois que combinando o estatismo do planejamento socialista e o monopólio do poder pelo partido único com uma ideologia anticapitalista e supostamente igualitária, como no caso da ideologia marxista. Leia Mais