Pandemia cristofascista | Fábio Py

Fabio Py Imagem CONIC
Fábio Py | Imagem: CONIC

Quando o presidente de um país, cujos mandatários há décadas não ousam descuidar do eleitor religioso, precisando também lidar com uma crescente bancada evangélica, usa o termo “cristofobia” em discurso diante da Organização das Nações Unidas – ONU, é sinal de que a religião ali não pode ser um tema menor na escrita da História atual. Pelo menos desde as últimas duas décadas do século XX enchendo estádios, templos e urnas, o movimento evangélico no Brasil, todavia, tem participação no curso dos acontecimentos da nossa contemporaneidade desproporcional à atenção que lhe tem sido dedicada pela academia. O livro Pandemia cristofascista, do teólogo Fábio Py, pode ser visto como um alerta sobre o custo que temos pago pela falta de compreensão deste fenômeno.

Trabalho sucinto, cujo eixo principal é a análise da “unção” conferida ao presidente Jair Bolsonaro por líderes das maiores organizações evangélicas do país durante a semana da Páscoa de 2020, o opúsculo divide-se em quatro seções. São elas: introdução; histórico e crítica da Frente Parlamentar evangélica (mais conhecida como “bancada evangélica”); estudo do processo de construção de uma imagem santificada do presidente da República em meio à escalada da pandemia de Covid-19; e conclusão, onde o comportamento dos líderes religiosos que contribuíram para a minimização da crise sanitária de 2020 é criticamente contraposto ao que seria esperado de sacerdotes genuínos, segundo o livro bíblico Levítico.

A introdução cumpre seu papel de lançar as bases sobre as quais a argumentação se desenvolverá. Trata-se de esmiuçar a espécie de discurso teológico que sustenta as falas daqueles que, de seus púlpitos, procuram legitimar religiosamente as ações do governo federal e entronizar a pessoa do presidente da República através da imolação das camadas populares, sacrificadas para o maior bem comum, e do próprio Bolsonaro, que pôs a vida no caminho de uma faca para que o país pudesse ser salvo. Aqui, Py é assertivo. Tal discurso compreende um enfoque teológico fundamentalista, por isso anticientífico e autoritário, e é verbalizado sobretudo pelos grandes líderes pentecostais que se apropriam e distorcem temas religiosos caros às camadas populares em proveito de uma pauta política capaz de colocar as necessidades do mercado à frente da vida humana. Entende-se como fundamentalismo cristão a corrente religiosa, influente sobre boa parte dos evangélicos brasileiros, iniciada nos Estados Unidos em princípios do século XX em reação ao evolucionismo darwinista e às vertentes que pretendiam uma leitura não literal da Bíblia, e propugnando, ao contrário, a interpretação literal do texto sagrado e a sua preeminência enquanto fonte de saber, inclusive diante da ciência.

Na segunda parte, temos um breve histórico da Frente Parlamentar Evangélica, esboçada ainda durante a Constituinte de 1986 e robustecida a cada quatro anos desde então. Atualmente controlada por pentecostais, a FPE seria importante sustentáculo do governo Bolsonaro, cabendo notar que Assembleia de Deus é não apenas o grêmio religioso com o maior número de representações parlamentares, mas também, segundo o censo de 2012, a maior igreja evangélica do país, com mais de 12 milhões de membros. Os líderes dessas agremiações pentecostais, como Edir Macedo, Marco Feliciano, Silas Malafaia, Valdemiro Santiago e R. R Soares, dentro e fora dos templos, não economizam cerimônias e pronunciamentos exprimindo incondicional apoio ao presidente.

Em seguida, o coração da obra, um estudo de caso ilustrativo da sua proposição central: a instrumentalização política, cada vez mais eficaz, da fé popular. Sugere-se aqui a manipulação simbólica de temas centrais da Páscoa, através de uma série de declarações públicas e eventos religiosos patrocinados por líderes como Edir Macedo, Silas Malafaia e Valdemiro Santiago, para a forja de um halo de santificação em torno da figura do presidente da República. A campanha religiosa se deu no vórtice da pandêmica crise política e sanitária, quando o governo parecia sucumbir ao mostrar-se agudamente inapto na gestão da catástrofe que se avizinhava. A solução retórica, então aplicada com aparente sucesso, foi sublinhar o sacrifício do quase assassinado Bolsonaro, convidando o restante da população a também oferecer suas vidas ao bem maior, diante da alegada impossibilidade de manter a engrenagem econômica funcionando caso fosse observado o isolamento social, sugerido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e logo refutado pelo governo brasileiro. Tal como o sacrificado e revivido Jesus Cristo fizera, anualmente lembrado pela Páscoa, para salvar a humanidade.

A obra conclui recorrendo à própria Bíblia para fazer a crítica dos intelectuais religiosos que cuidam da legitimidade ideológica do governo Bolsonaro, inclusive quando este coloca voluntariamente a população em rota de colisão com uma doença potencialmente mortal e para a qual ainda não existe tratamento eficiente. Assim, Py lembra das lições gravadas no Levítico, texto bíblico que mostra de maneira inequívoca como a aliança dos homens que se dizem representantes divinos deve ser com a vida, no mundo antigo eram eles os responsáveis pelo cuidado e isolamento dos doentes contagiosos, e não com a displicência assassina própria do cálculo econômico.

Olhando agora para a atenção que tem sido dada pelas ciências humanas à religiosidade popular contemporânea e suas repercussões políticas, vemos que a sua quase totalidade é creditada à Sociologia e à Antropologia, sendo escassos trabalhos que busquem problematizar o fenômeno em seu prolongamento temporal. Permanece esta lacuna a ser urgentemente preenchida por historiadores, em face da evidente importância do tema na compreensão do curso dos acontecimentos no país das últimas décadas.

No campo da Sociologia, partindo do trinômio weberiano “secularização”, “capitalismo” e “modernidade”, autores (WILSON, 1969COX, 1969) sugeriram a impossibilidade da contínua expansão evangélica num futuro em que à plena extensão do capitalismo corresponderia a secularização social, daí a sua circunscrição, no presente, ao mundo periférico não inteiramente capitalista (QUEIROZ, 1976ALVES, 1979). Análises posteriores avançaram ao descartar a incompatibilidade entre capitalismo e religião (BELLAH, 1986MARTELLI, 1995SOUZA, 1986), sem buscar, contudo, integrá-la no quadro político-econômico mais amplo, levantando razões localizadas e não estruturais para explicar o surto de religiões como o pentecostalismo nos países pobres.

Em tempos mais recentes, também coube a sociólogos debruçarem-se sobre o despontar avassalador de instituições como a Igreja Universal do Reino de Deus, disseminadoras de uma forma atualizada de pentecostalismo. Paul Freston (1993, p. 93) procurou encaixar o fenômeno no processo de “modernização autoritária do país”, trazendo a plena urbanização e desenvolvimento das telecomunicações e um leque de novos problemas desencadeados pelo fim do “milagre econômico” nos estertores da ditadura. Ricardo Mariano (1999, p. 148) também associa o fenômeno à recente modernização que, consolidando um mercado consumidor movido pelo estímulo dos desejos materiais, estorvaria a pregação do ascetismo, característica do protestantismo em tempos mais remotos. Leitura partilhada pelo filósofo, teólogo e cientista da religião Leonildo Campos (1997, p. 36), que vê na prática da Teologia da Prosperidade, por exemplo, o reflexo de uma “sociedade dominada pelo mercado neoliberal”. Adicionada ao ideário pentecostal nos anos 1970 e rapidamente se espalhando entre os demais evangélicos, supõe-se que a nova teologia serviria tanto para aplacar os impulsos de consumo insatisfeitos como para justificar a opulência de uma minoria, enquanto circunscreve as mazelas sociais, devidas ao diabo, à esfera espiritual (MARIANO, 1999, p. 149; 159). Em paralelo, destaca-se a reinterpretação do mundo terreno como campo privilegiado da ação religiosa, daí decorrendo um maior interesse evangélico pelas questões político-partidárias (MARIANO, 1999, p. 45), ilustrado pelo crescimento geométrico da bancada evangélica em Brasília.

Esta bibliografia, contudo, não avança no que tange à atuação dos políticos evangélicos diante de questões não estritamente religiosas, como a economia, tratando a esfera política como mero caminho para a consolidação dessas igrejas diante do catolicismo e de suas demais concorrentes no mercado religioso, frequentemente reduzindo o apoio de políticos evangélicos a pautas econômicas impopulares à venalidade individual. Da mesma forma, a relação da direita cristã brasileira com seus congêneres norte-americanos é tratada de maneira tímida por esses escritos, que admitem a transferência de um ideário importado, mas são reticentes em associar a expansão deste ideário sobre o mundo periférico com um projeto de dominação política e econômica. Assim, frente à falta de documentação comprobatória, resta a autores como Antônio Flávio Pierucci (PRANDI; PIERUCCI, 1996, p. 166) apenas notar que entre os dois grupos “as semelhanças e o parentesco são mais que evidentes”. Nessa direção, foi mais longe o historiador Adroaldo José Silva Almeida (2016, p. 142-145), que indica o vínculo entre membros da Assembleia de Deus e a direita cristã norte-americana. Sem aprofundar-se na questão, nota ele, contudo, que a Assembleia, nos anos 1980, teria abraçado com mais vigor o fundamentalismo, influenciada pelo líder religioso conservador norte-americano Carl McIntire, passando a mostrar maior hostilidade à Teologia da Libertação e a orientar seus seguidores a não se imiscuírem em movimentos sociais contestatórios.

Talvez tenha cabido ao campo marxista as tentativas mais consistentes de relacionar o impulso do fundamentalismo cristão na periferia capitalista com um movimento político e ideológico, internacionalmente militante, realizado por religiosos conservadores dos Estados Unidos. Religiosos que, se não estimularam diretamente o surgimento de igrejas a eles filiadas por toda a América Latina, hipótese em aberto, certamente lhes inspiraram. Assim, nos escritos do teólogo Hugo Assmann (1986), construtos ideológicos como a Teologia da Prosperidade, forjada por intelectuais religiosos norte-americanos, portanto de forma alguma originária da mente de Edir Macedo ou Valdemiro Santiago, são interpretados à luz das contradições do capitalismo contemporâneo. Produzindo força de trabalho cada vez mais precarizada, expropriada e desassistida, este garantiria sua legitimidade diante dos explorados também pela oferta de explicações místicas para mazelas sociais.

É entre estes últimos que o teólogo Fábio Py parece estar mais confortável, utilizando preceitos gramscianos para enquadrar os usos políticos da religião no Brasil atual, manifestos, por exemplo, na formulação por intelectuais religiosos de um discurso legitimador do governo Bolsonaro, que, em última análise, permitiria o prosseguimento de uma pauta econômica ultraliberal. Trata-se, portanto, de um clássico exercício de hegemonia, forma de poder, conforme pensava o marxista italiano, praticada no campo cultural, ideológico, mas sempre representando um projeto econômico. O maior referencial teórico de Py, contudo, são os escritos da teóloga alemã Dorothee Sölle, que buscou recuperar a relação promíscua entre as igrejas alemãs e o partido nazista, fundamental para pavimentar a popularidade de Hitler, cunhando o termo “cristofascismo”. Aqui, passado e presente dialogam no desprezo pela segurança da população exibido pelo regime nazista, que sacrificou multidões ao Deus da guerra, e o governo Bolsonaro, que entre a escolha de minimizar as mortes pela Covid-19 e zelar pelo lucro empresarial opta pela segunda sem titubear.

Uma das críticas que podem ser feitas a Pandemia cristofascista é que se trata de um trabalho talvez por demais curto sobre um tema que necessita urgentemente de atenção, aprofundamento, embasamento teórico e documental. Também pode ser dito que o curto tempo de produção, justificável diante dessa mesma urgência e da atualidade dos fatos abordados, tenha marcado a obra com pequenos defeitos formais. Mas o escrito sucede naquilo que parece buscar atingir: constituir-se numa obra de divulgação, um manifesto acessível ao público amplo, sobre um tema urgente que não pode ficar confinado às páginas acadêmicas. Visto desse ângulo, é impossível não reconhecer a potência desse texto, que traz dados factuais relevantes, aborda o problema de maneira corajosa e original e instiga a contribuição de outros pesquisadores. Por tudo o que foi dito, é leitura não apenas recomendada, mas também necessária, para historiadores e pensadores do mundo social de uma forma geral.

Referências

ALMEIDA, Adroaldo José Silva. “Pelo Senhor, marchamos”: os evangélicos e a ditadura militar no Brasil (1964-1985). Tese (Doutorado em História Social). Niterói, Universidade Federal Fluminense, 2016.

ALVES, Rubem. Protestantismo e repressão São Paulo: Ática, 1979.

ASSMANN, Hugo. A Igreja eletrônica e seu impacto na América Latina Petrópolis: Vozes, 1986.

BELLAH, Robert N. A nova consciência religiosa e a crise da modernidade. Religião e Sociedade, v. 2, n. 13, p. 18-37, jul. 1986.

CAMPOS, Leonildo. Teatro, templo e mercado Petrópolis/São Paulo/São Bernardo do Campo: Vozes/Simpósio/Unesp, 1997.

COX, Harvey. A cidade do homem Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.

FRESTON, Paul. Protestantes e política no Brasil: da Constituinte ao impeachment Tese (Doutorado em Sociologia). Campinas, Universidade Estadual de Campinas, 1993.

MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1999.

MARTELLI, Stefano. A religião na sociedade pós-moderna São Paulo: Paulinas, 1995.

PIERUCCI, Antônio Flávio; PRANDI, Reginaldo. A realidade social das religiões no Brasil São Paulo: Hucitec, 1996.

PY, Fábio. Pandemia cristofascista São Paulo: Recriar, 2020.

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Messianismo no Brasil e no mundo 2. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1976.

SOUZA, Luis Alberto Gomes de. Secularização em declínio e potencialidade transformadora do sagrado. Religião e Sociedade, v. 13, n. 2, p. 5-8, jul. 1986.

WILSON, Bryan. La religión en la sociedad Barcelona: Labor, 1969.


Resenhista

Rodrigo de Sá Netto – Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected]  ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7363-0009


Referências desta Resenha

PY, Fábio. Pandemia cristofascista. São Paulo: Recriar, 2020. Resenha de: De Sá Netto, Rodrigo. Religião, política e a história dos nossos dias. Topoi. Rio de Janeiro, v. 23, n. 50, maio/ago. 2022. Acessar publicação original [DR]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.