Portugueses no Rio de Janeiro: negócios, trajetórias e cenografias urbanas (séc. XIX-XXI) | Lená Menezes de Medeiros

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Lená Menezes de Medeiros | Imagem: Extra

Portugueses no Rio de Janeiro. Negócios, trajetórias e cenografias urbanas, livro de autoria da historiadora Lená Medeiros de Menezes, publicado pela editora Ayran no segundo semestre de 2021, constitui, a um só tempo, um trabalho afetivo e acadêmico. Talvez isso desperte a curiosidade do leitor em geral, talvez, ainda, suscite a desconfiança do acadêmico, uma vez que afetividade e a abordagem objetiva próprias do ofício do historiador não costumam a se entrelaçar. Não costumam, mas podem sim conviver sem nenhum prejuízo à qualidade da obra. E é isso o que vemos aqui nesse livro, e sem nenhum desdoiro nem a sua dimensão acadêmica, nem à expressão dos seus afetos.

É bem verdade que a equação que une a cientificidade e a afeição manifesta para com o objeto de análise não é algo fácil de ser alcançado, podendo facilmente resvalar em incoerências, mascaramentos, excessos, ou mesmo em imprecisões. Mas aviso desde já aos leitores que nada disso se verifica nessa obra. E isso não se dá sem motivo. A razão principal para essa harmoniosa conjugação de fatores que tradicionalmente são tão distintos e excludentes é a maturidade da autora do livro. Lená Menezes é uma historiadora talhada pelo cinzel de uma longa caminhada acadêmica. É professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro desde o final da década de 60, passando por vários cargos e funções nessa instituição, entre eles a Pró-reitoria de graduação, além de ter fundado um dos mais importantes laboratórios de pesquisa sobre a imigração do Brasil, o LABIMI, que se destaca pela sua internacionalização, justamente, com o meio acadêmico português. É exatamente essa maturidade como pesquisadora que sustenta a delicada equação que aludimos e, mais ainda, a nosso ver, a torna fator de engrandecimento do livro. Tanto os leitores médios afeitos às coisas de Portugal podem lê-lo sem o temor da maçada que uma obra acadêmica pode inspirar, como aqueles que se debruçam academicamente no tema da imigração portuguesa podem o fazer sem o temor de qualquer desalinho com os bons padrões da pesquisa universitária.

A obra se divide em quatro partes, assim divididas: uma primeira seção denominada Processos e dinâmicas migratórias, a qual trata dos temas mais diretamente ligados à imigração portuguesa, como as motivações para a partida do país de origem; alguns números e estatísticas importantes, porém tratados com leveza; a caracterização da cidade de destino, o Rio de Janeiro; como esses lusitanos aqui se inseriram; a identidade nacional na nova terra e as instituições que esses imigrantes aqui criaram, como, entre outras, as sociedades de auxílio mútuo e as casas portuguesas, destinadas à mantença das suas tradições e cultura.

Segue à primeira parte uma segunda intitulada No tempo dos comendadores, que é uma divisão do livro completamente dedicada à trajetória de 15 prósperos imigrantes portugueses e seus movimentos como sujeitos do processo emigratório e empresários em terras cariocas no período de fins do século XIX e início do século XX. Nesta parte o leitor encontrará também um amplo escopo de fontes dos quais a autora lança mão, tais como notícias de jornais, revistas, almanaques, biografias e livros de época, que vêm em seu auxílio na tarefa metodológica de construir um quadro sinótico de cada um desses imigrantes empreendedores.

Na sequência da segunda parte, vemos um novo naipe de trajetórias de imigrantes lusitanos, mas que agora entremeia os empresários de grande monta com as histórias de portugueses remediados ou mesmo pouco abonados, como no seu capítulo 8, onde percorre os tipos de classe média, identificando-os por sua inserção espacial na cidade (os seus bairros) e o capítulo 9, no qual as mulheres ganham destaque, sobretudo em suas histórias de trabalho árduo, destemor diante das dificuldades da vida e luta pelo auto-sustento e o sustento de suas famílias. Mas não é somente na diversificação da inserção de classe social que a 3ª parte do livro se distingue de sua seção anterior. Aqui, registram-se duas mudanças importantes face à 2ª partição do trabalho. A primeira delas é quanto ao recorte temporal, agora inserido no período que vai do pós 2ª Guerra Mundial, até os princípios dos anos 1960, quando a curva da imigração portuguesa ao Brasil declina severamente em favor de um novo vetor imigratório que procurava destino nas sociedades europeias que começavam a se reerguer do impacto da 2ª Guerra Mundial, enquanto um contexto de crise econômica ganhava vulto cada vez maior no Brasil, resultado de crises políticas e de opções econômicas pouco conscienciosas perpetradas na segunda metade da década anterior. A segunda diferença com a 2ª parte do livro reside na opção metodológica de tratamento das fontes, agora, calcada na metodologia de trabalho em história oral, com a qual faz esses imigrantes evocarem as suas memórias para darem nota de sua caminhada de vida no Rio de Janeiro.

O livro caminha para o seu fechamento com uma quarta e última parte, na qual a sua história familiar é exposta através de uma investigação da presença de seus ascendentes lusitanos no Rio de Janeiro, que se dá entre as muitas zonas de sombra que recobrem a fragmentária memória de sua vida familiar, e que a historiadora se esforça para elucidar.

O que resulta do conjunto das quatro partes que compõem o livro é um trabalho vasto sobre a presença do imigrante português no Rio de Janeiro, que recobre um amplo espectro de tempo, uma vez que o livro apresenta seções que analisam desde o período da Grande Imigração, que vai de fins do século XIX até o final da década de 1920, até o período da chamada Segunda Imigração, que abrange os anos do período pós Segunda Guerra Mundial até os princípios da década de 1960.

Trata-se de um trabalho que apresenta uma estrutura de desenvolvimento do seu enredo coerente entre as suas três primeiras partes, a qual se agrega um quarto capítulo que, embora em nada comprometa a boa harmonia que o todo da obra revela ao final do percurso da sua leitura, claramente insere-se como um elemento que merece destaque especial em seu texto. Explico: conforme a autora indica na sua apresentação, a ideia de publicar uma narrativa sobre as origens da sua família não constava inicialmente no plano de redação do livro, mas, segundo também refere a autora, essa opção foi amadurecendo gradativamente, fruto das suas reflexões e sentimentos quanto a esse trabalho. É que Lená Menezes é oriunda de imigrantes portugueses aportados em terras cariocas no século XIX, e o é, como se diz em uma expressão corrente na língua portuguesa falada no Brasil, de quatro costados. Foi precedida dessa gente por todos os lados de sua família, como afirma no livro, pois é neta de dois avôs portugueses, um transmontano e outro açoriano, além de suas duas avós terem sido filhas de família de imigrantes igualmente lusitanos. Na 4ª parte do seu livro, a mais profundamente vinculada aos seus afetos pessoais, relata o que hoje seria o conceito de comfort food, aquela experiência alimentar que nos vem da infância, e que nos toma de sentimentos durante o processo de degustação de alguns alimentos que ingerimos, e que são evocativos de experiências de afeto no seio familiar, como nos diz quando relata as refeições de origem lusa que faziam em casa, como as papas de milho com feijão, couve e lombo de porco, ou o bacalhau à portuguesa, regado no azeite, também tipicamente português. Assim, com essa afecção interior de lusitanidade familiar, a autora perfaz um movimento comum à 3ª e 4ª geração de descendentes de imigrantes, que é o da busca do resgate das suas origens pois, conforme nos indica Boris Fausto, se a 2ª geração tende a afirmar a sua condição de brasileiro com o fito de melhor se assimilar à sociedade receptora do imigrante, a 3ª e a 4ª gerações, já bem assimiladas à brasilidade, se inclina ao resgate das suas origens no processo de constituição de sua identidade (FAUSTO, 1997). Cabe lembrar que essa costuma a ser uma questão de peso existencial considerável àquele que descende de imigrantes, pois atende a uma das perguntas fundamentais da existência: de onde eu vim?

O trabalho da autora, como já dissemos, e aqui resgatamos essa ideia, é resultado de um entrecruzamento. Entrecruzamento de duas questões existenciais fundamentais para qualquer um, a saber: a sua inserção profissional de toda uma vida, no seu caso, como acadêmica da área de História, e a sua condição de descendente em 100% de imigrantes portugueses. A chave para compreender o que motivou a opção pela forma da constituição do seu livro não pode furtar-se a esses dois aspectos. Essas duas condições existenciais são fulcrais para a compreensão da obra em seu conjunto. Sem essa chave compreensiva, o leitor não perceberá o fio de tessitura que vincula uma parte do livro à outra, conferindo-lhe uma coerência orgânica que traduz toda a herança de uma vida naquilo que talvez sejam os seus dois principais aspectos: o de formação e profissional, e o afetivo e familiar. É com os olhos fixados nesse encontro das duas dimensões da vida da autora que devemos examinar esse livro.

No mais, não podemos deixar de aqui assinalar que esse é um trabalho que dá um contributo sério e relevante aos estudos sobre a presença lusitana na cidade do Rio de Janeiro, tanto em termos temáticos quanto metodológicos. É referência indispensável àqueles que pretendem se iniciar nos estudos sobre os imigrantes portugueses na urbe carioca e, diria, sem medo de errar, uma referência incontornável nos estudos sobre o empresariado e a presença lusa na economia do Rio de Janeiro.

Mas, nos parece, a contribuição desse trabalho extrapola o acadêmico, englobando-o, porém, superando-o. Pensamos aqui que esse trabalho oferece também uma boa oportunidade aos cerca de 25 milhões de luso-descendentes, até a 4ª geração, que povoam as nossas terras brasileiras, de se reencontrarem com as suas origens, pois as análises gerais dos portugueses nele realizadas, as análises de cada uma das vozes e memórias dos portugueses e portuguesas que vão registrados nesse livro, bem como as memórias e histórias dos imigrantes lusitanos da família da autora são, na verdade, como nos sugere a escritora no final da apresentação do seu livro, um movimento de evidenciar o nós em cada vida singular que se abre para o conhecimento do leitor, pois mesmo aqueles brasileiros, de todas as cores e dos fenótipos mais diversos, trazem algo de português em si. Ao menos é o que nos diz o maior especialista em genética de todo o Brasil, o professor Sérgio Danilo Pena, da UFMG, que coordenou o maior trabalho empírico de pesquisa científica de levantamento genético já realizado em cada um dos 26 estados brasileiros, que demonstra, através de um dos dois métodos de investigação genética que perfez, o da origem pelo cromossomo y (de linhagem exclusivamente paterna) que, para surpresa de muitos, 99% desse cromossomo dos brasileiros são de origem caucasiana, cuja avassaladora maioria é, obviamente, de origem lusitana (PENA, 2002). Tudo isso para não falar do enorme contributo que a cultura portuguesa deu para formação de nossa cosmogonia, juntamente com outros povos, também eles contribuintes de enorme relevância para a construção da bricòlage que somos como nação.

Desta forma, Portugueses no Rio de Janeiro. Negócios, trajetórias e cenografias urbanas é um livro acadêmico, mas é também mais do que isso. É um livro para qualquer um que tenha alguma razão para se interessar pelo Nós que recobre cada uma das 344 páginas que compõem esse livro.

Referências

FAUSTO, Boris. Negócios e ócios. Histórias da imigração. São Paulo: Cia das Letras, 1997.

MEDEIROS, Lená Menezes de. Portugueses no Rio de Janeiro: negócios, trajetórias e cenografias urbanas (séc. XIX-XXI). 1ª. Ed.. Rio de Janeiro: Editora Ayran, 2021.

PENA, Sérgio Danilo J. Homo brasilis: aspectos genéticos, linguísticos, históricos e socioantropológicos da formação do povo brasileiro. Ribeirão Preto: FUNPEC-República, 2002.


Resenhista

André Nunes Azevedo – Professor de História Moderna e Contemporânea e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutor em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Mestre em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]  https://orcid.org/0000-0001-6546-1535  http://lattes.cnpq.br/6516816345956630


Referências desta Resenha

MEDEIROS, Lená Menezes de. Portugueses no Rio de Janeiro: negócios, trajetórias e cenografias urbanas (séc. XIX-XXI). Rio de Janeiro: Editora Ayran, 2021. Resenha de: AZEVEDO, André Nunes. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n. 30, p. 291-297, maio/ago. 2022. Acessar publicação original [DR]

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