Tiempos críticos: historia, revolución y temporalidad en el mundo iberoamericano: sieglos XVIII y XIX | Fabio Wasserman

Fabi Wasserman Foto Rodrigo LorettPerfil
Fabi Wasserman | Foto: Rodrigo Lorett/Perfil

Se durante boa parte de sua história o tempo foi considerado apenas como uma das premissas implícitas ao ofício da historiografia, capaz de evidenciar por si próprio suas formas de recortá-lo, periodizá-lo e datá- -lo, nesta última metade de século a situação é outra. Uma breve vista aos índices das principais revistas acadêmicas dedicadas à teoria e prática historiográfica revela que nas últimas décadas a problemática das temporalidades tem ganhado espaço cada vez mais relevante nas discussões sobre a história e suas formas de escrevê-la. Vivemos uma crise temporal.3

Evidencia essa tendência não só o fator quantitativo, mas também o qualitativo, expresso nos debates que vêm sendo travados, em escala global, acerca das formas de conceituar e abordar o tempo como elemento central para qualquer narrativa histórica. Mesmo com o recente crescimento no número de estudos que elegem a temporalidade enquanto objeto de análise, ainda não se foi capaz de sanar a escassez de diálogo que afasta dois tipos de história: uma mais voltada à investigação dos eventos e das estruturas sociais, que por vezes considera o tempo simplesmente como dado ou data; e outra, intelectual, que encara a temporalidade como problemática final de sua investigação (por vezes desencarnada). Encontrar meios de aproximação e cruzamento entre as duas tem sido um dos desafios de nossa geração.

Autores amplamente traduzidos e difundidos como Reinhart Koselleck, François Hartog e Hans Ulrich Gumbrecht têm estabelecido um importante campo de discussão onde o tempo histórico é posto como problemática fundamental e, partindo dele, tem-se buscado alargar e renovar o espectro de temáticas possíveis ao domínio da historiografia – mais do que isso, oferecer novas lentes para recolocar em cena questões que já pudessem parecer encerradas. É nesse sentido que Tiempos críticos: História, revolución y temporalidad em el mundo iberoamericano(siglos XVIII y XIX) vem trazer sua contribuição, sob uma perspectiva ampliada e até então pouco explorada.

Essa perspectiva ampliada refere-se não apenas ao interesse compartilhado pelas diversas áreas do saber que se encontram ao longo de seus treze estudos – como a filosofia, a antropologia, a estética, a teoria política, a geografia, os estudos literários e a teoria da história –, mas sobretudo à abordagem espacial a partir da qual o livro se propõe: o estabelecimento de um campo de estudos transatlânticos dedicados à questão das temporalidades. Tal iniciativa é parte de um esforço mais amplo empreendido pelo grupo Iberconceptos, 4 rede de investigações ligadas à história conceitual que busca pensar suas questões epistemológicas levando em consideração, em primeiro lugar, as particularidades do Mundo Iberoamericano. O livro em questão, por sua vez, busca somar-se não ao debate acerca do que é o tempo em si ou de suas definições, mas acerca dos seus usos e tratos, encarnados pela realidade política iberoamericana. Não se trata de construir uma história do conceito de tempo, mas de se debruçar sobre questões que vão surgindo na investigação daquelas formas específicas de se relacionar, experimentar, perceber, representar e conceituar o tempo. A equipe Temporalidades reúne, em Tiempos críticos, produções realizadas na Espanha, México, Colômbia, Venezuela, Peru, Brasil, Chile e Argentina.

O recorte temporal que é indicado pelo título vem mais como uma referência geral aos autores e leitores do que de fato um limite, já que muitos dos ensaios ultrapassam essa barreira de diferentes formas: não apenas em seu sentido diacrônico (ora articulando seu objeto com eventos anteriores, ora avançando sobre o século XX), mas também no sentido de que suas reflexões remetem ao tempo presente e à historiografia contemporânea (ultrapassando o recorte de maneira transversal). Esse maior enfoque que é dado aos séculos XVIII e XIX, contudo, se deve principalmente ao grande câmbio temporal vivido pelo ocidente nesse período: o rompimento com a chamada História Magistra Vitae e o início do regime moderno de historicidade, o historicismo. A consciência de se viver num tempo em revolução, sintoma da temporalidade moderna no mundo atlântico, trouxe consigo um novo tipo de sociedade voltada para o futuro: ao passo que as experiências passadas perdiam peso em sua função de orientar os rumos tomados pelas nações, as expectativas pelo porvir se distanciavam cada vez mais do próprio passado. A História deixava de ser a mestra da vida para se tornar uma cadeia linear-ascendente de eventos, amarrando-os numa sucessão de causa e efeitos que marchava em direção ao Progresso. A chamada futurização do do ocidente introduziu um tipo de tempo unívoco e sequencial que reformulou os arranjos entre passado, presente e futuro daquelas sociedades. Tal movimento teria gerado uma maior consciência acerca do tempo enquanto fator demonstrativo do grau de civilização alcançado pelas diferentes nações, numa espécie de escala universal do desenvolvimento humano rumo ao progresso. A partir daí, o tempo enquanto conceito político ganha novos contornos e assume o centro das discussões globais acerca do lugar que cada nação ocupava nessa linha temporal, admitindo para si os mais variados usos e significados dentro do debate público.

Sendo notória a contribuição de Reinhart Koselleck acerca da temática, a história dos conceitos se apresenta como o principal aporte teórico- metodológico de Tiempos críticos. 5 É ela que dá ao livro seu elástico fio condutor, capaz de amarrar suas diferentes temáticas, épocas e lugares sob a ótica comum das temporalidades. Isso não significa que o arcabouço teórico do livro se esgote na análise koselleckiana, nem tampouco que sua realização seja uma simples tradução e aplicação dessa análise a um mundo iberoamericano estático e homogêneo. Não são poucos os caminhos metodológicos que surgem ao longo dos estudos para dar conta das especificidades de cada enfoque. Além das categorias fundamentais de espaço de experiência e horizonte de expectativa, também se recorre de forma pragmática a outras categorias como as de experiências de tempo, cronotopo, regimes de historicidade e regime cultural do tempo, tecendo uma espécie de teia na complexa tarefa de circunscrever um objeto por vezes tão volátil. A estas, soma-se ainda a colaboração de um amplo leque de autores que reúne nomes como Carl Schmitt, Niklas Luhmann, J. G. A. Pocock, Quentin Skinner, Pierre Rosanvallon, e também os já referidos Hans U. Gumbrecht e François Hartog.

Sua eclética composição, formada por pesquisadores de diferentes lugares, gerações e áreas do saber, que num primeiro momento poderia parecer um problema à realização da obra, ao contrário, é aqui encarada como um de seus trunfos: sua pluralidade de enfoques e ferramentas analíticas é o que, segundo Wasserman, possibilita à obra explorar a fundo as diferentes faces do recorte geral. Mesmo a delicada questão das traduções e suas limitações – seja de conceitos chaves como Progresso, Revolução, Civilização, Modernidade e Regeneração, seja das teorias e metodologias articuladas ao longo dos estudos – às realidades iberoamericanas, são tomadas de forma crítica como elemento de sua reflexão.

Em sua caminhada, o livro nos conduz a diferentes lugares, como por exemplo às revoluções liberais do mundo hispânico, articuladas por Javier Fernández Sebastián em Levantando los planos del porvenir – onde o autor investiga, a partir de sua relação com as independências nas Américas, um movimento de futurização radical da política e, mais especificamente, um processo de descobrimento de um futuro em si mesmo que, a partir de 1830, passa a ser tematizado, analisado e especulado. Em Café con el Anticristo, Victor Samuel Rivera nos convida à experiência política dos cafés na cidade de Lima, que em seu intenso fluxo de jornais e periódicos noticiavam as últimas novidades da Revolução Francesa, expressando ali a tensão entre a tirania española do rei Carlos e os valores da libertad francesa. O próprio Fábio Wasserman, em De la revolución al historicismo romântico, nos transporta ao Rio da Prata para investigar as novas experiências temporais e a aceleração do tempo naquele espaço a partir da chamada Revolución de Mayo, reconstruindo as formas de expressão e percepção das elites rioplatenses acerca da tensão entre revolução e temporalidade. Além desses, passamos ainda pela Venezuela, México, Lisboa, região neograndina, entre outros.

O caso brasileiro é contemplado em quatro deles. Rafael Fanni, em La Independência de Brasil y la conciencia de un tiempo revolucionário (1820-1822), utiliza periódicos e panfletos políticos para enxergar como os novos conceitos temporais circulavam por aqueles veículos, sendo articulados, metaforizados, expressando a temporalização dos discursos políticos que influiu diretamente na formação dos sujeitos envolvidos com o processo de independência. Em Saber Prudencial em el debate político brasileño, Luisa Pereira e Larissa Teixeira se debruçam o debate feito no Senado Imperial acerca da reforma constitucional em 1832, para buscar na linguagem do âmbito parlamentar os usos dos conceitos, metáforas e do próprio passado histórico na argumentação política. Já em Modulando el tiempo historico, Christian Lynch busca examinar no conceito de regresso formulado por Bernardo Pereira de Vasconcelos, as operações de temporalização dos conceitos pautada pelo giro conservador dos anos 1830, numa indicação de fazer retroceder o curso da história ao Antigo Regime. E finalmente, Maria Elisa Noronha de Sá encara os conceitos de sertão/litoral, inscritos na visão política de Paulino José Soares de Souza e na visão literária do poeta Antônio Gonçalves Dias, tensionando-os com os ideais de civilização/barbárie, buscando em suas sensibilidades as distintas concepções temporais experimentadas na época.

Desta forma, os treze estudos admitem uma leitura individual de cada um deles, de acordo com os interesses de cada leitor – o que não substitui a experiência geral de ler o livro como um todo. A obra, que não se pretende uma simples compilação de ensaios atomizados, entende a si mesma como resultado de um processo coletivo, articulado ao longo de diversos encontros, simpósios e trocas entre a equipe Temporalidades e o grupo Iberconceptos. Seu formato antológico não a impede de dialogar consigo própria, fazendo com que o leitor reavalie os capítulos a partir da leitura uns dos outros, complementando-se mutuamente. O geral vai se revelando na análise de casos particulares, articulados em enfoques específicos, que se unem como num mosaico e nos fazem enxergar a forma como esse múltiplo processo de câmbio temporal foi significado entre diferentes culturas – se mais ou menos ligado ao cenário internacional, se de maneira positivada ou reacionária, as formas como foram articuladas, suas ambiguidades e disputas.

Portanto, apesar de sua assumida limitação acerca de suas fontes estarem restritas, em grande parte, à análise de documentos e discursos políticos, capturados em sua maioria pela cobertura da imprensa acerca de um debate público restrito às camadas letradas e às elites urbanas, a obra não deixa, contudo, de apontar caminhos para que esse enfoque seja alargado. A própria perspectiva de uma história intelectual que deixa de incluir em sua análise a participação, por exemplo, das populações rurais e até dos outros idiomas praticados no mundo iberoamericano, também é consciente da impossibilidade de se realizar uma história que dê conta de todas as vozes de uma sociedade ao mesmo tempo. Por sua postura de abrir novos canais e não de encerrá-los, a obra costura caminhos e oferece ferramentas de análise que possibilitam a expansão de seus interesses para além do recorte político, indicando meios para enxergar a problemática das temporalidades também na literatura, por exemplo, ou em outras áreas da cultura.

Justamente por não buscar uma definição para o que é ou foi o tempo, nem tampouco tentar pôr à prova uma única teoria e metodologia que pudesse dar conta de explicá-lo por completo, a obra soube aproveitar a amplitude que seu leque temático oferece para propor meios variados de compreensão e análise daqueles processos históricos. Em sua exitosa missão de consolidar um campo de estudos temporais transatlânticos e estabelecer um terreno firme para as vindouras produções acerca do tema, Tiempos críticos nos convida a pensar nossa própria historicidade a partir do ato de pensar o passado, não apenas tomando a temporalidade enquanto objeto fim, mas sendo atravessado transversalmente por ela. Pensar a forma como o nosso presente pensa o passado é um de seus elementos centrais.

Notas

3  Nos termos desenvolvidos por François Hartog em HARTOG, François. Regimes de Historicidade: Presentismo e experiência do tempo;– Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

4  Projeto e Rede de Investigação em Historia Conceitual Comparada do Mundo Iberoamericano. Disponível em: http://www.iberconceptos.net/

5  Nos termos desenvolvidos em obras como KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos– Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006. e KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história;– 1. ed. – Rio de Janeiro: Contraponto: PUC-Rio, 2014.

Referências

HARTOG, François. Regimes de Historicidade: Presentismo e experiência do tempo;– Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos; – Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.

KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história;– 1. ed. – Rio de Janeiro: Contraponto: PUC-Rio, 2014.

KOSELLECK, Reingart. Uma latente filosofia do tempo; Orgs. Hans Ulrich Gumbrecht e Thamara de Oliveira Rodrigues; traduzido por Luiz Costa Lima. – São Paulo: Editora Unesp, 2021.


Resenhista

Daniel Lourenço do Prado – Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF), com financiamento da CAPES. Faz parte do grupo de pesquisa Epistasthai, vinculado ao Instituto de História (IHT) da Universidade Federal Fluminense, sob coordenação de Francine Iegelski e Maurício de Carvalho Ramos. Email: [email protected]


Referências desta Resenha

WASSERMAN, Fabio. Tiempos críticos: historia, revolución y temporalidad en el mundo iberoamericano: sieglos XVIII y XIX. Cuidad Autónoma de Buenos Aires: PrometeoLibros, 2020. Resenha de: PRADO, Daniel Lourenço do. Câmbios temporais no mundo iberoamericano: nuances de um tempo em crise. Almanack. Guarulhos, n. 31, er00422, 2022. Acessar publicação original [DR]

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