Bibliotecas, leitura e educação / Revista do Arquivo Público Mineiro/2012

Cinco artigos compõem o dossiê Bibliotecas, leitura e educação. São eles: “Escrever, ler e rezar”, de Leila Mezan Algranti; “Humanamente indispensável”, de Christianni Cardoso Morais; “O ouro das estantes”, de Laura de Mello e Souza; “Do impresso à pintura”, de Camila Fernanda Guimarães Santiago; e “Leituras libertinas”, de minha autoria.

Em comum a esses artigos, há primeiramente a referência central ao espaço de Minas Gerais e aos marcos cronológicos que se estendem do século XVIII a parte do século XIX, sendo exceções os artigos de Leila Mezan Algranti, que se concentra no Setecentos, e de Christianni Cardoso Morais, que se volta para o conjunto da América portuguesa, focalizando Minas Gerais em seu interior. Há em comum, ainda, o objeto sobre o qual se debruçam, objeto ao mesmo tempo único e múltiplo: a cultura luso-brasileira, ora focalizada sob o prisma da educação no lato sensu, ora tomada no sentido estrito (isto é, como processo desenvolvido no interior de instituições educativas). Versam, contudo, de qualquer forma, de modo direto ou indireto, sobre os livros e as relações com eles estabelecidas por seus proprietários, individuais ou institucionais (caso do Recolhimento das Macaúbas), e leitores, ou ainda pelos órgãos que procuravam controlar sua circulação (a Inquisição, o supracitado Recolhimento ou a monarquia portuguesa, por exemplo). Entre os leitores e/ou proprietários de livros, figuram tanto personagens mais ou menos célebres – como o contratador Manuel Teixeira Queiroga, os irmãos Vieira Couto, o pintor Manoel da Costa Ataíde e o professor régio e poeta mineiro Manuel Inácio Silva Alvarenga – quanto figuras anônimas ou relegadas ao esquecimento, como Joaquina Teodora, a mulher do pintor Francisco Xavier Carneiro, ou Maria Magdalena Salvada, amante de José Joaquim Vieira Couto.

O livro é abordado em suas relações com outros elementos da cultura material, ou ainda com as imagens e a oralidade, formas de comunicação muito presentes num ambiente sociocultural em que a habilidade de ler encontrava limites (mas não só por isso, uma vez que a expressão oral era valorizada socialmente). Chama-se a atenção, ademais, para a importância da oralidade no processo educativo e/ou na vivência da fé, como se constata nos artigos sobre o Recolhimento das Macaúbas e sobre o proselitismo herético dos irmãos Vieira Couto.

Nos textos sobre os dois irmãos supracitados, sobre o Recolhimento das Macaúbas e sobre as Aulas Régias, o componente estamental aparece, advogado por instituições ou súditos: sujeitos de origens sociais distintas deveriam ter acessos diferenciados à educação e aos livros. Em dois artigos, a posse de livros é tomada como signo de status, associando-se à propriedade de cavalos, bandejas, cálices e quadros, entre os bens do contratador Queiroga; e somando-se a peças de ouro, prata e imagens de santos, entre os bens herdados do pintor Francisco Carneiro por Joaquina Teodora, sua mulher, e por ela escondidos. Ou então o status é evidenciado na relação que os leitores mantêm com os livros, situação apontada no artigo sobre os irmãos Vieira Couto. Ambos entregavam-se à prática de leituras orais, por meio das quais exprimiam suas proposições heréticas e suas libertinagens, como era frequente, ainda que não exclusivamente, entre letrados nascidos em famílias abastadas. José Joaquim Vieira Couto, mais especificamente, argumentava que o contato com livros proibidos era prerrogativa concedida àqueles que, como ele, colaborariam para manter a ordem religiosa e política.

Tensões entre pessoas (como a estabelecida entre José Vieira Couto e o Dr. Luiz de Figueiredo, por exemplo), ou entre, de um lado, súditos e fiéis e, de outro lado, instituições (a Inquisição, a Diretoria Geral de Estudos, o Recolhimento das Macaúbas, os ouvidores, os camaristas), também são focalizadas ou sugeridas nos artigos do Dossiê. Pense-se, em relação a essa última situação, nos possíveis impactos sobre as recolhidas de Macaúbas, em face da ênfase dada pela instituição ao controle do tempo e das atividades por elas desenvolvidas.

Nos artigos, há lugar para as apropriações que os leitores e/ou proprietários de livros fizeram desses últimos. Em alguns casos, trata-se de apropriações presumidas, como se fez em relação ao contratador Queiroga ou ao pintor Manoel da Costa Ataíde. Noutros, as apropriações são atribuídas por terceiros ou assumidas pelos próprios leitores, como se verificou em relação aos membros da Sociedade Literária do Rio de Janeiro (entre eles, o professor Silva Alvarenga) e aos irmãos Vieira Couto. Cumpre ressaltar que as apropriações dos livros, nos casos dos pintores, do contratador Queiroga e dos concubinos José Joaquim Vieira Couto e Maria Madalena Salvada, quase certamente passaram pelo contato com imagens e/ou informações transmitidas por via oral. Ainda em relação às apropriações, deve-se registrar que há exemplos de evidente inventividade dos leitores, como são os casos do pintor Manoel da Costa Ataíde e dos irmãos Vieira Couto.

A presença de livros de autores franceses, publicados em língua francesa ou traduzidos do francês para o português, também chama a atenção como aspecto comum a quatro estudos do Dossiê (ainda que no artigo de Leila Mezan Algranti se trate de algo que apenas pode ser inferido a partir do ensino da língua francesa que se preconizava para as recolhidas de Macaúbas). Podem ser citados, entre os autores franceses ou francófonos, Fénelon, Voltaire, Montesquieu, Jean-Jacques Rousseau e Raynal. Já entre os títulos, deve-se lembrar Histoire sacrée de la providence et de la conduite de Dieu sur les hommes depuis le commencement du monde jusq’aux temps prédits dans l’Apocalipse. Entre as traduções, pode ser cogitada (ainda que não assegurada) a obra A arte de pintura, de C. H. Du Fresnoy, publicada em 1801 pela Casa do Arco do Cego.

Quatro artigos, além disso, trazem indícios de que não apenas letrados e/ou homens abastados tiveram acesso aos livros e à educação, fosse essa formal ou informal. São exemplos as recolhidas no Recolhimento das Macaúbas; o pintor pardo Marcelino da Costa, proprietário de livros, em Vila Rica; a parda Tomásia Onofre de Lírio, que teve contato com livros via José Vieira Couto, no Tejuco; e ainda Maria Magdalena Salvada, em Lisboa, cujo acesso a romances libertinos em francês foi promovido por José Joaquim Vieira Couto, que se deu ao luxo de contratar um professor de francês para viabilizá-lo.

A sombra da Inconfidência Mineira, ou melhor, dos inconfidentes, por fim, fica evidente em dois artigos: no de Laura de Mello e Souza, que focaliza as relações de Queiroga com os conjurados de Minas, levantando até mesmo a possibilidade de parte dos livros do contratador pertencer a algum deles; e no de minha autoria, em que se mencionam a possível participação de José Vieira Couto na conjuração e a recusa da maçonaria em aceitar o ingresso de Joaquim Silvério dos Reis em seus quadros, fatos que talvez estejam entrelaçados.

Luiz Carlos Villalta


VILLALTA, Luiz Carlos. Apresentação. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte – MG, v.48, n.1, jan./dez., 2012. Acessar publicação original [DR]

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