Memória da Administração de Minas Gerais / Revista do Arquivo Público Mineiro / 2013

O moderno arranjo arquivístico da documentação reunida sob a custódia do APM tem disponibilizado o acesso a uma multiplicidade de pesquisas, como as que se norteiam pela história administrativa de Minas, gerando campo de interlocução em que a instituição consolida sua vocação republicana.

Os textos que compõem este Dossiê têm como ponto de partida a intenção de demonstrar o potencial de pesquisa existente nos documentos de caráter arquivístico produzidos e acumulados pelas secretarias de governo implantadas no Estado de Minas Gerais após o estabelecimento do regime republicano, em 1889, e que se encontram sob a guarda do Arquivo Público Mineiro.

A leitura deste conjunto de textos possibilita afirmar que a história administrativa pode ser tomada como um campo de conhecimento capaz de mediar o diálogo que deve ser mantido entre os pesquisadores que afluem às instituições arquivísticas e os profissionais que possuem vínculos com a instituição, nas quais desenvolvem seus trabalhos procurando garantir o acesso ao conjunto de fundos e coleções que encontram sob a guarda dessa. O presente Dossiê também dá a perceber a necessidade de reconhecer que esses dois grupos de pesquisadores, ainda que se articulem no campo da história administrativa, têm diferentes modos de operar e conduzir os seus respectivos projetos. Distinguir esses aspectos constituiu-se na chave de leitura para a apresentação destes artigos.

Trabalho contínuo

Descrever os procedimentos básicos que nortearam o processo de arranjo dos documentos pertencentes aos fundos da Secretaria da Agricultura, Secretaria de Viação e Obras Públicas, Secretaria do Interior e Chefia de Polícia é o propósito do artigo de Christiane Costa e Thiago Vitral. Os autores registram esse processo de forma a abarcar as várias etapas necessárias para sua realização. Iniciam pelo relato das iniciativas de caráter administrativo, ou seja, de como foi formulado, em 2005, um programa que visava a garantir que todos os fundos, que se encontravam sob a guarda do Arquivo Público Mineiro e ainda não abertos a consultas, fossem trabalhados a partir da aplicação dos princípios teóricos da Arquivística, para que pudessem ser franqueados. Demonstram que o estabelecimento desse programa tornou possível a definição das várias etapas necessárias ao cumprimento de tal objetivo. Sua definição fundamentou a formulação de inúmeros projetos que têm sido apresentados à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), garantindo, assim, a contratação de equipes de trabalho.

A descrição dos procedimentos metodológicos adotados por essas equipes de trabalho constitui o ponto de relevância do texto de Costa e Vitral, uma vez que os autores realizam uma comunicação de caráter duplo. Em primeiro lugar, por oferecer aos pesquisadores um relato fundamental que certamente os auxiliará no processo de condução de suas investigações. E, em segundo lugar, porque, ao registrarem a realidade na qual os papéis se encontravam, justificam as opções metodológicas tomadas para definir a sequência de operações intelectuais e físicas que fundamentaram o arranjo dos documentos. O fato de parte desses fundos já ter sido organizada e disponibilizada ao público em período anterior constitui a causa que exigiu a busca de sistematizações que articulassem aquele processo com o que ora se apresenta.

A primeira definição de estrutura de arranjo esteve diretamente condicionada ao fato de os documentos se apresentarem na forma encadernada. Certamente a encadernação ocorreu ainda no período em que a documentação se encontrava sob a guarda do órgão que a produziu e acumulou, isto é, em período anterior ao recolhimento ao APM. Dessa forma, a equipe que atuou na década de 1970 optou por não realizar interferências de ordem material nesses conjuntos de fundos, escolha que também seguiu sendo respeitada pela equipe atual. Ademais, conscientes de que o processo de recolhimento desses conjuntos pode não estar concluído, Costa e Vitral preferem, acertadamente, operar por meio do conceito de fundo aberto, “ao qual podem ser acrescentados novos documentos em função do fato de a entidade produtora continuar em atividade”. Para corroborar essa decisão, vale lembrar que a consolidação de programas de gestão de documentos na esfera executiva do governo mineiro torna possível vislumbrar que o APM venha a realizar novos recolhimentos que integrarão fundos já sob a sua guarda.

O texto de Costa e Vitral põe em evidência o fato de que o trabalho arquivístico de descrição dos documentos é contínuo, e que a comunicação dos acervos se dá em vários níveis. Ademais, muitas vezes a representação da estrutura de um arranjo não é suficiente para refletir as relações de organicidade presentes em um fundo. Enfim, Costa e Vitral nos apontam que a discussão desses aspectos contribui para identificar os elementos que devem estruturar o projeto de uma Arquivística contemporânea.

Revisão de critérios

Os pesquisadores Carlos Roberto Jamil Cury e Elizabeth Moreira Gomes inscrevem seus trabalhos no âmbito da História da Educação. Para o desenvolvimento desse texto, utilizaram de uma vasta tipologia documental sob a guarda do APM, em que se destacam as provas aplicadas aos alunos das Escolas Normais das cidades de Campanha, Diamantina, Juiz de Fora, Montes Claros, Ouro Preto e Uberaba, no período de 1888 a 1908. Ressalta-se que esse conjunto de fontes não está restrito às provas, sendo composto também por atas de avaliação, pareceres dos avaliadores e ementários de algumas cadeiras do curso de normalista. Após uma exaustiva análise desse conjunto de documentos, os pesquisadores elucidam as estratégias de que se valeram em um primeiro momento os dirigentes da Província, seguidos pelos do Estado mineiro, para implantar o sistema educacional.

As provas realizadas pelos alunos das Escolas Normais certamente constituem matéria que emerge com destaque no âmbito da Arquivística contemporânea. Isso se deve ao fato auspicioso de essa tipologia ter sido preservada, constituindo hoje um conjunto de documentos de guarda permanente, sem o que tal avaliação não se viabilizaria. Ou seja, se fossem observadas rigorosamente as orientações que regem a prática de avaliação e seleção de documentos de arquivos, as provas discentes não deveriam ser classificadas como documentos de guarda permanente. Tal fato sugere a imperiosa necessidade de retomada de discussões sobre esses critérios, fundamentadas no texto desses pesquisadores, que demonstram de forma contundente a importância dessa tipologia documental para a produção da História da Educação.

Desvendando o aparato policial

O texto “Arquivos da polícia sob o foco da história”, de Rodrigo Patto Sá Motta, é uma abordagem desenvolvida por um pesquisador que possui uma longa trajetória de reflexão sobre temas relacionados ao golpe de 1964 e ao regime militar, e que se dedica também a estudos de temas como a repressão política, anticomunismo e atuação da esquerda. Nesse artigo, Motta avalia as potencialidades de pesquisa sobre esses temas existentes nos fundos custodiados pelo APM. Ressalta-se que suas investigações remetem à totalidade do acervo sob a guarda da instituição, não se restringido tão somente ao fundo Chefia de Polícia.

O autor elenca as questões de caráter historiográfico que podem ser confrontadas, com base nesses fundos, tais como: as tensões entre o poder central e o poder regional; a polícia civil versus a polícia militar; os processos de identificação e controle dos registros de estrangeiros; o controle dos passaportes dos estrangeiros; os processos de naturalização; o controle de entidades associativas e a assistência aos alienados. O autor reafirma a importância do recolhimento de documentos produzidos pelas esferas administrativas responsáveis pelo exercício dos aparatos policiais.

O percurso desenvolvido por Rodrigo Patto também é marcado pela necessidade da discussão a respeito das formas de acesso e sigilo dos documentos sob a custódia das instituições arquivísticas. O historiador pretende que essa discussão deve constituir um campo de interlocução para que as instituições arquivísticas se tornem um elo no processo de consolidação democrática do país.

 Fundamentos da modernização

A partir da perspectiva do processo de implantação da infraestrutura de transportes na Província e posteriormente no Estado de Minas Gerais, a pesquisadora Lidiany Silva Barbosa nos oferece o texto “Obras públicas entre o Império e a República”. Sua análise fundamenta-se no cotejamento dos fundos da Secretaria de Obras Públicas e da Secretaria de Agricultura, buscando compreender como o processo de implantação do sistema de transporte em Minas Gerais, no período de 1830 a 1945, se dá de forma articulada com o desenvolvimento e a ampliação da estrutura organizacional da administração pública. Nessa perspectiva são focalizados os seguintes aspectos: o orçamento; a política de contratação de funcionários públicos, com destaque para os profissionais com atuação tipicamente modernizante – os engenheiros; os movimentos que buscavam introduzir os conceitos de racionalidade administrativa; o intervencionismo estatal e a emergência do nacionalismo e do desenvolvimentismo.

Como ponto de relevância na pesquisa desenvolvida por Barbosa, destaca-se a abordagem sobre a criação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1938. Nesse espaço a autora examina de forma detalhada a importância do IBGE na implementação da legislação que tornou obrigatória a elaboração de mapas de todos os municípios brasileiros. Os procedimentos metodológicos definidos pela autora, objetivando recuperar, inclusive através de legislação, a forma como os mapas deveriam ser produzidos, constitui ponto de confluência com os trabalhos de pesquisa desenvolvidos pela Arquivística contemporânea. De forma pontual, essa disciplina tem recorrido à diplomática para proceder aos trabalhos de descrição dos documentos. Nesse sentido, os procedimentos definidos por Barbosa para trabalhar com os mapas, que se encontram no fundo da Secretaria de Viação e Obras, delineia-se como um espaço de diálogo entre equipes multidisciplinares.

Busca da interlocução

Os textos que compõem este Dossiê apresentam recortes singulares, mas ao mesmo tempo deixam manifesto um procedimento comum a todos, qual seja, o fato de se fundamentarem em documentos que se encontram sob a guarda do APM. O que demonstra a necessidade premente de esta instituição buscar interlocução com a comunidade de pesquisadores que aflui aos seus espaços. Dos textos aqui apresentados, é possível identificar algumas diretivas que podem orientar esse processo de interlocução. Certamente, uma historiografia administrativa que busque articular os princípios de organicidade e proveniência é uma delas, como bem demonstrou o texto de Costa e Vitral. A colaboração de Cury e Gomes aponta para a necessidade de retomada da discussão sobre os processos de recolhimento, ao demonstrar de forma inconteste a importância de uma tipologia que hoje ainda não está classificada como de guarda permanente. Rodrigo Patto Sá Motta reafirma a importância da ampliação do debate sobre as questões que orientam os processos de acesso e sigilo dos documentos produzidos e acumulados no âmbito da administração pública. Assim também a retomada dos estudos de diplomática certamente se constitui em mais um ponto que compõe esse campo de interlocução, como se pode depreender do estudo realizado por Lidiany Silva Barbosa, pesquisadora que integra a equipe do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional de Minas Gerais (Cedeplar), vinculado à Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Marta Eloísa Melgaço Neves – Especialista em arquivos públicos. Mestre em Ciência da Informação pela Escola de Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Diretora de Arquivos Permanentes do Arquivo Público Mineiro no período de 2007 a 2009. Atualmente é professora da Escola de Ciência da Informação da UFMG.


NEVES, Marta Eloísa Melgaço. Apresentação. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte- MG, v.49, n.1, jan./dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

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