A história do conceito de “Latin America” nos Estados Unidos – FERES JR (RTA)

FERES JR, João. A história do conceito de “Latin America” nos Estados Unidos. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2005. Resenha de: LOSSO, Tiago. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 1, n. 1, p. 172 – 175, jan./jun. 2009.

Existe uma América Latina? Esta pergunta, que soaria deslocada aos ouvidos de um desavisado, faz todo sentido como abertura de uma resenha que pretende apresentar um livro debruçado exatamente sobre os mecanismos, meandros e componentes do conceito de Latin America formulado pela intelectualidade norte-americana.

A história do conceito de “Latin America” nos Estados Unidos é trabalho premiado no Concurso EDUSC-ANPOCS, edição 2004, na área de Ciência Política. O livro é uma versão revisada da tese defendida pelo autor na City University of New York, ambientada na vertente de reflexão teórica sobre problemas intelectuais inspirada por Reinhart Koseleck, e difundida em solo norte-americano por Melvin Richter.1 Hoje, a História conceitual alemã (termo usado pelos seus praticantes) é um dos campos teóricos mais vigorosos no âmbito da investigação de problemas de ordem intelectual, mobilizando um debate frutífero, que tanto se desenrola entre seus praticantes, quanto através do contato com outras vertentes teóricas da história intelectual, principalmeente aquela inspirada em Quentin Skinner, Jonh Pocock e Jonh Dunn, conhecida como “Escola de Cambridge”. Como o próprio Melvin Richter admite, na orelha do livro, A história do conceito de “Latin America” nos Estados Unidos é uma contribuição vigorosa ao debate, levando o leitor a acompanhar o conceito de Latin America transitando entre os discursos das ciências socias que tematizaram a América abaixo do equador e os livros textos usados pelos atuais graduandos norteamericanos, sem deixar de marcar a política externa daquele país. Utilizando a teoria de Koselleck, Feres organiza seu argumento identificando de que maneira o conceito de Latin America foi articulado através de pares de contraconceitos assimétricos, onde “cada par é composto por um conceito positivo, assumido como identidade do grupo que nomeia, e um negativo que corresponde à mera inversão semântica do elemento positivo” (p. 38). Assim, ao tratar da Latin America, o estudioso norte-americano estava também elaborando o que era a sua América.

Estes pares de contraconceitos assimétricos, em se tratando do estudo em questão, são articulados em suas dimensões raciais, culturais e temporais. Racialmente, o latin american é sempre visto como não-branco, independentemente de ser afro-descendente ou nativo do continente, ou mesmo um mestiço entre qualquer uma das pretensas clivagens “raciais”. No tocante ao par cultural, a Latin America é concebida como uma região portadora de um conjunto cultural particular, profundamente marcado por elementos católicos, contraposto ao protestantismo que teria marcado definitivamente a realidade norte-americana. Ainda em termos culturais, a indolência do latin american é contrastada com a disposição do norte-americano; bem como o desprezo pelas leis na Latin America serve para ressaltar o apego dos americanos do norte ao direito e as regras. Por fim, o atraso da Latin America. Ao passo que o norte da América é o paroxismo do progresso, a Latin America encerra o atraso, os grilhões com o passado colonial ou, como em alguns autores analisados no livro, com elementos pretensamete feudais. Como bem frisado por Feres, estes pares de contraconceitos assimétricos não são mobilizados de forma estanque. Pelo contrário, em grande parte das oportunidades em que são utilizados, é possível identificar a “sobreposição” de dois ou mesmo dos três pares.

Um ponto relevante de A história do conceito de “Latin America” nos Estado Unidos é a investigação do papel das ciências sociais na difusão do conceito, hoje circulando para além dos muros acadêmicos. Surgido no século 19, o termo Latin America assume contornos de um discurso sócio-científico ao longo das décadas iniciais do século 20, fenômeno que tem seu impulso definitvo com a da conformação dos Latin American Studies, na década de 1960, momento em que verbas para pesquisas sobre a realidade latinoamericana foram abundamentemente distribuídas pelo governo dos EUA, preocupado com a “instabilidade política” da região.

No mapeamento da emergência e circulação do conceito, Feres passa em revista as várias tendências que marcaram estudos produzidos sobre a realidade da Latin America. Da teoria da modernização, passando pela teoria da estabilização política, pela Teoria da Dependência e pelas teorias corporativistas, até os livros-texto usados atualmente nos cursos de graduação dos EUA, o autor mostra a permanência de elementos semânticos pejorativos atribuídos a realidade e aos habitantes da Latin America. Digno de nota é a referência feita a Teoria da Modernização (tanto nos trabalhos de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Falleto quanto nos estudos de Andre Gunder Frank), que distancia-se dos preconceitos típicos das outras teorias referenciadas, negando a validade heurística dos argumentos ancorados nos pares de contraconceitos assimétricos que constituem o conceito de Latin America.

Cabe ainda notar que Feres identifica uma estreita relação entre as interpretações sobre a Latin America e os sucessivos contotrnos assumidos pela política externa norteamericana durante o período coberto pelo livro. Esta observação é particulamente válida para os autores que antecedem a completa profissionalização do campo da ciências sociais nos EUA, usualmente autores de livros que também se destacaram como conselheiros de agências governamentais encarregadas de lidar com a Latin America.

Dois elementos do livro de Feres Jr. podem desconcertar um historiador brasileiro. Como historiador, é desconfortável notar a penetração de alguns autores – e suas “interpretações do Brasil” – nos curriculos acadêmicos do Brasil, e, por que não dizer, na historiografia produzida no e sobre o Brasil. O livro aqui resenhado imbrica estes autores numa linhagem intelectual que disseminou conceitos pejorativos em relação a uma massa de terra transformada em todo cultural recorrendo-se a sinédoque. O detalhe pitoresco sobre esse aspecto da ignorância que transborda dos Latin American Studies é a existência de livros que simplesmente não tratam da colonização portuguesa na América quando tematizam a Latin American History. Como brasileiro, é desconcertante ver-se pintado num retrato coalhado de elementos pejorativos, numa trama destinada a satisfação do outro. Nas palavras de Melvin Richter, na já referida orelha do livro: “os norte-americanos fazem uso dele [o conceito de Latin America] para reforçar sua própria identidade, glorificando assim o ‘nós’ através da atribuição de um conjunto de características pejorativas a ‘eles’, ‘o outro’, as populações das Américas do sul e central.” Talvez, um leitor dos ensaistas brasileiros do primeiro terço do século 20 conheça inclusive alguns elementos do conceito de Latin America, ficando menos impressionado e mais curioso. No livro não há uma única menção sobre possíveis leituras mútuas entre o norte e o sul da América. Não se trata, evidentemente, de falha do trabalho de Feres. Esta questão é uma das diversas possíveis direções que pode tomar o exame da nossa história intelectual. A história do conceito de “Latin America” nos Estados Unidos é prova da possibilidade de fazer esta história de forma inventiva e criativa.

Referências

RICHTER, Melvin. The History of Political and Social Concepts: a Crtitical Introduction. New York: Oxford University Press, 1995.

RICHTER, Melvin. Begriffsgeschichte today – an overview. Opening address at the meeting Conceptual Change and European Political Cultures at the Finnish Institute in London, 18-20 June 1998.

1 Uma introdução ao tema pode ser visto em Richter, 1995. Um apanhado das preocupações atuais da begriffsgeschichte pode ser conferido em Richter, 1998.

Tiago Losso – Universidade Federal de Santa Catarina.

Diásporas / Tempo e Argumento / 2009

A revista Tempo e Argumento, do Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), chega a seu segundo número cumprindo o objetivo de promover a reflexão sobre a História do Tempo Presente, bem como divulgar os estudos de caráter nacional e internacional produzidos nesta área do conhecimento.

Entre os fenômenos sócio-culturais do Tempo Presente destacam-se os grandes movimentos populacionais ocorridos nas últimas décadas do século XX e no início do século XXI. Estas diásporas, como vêm sendo denominadas por pesquisadores das Ciências Humanas, as migrações nacionais ou transnacionais, caracterizam-se por um conjunto de processos articulados ainda pouco investigados pelos historiadores. Compreendem não só a perspectiva de obtenção de bens de consumo como motivação principal para a partida, mas avançam para processos como a fragmentação e / ou reconfiguração identitária, a expectativa do retorno, o permanente contato, através do telefone e da rede mundial de computadores, com os parentes e amigos, a formação de redes sociais em determinados campos laborais, o investimento de recursos financeiros adquiridos pelos migrantes nos seus países ou regiões de origem, sem deixar de mencionar um cotidiano, muitas vezes permeado de tensões e medos, em função da ausência de documentação.1 O Dossiê “Diásporas” pretende ser uma contribuição acadêmica aos estudos e debates que dizem respeito a este fenômeno mundial que percorre nosso tempo presente.

O referido dossiê é composto por cinco artigos escritos por historiadores / as e cientistas sociais. Luiz Fernando Beneduzi analisa as vivências de mulheres migrantes brasileiras e argentinas na Itália. A migração de comunidades de pescadores entre distintas regiões da Espanha é o tema do estudo de Esmeralda Broullón Acuña. Ana Maria Sosa González, por sua vez, apresenta uma reflexão sobre a “diáspora” uruguaia ocorrida nas três últimas décadas do século XX e seus desdobramentos para a sociedade daquele país. Sueli Siqueira, assim como Gláucia de Oliveira Assis e Emerson César de Campos discutem, a partir de diferentes perspectivas, os desafios enfrentados pelos migrantes que retornaram dos Estados Unidos, no início do século XXI, para o Brasil.

Na seção Artigos temos quatro investigações. Pablo Alejandro Pozzi apresenta uma reflexão sobre o perfil dos integrantes da organização clandestina argentina denominada, Partido Revolucionario de los Trabajadores-Ejército Revolucionario del Pueblo (PRT-ERP), entre 1968 e 1976. Francisco Alcides do Nascimento e Regianne Monte Lima, em seu estudo, abordam o processo de constituição da periferia da cidade de Teresina (PI), na década de 1970, a partir da chegada de migrantes. A interdição e criminalização da violência sexual contra crianças e jovens realizada pelo Poder Judiciário e a influência deste processo na formação da sociedade do município de Londrina (PR), entre 1930 e 1970 são analisados por Lucia Helena Oliveira Silva e Cristiano Gustavo Biazzo Simon. Por fim, Nilo Dias de Oliveira discute os meandros da atuação do Serviço Secreto da Delegacia de Ordem Política e Social de São Paulo (DOPS-SP), entre 1950 e 1961, sobre os integrantes das Forças Armadas brasileiras.

A obra resenhada pelo pesquisador Raphael Freitas Santos, intitulada “Diáspora Negra no Brasil”, aborda o legado cultural dos africanos oriundos da África Central para a sociedade brasileira.

Na seção Fontes do Tempo Presente temos uma reflexão elaborada pelo historiador Carlos Barros, acerca da experiência do grupo História a Debate, sobre a produção historiográfica da História Imediata. Este mesmo tema é abordado por Marlene de Fáveri e Felipe Côrte Real de Camargo, em uma entrevista, com as historiadoras argentinas Marina Franca e Florência Levin, as fundadoras da Red Interdisciplinaria de Estudios sobre Historia Reciente (RIEHR).

Nota

1. HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG; Brasília: representação da UNESCO no Brasil, 2003.

Os Editores


Comitê editorial. Editorial. Tempo e Argumento, Florianópolis, v.1, n.2, 2009. Acessar publicação original [DR]

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Tempo & Argumento | UDESC | 2009

Tempo e ARgumento3 Tempo & Argumento

A Revista Tempo & Argumento (Florinópolis, 2009-) é uma publicação do Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC.

Apresenta como objetivos estabelecer-se como canal de divulgação de estudos recentes e inovadores na área de concentração do Programa de Pós Graduação: História do Tempo Presente; estimular e desenvolver o intercâmbio entre pesquisadores e profissionais atuantes na área de História e/ou áreas afins; fomentar o intercâmbio de informações e experiências entre instituições nacionais e/ou estrangeiras; fomentar o debate de questões teórico-metodológicas referentes à História; divulgar publicações, comentários, entrevistas e documentos concernentes à pesquisa em História.

Periodicidade quadrimestral.

Acesso livre.

ISSN 2175-1803 (Online)

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História do Tempo Presente / Tempo e Argumento / 2009

A revista Tempo e Argumento, do Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade do Estado de Santa Catarina, contribuirá para o adensamento dos estudos e debates sobre o Tempo Presente, como foco da historiografia. Se retomam algumas atitudes da historiografia clássica, que se voltava para o relato das experiências vividas pelos próprios autores, os historiadores do Tempo Presente o fazem, contudo, de modo inteiramente novo. Isso se dá porque as temporalidades do que chamamos de presente possuem outras características e pressupõem apropriações socioculturais marcadas por processos e eventos que alteraram os modos de vida de enormes contingentes populacionais, afetados pelo impacto das tecnologias criadas a partir da industrialização e das sucessivas ondas de modernização que refazem cotidianos, experiências e valores.

O tempo presente, como tempo histórico, diz respeito tanto a experiências quanto a expectativas, o que entrelaça passado e futuro. A experiência remete ao passado, a expectativa remete ao futuro. Ambos, passado e futuro, fazem parte do presente, mas de modos diferentes e tensos. Para Reinhart Koselleck, na era moderna “a diferença entre experiência e expectativa aumenta progressivamente, ou seja, só se pode conceber a modernidade como um tempo novo a partir do momento em que as expectativas passam a distanciar-se cada vez mais das experiências feitas até então”. A assimetria entre experiência e expectativa permitiu a instauração de um novo horizonte: o progresso e a crença de que “o futuro será diferente do passado, vale dizer, melhor”. 1

O presente alargou-se: antes, um pequeno lapso, um instante, entre um passado deixado para trás e distinto de um futuro a ser construído, passou a ser experimentado como um “extenso presente”. A História do Tempo Presente, a partir dessa acepção, pode ser entendida como História das intensas mutações culturais que presidem as novas acepções do “tempo histórico”. 2

As guerras totais, a velocidade dos movimentos populacionais em grande escala, a urbanização, a restrição aos modos de vida chamados tradicionais, a defesa de direitos humanos considerados universais e, em especial, a reinvenção de cotidianos pela inserção na vida privada de novas sociabilidades e identificações, fazem com que se renovem sobremaneira os objetos de interesse dos historiadores. O tempo presente apresenta-se, então, sob a forma de práticas, linguagens e discursos que traduzem processos políticos relativos ao âmbito não apenas do Estado, mas das sensibilidades, as quais demandas análises históricas que lhes atribuam densidade, para além do senso comum.

Nesta edição de estréia, a revista Tempo e Argumento, apresenta o dossiê História do Tempo Presente. Este é composto por cinco artigos, escritos por François Dosse, Paulo Kauss, Enrique Serra Padrós, Maria Antonieta Antonacci e Yonissa Marmitt Wadi acerca dos complexos processos de edificação de memórias no campo do político, de imagens do urbano, bem como de discursos historiográficos e institucionais. Na seção de Artigos temos quatro estudos onde temáticas relativas à sociedade brasileira estão em foco: Carla Simone Rodeguero discute a anistia política entre 1974 e 1979; Sonia Menezes a relação entre mídia e a memória; Manoel Dourados Bastos a modernização musical de Mario de Andrade; e Paulo Rogério Melo de Oliveira o turismo histórico. O livro, resenhado por Tiago Losso, aborda a construção do conceito de América Latina pelos norte-americanos. Na seção de Traduções temos o artigo do historiador francês Paul-André Rosental, acerca da historiografia relativa a história das populações, publicado na Revista Annales. Por fim, na seção Fontes para o Tempo Presente temos uma entrevista realizada por Silvia Maria Fávero Arend e Fabio Macedo com o historiador francês Henry Rousso, que dirigiu o Institut d’Histoire du Temp Present (IHTP) entre 1995 e 2004 e uma conferência do historiador espanhol Manuel Peres Ledesma sobre a (des) construção da memória do Franquismo.

Notas

1 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2006. p. 305-327.

2 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos. São Paulo: Editora 34, 1998. p. 23-27.

Os Editores.


Comitê editorial. Editorial. Tempo e Argumento, Florianópolis, v.1, n.1, 2009. Acessar publicação original [DR]

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