Cozinha do Extremo Norte – Pará / Amazonas | Bruno de Menezes

O texto Cozinha do Extremo Norte – Pará / Amazonas, de Bruno de Menezes, é um dos estudos clássicos sobre a cozinha paraense. Ao lado do Panorama da Alimentação Indígena, de Nunes Pereira, e da Cozinha Amazônica, de Osvaldo Orico, é marco referencial na abordagem da temática da alimentação, no século XX.

Foi feito sob encomenda de Câmara Cascudo, para compor a Antologia da Alimentação Brasileira. Finalizado em fevereiro de 1963, foi um dos últimos trabalhos realizados pelo poeta, autor de Batuque, que morreu em Manaus, em 2 de julho desse mesmo ano. Leia Mais

Males do Sertão: Alimentação, saúde e doenças em Goiás no século XIX | Sônia Maria Magalhães

A relevância do papel da alimentação no surgimento de doenças na província de Goiás no século XIX é o principal objetivo de Sônia Maria de Magalhães [1] em Males do Sertão: Alimentação, saúde e doenças em Goiás no século XIX, cujo livro é resultado de sua tese de doutorado defendida na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Franca, em 2004.

A autora busca evidenciar que o cotidiano da população goiana não passou por mudanças significativas na passagem do século XVIII para o XIX. Em uma narrativa convidativa à leitura, surge um panorama social, econômico e epidemiológico de Goiás durante o século XIX. O livro se compõe em três partes: “O problema alimentar e as doenças reinantes no Brasil”, “Alimentação e enfermidades em Goiás” e “Assistentes, saúde e agentes a serviço da cura”. Leia Mais

Subsistência e poder: a política do abastecimento alimentar nas Minas setecentistas – SILVA (RBH)

SILVA, Flávio Marcus da. Subsistência e poder: a política do abastecimento alimentar nas Minas setecentistas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. 293p. Resenha de: BASSO, Rafaela. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.30, n.60, 2010.

Subsistência e poder: a política do abastecimento alimentar nas Minas setecentistas, escrito por Flávio Marcus da Silva, traz uma contribuição significativa para o campo da historiografia sobre Minas Gerais colonial, na medida em que analisa a dinâmica do abastecimento alimentar na região no século XVIII, a partir de uma perspectiva política. Nesse sentido, a proposta do historiador é atentar para as diferentes estratégias empreendidas pela Coroa Portuguesa para garantir o acesso da população aos gêneros alimentares de primeira necessidade e evitar qualquer desordem pública. Porém, acreditamos que essa não é a única importância da obra, uma vez que o estudo desenvolvido por ela perpassa várias instâncias da sociedade mineradora, buscando decifrá-la e repensá-la não só no âmbito geral da política e da economia, mas também no cotidiano, através do estudo da alimentação. Vejamos por quê.

O problema da instabilidade do mercado de víveres, no que diz respeito ao suprimento regular da população, era frequente em várias regiões da América Portuguesa. Ainda mais na sociedade mineira, que nesse período estava em seus primórdios e sem estrutura para receber o contingente de pessoas que para lá migravam, vindas de várias partes, inclusive da metrópole, em busca de ouro e pedras preciosas. Não foram raros os problemas referentes à escassez, à má qualidade e à carestia dos gêneros alimentares, os quais afligiam a população dessa região na primeira metade do século XVIII e geravam conflitos com as autoridades locais. Esses conflitos criavam um ambiente propício para a sublevação dos povos, o que de fato ocorreu algumas vezes no período. O livro analisa, portanto, a questão do abastecimento, cujo papel era fundamental para garantir

o êxito da administração na região e também para aquietar a população. Para se embrenhar nas tessituras da cultura política metropolitana, o his toriador revisita obras de autores como Adam Smith, E. P. Thompson, John Bohstedt, Adrian Randall e Andrew Charlesworth, que também se dedicaram ao estudo das políticas intervencionistas no âmbito do abastecimento alimentar. Esse debate forneceu ao autor acesso a conceitos explicativos, tal como o de economia moral extraído da obra A economia moral da multidão inglesa no século XVIII, de E. P. Thompson. Nesse trabalho, o historiador inglês aponta como as intervenções do poder público na comercialização de gêneros de primeira necessidade na Inglaterra moderna foram resultado de uma série de motins da população contra a fome generalizada no período. De acordo com Thompson, as revoltas eram motivadas por uma visão “consistente tradicional das normas e obrigações sociais, das funções econômicas peculiares a vários grupos da comunidade, as quais, consideradas em conjunto, podemos dizer que constituem a economia moral dos pobres”. Tal postura estaria relacionada com noções que a comunidade tinha sobre o que era direito e dever do Estado, as quais seriam legitimadas por antigas tradições.

Deve-se ressaltar que essa categoria analítica será reavaliada por Flávio Marcus da Silva, tendo em vista dar conta da especificidade da realidade colonial de Minas. Para ele, o conceito deve ser mais abrangente a fim de esmiuçar

o equilíbrio de forças estabelecido entre governantes e classes populares, mediante um acordo implícito para garantir o cumprimento das obrigações sociais. Nesse ponto entra em cena a teoria corporativa do Estado, de António Manuel Hespanha. De acordo com essa teoria, a sociedade portuguesa – incluindo também suas possessões coloniais – deveria ser entendida como um organismo onde cada indivíduo tinha uma função para o bom funcionamento do corpo social e político. Nesse sentido, o soberano ocupava a posição da cabeça do “corpo”, cuja função deveria ser a de garantir o cumprimento da justiça mantendo a ordem e a harmonia dentro de seus domínios.

O uso dessas noções, em seu arcabouço teórico, permitiu a Flávio Marcus da Silva analisar as seguintes estratégias empreendidas pela Coroa para sanar os problemas advindos da crise de subsistência: a concessão de terras para a agricultura, a taxação dos gêneros de primeira necessidade, a fiscalização dos pesos e medidas, bem como a preocupação com a manutenção das estradas. Por desenvolver essa análise, acreditamos que o autor se propõe a romper com interpretações que, através de uma perspectiva política, trabalham com a dicotomia entre colonizadores e colonizados, como se não houvesse interesses comuns entre ambas as partes. Tais interpretações seriam advindas de uma visão que entende a colonização portuguesa somente como um vasto empreendimento predatório, voltado a explorar a colônia para atender os interesses da Coroa, sejam eles econômicos, políticos ou religiosos, entre outros. O historiador, por sua vez, quer trabalhar de uma nova maneira a relação entre colônia e metrópole, pois a pesquisa por ele desenvolvida o levou à elaboração da tese de que uma das preocupações centrais da administração em Minas era garantir a subsistência dos povos.

Nesse contexto não podemos deixar de mencionar que Flávio Marcus da Silva não se centra apenas nas ações das autoridades, pois ele nos possibilita visualizar a atuação dos mais diversos agentes históricos envolvidos, desde a produção e a circulação até o consumo dos alimentos. O que nos chama atenção é a negociação desses sujeitos com as autoridades e as relações sociais mantidas entre ambas as partes. De acordo com o autor, os habitantes de Minas perceberam que uma vez o Estado estando estabelecido por aquelas partes, sua obrigação seria garantir a subsistência da população. Além do mais, havia a noção da vulnerabilidade do aparelho administrativo metropolitano e o temor de que a população se amotinasse contra a falta de víveres. As autoridades, desta forma, não poupariam esforços para evitar conflitos, pois haveria o receio de que esses fossem duradouros, a ponto de ameaçar a estabilidade do controle sobre a área.

O que se pretende mostrar é a ação dos mais diversos indivíduos pressionando as autoridades por meio de ameaças, protestos e pequenas sublevações, a fim de que atitudes fossem tomadas com relação ao problema do abastecimento alimentar. Mesmo que na maioria dos casos as ações dos moradores não objetivassem solapar o domínio dos portugueses na região e sim firmar as bases legítimas desse domínio, sua postura política não pode ser deixada de lado, uma vez que demonstram a capacidade do povo de se organizar e defender seus interesses. Nessa proposta, Flávio Marcus da Silva analisa ainda o papel de indivíduos que, de certa forma, representaram um empecilho para o estabelecimento eficaz das políticas de controle sobre a dinâmica do mercado alimentar, tais como proprietários de terras, quilombolas, mercadores, negras de tabuleiro e atravessadores.

Podemos propor que o livro, além de trazer um olhar inovador sobre a política colonial empreendida em Minas, também traz contribuições no que diz respeito à maneira como aborda a economia local. O autor, influenciado por trabalhos que buscam repensar o papel da economia interna dentro da sociedade colonial,1 relativiza algumas ideias consagradas acerca da pobreza da Capitania, a qual estaria ligada ao exclusivismo da extração mineral e à lógica externa desse setor econômico. Dessa forma, ele se opõe à interpretação que relega para segundo plano a estrutura produtiva interna e a comercializa ção alimentar da região, preocupando-se em acompanhar o dinamismo da produção e do comércio interno. Para tanto, o diálogo com obras mais recentes sobre a historiografia de Minas Gerais2 é também fundamental, visto que elas apontam para uma diversificação desses setores, através de uma rede de abastecimento que procurava atender a demanda crescente dos moradores da zona aurífera. Contexto este que existia desde o início dos Setecentos, contrariando a imagem consagrada em outros estudos, segundo a qual a produção alimentar só teria ganhado espaço com a crise da mineração, no final do XVIII.

Ademais, acreditamos que a importância da obra Subsistência e poder reside no fato de que nela a alimentação é utilizada como chave para o entendimento das relações estabelecidas entre colônia e metrópole. Não é de hoje que a alimentação tem chamado atenção dos historiadores. Tal interesse veio se desenvolvendo desde o início do século passado, porém esse campo ainda é muito recente e pouco explorado pelos historiadores brasileiros. Acreditamos que ao trabalhar na perspectiva da História da Alimentação, a obra de Flávio Marcus da Silva é uma das contribuições que surgiram nos últimos anos para suprir essa lacuna.

O autor, ao se mover nessa perspectiva, faz uso dos mais variados enfoques para adentrar seu objeto de estudo, tais como o econômico, o social e o cultural. A presença do primeiro se manifesta na medida em que Flávio Marcus da Silva se preocupa com os problemas referentes à economia de subsistência e à sua dinâmica interna, abrangendo desde a produção até o consumo dos alimentos e sua comercialização com outras partes. O enfoque social se faz presente, visto que são abordados no livro os temas da fome e da desordem social, provenientes dos problemas de abastecimento, bem como a questão da atuação “estatal”, cujo objetivo era sanar o problema através de políticas públicas. Quanto ao enfoque cultural, apesar de não ser uma preocupação do autor e de infelizmente ser o menos explorado pelos trabalhos na área de História da Alimentação, visualiza-se sua presença ainda que tímida no livro, pois temos alguns indícios do cotidiano desenvolvido em torno da alimentação. O autor nos fornece um panorama dos hábitos alimentares daquela região, mostrando alimentos consumidos, bem como alguns de seus usos.

A obra Subsistência e poder de Flávio Marcus da Silva traz várias contribuições para os estudos históricos sobre Minas Colonial, na medida em que reflete sobre aspectos da colonização portuguesa empreendida naquelas terras. Dentre esses aspectos destaca-se a oposição à ideia de pobreza generalizada, decorrente do exclusivismo da indústria mineradora. Tal exclusivismo teria consumido todos os esforços dos colonos e relegado a produção dos gêneros de subsistência para um segundo plano. Além de apontar a importância desta última produção para o mercado interno, o autor apresenta outra face da colonização, diferente daquela intransigente e alheia aos problemas que afetavam a população. Nesse sentido, ao buscar penetrar na sociedade mineira partindo das tensões que a constituíam, ele move constantemente as fronteiras do econômico, do político e do social, apresentando um estudo revelador de toda uma complexa rede de relações que permearam tal sociedade.

Notas

1 Dentre essas obras podemos citar os trabalhos pioneiros de LINHARES, Marie Yeda. História da agricultura brasileira, combates e controvérsias. São Paulo: Brasiliense, 1982;         [ Links ] e de LAPA, José Roberto do Amaral. Economia colonial. São Paulo: Perspectiva, 1973,         [ Links ] bem como outros que os seguiram, como o de FRAGOSO, João. Homens de grossa ventura: acumulação e hierarquia na praça do Rio de Janeiro 1790-1830. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.         [ Links ]

2 GUIMARÃES Carlos Magno. Uma negação da ordem escravista: quilombos em Minas Gerais no século XVIII. São Paulo: Ícone, 1988;         [ Links ] FURTADO, Júnia. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999;         [ Links ] e MENESES, José Newton Coelho de. O Continente rústico: abastecimento alimentar nas Minas Gerais setecentistas. Diamantina (MG): Maria Fumaça, 2000.         [ Links ]

Rafaela Basso – Mestranda da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Departamento de História. Rua Cora Carolina, s/n – Campinas – SP. E-mail: [email protected].

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Cozinha modelo: o impacto do gás e da eletricidade na casa paulistana (1870-1930) – SILVA (RBH)

SILVA, João Luiz Máximo da. Cozinha modelo: o impacto do gás e da eletricidade na casa paulistana (1870-1930). São Paulo: Edusp, 2008. 216p. Resenha de: ABRAHÃO, Eliane Morelli. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.29, n.58, dez. 2009.

O fogão a lenha, utensílio obrigatório nas casas até meados da década de 1930, estava presente nas cozinhas e não raras vezes tinha sobre si o grande tacho de cobre a cozer vagarosamente os doces de abóbora, de mamão ou cidra, dentre as muitas iguarias preparadas pelas famílias. Esse cômodo da casa traz à tona nossas lembranças de infância e desvenda nossa memória gustativa repleta de aromas e sabores.

João Luiz Máximo da Silva no livro Cozinha modelo, originário de sua dissertação de mestrado, instiga-nos a pensar sobre os hábitos cotidianos desempenhados pelas senhoras, suas escravas e, posteriormente, suas empregadas no preparo dos alimentos que seriam servidos à família no dia a dia ou em ocasiões especiais. É um livro sobre história da cultura material e revela-nos aspectos interessantes dos impactos trazidos às cozinhas das casas paulistanas pela introdução do gás e da eletricidade. Mostra, também, como as donas de casa aderiram a essas novidades. Mas seu interesse vai além dos artefatos e procura entender a dimensão física, sensorial, “que perpassa todos os domínios do existir humano”, segundo as palavras do prefaciador, Ulpiano Bezerra de Menezes.

O autor percorre vasta quantidade de documentos – relatórios de diretoria das empresas concessionárias de gás e eletricidade, relatórios técnicos, notícias de jornal, legislação e normas –, focando três grandes temas: história das empresas concessionárias de energia, tecnologia doméstica e habitação. Silva aborda questões de natureza política, sanitária, econômica, tecnológica, cultural e social, além de temáticas diversas, como a arquitetura e o urbanismo, a administração pública e a legislação, os investimentos estrangeiros, os novos equipamentos integrados às redes de fornecimento de energia e ainda os serviços técnicos, as relações de gênero e a publicidade.

Ao tratar da introdução das empresas de energia e das inovações proporcionadas pela eletricidade, Silva tece um amplo discurso sobre os avanços tecnológicos e econômicos e resgata todo o processo de instalação e os mecanismos de expansão das duas redes de infraestrutura urbana: o gás e a eletricidade. O autor relata a atuação da empresa de capital estrangeiro The São Paulo Tramway, Light and Power Company Limited (Light), com concessão pública para a exploração da energia pública e doméstica e do transporte urbano, desde finais do século XIX. Em 1912, essa empresa também passaria a controlar a distribuição do gás ao incorporar a The San Paulo Gás Company.

Silva faz uma abordagem atraente dos avanços proporcionados pela introdução da energia elétrica e do gás à paisagem da cidade de São Paulo, descreve o incremento da indústria e do comércio e sua repercussão no dia a dia dos moradores, sobretudo o impacto do uso do gás pelas famílias paulistanas.

Quanto à urbanização, nesse período a administração pública implantou um novo Código de Postura que disciplinava a abertura de ruas, os alinhamentos das construções etc. Porém, com o crescimento demográfico e econômico vivido por São Paulo, essas medidas públicas não foram seguidas. A demanda por habitação para todas as camadas da população fez crescer a malha urbana consideravelmente. As redes de fornecimento de iluminação e gás não atenderam a todos os novos bairros, percebendo-se então uma segregação espacial na cidade.

Nesse cenário de transformações urbanas as companhias de gás anunciavam seu produto nas revistas femininas com o intuito de conquistar as famílias para as novas tecnologias. Esses anúncios ofereciam ‘progresso e civilização’ e combatiam a antiga tradição da cozinha brasileira – os fogões a lenha –, impondo a mecanização da área de serviço e colocando como ator principal o fogão a gás, símbolo de cozinha moderna, limpa, ordenada e arejada.

Em busca de seu público consumidor – as donas de casa –, as empresas ofereciam cursos especialmente destinados às cozinheiras, ensinando culinária e o manejo dos fogões. Na década de 1910, as revistas femininas publicavam artigos que orientavam as donas de casa na escolha correta da alimentação e na forma de seu preparo, tendo em vista as facilidades proporcionadas pelas novas tecnologias – fogão a gás, panelas de ágata e de ferro –, todas as vantagens que o novo modelo de cozinha representava.

Contribuíram com os anseios das companhias distribuidoras de gás as questões sanitárias implantadas pelo poder público. Em 1918, o Código Sani tário focalizou a questão da higiene e da salubridade dos cortiços e discutiu explicitamente o papel da cozinha na casa e, mais ainda, de seus principais equipamentos, como o fogão. Pouco depois o Padrão Municipal de 1920 dedicou todo um item à organização da cozinha. Antes espaço da casa desprestigiado porque vinculado aos trabalhos braçais, a cozinha passou a ser o alvo principal das autoridades escudadas pelo saber médico. Este a considerava espaço essencial, que deveria ser agregado ao corpo principal do lar e à lógica imposta pelos ideais de urbanização e consumo.

Essas alterações sanitárias não mudaram a realidade, e, por muitos anos os fogões a lenha conviveram com os fogões a gás, não só pelo hábito e pelo conhecimento empírico adquirido no seu manuseio – acendimento, tempo e formas de cozimento –, mas também pela questão econômica, uma vez que a lenha era muito menos onerosa que o gás.

O aparecimento deste novo equipamento, o fogão, é exaustivamente analisado pelo autor de Cozinha modelo, que aborda a sua evolução, de meados do século XIX até a década de 1930, e também a forma de funcionar desse aparelho doméstico. Silva é minucioso em suas descrições e aponta as diferenças entre os fogões tradicionais e os de ferro fundido – estes também conhecidos como ‘econômicos’ –, os quais usavam lenha, carvão vegetal ou coque e cujo modo de funcionamento e combustão os diferenciava completamente dos fogões a gás.

Os espaços domésticos mereceram atenção do autor em questões que ultrapassam as alterações arquitetônicas e chegam às diferentes formas de moradias, divididas por ele em quatro categorias – os palacetes, as casas médias (com mais de três cômodos), as casas populares e os cortiços. Suas análises sobre a cozinha recaem não só em sua localização – no caso dos cortiços, por exemplo, ela inexistia ou era improvisada –, mas também em sua preconizada modernização. Substituía-se a imagem da cozinha bandeirista, que sugeria trabalho pesado e sujo, desenvolvido longe das áreas de estar em razão de fumaça, cheiro e fuligem, por um modelo limpo, com novo mobiliário, visando eficiência no trabalho.

As novas relações que se tramam entre o espaço privado e o espaço público por intermédio da cozinha criam uma articulação inédita com o espaço urbano. Nas palavras do autor: “A viabilização e comercialização de uma nova tecnologia, aplicada ao trabalho doméstico e distribuída por meio de redes, trouxe um grau de dependência da casa a novas relações, que extrapolaram os antigos limites desse espaço” (p.94).

A difusão do uso de novas práticas e técnicas domésticas estava fortemen te associada aos novos padrões urbanos de embelezamento e sanitarização. Para isso, era necessário romper com o passado colonial e com tudo o que ele representava. A nova cozinha higiênica exigia a participação efetiva da mulher, com novas formas de organizar o tempo e o espaço doméstico, a racionalização de seu espaço e seu gerenciamento econômico. Silva entende que essa ‘importância’ da dona de casa relegou a empregada ao papel de mera executora, cabendo à mulher a administração do lar num sentido mais amplo. Estudos de gênero recentes têm revelado que as mulheres nas primeiras décadas do século XX já controlavam o orçamento e as despesas familiares, e esses estudos apontam para uma tendência ao consumo de novidades tecnológicas que facilitassem os afazeres cotidianos do lar, o que sem dúvida satisfazia os anseios das companhias de gás.

No que tange à cultura material, a descrição dos novos artefatos à disposição das donas de casa foi pouco explorado pelo autor. Para apreender os objetos, as novidades tecnológicas que compunham o arsenal de utensílios existentes nas casas paulistanas, faz-se necessária uma pesquisa aos inventários post mortem do período, uma vez que são fonte documental essencial para esses estudos por seu caráter descritivo. Os inventários registram todos os bens da pessoa falecida e que foram objetos da partilha. Nos autos de avaliação, por exemplo, são discriminados os ‘bens móveis’ – utensílios domésticos, móveis, objetos de decoração e de trabalho – e os ‘bens imóveis’, ou ‘de raiz’ – casas, terrenos e plantações. Os aparelhos introduzidos com o advento da eletricidade – torradeiras, cafeteiras e chaleiras, por exemplo – poderiam ter sido mais bem explorados se o autor não se houvesse detido apenas nos anúncios publicitários e na lista de leilões, porque nessas fontes há apenas a indicação dos objetos disponíveis no mercado.

Com narrativa clara e convidativa, Silva nos estimula a percorrer os caminhos da passagem do fogão a lenha para o fogão a gás. Expõe os sentimentos contraditórios em relação à nova tecnologia – crença em seus poderes curativos e terapêuticos, ao lado do medo de intoxicação – e a ideologia de progresso subjacente à propaganda do gás e da eletricidade para o interior das casas. E, sobretudo, revela como a cozinha foi redesenhada em torno do fogão ‘moderno’, transformando as relações entre patroas e empregadas e a dinâmica no preparo e na escolha dos alimentos. O autor fornece pistas sobre uma possível ligação entre essa nova cozinha e o desenvolvimento da gastronomia e, de forma pontual, aborda a alteração do cardápio que deveria atender aos novos ritmos urbanos, com refeições rápidas e subordinadas a horários específicos. Algumas deficiências podem ser observadas neste trabalho, relaciona das às próprias escolhas temáticas e das fontes, uma vez que o autor se deteve muito na história das empresas concessionárias e pouco nas transformações dos aparelhos elétricos e no surgimento de novos utensílios domésticos.

Eliane Morelli Abrahão – Doutoranda em História Cultural. Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência, Universidade Estadual de Campinas (CLE/Unicamp). Rua Sérgio Buarque de Holanda, 251, Barão Geraldo. (Caixa Postal 6133). 13083-970 Campinas – SP – Brasil. E-mail: [email protected].

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